Thursday, October 30, 2008

Eric Hobsbawn em entrevista à BBC sobre a crise financeira

Mensagem enviada pelo Professor Valverde - sobre a crise financeira.

"Caros Alunos,
Se puderem, leiam Eric Hobsbawn em entrevista à BBC sobre a crise financeira, em anexo.
Abraços,
Valverde"

BBC Brasil21 de outubro, 2008 - 13h50 GMT (11h50 Brasília)
Crise expõe perigo de fortalecimento da direita, diz Hobsbawm
O britânico Eric Hobsbawm, considerado um dos historiadores mais influentes do século 20, disse à BBC nesta terça-feira que o maior perigo da atual crise financeira mundial é o fortalecimento da direita.
“A esquerda está virtualmente ausente. Assim, me parece que o principal beneficiário deste descontentamento atual, com uma possível exceção – pelo menos eu espero – nos Estados Unidos, será a direita”, disse Hobsbawn, em entrevista à Rádio 4.
O historiador marxista comparou o atual momento “ao dramático colapso da União Soviética” e ao fim de “uma era específica”.
“Agora sabemos que estamos no fim de uma era e não se sabe o que virá pela frente.”
Hobsbawn diz não acreditar que a linguagem marxista, que lhe serviu de norte ao longo de toda sua carreira, será proeminente politicamente, mas intelectualmente, “a análise marxista sobre a forma com a qual o capitalismo opera será verdadeiramente importante”.
Abaixo, os principais trechos da entrevista.
Muitos consideram o que está acontecendo como uma volta ao estadismo e até do socialismo. O senhor concorda?
Bem, certamente estamos vivendo a crise mais grave do capitalismo desde a década de 30. Lembro-me de um título recente do Financial Times que dizia: O capitalismo em convulsão. Há muito tempo não lia um título como esse no FT.
Agora, acredito que esta crise está sendo mais dramática por causa dos mais de 30 anos de uma certa ideologia “teológica” do livre mercado, que todos os governos do Ocidente seguiram.
Porque como Marx, Engels e Schumpter previram, a globalização - que está implícita no capitalismo -, não apenas destrói uma herança de tradição como também é incrivelmente instável: opera por meio de uma série de crises.
E o que está acontecendo agora está sendo reconhecido como o fim de uma era específica. Sem dúvida, a partir de agora falaremos mais de (John Maynard) Keynes e menos de (Milton) Friedman e (Friedrich) Hayek.
Todos concordam que, de uma forma ou de outra, o Estado terá um papel maior na economia daqui por diante.
Qualquer que seja o papel que os governos venham a assumir, será um empreendimento público de ação e iniciativa, que será algo que orientará, organizará e dirigirá também a economia privada. Será muito mais uma economia mista do que tem sido até agora.
E em relação ao Estado como redistribuidor? O que tem sido feito até agora parece mais pragmático do que ideológico...
Acho que continuará sendo pragmático. O que tem acontecido nos últimos 30 anos é que o capitalismo global vem operando de uma forma incrivelmente instável, exceto, por várias razões, nos países ocidentais desenvolvidos.
No Brasil, nos anos 80, no México, nos 90, no sudeste asiático e Rússia nos anos 90, e na Argentina em 2000: todos sabiam que estas coisas poderia levar a catástrofes a curto prazo. E para nós isto implicava quedas tremendas do FTSE (índice da bolsa de Londres), mas seis meses depois, recomeçávamos de novo.
Agora, temos os mesmos incentivos que tínhamos nos anos 30: se não fizermos nada, o perigo político e social será profundo e ainda mais depois de tudo, da forma com a qual o capitalismo se reformou durante e depois da guerra sob o princípio de “nunca mais” aos riscos dos anos 30.
O senhor viu esses riscos se tornarem realidade: estava na Alemanha quando Adolf Hitler chegou ao poder. O senhor acredita que algo parecido poderia acontecer como conseqüência dos problemas atuais?
Nos anos 30, o claro efeito político da Grande Depressão a curto prazo foi o fortalecimento da direita. A esquerda não foi forte até a chegada da guerra. Então, eu acredito que este é o principal perigo.
Depois da guerra, a esquerda esteve presente em várias partes da Europa, inclusive na Inglaterra, com o Partido Trabalhista, mas hoje isso já não acontece.
A esquerda está virtualmente ausente, Assim, me parece que o principal beneficiário deste descontentamento atual, com uma possível exceção – pelo menos eu espero – nos Estados Unidos, será a direita.
O que vemos agora não é o equivalente à queda da União Soviética para a direita? Os desafios intelectuais que isto implica para o capitalismo e o livre mercado são tão profundos como os desafios enfrentados pela direita em 1989?
Sim, concordo. Acredito que esta crise é equivalente ao dramático colapso da União Soviética. Agora sabemos que acabou uma era. Não sabemos o que virá pela frente.
Temos um problema intelectual: estávamos acostumados a pensar até então que havia apenas duas alternativas: ou o livre mercado ou o socialismo. Mas, na realidade, há muito poucos exemplos de um caso completo de laboratório de cada uma dessas ideologias.
Então eu acho que teremos de deixar de pensar em uma ou em outra e devemos pensar na natureza da mescla. E principalmente até que ponto esta mistura será motivada pela consciência do modelo socialista e das conseqüências sociais do que está acontecendo.
O senhor acredita que regressaremos à linguagem do marxismo?
Desde a crise dos anos 90, são os homens de negócio que começaram a falar assim: “Bem, Marx predisse esta globalização e podemos pensar que este capitalismo está fundamentado em uma série de crises”.
Não acredito que a linguagem marxista será proeminente politicamente, mas intelectualmente a natureza da análise marxista sobre a forma com a qual o capitalismo opera será verdadeiramente importante.
O senhor sente um pouco recuperado depois de anos em que a opinião intelectual ia de encontro ao que o senhor pensava?
Bem, obviamente há um pouco a sensação de schadenfreude (regozijo pela desgraça alheia).
Sempre dissemos que o capitalismo iria se chocar com suas próprias dificuldades, mas não me sinto recuperado.
O que é certo é que as pessoas descobrirão que de fato o que estava sendo feito não produziu os resultados esperados.
Durante 30 anos os ideólogos disseram que tudo ia dar certo: o livre mercado é lógico e produz crescimento máximo. Sim, diziam que produzia um pouco de desigualdade aqui e ali, mas também não importava muito porque os pobres estavam um pouco mais prósperos.
Agora sabemos que o que aconteceu é que se criaram condições de instabilidades enormes, que criaram condições nas quais a desigualdade afeta não apenas os mais pobres, como também cada vez mais uma grande parte de classe média.
Sobretudo, nos últimos 30 anos, os benefíciários deste grande crescimento têm sido nós, no Ocidente, que vivemos uma vida imensuravelmente superior a qualquer outro lugar do mundo.
E me surpreende muito que o Financial Times diga que o que se espera que aconteça agora é que este novo tipo de globalização controlada beneficie a quem realmente precisa, que se reduza a enorme diferença entre nós, que vivemos como príncipes, e a enorme maioria dos pobres.

Caro leitor boa reflexão!

Wednesday, October 15, 2008

PUC-SP: convergir para mudar

CARTA DO PROFESSOR VALVERDE DE APOIO AO PROFESSOR FÁBIO GALLO – NA DEMOCRACIA VIGORA A LIBERDADE, O ESPÍRITO PÚBLICO, A ESCOLHA E A OPÇÃO COM RESPEITO PELO SEU CANDIDATO SEM BAIXARIA – TRISTE FOI OBSERVAR NA PUC-SP CARTAZES PICHADOS ... IMATURIDADE POLÍTICA E MÁ FÉ NO EXERCÍCIO DEMOCRÁTICO E REPUBLICANO. PARABÉNS PROFESSOR VALVERDE – PELA POSIÇÃO E APOIO AO PROFESSOR FÁBIO GALLO.

PUC-SP: convergir para mudar

Antonio José Romera Valverde [1]

Há exatos 28 anos a PUC de São Paulo, com liberdade rara no ambiente acadêmico brasileiro, realiza eleições diretas para escolha de Reitor, com participação de alunos, professores e funcionários. Entre os dias 21 e 24 deste mês, o rito democrático se repetirá, com uma novidade: mais do que a escolha do Reitor e, também do Vice-Reitor, estarão em jogo o futuro daquela que é uma das mais conceituadas universidades brasileiras, seja pelo papel que sempre desempenhou na vida do país, com intransigente defesa da democracia, seja pelo seu nível acadêmico, reconhecido internacionalmente.

O que está acontecendo? A PUC-SP encontra-se sitiada por dívidas. São, praticamente, R$ 103 milhões, se o cálculo restringir-se ao passivo bancário. Se somados os impostos e o passivo trabalhista, o valor ultrapassa o patamar dos R$ 300 milhões. Na realidade, é uma dívida móvel que não se tem ainda um cálculo exato, mas a verdade é que a cifra em foco pode ser considerada conservadora. Há pouco menos de uma década, o endividamento bancário somava mais ou menos R$ 24 milhões e as dívidas relativas a impostos e responsabilidades trabalhistas eram muito menores.

Pois bem, entre março de 1999 e abril de 2000 um especialista em gestão, engenheiro com doutorado em finanças, ocupou o cargo de Vice-Reitor e reduziu o endividamento bancário para R$ 14 milhões, restituindo as linhas de crédito junto aos bancos. Estranhamente, foi afastado e, desde então, as dívidas vêm se multiplicando. O nome deste gestor é Fábio Gallo que agora disputa a Reitoria com outros três candidatos. A diferença é que ele tem uma plataforma que une a refundação do modelo de gestão da PUC-SP com um impulso renovador no campo acadêmico.

Além disso, Gallo transita com desenvoltura nas diferentes áreas da Universidade, inclusive junto à Igreja que, não se pode negar, é quem detém o controle da PUC-SP. Esse aspecto é relevante sob qualquer ângulo que se avalie. Significa, em parte, que haverá sintonia quanto a qualidade de gestão e da escolha dos caminhos certos para superação da crise financeira. Em parte, significa também, a preservação de um bem maior da PUC-SP: a liberdade acadêmica. Aliás, vale registrar, a Igreja de São Paulo sempre incentivou e alinhou-se a esse princípio fundamental para o ensino e a pesquisa na Universidade. Nela, todas as correntes políticas, mesmo nos anos de chumbo do regime militar, sempre tiveram voz e representatividade. A liberdade acadêmica tornou-se assim um valor soberano.

Não é, fora de dúvida, o que está em questão. O ponto central, na atualidade, é a capacidade de unir esses valores – liberdade e excelência acadêmicas – ao projeto de gestão. Essa convergência é vital e torna-se incontornável. Se olharmos o ambiente do ensino universitário, é fácil constatar que a PUC-SP, em termos de qualidade, disputa lado a lado a liderança com as melhores universidades do Brasil. Mas, se o tema for a infra-estrutura, as contas a pagar e os horizontes de investimento, a posição no ranking está muito distante do mínimo razoável. Perdemos posições nesse terreno estratégico. O que isto significa? Que a qualidade do ensino encontra-se seriamente ameaçada. Porém, para extrema felicidade, a Professora Maria Margarida Cavalcanti Limena, socióloga por formação, estudiosa da teoria da complexidade, é candidata a Vice-Reitora, e tem conciliado uma carreira acadêmica notável com a Direção da Centro de Ciências Humanas (2005-2008) e a Direção da Faculdade de Ciências Sociais (2001-2005).

É, portanto, o momento de construir a convergência. De explicitar os conflitos latentes, mantendo a fidelidade ao que existe de melhor nos valores republicanos, e, ao mesmo tempo, pensar grande, mas com coerência, competência e visão de futuro. Não se trata apenas de uma disputa entre plataformas concorrentes, mas entre os que sabem e podem fazer melhor e aqueles que apenas vestem os trajes cintilantes de uma concepção idealista – meritória, sem dúvida -, mas sem a vivência prática do que é gerir uma organização em crise. Crise, vale assinalar, são para especialistas, não para aprendizes.

Essa peculiaridade é que será o motor da mudança. Não se pode esquecer, nesse contexto, que a PUC paulistana possui um ativo de inestimável valor: sua marca. Se revitalizada, se alicerçada na convergência entre a gestão e seu patrimônio acadêmico, se soerguerá ainda mais vigorosa do que foi no passado. Será uma questão de tempo, mas o momento inicial, o verdadeiro ponto de partida, encontra-se nas eleições que se aproximam. A sociedade precisa acompanhá-la com interesse porque, afinal, a PUC de São Paulo, mais do que uma organização de ensino, pesquisa e prestação de serviços, pertencente à Igreja, aos estudantes, aos professores e aos funcionários, é um ícone, um patrimônio essencial do país. E essa nuança que faz, neste ano, as eleições para Reitor um fato relevante, um tema que transcende os campi e o universo acadêmico.



________________________________________1] Professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP e Coordenador da campanha eleitoral “Fábio Gallo – Margarida Limena”, gestão 2008-2010. www.puchoje.com.br

Wednesday, September 24, 2008

Filosofia e adulação

Um bom artigo do professor Roberto Romano:
Correio Popular de Campinas, 24 de setembro de 2008

Filosofia e adulação
Roberto Romano

“A inteligência não possibilita nenhuma livre docência.” A frase é de Walter Benjamin, filósofo importante do século 20 cujo suicídio mostra as aporias do pensamento diante dos governos. Os pensadores, à semelhança de Cristo, sentem desde longa data a tentação do poder. Mas, ao contrário do paradigma ético inscrito no Evangelho de Lucas (“E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe, num momento de tempo, todos os reinos do mundo. E disse-lhe o diabo: Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero. Portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele servirás.”), a resposta, quase sempre, é um esplendoroso “sim” aos donos do mundo.

Platão, após o desastre dos tiranos atenienses, pensou que um governo dirigido por ele, em Siracusa, seria viável e melhor do que o exercido por Dionisio. E para lá se foi, na esperança de controlar finalmente os homens reais. Ledo engano! Quase deixou a vida física nas mãos do poderoso autoritário. Seneca, o moralista e professor de Nero, tem muito a dizer sobre o conúbio entre filosofia e palácios. No século 18, Voltaire foi preso pelo amigo, o rei Frederico, por imaginar que falava com o monarca em igualdade de condições. Os filósofos que ajudaram os ditadores do século 19 e 20 mostraram que entre a verdade e a espinha dobrada, eles preferiram a segunda.

Schopenhauer estigmatiza os docentes da filosofia universitária que acostumaram os leitores a “tomar os mais vazios jogos de palavras por filosofia, os mais pobres sofismas por pensamentos engenhosos e as mais insossas extravagâncias por dialética”. O Estado patrocina uma filosofia industrial que “nutre como qualquer outra”. Os professores “se agrupam solícitos ao redor dos poderosos, proclamam boas intenções, ou seja, dizem estar dispostos a executar todo tipo de complacência para com eles”.

No Brasil, a filosofia acadêmica começa novamente a se ajoelhar diante dos poderes. Tal tendência surge com vigor inaudito. Um filósofo louva na grande imprensa os triunfos do lulismo e transforma o presidente em admirável César: amigo do povo cuja legitimidade vem das pesquisas de opinião. Outro, ensaia rapapés ao Planalto, afirmando inclusive que seu sucesso vem da preservação irrestrita do Estado de direito. Nenhum deles nota o projeto do Executivo, de censura à imprensa, cujos efeitos serão mais desastrosos do que os serviços dos extintos DIP e SNI. Em vez de punir arapongas arbitrários, o governo decide (pela enésima vez) que a mordaça é o melhor instrumento.

O enterro da crítica mostra a que ponto chegamos, na marcha da bajulação. A coisa está complicada e seria de bom alvitre deixarmos, imediatamente, de parolar sobre ética e coisas afins, para instituir cursos públicos e privados de adulação filosófica. Imagino as ementas do referido ensino: “o aluno aprenderá a louvar qualidades inexistentes dos governantes e dos ricos, de maneira plausível e, portanto, eficaz. A disciplina abrangerá estágios cujos títulos serão: brownosing I, II, III, e neles os alunos aprenderão a bem usar o nariz, aplicando-o às partes secretas dos poderosos. Como aperfeiçoamento, o estudante aprenderá a mímica admirativa diante dos governantes”. A bibliografia pode ser nutrida pelos tratados de Plutarco, sobretudo o “Como distinguir o amigo do adulador”.

Com o panorama dos últimos tempos, e com o que se testemunha em parcelas das elites intelectuais, cujo bico sedento se abre para as verbas dos governos e conspurca o verbo que deveria manter fidedigno, só podemos anuir com o diagnóstico melancólico de Eric Voegelin (Hitler e os alemães): “Estupidez, ignorância, preguiça, inércia, decadência de diferentes tipos (...) são forças eminentemente importantes no processo social”. É difícil manter o espírito alerta quando surgem tantas oportunidades de suicídio intelectual rendoso, tanto em finanças quanto em poder. Tristes Trópicos.

Fonte: http://robertounicamp.blogspot.com/ 24/09/2008

Saturday, September 20, 2008

Eleições: Alerta Brasil!

Em tempos de eleições devemos ficar atentos aos pilantras e picaretas que não buscam o bem comum, mas o seu próprio “bem particular” – como os nossos governantes que elaboram leis para cercear a liberdade de expressão, isto é de impressa.

Thursday, August 21, 2008

O atual status quo é pior do que muitas ditaduras, porque é um poder de castas disfarçado com aparências democráticas.

Segue abaixo o bom artigo do professor Roberto Romano.


Tirania e privilégios
Roberto Romano
Todos os dias, os brasileiros, escorchados por impostos e sem receber do Estado proteção física e espiritual, educação e saúde, segurança e justos tribunais, ficam sabendo pela imprensa (quando não impera a censura) que os operadores estatais legislam em causa própria, geram privilégios que alimentam seus desejos e ambições, em detrimento do bem comum. Nos três poderes do Brasil, vigora muita injustiça. O atual status quo é pior do que muitas ditaduras, porque é um poder de castas disfarçado com aparências democráticas. Como a cegueira do privilégio impede os dirigentes de enxergar a triste realidade do país, voltemos às fontes filosóficas que nos ajudam a perceber (falo dos “cidadãos comuns”) o quanto nosso Estado é tirânico.

No tratado sobre O Regime dos Príncipes, de Tomás de Aquino, escrito entre 1265 e 1266, o santo retoma Aristóteles: “Um regime torna-se injusto se, ao desprezar o bem comum da multidão, busca o bem privado do governante. Por tal motivo, quanto mais um regime se afasta do bem comum, mais ele é injusto (...) A tirania se afasta mais do bem comum, pois nela se procura o bem de um só, logo o regime do tirano é o mais injusto”. Com base em Aristóteles, mas também por recolher alguma lembrança do injusto platônico, Aquino diz que “o tirano é um o lobo que não garante a segurança dos governados e persegue os bons cidadãos, favorece as quadrilhas reunidas para delinqüir, impede a amizade, propicia a discórdia. Ele em nada difere de uma fera”.

Referência de Aquino é Isidoro de Sevilha, quando se trata da análise da lei e da tirania. A lei é fundamentada na razão e composta não tendo em vista a vantagem privada mas o bem comum dos cidadãos. Qual o alvo das leis? Segundo Isidoro citado por Aquino, “as leis foram feitas para que a audácia humana pudesse ser colocada em limites pelo medo que elas inspiram, para que a inocência fosse protegida no meio dos desordeiros, e que o pavor da punição restringisse os perversos de produzir danos”. Aquino cita Aristóteles: “‘É melhor que todas as coisas sejam reguladas por lei do que deixadas à decisão dos juízes’ e isto por três razões. Primeira, pois é mais fácil encontrar poucos sábios capazes de encontrar leis sábias do que muitos para julgar corretamente cada caso individual. Segunda, porque os legisladores devotam muito tempo ao que faz a lei enquanto o juízo sobre os casos singulares deve ser dado logo que o caso ocorre; mas é mais fácil para o homem ver o que é direito tomando em consideração muitos exemplos, em vez de um só caso. Terceira, porque os legisladores julgam termos em geral em vista do futuro, mas os juízes o fazem em relação ao presente, tratam com o que pode afetá-los pelo amor ou ódio ou ambição de algum tipo, e assim seu julgamento pode ser distorcido. Dado que a ‘lei animada’ dos juizes não se encontra em muitos homens, e porque ela pode ser distorcida, foi preciso, sempre que possível, que a lei determinasse como deveria ser o julgamento, e para muito poucas matérias se confiasse na decisão dos homens”.

Aquino reitera com Isidoro: “‘A lei não deve ser composta para vantagem privada mas para o benefício comum dos cidadãos’, e deve se adaptar ao bem comum. Se a lei é injusta, a ordem divinamente ordenada dos poderes não se aplica, e portanto um homem não é obrigado a obedecer a lei em tais casos, se pode resistir, assim o fazendo sem escândalo ou alarma pior”.

O privilégio de foro, auto-aplicado pelos políticos, é aceito pela Justiça sem maiores questionamentos. O ministro Joaquim Barbosa é dos poucos que criticam tal norma tirânica. E vem a notícia: o Estado brasileiro pagará mais de um bilhão de reais a magistrados, em vantagens, como ajuda moradia, mesmo que residam na mesma cidade onde julgam. Existiria algum nexo entre os privilégios ? Que diriam Isidoro de Sevilha, Aquino, Aristóteles sobre tais atos? Ajudam o bem comum? Ou são tirânicos? Aos, políticos, aos juízes e aos que pagam impostos, a resposta.

Fonte: http://robertounicamp.blogspot.com/ - 21/08/2008

Monday, July 14, 2008

A “grande propriedade monocultural” – (uma das mazelas que se alastram como um câncer na sociedade brasileira

O livro A formação do Brasil Contemporâneo do Caio Prado Junior é um bom (excelente) livro para ser visitado nos “tempo de monocultura” na “produção agrária” brasileira ou da “grande propriedade monocultural” – (uma das mazelas que se alastram como um câncer na sociedade brasileira - desmatamento é pouco) que se instalou por aqui desde os tempos da Colônia.

Boa leitura!

Daner Hornich

Saturday, May 31, 2008

A atualidade de Max Weber

SAIU NA REVISTA CULT,

A atualidade de Max Weber


A noção de "patrimonialismo" continua a orientar parte significativa da reflexão sociológica nacional. No entanto, é preciso fundamentar um novo paradigma à luz da própria crítica weberiana

Por Jessé de Souza

Max Weber é provavelmente o autor mais influente e conhecido no âmbito das ciências sociais. Não apenas a sociologia e a ciência política modernas o têm como autor central e referência constante, mas também o direito, a economia, a administração de empresas e até a filosofia mobilizam várias de suas interpretações e idéias. É difícil imaginar um pensador contemporâneo que não tenha sido influenciado por suas idéias. Em Pierre Bourdieu e Jürgen Habermas, por exemplo, a influência é decisiva. Mas também no contexto brasileiro, Weber não só é um dos autores mais citados nas teses acadêmicas de ciências sociais entre nós, mas também foi inspiração para a produção do conceito mais influente, ainda hoje, da sociologia e da ciência política brasileiras: a noção - ambígua e equívoca, como teremos, mais adiante, ocasião de explicitar - de patrimonialismo. O que explica tamanha influência?

Sua influência diz respeito à especificidade do que ele denominava de "racionalismo ocidental". "Racionalismo" significa a forma, culturalmente singular, de como uma civilização específica e, por extensão, também os indivíduos, que constituem sua forma de pensar e agir a partir desses modelos culturais, interpreta o mundo. Isso implica, antes de tudo, que não existe definição "universal" possível acerca do que é "racional" ou do que seja "racionalidade". A forma como a racionalidade vai ser definida em cada sociedade específica depende, desse modo, da matriz civilizacional a qual essa sociedade particular pertença. Em relação à civilização ocidental moderna, Weber irá definir seu racionalismo específico como sendo o do "racionalismo da dominação do mundo". Esse racionalismo difere de modo profundo, por exemplo, dos racionalismos não-ocidentais como o da "fuga do mundo", típico da sociedade de castas hindu, ou do racionalismo da "acomodação ao mundo" típico da sociedade tradicional chinesa. O racionalismo da dominação do mundo vai ser definido por uma "atitude instrumental" em relação a todas as três dimensões possíveis da ação humana: ação no mundo exterior, na natureza; no mundo social; e no próprio mundo subjetivo, como meros "meios" para a consecução de fins heterônomos como poder e dinheiro.

Weber logra transformar a percepção de uma "racionalidade objetiva" que se impõe aos sujeitos de modo independente de sua vontade, no fundamento mesmo de uma "sociologia compreensiva", toda voltada a captar o "sentido subjetivo" das ações humanas. É que, no "racionalismo moderno", são os pressupostos da "ação eficaz", no sentido de efetivamente transformadora da realidade externa, que a tornam "compreensível" para todos, permitindo a "evidência intersubjetiva" que garante a cientificidade de proposições e descrições da realidade.

Mas Weber não formula apenas a possibilidade de junção científica dos aspectos subjetivos e objetivos no contexto do "racionalismo da dominação do mundo". Ele inspirou também, precisamente por ter captado a "ambigüidade constitutiva" do racionalismo singular ao ocidente, os dois diagnósticos mais importantes para a autocompreensão do ocidente até nossos dias: uma concepção liberal, afirmativa e triunfalista do racionalismo ocidental; e uma concepção crítica desse mesmo racionalismo, que procura mostrar sua unidimensionalidade e superficialidade.

Para a versão liberal e afirmativa, Weber fornece, por um lado, sua análise da "revolução simbólica" do protestantismo ascético, para ele a efetiva revolução moderna, na medida em que transformou a "consciência" dos indivíduos, e a partir daí a realidade externa, e não o contrário, como na Revolução Francesa, que termina em restauração do poder monárquico. É a figura do protestante ascético, dotado de vontade férrea e com as armas da disciplina e do autocontrole, quem cria o fundamento histórico para a noção do "sujeito moderno" e até mesmo para a noção moderna de "personalidade" enquanto entidade percebida como um todo unitário com fins e motivos conscientes e refletidos. Todas as versões apologéticas do "sujeito liberal" (às vezes, com a contribuição de Tocqueville, sujeito também tornado unidimensional e acrítico) nutrem-se, quase sempre com fundamento empírico na história da pujança econômica e política americana, em maior ou menor grau, da figura do pioneiro protestante weberiano. Por outro lado, é Weber quem reconstrói sistematicamente a lógica de funcionamento, tanto do mercado competitivo capitalista, quanto do Estado racional centralizado, de modo a percebê-los como instituições cuja eficiência e "racionalidade" não teriam igual. Ainda que a perspectiva liberal apologética se restrinja ao elogio do mercado, confluem, aqui, os aspectos subjetivos e objetivos (institucionais) que fundamentam, de modo convincente, a afirmação do "dado", ou seja, do mundo como ele é.

Mas Weber (e nisso reside sua atualidade extraordinária) também percebia o lado sombrio do racionalismo ocidental. Se o pioneiro protestante ainda possuía perspectivas éticas na sua conduta, seu "filho" e, muito especialmente, seu "neto", habitante do mundo secularizado, é percebido por Weber de modo bastante diferente. Para descrevê-lo, Weber lança mão de dois "tipos ideais", ou seja, de modelos abstratos, no caso, de modelos abstratos de condução de vida individual, os quais se encontram sempre misturados em proporções diversas na realidade empírica concreta. Esses "tipos ideais", que explicam o indivíduo típico moderno para Weber, são, por um lado, o "especialista sem espírito", que tudo sabe acerca do seu pequeno mundo de atividade e nada sabe (nem quer saber) acerca de contextos mais amplos que determinam seu pequeno mundo, e, por outro lado, o "homem do prazer sem coração", que tende a amesquinhar seu mundo sentimental e emotivo à busca de prazeres momentâneos e imediatos.

Se a primeira leitura fornece o estofo para a apologia liberal do mercado e do sujeito percebido como independente da sociedade e de valores supra-individuais, a segunda leitura marcou profundamente toda a reflexão crítica até nossos dias. A percepção do indivíduo moderno como suporte das ilusões da independência absoluta e da própria perfeição narcísica, quando, na verdade, realiza, sem saber, todas as virtualidades de uma razão instrumental que termina em consumismo e conformismo político, está na base de todas as variações influentes do assim chamado "marxismo ocidental". Esse termo, denominação ampla que se refere às perspectivas intelectuais que procuraram unir o impulso crítico do marxismo com a análise weberiana do racionalismo ocidental enquanto razão instrumental, foi a base de praticamente todas as concepções críticas do século 20.

Weber no Brasil
No Brasil, a influência do pensamento weberiano é dominada pela leitura liberal apologética. É de Weber que se retira a autoridade científica e a "palavra", no sentido do "nome" e não do "conceito científico", para a legitimação científica da noção central, ainda hoje, da sociologia e da ciência política brasileira: a noção de "patrimonialismo", para indicar uma suposta ação parasitária do Estado e de sua "elite" sobre a sociedade. Entre nós, no entanto, esse conceito perde qualquer contextualização histórica, fundamental no seu uso por Max Weber, e passa a designar uma espécie de "mal de origem" da atuação do Estado enquanto tal em qualquer período histórico. Em Raymundo Faoro, por exemplo, que fez dessa noção seu mote investigativo - enquanto na maioria dos intelectuais brasileiros ela é um pressuposto implícito, embora fundamental - a noção de patrimonialismo carece de qualquer precisão histórica e conceitual. Historicamente, na visão de Faoro, existiria patrimonialismo desde o Portugal medieval, onde não havia sequer a noção de "soberania popular" e, portanto, não havia a separação entre bem privado (do rei) e bem público, já que o rei e seus prepostos não podiam "roubar" o que já era dele de direito.

Em segundo lugar, no âmbito de suas generalizações sociológicas, o patrimonialismo acaba se tornando, de forma implícita, em um equivalente funcional para a mera intervenção estatal. No decorrer do livro de Faoro, o conceito de patrimonialismo perde crescentemente qualquer vínculo concreto, passando a ser substitutivo da mera noção de intervenção do Estado, seja quando este é furiosamente tributário e dilapidador, por ocasião da exploração das minas no século 18, seja quando o mesmo é benignamente interventor, quando D. João cria, no início do século 19, as pré-condições para o desenvolvimento do comércio e da economia monetária, quadruplicando a receita estatal e introduzindo inúmeras melhorias públicas.

A imprecisão contamina até a noção central de "estamento", uma suposta "elite" incrustada no Estado, que seria o suporte social do patrimonialismo. O tal "estamento" é composto, afinal, quem o suporta e fundamenta? Os juízes, o presidente, os burocratas? O que dizer do empresariado brasileiro, especialmente o paulista, que foi, no caso brasileiro, o principal beneficiário do processo de industrialização nacional financiado pelo Estado interventor desde Vargas? Ele também é parte do "estamento" estatal? Deveria ser, pois foi quem econômica e socialmente mais ganhou com o suposto "Estado patrimonial" brasileiro.

A quem interessa a idealização do mercado e a demonização do Estado?
Como fica, em vista disso, a falsa oposição entre mercado "idealizado" e Estado "corrupto"? Ora, trata-se de um conceito que se refere a todos e a ninguém e pouco ou nada esclarece. Se o potencial científico e esclarecedor dessa noção é tendencialmente nulo, o mesmo não pode ser dito de seu potencial ideológico e político. Ela "simplifica" e "distorce" a realidade social de diversas maneiras e sempre em um único sentido: aquele que simplifica e "idealiza" o mercado e subjetiviza e "demoniza" o Estado. De weberiano, pelo menos, esse processo não tem nada. Vimos que a marca da riqueza da reflexão weberiana é precisamente perceber a ambigüidade constitutiva dessas instituições fundamentais do mundo moderno e, com isso, perceber a ambigüidade imanente ao próprio racionalismo ocidental. O mercado cria riquezas com uma eficiência singular, mas produz, simultaneamente, desigualdades e injustiça social de todo tipo. O Estado pode agir das mais diversas maneiras, dependendo da correlação de forças política que esteja no controle do poder de Estado.

Como uma hipótese tão frágil, pode-se perguntar o leitor atento, conseguiu ser até hoje o conceito central da reflexão brasileira, a tal ponto que é repetido, mesmo hoje, não só pela maioria dos intelectuais, na universidade e fora dela, mas também pela mídia e pelos cidadãos comuns nos bares de esquina do Brasil afora? Se quisermos responder a essa questão "weberianamente" - o Max Weber crítico que sempre se interessou pela forma como indivíduos e classes "legitimam" seus "interesses" materiais e ideais criando "racionalizações convincentes" -, temos que perceber as necessidades e interesses que esse tipo de visão de mundo justifica. A quem interessa "demonizar" o Estado, pleitear o Estado mínimo, criticar a incipiente assistência social estatal, e, em suma, reduzir os interesses da sociedade aos interesses da reprodução do mercado?
Quaisquer que sejam os interesses em jogo, o tema do patrimonialismo, precisamente por sua aparência de "crítica radical", dramatiza um conflito aparente e falso, aquele entre mercado e Estado, sob o preço de deixar à sombra todas as contradições de uma sociedade que naturaliza desigualdades sociais abissais e um cotidiano de carência e exclusão. Na crítica deste paradigma ultrapassado e superficial, e na construção de outros mais adequados e verdadeiramente críticos, a tradição crítica que Weber também inspirou pode construir, também entre nós, uma alternativa fundamental para a auto-reflexão dos brasileiros. É de se esperar, como vemos, que as tradições que se alimentam da riqueza da obra desse pensador cada vez mais atual, ainda continuem a desempenhar, aqui e alhures, um papel nada desprezível.

Jessé de Souza é professor de sociologia da UFJF e organizador do livro A atualidade de Max Weber (Editora UNB), entre outros


fONTE: http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=20E706E2-C7EC-40FD-A886-92E8D595EDB7&nwsCode=D994722C-6B25-4D99-9802-4EAF32967382

"para que poetas em tempo indigente?"

Arte em tempos de indigência?
Artigo da revista CULT.


Encontros sobre arte e filosofia, como os Seminários Internacionais de Vila Velha, no Espírito Santo, transformam-se em uma nova modalidade de resistência política

Por Eduardo Socha*



Seminários "para que poetas em tempo indigente?", em Vila Velha, março de 2008: participação expressiva do público e de
importantes figuras do meio acadêmico e artístico consolidam encontro na agenda dos principais eventos culturais do país.

Isolar uma frase de seu contexto e reproduzi-la como slogan para o fácil comércio no mercado das idéias: este talvez seja o procedimento mais eficaz para se corromper a obra de um filósofo. Adorno, cujo pensamento sempre recusou a falsa objetividade do saber positivista, também não escapou desse jugo de caráter publicitário. Arrancaram-lhe de um artigo de 1949, "Crítica da cultura e sociedade", uma frase que o tornaria conhecido e igualmente desdenhado pelo público que um dia já ouviu falar em seu nome. Adorno teria dito com todas as letras que "escrever um poema depois de Auschwitz é um ato de barbárie". A declaração foi (e ainda permanece) objeto de escárnio e ódio e se converteu numa espécie de adágio que acompanha qualquer referência ao filósofo. Adorno? Ah, o sujeito carrancudo que falou mal do jazz, criou a noção de indústria cultural e "proibiu" moralmente a poesia depois de Auschwitz. É claro que Adorno voltaria a encarar a questão, em 1966, três anos antes de sua morte, tentando desfazer o mal entendido. Começava então afirmando que é próprio da filosofia nunca se exprimir de maneira totalmente literal, na linguagem asséptica de alguma cartilha científica. Pois o efeito retórico de toda formulação filosófica pertenceria a seu próprio núcleo expressivo, não podendo ser tratado como simples ornamento. Quando tal efeito é anulado, reduzindo a declaração a seu valor de face, perde-se de vista o verdadeiro alcance de sua intenção. Mas qual o sentido, afinal, da "proibição" adorniana de 1949?

Para Adorno, o choque do pós-guerra, subitamente convertido em recalcamento social, exigia uma nova reflexão sobre o papel cultural da arte, para que não fosse ocultada a dialética inevitável entre cultura e barbárie, dialética que a experiência recente do nazismo havia demonstrado. Reprimir a lembrança do passado recente - esquecer rápido Auschwitz e forjar uma joie de vivre burguesa sustentada por uma arte parasitária - era assim a pior forma de realizar o acerto de contas social, necessário para tornar viável o resgate de uma certa noção de progresso. A frase de efeito do filósofo deveria ser entendida como a ponta retórica do iceberg proposto pela sua teoria, que identificou paralelos ideológicos entre a propaganda fascista e o mecanismo da indústria cultural, fenômenos marcados pela reversão da razão em mito. Na verdade, como o próprio filósofo diria em 1966, era mais do que urgente escrever poesia, mas aquela poesia atenta para a premissa hegeliana de que enquanto houver consciência do sofrimento, deve existir uma arte para dar forma objetiva a esta consciência. Ao dedicar mais da metade de sua produção intelectual à estética, Adorno sabia que as relações entre arte e política estão longe de ser inocentes e que não deveriam ser analisadas separadamente. Daí o motivo central para sua frase de efeito. Se, por um lado, é falsa a idéia de ver a arte e a cultura como simples epifenômenos sociais, como expressões singularizadas do espírito de época de uma comunidade, por outro, quem reduz o papel da arte apenas a um setor organizado de lazer, perde a chance de realizar o mapeamento da complexa rede que une política e cultura. A verdadeira análise das dinâmicas sociais estaria, para Adorno, na tensão dialética entre esses pólos.

Mesmo que não concordemos com as teorias de Adorno, o exemplo dado pela sua frase de efeito e pela sua polêmica nos autoriza a dizer que as relações arte e filosofia devem ser compreendidas sob a perspectiva mais ampla de um debate acerca da própria organização política de uma sociedade. Dito de outro modo, a produção de idéias envolvendo arte e filosofia é indispensável para a compreensão e para a definição dos destinos da política, no sentido forte do termo. Levando em conta a dispersão contemporânea dos valores estéticos e a progressiva institucionalização da barbárie, a urgência de reflexões dessa natureza torna-se cada vez mais evidente. Por outro lado, não é difícil perceber que a concretização dessa necessidade sempre esbarra em limitações graves, principalmente aquelas associadas à precariedade estrutural de um país periférico. Cabe então a pergunta: de que maneira é possível estabelecer, no Brasil, um espaço regular para discussões sobre arte e pensamento que consiga ir além dos muros universitários?

Superar o alarmismo
Iniciativas como os ciclos de conferência organizados há vinte anos por Adauto Novaes ainda são bastante raras. Mas uma resposta interessante vem sendo empreendida curiosamente em Vila Velha, no Espírito Santo. Há três anos, o Museu Vale realiza em suas instalações um importante fórum de seminários internacionais, aberto ao grande público, cuja temática focaliza as relações entre arte e pensamento no século 21. Fazendo parte da programação estável do museu (criado há dez anos com uma notável vocação pedagógica e comunitária) e integrando a agenda dos eventos culturais relevantes do país, o projeto dos seminários chama a atenção já de início: seja pela consolidação de um importante espaço de reflexão fora do eixo Rio-SP, seja pelo esgotamento de todas as vagas em poucas horas após a abertura das inscrições; motivos que por si só fornecem os indícios de uma demanda crescente por esse tipo de evento. A última edição, realizada em março deste ano, partiu de uma indagação corrosiva do poeta romântico alemão Friedrich Hölderlin, cujo desalento ressoa com brutal intensidade no contexto de hoje - "... e para que poetas em tempo indigente?" A pergunta encerra paradoxalmente uma elegia do poeta, na qual se coloca em dúvida o próprio direito de existir da arte; algo que Adorno, para ficarmos no exemplo da frase de efeito, nunca deixou de problematizar no plano histórico e conceitual.

Contudo, a proposta dos seminários de Vila Velha, reunindo filósofos, historiadores, psicanalistas e críticos consagrados, deseja em cada edição superar o alarmismo de uma catástrofe absoluta e inevitável da arte. Pois a indigência espiritual e material do nosso tempo, marcado pela crise geral de sentido, não deveria impedir o reconhecimento da experiência transgressora que o conteúdo de verdade da arte pode promover. Segundo o organizador do evento, Fernando Mendes Pessoa, é inegável que "a arte propicia um acontecimento fundamental capaz de transformar essa indigência", embora tal transformação não se converta em objeto localizável de acordo os parâmetros de uma lógica mercantil.

Assim, para dar conta do desafio de compreender aquilo que escapa à redução sócio-cultural da arte no mundo contemporâneo (quer dizer, para que a arte não seja o lugar pedante de "grã-finagem cultural"), a organização optou neste ano pela divisão dos seminários em dois momentos: "a indigência de nosso tempo" e "para que arte hoje?". Ou seja, não se quis apenas avaliar a perda do caráter formador das instituições artísticas (museus, academias de belas-artes, orquestras etc) na formação de subjetividades; confirmar a "era do vazio" após o esgotamento das possibilidades de renovação política e espiritual; constatar a instrumentalização tirânica e diária de quase todos os nossos desejos pela publicidade; ou, até mesmo, verificar de que modo uma certa "estética da miséria", que o olhar ocidental deseja impor sobre o Brasil, continua a orientar os critérios de justificação para a arte realizada no país.

A tônica da última edição dos seminários, na verdade, foi atualizar a questão sobre a legitimidade da arte, sobre seu próprio "direito de existir" em novos tempos de indigência. Assim, a partir de autores clássicos e contemporâneos, o encontro buscou neste ano debater a necessidade que todos possuímos daquele espanto contínuo e renovado que apenas a criação artística concede, necessidade que provém de um impulso vital. Desestabilizar percepções estruturadas, implodir a visão habitual das coisas: aí estaria o potencial subversivo e transformador da arte, cujo questionamento sempre perturba o consumo dócil das opiniões, a imposição do pensamento único, a adesão irrefletida ao pré-estabelecido. Como foi declarado nos seminários, a própria pergunta "para que arte?" torna-se falsa na medida em que não há definição universal e satisfatória de arte; ou seja, não há definição que dê suporte para a procura de um sentido, de um "para que" - é da própria natureza do novo não se conformar ao já existente. Nesse compromisso com o novo, nesse questionamento perpétuo sobre o instituído, arte e filosofia se encontram e podem ganhar contornos políticos. Afinal, se, apesar do progresso tecnológico e econômico, enfrentamos o risco de um novo estágio de indigência espiritual e de conseqüente avanço da barbárie impulsionado por um capitalismo suicida, os seminários lembram que temos a arte precisamente para não perecer nessa indigência. Com isso, comprovam mais uma vez que o próprio debate sobre arte e filosofia, sobre o campo fecundo de reflexões que tal confronto estabelece, é também uma forma discreta (porém decisiva) de resistência política.

* O autor viajou a convite da organização do evento "Seminários Internacionais Vale". Mais informações sobre o evento em www.seminariosmv.org.br


FONTE: http://revistacult.uol.com.br/website/site.asp?edtCode=EF641083-3D32-4F8C-9C5D-30564DAAF6B4&nwsCode=A50BBF25-FC80-4588-B95A-00766DCE954E

Estranha justiça, cuja base é a falta da necessária verdade

Bom artigo do professor Roberto Romano.


Em defesa da Unicamp (2)

(*) Roberto Romano da Silva





As acusações inverídicas contra a Unicamp, emitidas por frei David dos Santos, o líder da Educafro, mostram que seus ataques não visam apenas conseguir cotas para seus liderados. Elas visam interferir nas formas de recrutamento, ensino e investigações acadêmicas. Depois da ditadura militar e de suas violências no campus, agora vêm os aiatolás com a renovada tentativa de domesticar a universidade em favor da visão teológico-política. A mesma visão que norteia a tutela exercida por vários padres sobre setores do movimento negro. O que mais irrita aqueles clérigos é a autonomia da universidade. Ela impede o exercício de sua peculiar cura d’almas, na qual destruir a essência acadêmica é o maior objetivo, para erigir a fé submissa aos ditames sacerdotais.

Nos séculos 17 e 18, a Sorbonne atacou, quando não tinha mais autonomia, a ciência representada por Descartes e Pascal. Tal perda ocorreu no século 16 sob Gerson, o reitor que abandonou a liberdade acadêmica em troca das verbas para o sustento da escola superior. Segundo ele, a universidade deveria fornecer técnicos eficazes à Igreja, ao Estado e à burguesia comercial. Com a Faculdade de Medicina manteria os corpos saudáveis no trabalho e na guerra. As Faculdades de Artes e Decretos orientariam a política. A Teologia formaria os dirigentes das almas. Gerson define rígida hierarquia entre os três setores: primeiro a teologia, depois os estudos jurídicos e a medicina.

A universidade deveria manter a unidade da Igreja e do Estado, ao mesmo tempo em que aperfeiçoava o mercado. Com a perda da autonomia, diz J. Le Goff (Pour un Autre Moyen-Âge) a corporação “dos manipuladores de livros se transformou num grupo de teólogos decoradores de textos que se arvoraram em policiais do espírito e dos costumes, queimadores de livros”. Rei, papa ou comerciantes pagavam as contas das escolas, mas exigiam “o direito de apresentação, o patronato. A corporação universitária não gozava inteiramente de um dos privilégios essenciais das corporações, o auto-recrutamento. Ela parece ter-se resignado facilmente a esta limitação de sua independência por vantagens materiais”. Estava pronta a “polícia ideológica a serviço dos poderes. (...) A Renascença vê uma domesticação das universidades pelos poderes públicos” ou pela Igreja.

No século 18, a pesquisa e o ensino livres foram obras de pessoas exteriores à universidade, como os Enciclopedistas liderados por Diderot. No campus, Imanuel Kant, na crítica da desrazão universitária - O Conflito das Faculdades - ironiza as “Faculdades Superiores” (Teologia, Medicina, Direito): “o que mais interessa ao governo é o que lhe possibilita a mais forte influência – e a mais durável – sobre o povo, os objetos das Faculdades superiores são dessa natureza”. Nas faculdades “superiores” não existia liberdade de pesquisa, pois tudo vinha dos ministérios. Nelas era ignorado o uso público da razão, professores e alunos eram postos tratados como crianças que jamais deveriam argumentar contra as decisões dos príncipes. Na universidade assim concebida, diz Kant, o todo é uma fábrica, professores e alunos são engrenagens da máquina que produz obediência coletiva, como nas demais burocracias religiosas ou de Estado.

Essa prática trouxe os piores abusos, a perversão máxima no século 20 totalitário. Energúmenos políticos inventaram a religião blasfema da raça pura e a impuseram aos campi da Alemanha, Itália, França, e demais países de tradição anti-semita (M. Stolleis, A History of Public Law in Germany, 1914-1945).

Quando movimentos dirigidos por religiosos e fanáticos tentam impor regras de recrutamento para a universidade, atentam contra a autonomia acadêmica. O narrado em meu artigo anterior é claro: para domesticar a universidade vale tudo, inclusive o dado falso de que na Faculdade de Medicina da Unicamp, 90% dos que ingressam no vestibular, um ano depois são reprovados. Esta falácia digna da propaganda sem peias, serve o desejo de desmoralizar os campi para neles incutir a suposta justiça clerical. Estranha justiça, cuja base é a falta da necessária verdade. Continuarei o assunto na próxima semana.



(*) Roberto Romano da Silva é Professor titular de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor de Ética, também pela Unicamp. Doutor em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e membro do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Unicamp, é autor dos livros "Brasil, Igreja contra Estado", de 1979, "Copo e Cristal, Marx Romântico", de 1985, e "Conservadorismo Romântico", de 1997.

Os artigos do Professor Roberto Romano da Silva também são publicados.

Fontes: http://www.ucho.info/roberto_romano.htm

Sunday, May 04, 2008

Quando se trata de política, é preciso aprender a pensar em termos limitados.

Boa leitura e reflexão:

Saiu na folha de São Paulo:

04/05/2008 - 02h29
Leia correspondência inédita entre Hannah Arendt e o estudante Hans-Jürgen Benedict
da Folha de S.Paulo
Em carta de 1967, a pensadora antecipa questões que estariam no centro dos acontecimentos do Maio de 68.
Hans-Jürgen Benedict
355 Marburg
Universitätsstrasse 30-32
Marburg, 3 de junho de 1967
Estimada senhora!
Ao reler, nos últimos dias, seu livro sobre a Revolução Húngara e o imperialismo totalitário, senti-me como quem recorda, depois de muito tempo, os ideais de sua própria juventude e só consegue vê-los à distância, tristemente, como através de um véu.
Do mesmo modo, os acontecimentos desde então lançaram uma nova luz sobre as suas idéias de outrora, cujo apelo não perdeu atualidade: conservar a memória dos acontecimentos é tão necessário agora como então, e a repressão brutal à revolução deve ser continuar a ser objeto de condenação. O que me parece ter envelhecido é a posição a partir da qual a senhora argumentava em seu livro. Como também me parece questionável a veemência de seu veredicto, a ênfase com que a senhora condenou o imperialismo russo.
Para começar por este último ponto: talvez a reviravolta na política russa ainda não fosse visível à época da redação do ensaio. Mas mesmo se fosse esse o caso (coisa de que duvido: a nova tendência foi volta e meia ocultada por crises e só ganhou nitidez a partir de Kossygin e da não-intervenção no conflito do Vietnã), isso justificaria o esforço de negar substancialmente ao comunismo toda possibilidade de mudança e fixá-lo definitivamente em suas feições stalinistas? Isso não significaria limitar a abertura da história no que tange à esfera de poder comunista?
Seus prognósticos quanto aos desenvolvimentos externos e internos bem podiam ser precisos naquela ocasião, mas não necessariamente assim. Justamente essa suposta ausência de potencial do "imperialismo totalitário" vem agora se vingar: já há muito que não há terror organizado na URSS, e a política exterior de coexistência da URSS vem lhe valendo a crítica de contribuir para a persistência da miséria no Terceiro Mundo.
A mudança de rumo da política russa surpreendeu a todos, de tal modo que se torna mais urgente a questão de saber de onde ela provém. A senhora concordaria com a idéia de que a etiqueta de "totalitarismo/ poder absoluto" já não faz justiça ao comunismo russo e de que já não se pode dizer que este opere unicamente por "considerações de poder" e almeje apenas a "construção de um mundo fictício"? A própria renovação do comunismo russo, tal como se exprime na definição de coexistência formulada no programa do Partido Comunista da URSS em novembro de 1961, não mostra que ele se volta a se comprometer com uma renovação do gênero humano e com um mundo melhor, que idéias originais da revolução, enterradas durante o stalinismo, voltam a cobrar vida?
Em segundo lugar: a situação se inverteu desde a Revolução Húngara. Essa mesma situação não nos força a reformular --ainda que com pesar e a contragosto-- o título de seu livro como "A Guerra do Vietnã e o Imperialismo Americano"?.
A senhora não se identificou, em seu ensaio, com a posição do Ocidente, por mais que fosse dali que criticasse o imperialismo totalitário. Tratava-se, para a senhora, de dar contornos nítidos à liberdade genuína que se mostrava na Revolução Húngara. Ao fazê-lo, a senhora excluía, de caso pensado, o problema econômico, a assim chamada questão social, de vez que esta não pertenceria, a seu ver, ao âmbito da política.
Mas a questão social não se tornou, hoje em dia, o problema político por excelência?
A luta do Terceiro Mundo contra a pobreza, a fome e o analfabetismo não tem a ver com liberdade, humanidade e solidariedade num sentido revolucionário? Sua redução do problema e sua interpretação da Revolução Francesa como má revolução não justifica o modo de pensar do governo norte-americano, que se sente no direito de intervir "onde quer que haja governo fracos e tecidos sociais instáveis" (McNamara)?
Em seu grande livro sobre a revolução, a senhora responsabilizou o pauperismo das massas na revolução francesa pela desfiguração de baixo para cima do processo de realização da liberdade revolucionária.
A alternativa, hoje, seria a pacificação americana "de cima para baixo"? E ainda por cima com a pretensão de pôr fim definitivo à "época dos revolucionários românticos e agressivos" (Walt Rostow)?
Se for assim, então essa pacificação de cima para baixo terá de reconhecer que inadvertidamente se transformou em contra-revolução no sentido clássico do termo.
Em outras palavras: em que termos a senhora esboçaria o capítulo adicional da história da revolução que os últimos desenvolvimentos tornaram necessário?
Permita-me, ainda a esse respeito, acrescentar mais uma questão, derivada da introdução a seu novo livro: mesmo contrapondo-se antiteticamente revolução e política de poder, não haverá distintas formas de violência, uma que se exerce como fim em si mesma, e uma outra que se exerce como meio de abolir a si mesma? A violência será mesmo "muda"? A resistência violenta dos oprimidos do Terceiro Mundo não fala por muitos livros?
Escrevo-lhe estas linhas no mesmo dia em que se divulgou que um estudante berlinense foi morto por um policial durante as manifestações contra o xá da Pérsia. Estas já não são questões meramente acadêmicas na Alemanha Ocidental.
Anticomunismo, falta de liberdade política e injustiça no Terceiro Mundo parecem formar um complexo. A guerra do Vietnã demonstrou para nós, estudantes, a unidade do mundo e a necessidade de transformá-lo. Começamos a entender que estamos envolvidos na persistência de situações indignas na Pérsia, no Vietnã ou no Brasil. Acreditamos ter aprendido --e em boa parte por sua influência-- com o nosso passado e por isso nos sentimos implicados onde quer que algo de semelhante se repita.
Sua resposta a estas perguntas não apenas seria de grande valia para nós como também fortaleceria nossa oposição.
Com admiração,
Hans-Jürgen Benedict
Com Tradução de SAMUEL TITAN JR.
*
Hannah Arendt
370 Riverside Drive
New York, NY 10021
25 de novembro de 1967
Prezado senhor Benedict,
O senhor está a par das errâncias de sua bela carta, que só me chegou às mãos, depois de todas as tribulações, quando eu já me aprontava a embarcar num avião. Quero tentar responder-lhe agora; é uma pena que deva fazê-lo por escrito.
O senhor diz ter relido minha brochura sobre a revolução húngara [1956]. Até onde sei, a editora Piper a retirou do mercado --com a minha concordância. Suas objeções estão corretas-- são as mesmas que me faço hoje. Não pus fé no desenvolvimento da situação na Rússia.
E, para lhe mostrar o que penso hoje, remeto-lhe em anexo a nova introdução a "As Origens do Totalitarismo", republicado aqui no ano passado. Não vale a pena mandar o livro inteiro, uma vez que não alterei nada, exceto a introdução à segunda edição (que corresponde à edição alemã); na segunda edição americana, publiquei como epílogo minhas considerações sobre a revolução húngara --que agora simplesmente excluí. Também lhe envio o prefácio inédito ao volume sobre o imperialismo de meu livro sobre o poder total-- para a edição em brochura, a editora decidiu dividi-lo em três volumes. Creio que o senhor encontrará a resposta a suas perguntas nesses textos; no caso da introdução datilografada, o senhor pode começar a ler a partir da terceira seção, à página 14. Respondo, portanto, apenas aquilo que o senhor não encontrará necessariamente nos textos anexos.
Jamais ataquei o comunismo enquanto tal, muito menos o reduzi a uma posição totalitária. Sempre me manifestei com toda clareza contra a identificação de Lênin com Stálin ou mesmo de Marx com Stálin. Não diria que o comunismo se modificou, mas sim que a forma de domínio se transformou. O que temos hoje na Rússia, é a ditadura do partido único, uma variante da tirania --e apenas isso-- que era de se esperar pelo curso "normal" das coisas após a morte de Lênin, não fosse a intervenção de Stálin. Também não acredito no "potencial" de autotransformação do sistema totalitário --seria como se uma monarquia absoluta pudesse rumar por si só para uma monarquia constitucional.
A morte de Stálin, a derrota e a morte de Hitler --esses acontecimentos externos foram decisivos. Se subestimei alguma coisa, foi o assim chamado fator subjetivo, isto é, o elemento estritamente pessoal e, a par dele, a dificuldade de encontrar sucessores para o déspota. As coisas poderiam ter tomado outro rumo, caso se tivesse encontrado alguém disposto a seguir em frente-- talvez Béria, se bem que duvido muito. Inclino-me a pensar que nem mesmo Kruschev (ou seja lá como se grafa seu nome em alemão), no ano de 1957, quando escrevi a brochura, sabia por certo até onde as coisas chegariam --por mais que estivesse bem mais decidido do que eu pensava a pôr fim aos traços mais essencialmente criminosos do sistema.
Também no que toca o seu segundo ponto --imperialismo americano no Vietnã--, estamos de acordo quanto ao essencial, como o senhor verá pelo novo prefácio.
O único elemento de consolo na história toda é que o país vai se agitando mais e mais e que o governo não pode fazer nada a respeito, se não quiser atingir os fundamentos da república. Confio que o senhor esteja a par disso e não entrarei em detalhes. Pode bem ser que estejamos no início de um novo desenvolvimento imperialista --não necessariamente totalitário; o que é certo é que a república dos EUA não sobreviverá a um tal curso das coisas, isto é, a república como forma de governo, não o próprio país. Também o país se encontra sob grave ameaça, mas isso não me importa tanto. Minha lealdade vincula-se a esta república --não ao país-- e, é claro, também às pessoas, entre as quais, feitas as contas, me sinto melhor do que nunca.
O senhor me pergunta ainda se a questão social se tornou a questão política por excelência. A luta contra a pobreza e a fome diz respeito exclusivamente à pobreza e à fome, pelo menos no que diz respeito aos pobres e famintos, que não costumam ser os que conduzem ou que poderiam conduzir essa luta.
E a luta contra o analfabetismo é cada vez mais uma pré-condição para o fim da pobreza e da fome. A pobreza e a fome (chame-as como quiser) impediram que surgisse, dos movimentos de libertação na Ásia e na África, surgisse alguma coisa com um mínimo de estabilidade. A pobreza e a fome criaram o vácuo de poder --também na América do Sul, onde a corrupção dos governos é o reverso dessa medalha-- que agora está ressuscitando o imperialismo.
Toda formação política se caracteriza pelo poder (não pela violência!) que ela é capaz de exercer; pobreza, fome e analfabetismo criam apenas impotência. Não me venha com os vietnamitas, que de fato conquistaram poder no curso da guerra de guerrilha; nós já os conhecíamos quando ainda se chamavam "indochineses". Não são absolutamente um povo miserável, mas um povo desafortunado, mas altamente dotado e herdeiro de uma cultura antiga. Trata-se, ali, de libertação nacional, mas não, absolutamente, do que entendemos por liberdade. E o mesmo vale, creio eu, para Cuba, onde cabe a nós a culpa maior pelo desdobrar dos acontecimento rumo à tirania russa. Mas olhe bem para os outros Estados sul-americanos.
Bem, chegamos então ao "capítulo adicional da história da revolução que os últimos desenvolvimentos tornaram necessário". Quisera eu ser tão otimista quanto o senhor! A Pax Americana, contra a qual Kennedy se exprimiu com veemência e que Johnson proclamou abertamente, é um pesadelo imperialista --mas, por isso mesmo, apenas um sonho.
A "pacificação de cima para baixo" de que o senhor fala é impossível tecnicamente, seja em termos militares ou econômicos. Ninguém é rico o bastante para ajudar a quem não consegue se ajudar; foi possível dar auxílio à Alemanha ou ao Japão, mas não há como ajudar a Índia, o Egito ou o Congo. E, no que diz respeito aos militares, a Guerra do Vietnã deveria ser prova suficiente de que as superpotências já não têm como conduzir guerras convencionais; e graças a Deus estão todos de mãos amarradas no que diz respeito à guerra atômica. É claro que seria possível invadir o Vietnã, o Vietnã do Norte e ocupar e violentar o país com alguns milhões de soldados. Mas, sem falar nos tremendos riscos políticos, quantas vezes um país como os EUA poderia se permitir esse tipo de coisa?
De resto, o senhor tem razão em mencionar Walt Rostow nesse contexto. Ele de fato quer uma contra-revolução, e a ideologia sob a qual navegam todos os esforços nesse sentido é o anticomunismo, cuja origem e formulação ideológica se deve, como o senhor sabe, em boa medida a ex-comunistas. Como um amigo, o crítico norte-americano Harold Rosenberg, escreveu a Sartre há alguns anos: tome cuidado com o comunismo, ele é canteiro do anticomunismo! Précisément!.
No que diz respeito à violência: não há revolução que tenha triunfado graças à simples violência. Há, é claro, o levante violento dos oprimidos, que entretanto só conseguiu alguma coisa quando o poder do Estado já estava minado. É sempre a impotência, a cólera cega e tremenda dos impotentes que se manifesta como violência.
Quando ela triunfa, o caos puro e simples se instala no dia seguinte --simplesmente porque todos que descarregaram sua ira começam imediatamente a divergir. Daí não virá nenhuma resistência. E, se acha que algo do gênero está se dando no Vietnã, creio que o senhor está fundamentalmente equivocado. E creio haver algo do gênero, um erro do mesmo gênero, em outra de suas observações. O senhor afirma que a guerra do Vietnã teria revelado aos estudantes "a unidade do mundo e a necessidade de transformá-lo". Quanto a esse último ponto, podemos concordar sem mais delongas; mas a "unidade do mundo", supondo que o senhor entenda por esse termo mais que uma espécie de solidariedade, é apenas um sonho. Apenas em termos técnicos o mundo constitui uma espécie de unidade. Sob todos os outros pontos de vista, sobretudo no que diz respeito à política e às chances de um desenvolvimento rumo à liberdade, cada país constitui um caso à parte.
Tome a questão da guerra de guerrilha. Sem dúvida, uma modalidade de luta muito eficaz para povos oprimidos, sobretudo diante de invasores estrangeiros. Mas quantos povos, em sua opinião, estão em condições de organizar uma guerra assim? Não se esqueça de que a expressão Terceiro Mundo é apenas um conceito negativo e se refere a todos aqueles povos que não se encontram nas esferas de poder russa ou americana. O senhor acha mesmo que isso basta para constituir uma unidade?
Quanto ao seu último ponto, não resta dúvida de que estamos envolvidos na persistência de "condições indignas" na Pérsia, no Vietnã e no Brasil, mas não cabe a nós transformá-las. Esta me parece ser uma espécie de delírio de grandeza às avessas. Tente fazer política na Pérsia, e o senhor logo estará curado. Sua responsabilidade diz respeito a impedir que se perpetuem condições indignas na Alemanha ou que se matem estudantes durante uma manifestação. Temo que isso já o manterá mais que ocupado.
Politics, like charity, begins at home. Se amanhã --e isso seria bem possível--, após a retirada das tropas americanas do Vietnã, os vietnamitas começaram a se degolar mutuamente, eu não me sentirei em nada responsável. A política é sempre, entre outras coisas, a arte do possível, e as possibilidades dos homens e dos povos são sempre limitadas. Não reconhecer esses limites é um delírio de grandeza, por mais que este se oculte por trás de sentimentos sublimes.
E isto, em política, é muito perigoso, ainda mais na Alemanha. Espero que não tenha aprendido isto com meus escritos. É verdade que Clémenceau disse (durante o affaire Dreyfus): "L'affaire d'un seul est l'affaire de tous", mas é claro que ele se referia a todos os franceses. Se um cavalheiro de Pequim tivesse aparecido então para lhe dizer que o affaire também lhe dizia respeito, Clémenceau provavelmente o teria julgado ligeiramente perturbado.
Não me leve a mal! Tais confusões, por mais que sejam elementares, produzem-se facilmente quando se começa a generalizar. Em certo sentido, todos nós incorremos nelas, mas é preciso prestar atenção para não perder o bom senso.
Nenhum de nós pode mudar todo o mundo, porque nenhum de nós pode ser cidadão do mundo; e costumam se inclinar por uma responsabilidade mundial justamente aquelas pessoas que fogem, por razões compreensíveis, à responsabilidade por seu mundo. Não há como determinar teoricamente os limites, que entretanto facilmente se mostram em termos práticos. Quando se trata de política, é preciso aprender a pensar em termos limitados.
Isso não é fácil para quem, como o senhor ou como eu, vem de uma tradição filosófica pesada e grandiosa como a alemã, pois é da essência do pensamento transpor limites.
Poderíamos continuar a conversar e a discutir nestes termos, sem --quero crer-- cair em birras ou meras disputas. Mas está carta já está longa demais. E agora me ocorre que não lhe escrevi com uma cópia em carbono para o professor Bahr. Posso pedir que encontre uma máquina xerox e lhe faça chegar uma cópia?
Com os melhores votos, sua
Hannah Arendt
Tradução de SAMUEL TITAN JR.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u397646.shtml 04/05/2008

Comentário: é sempre bom refletir sobre os diversos pontos de vista e analisar com cautela e prudência as construções dos nossos julgamentos sobre os acontecimentos em meio a tantas ideologias emergindo.

Daner Hornich

Thursday, May 01, 2008

A CONDIÇÃO MISERÁVEL DO TRABALHADOR

A reprodução de uma reflexão deste mesmo blog:


A CONDIÇÃO MISERÁVEL DO TRABALHADOR


Às vezes temos em nossas companhias pessoas ilustres para conversar e refletir sobre as condições políticas, sociais, econômicas e religiosas do nosso país, do nosso estado e da nossa cidade que fazem refletir e questionar o nosso imaginário estabelecido.
Um desses personagens é Karl Marx (1818 – 1883) – filosofo alemão – importante interprete da condição humana do mundo moderno e de modo especial – do mundo do trabalho e da condição miserável do trabalhador, com uma “existência animal”, diante das exigências capitalistas.
Numa dessas conversas e reflexões com Karl Marx fiz alguns passeios por suas argumentações que são validas para os nossos tempos na sociedade brasileira ao falar do trabalhador, isto é, “a existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição de existência de qualquer mercadoria. O trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele conseguir chegar ao homem que se interesse por ele. E a procura, da qual a vida do trabalho depende, depende do capricho do rico e capitalista” (Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, 24).
Na sociedade mundial e em especial em nossa sociedade a condição do homem moderno e contemporâneo é a de uma simples mercadoria que dependem dos caprichos dos ricos e capitalistas que exploram, dominam e consumem a força vital corporal e espiritual do trabalhador – que numa situação de precariedade e servidão, são exemplos os nossos cortadores de cana no Brasil e entre outros escravos da tecelagem na China.
Não podemos esquecer do processo de industrialização corrente no mundo que rebaixou o trabalhador “... à (condição) de máquina, a máquina pode enfrentá-lo como concorrente” (Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, 27). Além de transformar o homem numa máquina, produziu sua concorrência que “... tal, como o acúmulo de capital aumenta a quantidade da indústria e, portanto, de trabalhadores, essa mesma quantidade da indústria traz, através dessa acumulação (Accumulation), uma grande quantidade de obras malfeitas (Machwerk) que se torna sobreprodução (Überproduktion) e acaba: ou por colocar fora (da esfera) do trabalho uma grande parte de trabalhadores, ou por reduzir o seu salário ao mais miserável mínimo” (Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, 27).
A argumentação acima é alarmante na época de Karl Marx, mas uma constatação em nossos tempos, que privilegiam a acumulação do capital com tecnologia e inovações, por meio, do mercado financeiro competitivo, concorrente e corrupto que desvaloriza o trabalhador, objeto de troca com um preço cada vez mais reduzido, ou seja, uma mercadoria transformada em uma classe de escravos.
Contudo, a conversa se agrava quando encontramos o seguinte argumento: “..., uma vez que, segundo Smith, uma sociedade em que a maioria sofre não é feliz, mas uma vez que a situação mais rica da sociedade conduz ao sofrimento da maioria, e que a economia nacional (de maneira geral, a sociedade do interesse privado) conduz a esta situação mais rica, (deduz-se que) a infelicidade da sociedade é a finalidade da economia nacional” (Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, 28).
Essa é a fotografia da sociedade brasileira – a foto de uma sociedade em que a maioria trabalhadora sofre em detrimento dos poucos ricos que subsiste como uma elite sem projeto de nação, mas que usa dos benefícios públicos para engordar os seus bens privados e alargar a desigualdade e a injustiça social que joga o nosso Brasil num buraco de explorações, roubo e lamaçal de sujeira, que usa a máquina estatal e desvaloriza o seu trabalhador ao vender a sua própria dignidade.

Daner Hornich é Mestre em Filosofia e doutorando em filosofia (PUC –SP),
Professor

Sunday, April 27, 2008

Leis e salsichas

Artigo antigo – mas atual para os nossos tempos – saiu no blog: http://robertounicamp.blogspot.com/




SOBRE LEIS E SALSICHAS.


por Roberto Romano, professor de ética e de filosofia política da Unicamp. Correio Eletrônico - Revista Caros Amigos - Edição nº 207 - 21 de junho de 2005

"Je weniger die Leute davon wissen, wie Würste und Gesetze gemacht werden, desto besser schlafen sie." (Otto von Bismarck)

“Quanto menos o povinho souber como são feitas as salsichas e as leis, mais dormirá tranqüilo.” À frase do Chanceler de Ferro, acrescentemos uma outra, antiga e clássica: “Leis são como teias de aranha que prendem os pobres e fracos, enquanto os ricos e poderosos as quebram facilmente” (Anacharsis). Os fatos aterradores sobre o Parlamento brasileiro e as relações perigosas entre Poder Executivo e Congresso, denunciados por um líder político que até ontem possuía a confiança do presidente da República, tiram o sono dos que pagam impostos. Quando alguém compra uma caixa de fósforos, em nosso território, produz tributos para o Tesouro Nacional. Assim, o mínimo que o Estado deveria fazer, para garantir a confiança dos contribuintes, é providenciar leis que fossem de fato universais, ou seja, não privilegiassem nenhuma das instâncias particulares no plano nacional ou internacional. Se os indivíduos, grupos ou classes sociais abdicam do seu direito natural de matar – segundo os maiores pensadores e juristas da modernidade – é porque o Estado protege os direitos coletivos e não permite que interesses privados se elevem acima do bem comum. Tal é a única base da governabilidade.

No Brasil, desde o início de nosso Estado nacional, a excessiva concentração de todos os aspectos das políticas públicas no poder central trouxe vários defeitos jurídicos estruturais, defeitos que não podem ser sanados com medidas paliativas. Assim os atentados à ética no trato com os dinheiros públicos. Dada a distância (geográfica e jurídica) entre municípios e poder central, os impostos arrecadados nas cidades são dirigidos para os ministérios para serem redistribuídos aos poderes locais. Nesse itinerário, longo e tortuoso, os municípios permanecem à mingua de recursos e não conseguem empreender as obras públicas requeridas pela população. Longe dos gabinetes e próximos do eleitor, os prefeitos precisam conseguir verbas públicas. Entre eles e os ministérios, aparecem os deputados federais e senadores como intermediários eficazes na liberação dos mencionados recursos, seja diretamente nos ministérios, seja na elaboração do orçamento. Só existe um modo de assegurar os montantes necessários aos municípios: a entrega dos votos no Parlamento, com o Executivo, ou a adesão aos grupos de interesses que defendem projetos nos corredores do Congresso. Temos aí a gênese do “é dando que se recebe”, consagrado no Centrão durante o governo Sarney. A prática foi tão repetida, ao longo de nossa história política, que muitos eleitores, para não dizer a maioria, julga que bom deputado federal ou senador é apenas o que traz recursos para as cidades ou regiões. O custo, entretanto, não é explicado no dia-a-dia ou mesmo nos comícios.

Como acréscimo que complica tudo, os deputados federais e senadores ou surgem das oligarquias ou a ela são obrigados a aderir, para que o seu “produto” (o voto no Congresso) seja útil ao Executivo, sempre à busca de legitimidade e sempre na premência de conseguir apoio das várias populações regionais. Da maior ou menor acolhida dos governantes pelos munícipes ou líderes regionais pode surgir a safra de votos que decide tanto a manutenção dos partidos no poder central quanto no Congresso. As oligarquias são bases de apoio para os tratos entre os municípios e os poderes das repúblicas, no caminho que vai da base ao cimo, e são o filtro entre as aspirações dos poderes superiores e as bases urbanas.

Apenas uma distribuição mais pronta e menos injusta dos impostos pelos entes federativos poderia atenuar a necessidade de fazer dos deputados federais e senadores caixeiros-viajantes das regiões na caça aos recursos, vendendo o seu voto nas deliberações legislativas. Quem tiver interesse na origem dos males da corrupção e da “ética” política que vigora entre nós desde o século 19 pode ler o livro de Maria Sylvia Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata (São Paulo, Unesp Ed. 1997, quinta edição). A autora mostra como a carência de recursos e a péssima redistribuição dos impostos pelos municípios produziram muitos dos males da vida política nacional, sobretudo a indistinção entre dinheiros públicos e privados.

É importante pensar nessa escala histórica e genética para não cair na armadilha da conjuntura. A compra e venda de votos, de eleitores e de eleitos, não é prática nova no Brasil, ela vem dos nossos primeiros dias como Estado nacional independente. Importa, e muito, que o atual governo e o seu partido hegemônico tenham apresentado um programa ético a atenuar esse defeito de origem. Como o programa não foi obedecido, as práticas costumeiras apresentaram-se como as únicas vias “realistas” do governo. Foi assim que surgiu a atual base de sustentação no Congresso. Foi assim que o líder da tropa de choque "collorida" tornou-se aliado do governo. Mais do que aliado, “companheiro”, no dizer do presidente da República.

As falas que anunciam golpes brancos e ameaças à governabilidade não possuem sustentação lógica ou factual. As elites apóiam o governo e sua política econômica. Os banqueiros estão muito satisfeitos. Os industriais e líderes do comércio pedem juros razoáveis, mas não querem o impedimento do presidente. Os setores intelectuais ou estão perplexos com as políticas públicas ou as apóiam, poucos as criticam com dureza (sou dos que criticam). Os sindicatos apóiam os governantes, embora recusem aspectos de medidas como a reforma sindical. A Igreja Católica torna-se a cada momento mais dura com o governo, mas essa é uma característica sua, enquanto instituição autônoma no interior da sociedade. A imprensa denuncia a existência dos fatos. O melhor, para silenciar as denúncias, não se encontra nas hipóteses de golpe, mas nas investigações corretas e transparentes. Como exigiam os membros do atual governo quando lideravam a oposição. Se assim for feito, o povo brasileiro poderá encarar as leis e as salsichas com maior tranqüilidade. O chamado “patrimônio ético” não é riqueza física, mas espiritual. Ele deve ser provado a cada dia, sob pena de se perder. As investigações das CPIs precisam ser efetivas e não podem descambar para a propaganda, tanto no caso da oposição quanto no caso do governo. Se as investigações forem conduzidas com ética pelos governantes e parlamentares, a atual administração terá prestado grande serviço ao país. Caso contrário, ela apenas aumentará o descrédito do povo diante das leis. E das salsichas, naturalmente.

"Reflexões sobre o Direito à Propriedade"

Saiu na folha de São Paulo.

São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008



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+ Livros

ADVERSÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Com disposição para o debate, "Reflexões sobre o Direito à Propriedade" ataca o socialismo e critica os rumos do Brasil
MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Denis Lerrer Rosenfield é um filósofo diferente. Poderia escrever para "dentro", para os acadêmicos, ou produzir aqueles relatórios de pesquisa que ninguém vai ler. Não. Procura a discussão pública e, dessa forma, enriquece o debate político nacional. "Reflexões sobre o Direito à Propriedade" é o seu novo livro.
Em seis capítulos, critica os rumos do país e identifica uma questão central: a propriedade privada, no Brasil, está em risco. E em risco está também a liberdade. Suas reflexões se utilizam de autores clássicos e modernos. Entre estes últimos, principalmente Hernando de Soto, Leo Strauss e Friedrich Hayek.
Rosenfield discorda frontalmente do governo Lula. Contudo constrói um adversário que não existe. Transforma o burocrata petista em líder revolucionário. É um grave equívoco. Ruim para o debate político, mas excelente para o burocrata. É bom ser identificado como um perigo à ordem capitalista: massageia seu ego, relembra seu passado de militante esquerdista e até o estimula a ditar (escrever, não) suas memórias.

Aumento de preço
Mas o interesse do burocrata (e aí o aproxima, por estranho que pareça, a Rosenfield) é outro: deseja ampliar sua casa em um condomínio fechado, comprar aparelhos eletrônicos de última geração, roupas de grife e até cosméticos -como declarou o ex-ministro José Dirceu à revista "Piauí". A cada invasão de terra ou de prédio público, o "consultor" aumenta o preço do seu "trabalho".
Ainda no terreno da "construção do adversário", seria mais salutar para o debate se Rosenfield escolhesse entre os livros de Karl Marx outro mais relevante do que o "Manifesto Comunista", sabidamente um texto de propaganda. Por que não "O Capital", as reflexões sobre 1848 ou sobre a Comuna de Paris?
O autor desconhece que nem o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, inúmeras vezes citado no livro) quer fazer a revolução ou que nem o grande capital teme alguma expropriação. É um jogo perverso. Um precisa de verbas públicas para sobreviver como partido agrário, outro só tem olhos para o pagamento dos juros da dívida pública.
A contrapartida do aumento da taxa de juros ou da remuneração abusiva do capital é a ocupação, por exemplo, da sede do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). E o governo Lula atende salomonicamente a todos.
Não é possível concordar com a idéia de que a tradição socialista dá origem "às formas modernas da democracia totalitária". Para Rosenfield, esquerda é bolchevismo. Em momento algum cita a social-democracia alemã ou o trabalhismo inglês (isso explica porque identifica, erroneamente, os caudilhos latino-americanos como defensores de um Estado de Bem-Estar Social).
Dessa forma, apresenta-se como o antagonista do bolchevismo e defende enfaticamente o liberalismo clássico. Critica a Justiça do Trabalho (pela "função distributiva") e a quebra de patentes na área farmacêutica.
Crê que não cabe ao Estado equalizar as desigualdades, pois essas são "fruto da liberdade", da "minoria que empreendeu, assumiu riscos e teve o seu esforço recompensado".
Nesse sentido, é difícil encontrar um lugar para o filósofo no quadro político brasileiro.

Sem paralelos
O anacronismo marca certas análises. É estranha a afirmação de que o Estado brasileiro "aparece como se fosse um Estado do Antigo Regime", pois tanto em um como em outro os "direitos exclusivos eram também assegurados constitucionalmente".
Não há nenhum paralelo entre uma sociedade estamental e uma de classe. O mais grave é quando associa a política de cotas ao programa de liqüidação dos cúlaques [rótulo aplicado, na ex-URSS, ao "camponês rico", visto como resquício da mentalidade burguesa e ameaça à revolução] comandando por Stálin e ao extermínio de judeus na Alemanha nazista.
Que relação é possível estabelecer? Nenhuma. E mais: é a pura banalização do mal, quando se perde o particularismo do fato histórico.

Mudanças sociais
Diversamente do que propõe Rosenfield, falta Estado no Brasil. Estado no sentido mais amplo, nem como comitê central da burguesia, segundo a tradição marxista, nem como ente quase passivo, segundo o ultraliberalismo. Estado não é para ser gestor da miséria e do grande capital, como no governo Lula. Deve alavancar as mudanças sociais e econômicas, garantir plenamente as liberdades e cumprir as leis. Em suma, deve ser o que nunca foi.
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MARCO ANTONIO VILLA é professor de história da Universidade Federal de São Carlos (SP).

REFLEXÕES SOBRE O DIREITO À PROPRIEDADE
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Editora: Campus-Elsevier (tel. 0800-265340)
Quanto: R$ 39 (224 págs.)

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2704200812.htm 27/04/08

Comentário: Analise do Professor Marcos Antonio Villa sobre o livro REFLEXÕES SOBRE O DIREITO À PROPRIEDADE do professor Denis Lerrer Rosenfield.

Sunday, April 20, 2008

Rompendo silêncio: disciminação social e institucional

Reportagem sobre a presença japonesa no Brasil e seus percalços.

Saiu na folha de São Paulo

São Paulo, domingo, 20 de abril de 2008


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Rompendo silêncio
TEMA ESQUECIDO PELA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA, DISCRIMINAÇÃO SOCIAL E INSTITUCIONAL CONTRA JAPONESES FOI DEFENDIDA POR GRANDES NOMES DO PENSAMENTO NACIONAL, COMO O SOCIÓLOGO OLIVEIRA VIANNA

Reprodução
Reprodução de retrato de Ryu Mizuno (centro), que organizou a primeira viagem de imigrantes japoneses ao Brasil


MATINAS SUZUKI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1946, no Palácio Tiradentes, no Rio capital da República, o então senador pelo Distrito Federal Luiz Carlos Prestes fechou questão a favor da emenda 3.165, de autoria do médico, empresário ligado à extração do sal e deputado carioca Miguel Couto Filho, do Partido Social Democrático.
Prestes liderava a bancada comunista de 14 deputados (ela teve 15 por três meses, com a interinidade de um suplente), composta por, entre outros, Jorge Amado, eleito pelos paulistas, Carlos Marighela, pelos baianos, João Amazonas, o mais votado do país, escolha de 18.379 eleitores do Rio, e o sindicalista Claudino Silva, único constituinte negro, também eleito pelo Rio. A emenda 3.165 dizia: "É proibida a entrada no país de imigrantes japoneses de qualquer idade e de qualquer procedência".
O deputado carioca do PSD retomava, 12 anos depois, o espírito de várias emendas propostas à Constituição de 1934 -sendo que uma delas ficou conhecida com o nome de seu pai, Miguel Couto, médico, educador, presidente da Academia Nacional de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras.
O retórico Miguel Couto, pai, eleito pelo Partido Economista do Distrito Federal, era a maior expressão da "bancada médica", que contava com 60 membros, incluindo a paulista Carlota Pereira de Queiroz, a primeira mulher ("e que médica!", bradou Couto da tribuna) brasileira na Câmara.
A maioria da bancada defendia, com teses "científicas" que vinham do darwinismo social e da eugenia racial, surgidos na Europa na segunda metade do século 19, a necessidade do "branqueamento" da população brasileira.
Médicos como o destacado sanitarista Artur Neiva, eleito pelo PSD da Bahia (foi interventor naquele Estado em 1931), e Antonio Xavier de Oliveira, eleito pela Liga Eleitoral Católica do Ceará, encheram boa parte dos 22 volumes dos anais da constituinte com ataques aos degenerados "aborígenes nipões".
Ainda que no corpo final da Constituição de 34 o espírito "niponófobo" resultasse abrandado, a emenda teve aprovação acachapante: 171 votos contra 26. O texto estabelecia cotas (2% do total de ingressantes no país nos últimos 50 anos) sem fazer menção a raça ou nacionalidade e proibia a concentração populacional de imigrantes.

Insolúvel como enxofre
Uma dúzia de anos depois, em 27 de agosto de 1946, o ex-vice-presidente da República, senador pelo PDS mineiro e presidente da Constituinte, Fernando de Melo Viana, colocou em votação a emenda de Couto Filho (que viria a ser, em 1953, o primeiro ministro da Saúde, em cargo criado por Getúlio Vargas, e, entre 1955 e 58, governador do Rio).
O deputado Prado Kelly, da UDN do Rio, achava que ela "amesquinharia a nossa obra" e propôs que fosse deslocada para as disposições transitórias.
Na hora do voto, 99 constituintes favoráveis à proibição da imigração de japoneses ficaram sentados; os que eram contra a emenda levantaram-se, e também eram em número de 99. Melo Viana, o voto de Minerva, foi contra -e a Constituição de 1946 não se amesquinhou.
Um dos ideólogos do antiniponismo era Francisco José de Oliveira Vianna, autor de "Populações Meridionais do Brasil" (1918), considerado um clássico do pensamento nacional. Além dessa obra, Oliveira Vianna é notoriamente reconhecido pela autoria de frases como "os 200 milhões de hindus não valem o pequeno punhado de ingleses que os dominam" e "o japonês é como enxofre: insolúvel".
Quando, no raiar do século 20, começaram as especulações em torno de uma possível imigração japonesa, o diplomata, primeiro biógrafo de d. João 6º e encarregado de negócios da inaugural missão diplomática brasileira no Japão, Manuel de Oliveira Lima, deu parecer contra o projeto.
Em 1901, ele escreveu ao Ministério das Relações Exteriores alertando sobre o perigo de o brasileiro se misturar com "raças inferiores".
Na sua edição de 5 de dezembro de 1908, a revista carioca "O Malho" editava uma página de charges criticando a imigração de japoneses. Em uma das legendas, lia-se: "O governo de São Paulo é teimoso. Após o insucesso da primeira imigração japonesa, contratou 3.000 amarelos. Teima pois em dotar o Brasil com uma raça diametralmente oposta à nossa".
Os japoneses passaram a sofrer uma discriminação múltipla: à visão de uma raça inferior vieram se somar os temores com relação ao expansionismo militarista do império nipônico (após as vitórias nas guerras contra a China, em 1895, e a Rússia, em 1905) e o ressentimento pela sensação de que o imigrante japonês resistia a se integrar -era "inassimilável", um "quisto", conforme o vocabulário do momento.

Os "súditos do Eixo"
As idéias racistas, a paranóia derivada da ameaça do "perigo amarelo" (a expressão é atribuída ao kaiser Guilherme 2º, da Alemanha, quando incitou os russos a guerrearem contra o Japão; mas ela ganhou força na crise da imigração japonesa nos EUA. De lá teria vindo para o Brasil) passam a tomar forma de ação ao se articular com as forças repressivas.
Com o acirramento dos sentimentos nacionalistas a partir do Estado Novo, em 1937, e com a entrada do Japão na Segunda Guerra ao atacar Pearl Harbor, em dezembro de 1941, o preconceito antinipônico deixa de atuar apenas no campo das idéias. Uma série de medidas contra os "súditos do Eixo" -alemães, italianos e japoneses- foram tomadas, e algumas delas foram particularmente doloridas para a comunidade nikkei no Brasil.
Mais de 200 escolas de japonês foram fechadas. A língua japonesa foi proibida de ser falada em público; para a maioria dos nipônicos no país, essa era a única forma de se comunicar.
A publicação dos jornais em japonês ficou muito cara (passou a ser obrigatória a edição bilíngüe, japonês-português), e eles deixaram de circular. Em 1939, uma pesquisa da Estrada de Ferro Noroeste, de São Paulo, mostrava que 87,7% dos japoneses assinavam jornais na sua língua materna, um índice altíssimo para os padrões do setor no Brasil.
Os bens das empresas nipônicas foram confiscados. Japoneses não podiam viajar sem salvo-conduto. Aparelhos de rádios pertencentes às famílias eram apreendidos -para que não se ouvissem transmissões em ondas curtas do Japão.
Os "súditos do imperador" estavam proibidos de dirigir veículos de sua propriedade, mesmo os comerciais -os choferes tinham que ser designados por uma autoridade policial brasileira.
Sem que houvesse indícios de que organizações político-militares ligadas às armas imperiais do Japão estivessem atuando no país (como foi o caso de núcleos do Partido Nazista entre os imigrantes alemães), civis japoneses e muitos de seus descendentes nascidos no Brasil foram tratados como prisioneiros de guerra.
Em 1942, a colônia japonesa que serviu para o cultivo da pimenta em Tomé-Açu, no Pará, foi transformada em campo de concentração (expressão da época), embora nenhuma atividade contra a "segurança nacional" por parte de seus membros tivesse sido detectada.
De Washington, o embaixador brasileiro Carlos Martins Pereira e Sousa incentivava o Brasil a adotar, a exemplo dos EUA, os "campos de internamento": áreas de confinamento para as quais foram levados, sem respaldo jurídico, mais de 120 mil nisseis (muitos já cidadãos americanos). Eles viveram nesses "campos-prisão" até o final da guerra, em condições humanas precárias.
A delação -como diz Tzvetan Todorov, a delação no Estado totalitário é um modo de colocar "o terror à disposição de todos"- contra os japoneses tornava-se popular. "Desavenças de vizinhos, dívidas não pagas e até brigas de crianças eram motivos para que os japoneses fossem delatados anonimamente às autoridades", conta Fernando Morais em "Corações Sujos".
A suspeita não tinha limites: em dezembro de 1942, o jornalista Hideo Onaga e um grupo de jovens foram presos em um piquenique na represa Eldorado, distrito de Santo André (SP), porque havia uma desconfiança de que eles estivessem construindo um submarino (!), conforme relatou à historiadora Marcia Yumi Takeuchi. Marchinhas de Carnaval ironizavam Hiroito e a "terra do micado".
Os pintores japoneses do grupo Seibi (Tomoo Handa e Yoshiya Takaoka, entre outros), que se reuniam para pintar na rua e no campo, foram obrigados a entrar em reclusão e atuar clandestinamente, o que não ocorreu com o grupo Santa Helena, por exemplo, composto em sua maioria por italianos.

Cômodos no porão
Em 10 de julho de 1943, sem aviso prévio, cerca de 10 mil "súditos do Eixo" (90% eram japoneses) foram obrigados a abandonar Santos em poucas horas, deixando todos os seus bens para trás.
Em 3 de maio de 1944, o delegado-chefe do serviço de salvo-condutos, José Antonio de Oliveira, nega pedido de Miya Tekeuti, que estava em São Paulo e queria voltar a residir na Baixada Santista para ficar perto dos sete filhos, o menor deles com 12 anos.
A ladeira Conde de Sarzedas, no centro de São Paulo, foi um marco para os japoneses. O aluguel dos cômodos nos porões dos sobrados era uma bagatela, e grupos de japoneses passaram a morar nesses quartos, a partir de 1912. Ela passa a ser conhecida como a rua dos Japoneses, iniciando a história da Liberdade como o bairro nipônico -nasciam ali os primeiros restaurantes japoneses da capital paulista. Em 2 de fevereiro de 1942, os já numerosos nikkeis da Conde de Sarzedas e da rua dos Estudantes são acordados durante a noite por agentes do Dops; foram avisados de que teriam de abandonar a área em 12 horas. A cena se repetiria na véspera do Sete de Setembro, desta vez com os japoneses tendo dez dias para se mudarem definitivamente da região.
Em 25 de maio de 1945, a mais famosa dupla do jornalismo brasileiro, composta pelo repórter David Nasser e pelo fotógrafo Jean Manzon, publica, em "O Cruzeiro", uma matéria-ilustração inspirada em algo parecido feito pela americana "Time", com o objetivo de ensinar os brasileiros a distinguirem um japonês de um chinês. O japonês, segundo Nasser, entre outras coisas, é "de aspecto repulsivo, míope, insignificante".
Nas palavras do historiador Roney Cytrynowicz, em seu livro sobre o impacto da Segunda Guerra no dia-a-dia do paulistano ("Guerra sem Guerra"), "a opressão contra os imigrantes japoneses, diferente do que ocorreu com italianos e alemães em São Paulo, deixa claro que o Estado Novo moveu contra eles -a pretexto de acusação de sabotagem- uma campanha racista em larga escala".
Com o fim da Segunda Guerra, os japoneses ganharam mais estigmas: os de fanáticos e terroristas. Eles estavam ligados às ações da organização Shindô-Renmei, uma tentativa desesperada de preservar o espírito nipônico e a veneração ao imperador japonês em terras estrangeiras, de criar uma pátria para despatriados.
Seus membros jamais aceitaram "suportar o insuportável", não atendendo às históricas palavras de Hiroito ao comunicar aos súditos, por rádios e alto-falantes, a rendição japonesa.
Em um dos casos históricos mais curiosos de tentativa radical e desesperada de preservação de um passado em terra estrangeira, os membros da Shindô-Renmei (31.380 nisseis, segundo a polícia paulista, eram suspeito de pertencer à organização; em 1946, o Dops fichou 376 deles) e a maioria da comunidade japonesa no Brasil se recusavam a aceitar que o Japão havia perdido a guerra. A organização matou 23 e feriu 147 nipônicos, acusando de serem "derrotistas" aqueles que aceitavam a derrota do império do sol nascente.

Linchamento
Por causa do assassinato do caminhoneiro Pascoal de Oliveira, o Nego, pelo -também caminhoneiro- japonês Kababe Massame, após uma discussão, em 31 de julho de 1946, a população de Osvaldo Cruz (SP), que já estava à flor da pele com dois atentados da Shindô-Renmei na cidade, saiu às ruas e invadiu casas disposta a maltratar "impiedosamente", na palavra do historiador local José Alvarenga, qualquer japonês que encontrasse pela frente.
O linchamento dos japoneses só foi totalmente controlado com a intervenção de um destacamento do Exército, vindo de Tupã, chamado pelo médico Oswaldo Nunes, um herói daquele dia totalmente atípico na história de Osvaldo Cruz e das cidades brasileiras.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, o eclipse do Estado Novo e o desmantelamento da Shindô-Renmei, inicia-se um ciclo de emudecimento, de ambos os lados, sobre as quatro décadas de intolerância vividas pelos japoneses. Do lado local, foi sedimentando-se no mundo das letras a idéia do país como um "paraíso racial".
Do lado dos imigrantes, as segundas e terceiras gerações de filhos de japoneses se concentraram, a partir da década de 1950, na construção da sua ascensão social.
A história foi sendo esquecida, junto com o idioma e os hábitos culturais de seus pais e avós. Como diz a historiadora Priscila Nucci, da Unicamp, no seu trabalho "Os Intelectuais Diante do Racismo Antinipônico no Brasil -Textos e Silêncios", até os estudos sobre a imigração japonesa passaram a se focar nas questões ligadas à "assimilação, integração e aculturação", deixando um vácuo, um "silenciamento ou minimização das discussões sobre o racismo contra os japoneses no Brasil".



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MATINAS SUZUKI JR. é jornalista.

Wednesday, February 06, 2008

Toda cautela é pouca

Saiu no blog do Roberto Romano.
CORREIO POPULAR DE CAMPINAS 6/2/2008


DESCULPAS E CONTRA-ATAQUES

Roberto Romano

Prometi continuar, neste artigo, o exame do fanatismo que distorce frases e razões, para obrigar sectários religiosos ou políticos a seguir doutrinas contrárias aos procedimentos científicos. Peço desculpas ao leitor, mas não farei o anunciado. Nos últimos dias o país recebeu uma série de notícias sobre desmandos no trato com recursos públicos, os quais merecem análise.

Refiro-me ao escândalo dos cartões corporativos. Esses últimos têm como alvo facilitar serviços para obter eficácia dos funcionários estatais. Nada aí merece reparos. Se os recursos são usados para atos corretos, a cidadania deve se alegrar porque tudo resulta em benefício coletivo. Se ocorre algum erro no manuseio dos referidos cartões, ele pode ser remediado em tempo certo. Desde que exista uma prestação de contas em devida ordem, os desvios (comuns em burocracias imensas como a brasileira) devem ser conhecidos, para urgentes modificações práticas e normativas.

O não permitido, na ordem ética, é usar subterfúgios para eludir erros. Os ministros acusados de uso indevido dos cartões seguiram, na sua defesa, a linha da camuflagem e da antilogia. Antilogia é técnica retórica polivalente e consiste em voltar ao acusador uma outra carga, o que atenua o peso da acusação original. Usado fartamente pela sofística, aquele torneio discursivo foi discutido de muitos modos na filosofia moderna. Um exemplo é dado por Hegel em texto sobre o subjetivismo alérgico à razão e à ciência. “Escute, minha senhora, seus ovos estão podres”. É o que diz a compradora numa feira à pessoa que vendia ovos. “O que, replica a macróbia, meus ovos estão podres? Vejam quem fala! Os percevejos não devoraram o seu pai num atalho do campo, sua mãe não fugiu com os franceses e sua avó não morreu no hospício? Que ela compre com seu lenço barato uma blusa decorosa! Seus lenços e chapéus, sabemos muito bem como ela os consegue!” (Hegel, GWF: Quem pensa abstrato?). Antilogia é praticada pela velhota pega em erro. Ela poderia dizer que ovos são delicados e de fato alguns deles apodreceram. Daí, devolveria o dinheiro à compradora ou a ressarcia com produtos sadios. Mas sempre com um pedido de desculpa pela ocorrência involuntária.

Ela também poderia culpar os fornecedores, abrir uma longa trilha de culpados, talvez chegando ao pai Adão e à mãe Eva, o que a levaria, claro, à serpente luciferina. Neste caso, a sua boa ou má fé só poderiam ser constatadas após minuciosas perquirições dos fiscais da feira, das granjas etc. A macróbia, no entanto, exala dolo em todos os poros. Pouco importa à pessoa pública ou privada a condição de quem fala - pelo menos numa sociedade republicana e democrática - o essencial é ir até às evidências, aos fatos. Não por acaso os processos judiciais corretos operam assim: dos fatos ao direito, deste aos fatos. Se o acusador é desonesto ou veraz, importa verificar o bem fundado de sua acusação. Não é permitido anular a palavra de um ser humano, pois isto significa estabelecer diferenças ontológicas que, no final, podem levar ao genocídio. Não é só coincidência o uso, na língua nazista e leninista, de termos que retiram a dignidade humana dos adversários ou vítimas. Nos dois conjuntos doutrinários, os que devem ser aniquilados recebem qualificativos envilecedores. Os nazistas chamaram os abatidos nos campos de concentração como “ratos” e “parasitas”. Lenine usa epítetos como “insetos nocivos” para se referir aos que não pensam como ele. No panfleto intitulado Como Organizar A Emulação são enumerados os “piolhos” a eliminar: os ricos, os preguiçosos, os intelectuais histéricos etc. Todos deveriam ser tratados sem piedade pelo regime revolucionário, encarregado de fazer “a limpeza” (cistka) na Rússia.

A velha feirante tenta reduzir sua compradora à falta de dignidade para ser ouvida. Os nazistas tentaram reduzir os judeus e demais minorias ao estatuto da animalidade. Os leninistas tentaram reduzir os que resistiam aos seus planos ao estatuto de insetos a serem eliminados. O recurso, com toda a selvageria que ele implica, não funcionou. Depois dos seis milhões de mortos nos campos de concentração, os judeus mantêm sua dignidade humana, ainda hoje a custo de muitos sacrifícios. Depois do Gulag e dos milhões de mortos, sumiu da Rússia o poder bolchevista - embora não totalmente, basta ver o que Putin faz naquele País. Os pegos no uso irregular dos cartões corporativos tentam reduzir os acusadores ao plano do preconceito (é o que fez a ministra demissionária e seus assessores) e o governo anuncia sanções contra quem deu conhecimento ao público da notícia escandalosa. Esperemos que a tática bisonha termine aí. Caso contrário, logo a cidadania que paga impostos será posta em currais para ser abatida, porque suas queixas e denúncias prejudicariam o “governo como nunca teve este país”. No atual poder brasileiro ainda resta muito de integralismo e de leninismo. Toda cautela é pouca, diria Spinoza.

Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp.

Fonte: http://robertounicamp.blogspot.com/

Comentário: a destruição da esfera pública e do espaço democrático pelo governo “operário” que se denominou uma “metamorfose ambulante” é o termômetro da fuga da cidadania nunca visto nesse país.

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