Sunday, April 27, 2008

Leis e salsichas

Artigo antigo – mas atual para os nossos tempos – saiu no blog: http://robertounicamp.blogspot.com/




SOBRE LEIS E SALSICHAS.


por Roberto Romano, professor de ética e de filosofia política da Unicamp. Correio Eletrônico - Revista Caros Amigos - Edição nº 207 - 21 de junho de 2005

"Je weniger die Leute davon wissen, wie Würste und Gesetze gemacht werden, desto besser schlafen sie." (Otto von Bismarck)

“Quanto menos o povinho souber como são feitas as salsichas e as leis, mais dormirá tranqüilo.” À frase do Chanceler de Ferro, acrescentemos uma outra, antiga e clássica: “Leis são como teias de aranha que prendem os pobres e fracos, enquanto os ricos e poderosos as quebram facilmente” (Anacharsis). Os fatos aterradores sobre o Parlamento brasileiro e as relações perigosas entre Poder Executivo e Congresso, denunciados por um líder político que até ontem possuía a confiança do presidente da República, tiram o sono dos que pagam impostos. Quando alguém compra uma caixa de fósforos, em nosso território, produz tributos para o Tesouro Nacional. Assim, o mínimo que o Estado deveria fazer, para garantir a confiança dos contribuintes, é providenciar leis que fossem de fato universais, ou seja, não privilegiassem nenhuma das instâncias particulares no plano nacional ou internacional. Se os indivíduos, grupos ou classes sociais abdicam do seu direito natural de matar – segundo os maiores pensadores e juristas da modernidade – é porque o Estado protege os direitos coletivos e não permite que interesses privados se elevem acima do bem comum. Tal é a única base da governabilidade.

No Brasil, desde o início de nosso Estado nacional, a excessiva concentração de todos os aspectos das políticas públicas no poder central trouxe vários defeitos jurídicos estruturais, defeitos que não podem ser sanados com medidas paliativas. Assim os atentados à ética no trato com os dinheiros públicos. Dada a distância (geográfica e jurídica) entre municípios e poder central, os impostos arrecadados nas cidades são dirigidos para os ministérios para serem redistribuídos aos poderes locais. Nesse itinerário, longo e tortuoso, os municípios permanecem à mingua de recursos e não conseguem empreender as obras públicas requeridas pela população. Longe dos gabinetes e próximos do eleitor, os prefeitos precisam conseguir verbas públicas. Entre eles e os ministérios, aparecem os deputados federais e senadores como intermediários eficazes na liberação dos mencionados recursos, seja diretamente nos ministérios, seja na elaboração do orçamento. Só existe um modo de assegurar os montantes necessários aos municípios: a entrega dos votos no Parlamento, com o Executivo, ou a adesão aos grupos de interesses que defendem projetos nos corredores do Congresso. Temos aí a gênese do “é dando que se recebe”, consagrado no Centrão durante o governo Sarney. A prática foi tão repetida, ao longo de nossa história política, que muitos eleitores, para não dizer a maioria, julga que bom deputado federal ou senador é apenas o que traz recursos para as cidades ou regiões. O custo, entretanto, não é explicado no dia-a-dia ou mesmo nos comícios.

Como acréscimo que complica tudo, os deputados federais e senadores ou surgem das oligarquias ou a ela são obrigados a aderir, para que o seu “produto” (o voto no Congresso) seja útil ao Executivo, sempre à busca de legitimidade e sempre na premência de conseguir apoio das várias populações regionais. Da maior ou menor acolhida dos governantes pelos munícipes ou líderes regionais pode surgir a safra de votos que decide tanto a manutenção dos partidos no poder central quanto no Congresso. As oligarquias são bases de apoio para os tratos entre os municípios e os poderes das repúblicas, no caminho que vai da base ao cimo, e são o filtro entre as aspirações dos poderes superiores e as bases urbanas.

Apenas uma distribuição mais pronta e menos injusta dos impostos pelos entes federativos poderia atenuar a necessidade de fazer dos deputados federais e senadores caixeiros-viajantes das regiões na caça aos recursos, vendendo o seu voto nas deliberações legislativas. Quem tiver interesse na origem dos males da corrupção e da “ética” política que vigora entre nós desde o século 19 pode ler o livro de Maria Sylvia Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata (São Paulo, Unesp Ed. 1997, quinta edição). A autora mostra como a carência de recursos e a péssima redistribuição dos impostos pelos municípios produziram muitos dos males da vida política nacional, sobretudo a indistinção entre dinheiros públicos e privados.

É importante pensar nessa escala histórica e genética para não cair na armadilha da conjuntura. A compra e venda de votos, de eleitores e de eleitos, não é prática nova no Brasil, ela vem dos nossos primeiros dias como Estado nacional independente. Importa, e muito, que o atual governo e o seu partido hegemônico tenham apresentado um programa ético a atenuar esse defeito de origem. Como o programa não foi obedecido, as práticas costumeiras apresentaram-se como as únicas vias “realistas” do governo. Foi assim que surgiu a atual base de sustentação no Congresso. Foi assim que o líder da tropa de choque "collorida" tornou-se aliado do governo. Mais do que aliado, “companheiro”, no dizer do presidente da República.

As falas que anunciam golpes brancos e ameaças à governabilidade não possuem sustentação lógica ou factual. As elites apóiam o governo e sua política econômica. Os banqueiros estão muito satisfeitos. Os industriais e líderes do comércio pedem juros razoáveis, mas não querem o impedimento do presidente. Os setores intelectuais ou estão perplexos com as políticas públicas ou as apóiam, poucos as criticam com dureza (sou dos que criticam). Os sindicatos apóiam os governantes, embora recusem aspectos de medidas como a reforma sindical. A Igreja Católica torna-se a cada momento mais dura com o governo, mas essa é uma característica sua, enquanto instituição autônoma no interior da sociedade. A imprensa denuncia a existência dos fatos. O melhor, para silenciar as denúncias, não se encontra nas hipóteses de golpe, mas nas investigações corretas e transparentes. Como exigiam os membros do atual governo quando lideravam a oposição. Se assim for feito, o povo brasileiro poderá encarar as leis e as salsichas com maior tranqüilidade. O chamado “patrimônio ético” não é riqueza física, mas espiritual. Ele deve ser provado a cada dia, sob pena de se perder. As investigações das CPIs precisam ser efetivas e não podem descambar para a propaganda, tanto no caso da oposição quanto no caso do governo. Se as investigações forem conduzidas com ética pelos governantes e parlamentares, a atual administração terá prestado grande serviço ao país. Caso contrário, ela apenas aumentará o descrédito do povo diante das leis. E das salsichas, naturalmente.

"Reflexões sobre o Direito à Propriedade"

Saiu na folha de São Paulo.

São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008



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+ Livros

ADVERSÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Com disposição para o debate, "Reflexões sobre o Direito à Propriedade" ataca o socialismo e critica os rumos do Brasil
MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Denis Lerrer Rosenfield é um filósofo diferente. Poderia escrever para "dentro", para os acadêmicos, ou produzir aqueles relatórios de pesquisa que ninguém vai ler. Não. Procura a discussão pública e, dessa forma, enriquece o debate político nacional. "Reflexões sobre o Direito à Propriedade" é o seu novo livro.
Em seis capítulos, critica os rumos do país e identifica uma questão central: a propriedade privada, no Brasil, está em risco. E em risco está também a liberdade. Suas reflexões se utilizam de autores clássicos e modernos. Entre estes últimos, principalmente Hernando de Soto, Leo Strauss e Friedrich Hayek.
Rosenfield discorda frontalmente do governo Lula. Contudo constrói um adversário que não existe. Transforma o burocrata petista em líder revolucionário. É um grave equívoco. Ruim para o debate político, mas excelente para o burocrata. É bom ser identificado como um perigo à ordem capitalista: massageia seu ego, relembra seu passado de militante esquerdista e até o estimula a ditar (escrever, não) suas memórias.

Aumento de preço
Mas o interesse do burocrata (e aí o aproxima, por estranho que pareça, a Rosenfield) é outro: deseja ampliar sua casa em um condomínio fechado, comprar aparelhos eletrônicos de última geração, roupas de grife e até cosméticos -como declarou o ex-ministro José Dirceu à revista "Piauí". A cada invasão de terra ou de prédio público, o "consultor" aumenta o preço do seu "trabalho".
Ainda no terreno da "construção do adversário", seria mais salutar para o debate se Rosenfield escolhesse entre os livros de Karl Marx outro mais relevante do que o "Manifesto Comunista", sabidamente um texto de propaganda. Por que não "O Capital", as reflexões sobre 1848 ou sobre a Comuna de Paris?
O autor desconhece que nem o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, inúmeras vezes citado no livro) quer fazer a revolução ou que nem o grande capital teme alguma expropriação. É um jogo perverso. Um precisa de verbas públicas para sobreviver como partido agrário, outro só tem olhos para o pagamento dos juros da dívida pública.
A contrapartida do aumento da taxa de juros ou da remuneração abusiva do capital é a ocupação, por exemplo, da sede do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). E o governo Lula atende salomonicamente a todos.
Não é possível concordar com a idéia de que a tradição socialista dá origem "às formas modernas da democracia totalitária". Para Rosenfield, esquerda é bolchevismo. Em momento algum cita a social-democracia alemã ou o trabalhismo inglês (isso explica porque identifica, erroneamente, os caudilhos latino-americanos como defensores de um Estado de Bem-Estar Social).
Dessa forma, apresenta-se como o antagonista do bolchevismo e defende enfaticamente o liberalismo clássico. Critica a Justiça do Trabalho (pela "função distributiva") e a quebra de patentes na área farmacêutica.
Crê que não cabe ao Estado equalizar as desigualdades, pois essas são "fruto da liberdade", da "minoria que empreendeu, assumiu riscos e teve o seu esforço recompensado".
Nesse sentido, é difícil encontrar um lugar para o filósofo no quadro político brasileiro.

Sem paralelos
O anacronismo marca certas análises. É estranha a afirmação de que o Estado brasileiro "aparece como se fosse um Estado do Antigo Regime", pois tanto em um como em outro os "direitos exclusivos eram também assegurados constitucionalmente".
Não há nenhum paralelo entre uma sociedade estamental e uma de classe. O mais grave é quando associa a política de cotas ao programa de liqüidação dos cúlaques [rótulo aplicado, na ex-URSS, ao "camponês rico", visto como resquício da mentalidade burguesa e ameaça à revolução] comandando por Stálin e ao extermínio de judeus na Alemanha nazista.
Que relação é possível estabelecer? Nenhuma. E mais: é a pura banalização do mal, quando se perde o particularismo do fato histórico.

Mudanças sociais
Diversamente do que propõe Rosenfield, falta Estado no Brasil. Estado no sentido mais amplo, nem como comitê central da burguesia, segundo a tradição marxista, nem como ente quase passivo, segundo o ultraliberalismo. Estado não é para ser gestor da miséria e do grande capital, como no governo Lula. Deve alavancar as mudanças sociais e econômicas, garantir plenamente as liberdades e cumprir as leis. Em suma, deve ser o que nunca foi.
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MARCO ANTONIO VILLA é professor de história da Universidade Federal de São Carlos (SP).

REFLEXÕES SOBRE O DIREITO À PROPRIEDADE
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Editora: Campus-Elsevier (tel. 0800-265340)
Quanto: R$ 39 (224 págs.)

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2704200812.htm 27/04/08

Comentário: Analise do Professor Marcos Antonio Villa sobre o livro REFLEXÕES SOBRE O DIREITO À PROPRIEDADE do professor Denis Lerrer Rosenfield.

Sunday, April 20, 2008

Rompendo silêncio: disciminação social e institucional

Reportagem sobre a presença japonesa no Brasil e seus percalços.

Saiu na folha de São Paulo

São Paulo, domingo, 20 de abril de 2008


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Rompendo silêncio
TEMA ESQUECIDO PELA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA, DISCRIMINAÇÃO SOCIAL E INSTITUCIONAL CONTRA JAPONESES FOI DEFENDIDA POR GRANDES NOMES DO PENSAMENTO NACIONAL, COMO O SOCIÓLOGO OLIVEIRA VIANNA

Reprodução
Reprodução de retrato de Ryu Mizuno (centro), que organizou a primeira viagem de imigrantes japoneses ao Brasil


MATINAS SUZUKI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1946, no Palácio Tiradentes, no Rio capital da República, o então senador pelo Distrito Federal Luiz Carlos Prestes fechou questão a favor da emenda 3.165, de autoria do médico, empresário ligado à extração do sal e deputado carioca Miguel Couto Filho, do Partido Social Democrático.
Prestes liderava a bancada comunista de 14 deputados (ela teve 15 por três meses, com a interinidade de um suplente), composta por, entre outros, Jorge Amado, eleito pelos paulistas, Carlos Marighela, pelos baianos, João Amazonas, o mais votado do país, escolha de 18.379 eleitores do Rio, e o sindicalista Claudino Silva, único constituinte negro, também eleito pelo Rio. A emenda 3.165 dizia: "É proibida a entrada no país de imigrantes japoneses de qualquer idade e de qualquer procedência".
O deputado carioca do PSD retomava, 12 anos depois, o espírito de várias emendas propostas à Constituição de 1934 -sendo que uma delas ficou conhecida com o nome de seu pai, Miguel Couto, médico, educador, presidente da Academia Nacional de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras.
O retórico Miguel Couto, pai, eleito pelo Partido Economista do Distrito Federal, era a maior expressão da "bancada médica", que contava com 60 membros, incluindo a paulista Carlota Pereira de Queiroz, a primeira mulher ("e que médica!", bradou Couto da tribuna) brasileira na Câmara.
A maioria da bancada defendia, com teses "científicas" que vinham do darwinismo social e da eugenia racial, surgidos na Europa na segunda metade do século 19, a necessidade do "branqueamento" da população brasileira.
Médicos como o destacado sanitarista Artur Neiva, eleito pelo PSD da Bahia (foi interventor naquele Estado em 1931), e Antonio Xavier de Oliveira, eleito pela Liga Eleitoral Católica do Ceará, encheram boa parte dos 22 volumes dos anais da constituinte com ataques aos degenerados "aborígenes nipões".
Ainda que no corpo final da Constituição de 34 o espírito "niponófobo" resultasse abrandado, a emenda teve aprovação acachapante: 171 votos contra 26. O texto estabelecia cotas (2% do total de ingressantes no país nos últimos 50 anos) sem fazer menção a raça ou nacionalidade e proibia a concentração populacional de imigrantes.

Insolúvel como enxofre
Uma dúzia de anos depois, em 27 de agosto de 1946, o ex-vice-presidente da República, senador pelo PDS mineiro e presidente da Constituinte, Fernando de Melo Viana, colocou em votação a emenda de Couto Filho (que viria a ser, em 1953, o primeiro ministro da Saúde, em cargo criado por Getúlio Vargas, e, entre 1955 e 58, governador do Rio).
O deputado Prado Kelly, da UDN do Rio, achava que ela "amesquinharia a nossa obra" e propôs que fosse deslocada para as disposições transitórias.
Na hora do voto, 99 constituintes favoráveis à proibição da imigração de japoneses ficaram sentados; os que eram contra a emenda levantaram-se, e também eram em número de 99. Melo Viana, o voto de Minerva, foi contra -e a Constituição de 1946 não se amesquinhou.
Um dos ideólogos do antiniponismo era Francisco José de Oliveira Vianna, autor de "Populações Meridionais do Brasil" (1918), considerado um clássico do pensamento nacional. Além dessa obra, Oliveira Vianna é notoriamente reconhecido pela autoria de frases como "os 200 milhões de hindus não valem o pequeno punhado de ingleses que os dominam" e "o japonês é como enxofre: insolúvel".
Quando, no raiar do século 20, começaram as especulações em torno de uma possível imigração japonesa, o diplomata, primeiro biógrafo de d. João 6º e encarregado de negócios da inaugural missão diplomática brasileira no Japão, Manuel de Oliveira Lima, deu parecer contra o projeto.
Em 1901, ele escreveu ao Ministério das Relações Exteriores alertando sobre o perigo de o brasileiro se misturar com "raças inferiores".
Na sua edição de 5 de dezembro de 1908, a revista carioca "O Malho" editava uma página de charges criticando a imigração de japoneses. Em uma das legendas, lia-se: "O governo de São Paulo é teimoso. Após o insucesso da primeira imigração japonesa, contratou 3.000 amarelos. Teima pois em dotar o Brasil com uma raça diametralmente oposta à nossa".
Os japoneses passaram a sofrer uma discriminação múltipla: à visão de uma raça inferior vieram se somar os temores com relação ao expansionismo militarista do império nipônico (após as vitórias nas guerras contra a China, em 1895, e a Rússia, em 1905) e o ressentimento pela sensação de que o imigrante japonês resistia a se integrar -era "inassimilável", um "quisto", conforme o vocabulário do momento.

Os "súditos do Eixo"
As idéias racistas, a paranóia derivada da ameaça do "perigo amarelo" (a expressão é atribuída ao kaiser Guilherme 2º, da Alemanha, quando incitou os russos a guerrearem contra o Japão; mas ela ganhou força na crise da imigração japonesa nos EUA. De lá teria vindo para o Brasil) passam a tomar forma de ação ao se articular com as forças repressivas.
Com o acirramento dos sentimentos nacionalistas a partir do Estado Novo, em 1937, e com a entrada do Japão na Segunda Guerra ao atacar Pearl Harbor, em dezembro de 1941, o preconceito antinipônico deixa de atuar apenas no campo das idéias. Uma série de medidas contra os "súditos do Eixo" -alemães, italianos e japoneses- foram tomadas, e algumas delas foram particularmente doloridas para a comunidade nikkei no Brasil.
Mais de 200 escolas de japonês foram fechadas. A língua japonesa foi proibida de ser falada em público; para a maioria dos nipônicos no país, essa era a única forma de se comunicar.
A publicação dos jornais em japonês ficou muito cara (passou a ser obrigatória a edição bilíngüe, japonês-português), e eles deixaram de circular. Em 1939, uma pesquisa da Estrada de Ferro Noroeste, de São Paulo, mostrava que 87,7% dos japoneses assinavam jornais na sua língua materna, um índice altíssimo para os padrões do setor no Brasil.
Os bens das empresas nipônicas foram confiscados. Japoneses não podiam viajar sem salvo-conduto. Aparelhos de rádios pertencentes às famílias eram apreendidos -para que não se ouvissem transmissões em ondas curtas do Japão.
Os "súditos do imperador" estavam proibidos de dirigir veículos de sua propriedade, mesmo os comerciais -os choferes tinham que ser designados por uma autoridade policial brasileira.
Sem que houvesse indícios de que organizações político-militares ligadas às armas imperiais do Japão estivessem atuando no país (como foi o caso de núcleos do Partido Nazista entre os imigrantes alemães), civis japoneses e muitos de seus descendentes nascidos no Brasil foram tratados como prisioneiros de guerra.
Em 1942, a colônia japonesa que serviu para o cultivo da pimenta em Tomé-Açu, no Pará, foi transformada em campo de concentração (expressão da época), embora nenhuma atividade contra a "segurança nacional" por parte de seus membros tivesse sido detectada.
De Washington, o embaixador brasileiro Carlos Martins Pereira e Sousa incentivava o Brasil a adotar, a exemplo dos EUA, os "campos de internamento": áreas de confinamento para as quais foram levados, sem respaldo jurídico, mais de 120 mil nisseis (muitos já cidadãos americanos). Eles viveram nesses "campos-prisão" até o final da guerra, em condições humanas precárias.
A delação -como diz Tzvetan Todorov, a delação no Estado totalitário é um modo de colocar "o terror à disposição de todos"- contra os japoneses tornava-se popular. "Desavenças de vizinhos, dívidas não pagas e até brigas de crianças eram motivos para que os japoneses fossem delatados anonimamente às autoridades", conta Fernando Morais em "Corações Sujos".
A suspeita não tinha limites: em dezembro de 1942, o jornalista Hideo Onaga e um grupo de jovens foram presos em um piquenique na represa Eldorado, distrito de Santo André (SP), porque havia uma desconfiança de que eles estivessem construindo um submarino (!), conforme relatou à historiadora Marcia Yumi Takeuchi. Marchinhas de Carnaval ironizavam Hiroito e a "terra do micado".
Os pintores japoneses do grupo Seibi (Tomoo Handa e Yoshiya Takaoka, entre outros), que se reuniam para pintar na rua e no campo, foram obrigados a entrar em reclusão e atuar clandestinamente, o que não ocorreu com o grupo Santa Helena, por exemplo, composto em sua maioria por italianos.

Cômodos no porão
Em 10 de julho de 1943, sem aviso prévio, cerca de 10 mil "súditos do Eixo" (90% eram japoneses) foram obrigados a abandonar Santos em poucas horas, deixando todos os seus bens para trás.
Em 3 de maio de 1944, o delegado-chefe do serviço de salvo-condutos, José Antonio de Oliveira, nega pedido de Miya Tekeuti, que estava em São Paulo e queria voltar a residir na Baixada Santista para ficar perto dos sete filhos, o menor deles com 12 anos.
A ladeira Conde de Sarzedas, no centro de São Paulo, foi um marco para os japoneses. O aluguel dos cômodos nos porões dos sobrados era uma bagatela, e grupos de japoneses passaram a morar nesses quartos, a partir de 1912. Ela passa a ser conhecida como a rua dos Japoneses, iniciando a história da Liberdade como o bairro nipônico -nasciam ali os primeiros restaurantes japoneses da capital paulista. Em 2 de fevereiro de 1942, os já numerosos nikkeis da Conde de Sarzedas e da rua dos Estudantes são acordados durante a noite por agentes do Dops; foram avisados de que teriam de abandonar a área em 12 horas. A cena se repetiria na véspera do Sete de Setembro, desta vez com os japoneses tendo dez dias para se mudarem definitivamente da região.
Em 25 de maio de 1945, a mais famosa dupla do jornalismo brasileiro, composta pelo repórter David Nasser e pelo fotógrafo Jean Manzon, publica, em "O Cruzeiro", uma matéria-ilustração inspirada em algo parecido feito pela americana "Time", com o objetivo de ensinar os brasileiros a distinguirem um japonês de um chinês. O japonês, segundo Nasser, entre outras coisas, é "de aspecto repulsivo, míope, insignificante".
Nas palavras do historiador Roney Cytrynowicz, em seu livro sobre o impacto da Segunda Guerra no dia-a-dia do paulistano ("Guerra sem Guerra"), "a opressão contra os imigrantes japoneses, diferente do que ocorreu com italianos e alemães em São Paulo, deixa claro que o Estado Novo moveu contra eles -a pretexto de acusação de sabotagem- uma campanha racista em larga escala".
Com o fim da Segunda Guerra, os japoneses ganharam mais estigmas: os de fanáticos e terroristas. Eles estavam ligados às ações da organização Shindô-Renmei, uma tentativa desesperada de preservar o espírito nipônico e a veneração ao imperador japonês em terras estrangeiras, de criar uma pátria para despatriados.
Seus membros jamais aceitaram "suportar o insuportável", não atendendo às históricas palavras de Hiroito ao comunicar aos súditos, por rádios e alto-falantes, a rendição japonesa.
Em um dos casos históricos mais curiosos de tentativa radical e desesperada de preservação de um passado em terra estrangeira, os membros da Shindô-Renmei (31.380 nisseis, segundo a polícia paulista, eram suspeito de pertencer à organização; em 1946, o Dops fichou 376 deles) e a maioria da comunidade japonesa no Brasil se recusavam a aceitar que o Japão havia perdido a guerra. A organização matou 23 e feriu 147 nipônicos, acusando de serem "derrotistas" aqueles que aceitavam a derrota do império do sol nascente.

Linchamento
Por causa do assassinato do caminhoneiro Pascoal de Oliveira, o Nego, pelo -também caminhoneiro- japonês Kababe Massame, após uma discussão, em 31 de julho de 1946, a população de Osvaldo Cruz (SP), que já estava à flor da pele com dois atentados da Shindô-Renmei na cidade, saiu às ruas e invadiu casas disposta a maltratar "impiedosamente", na palavra do historiador local José Alvarenga, qualquer japonês que encontrasse pela frente.
O linchamento dos japoneses só foi totalmente controlado com a intervenção de um destacamento do Exército, vindo de Tupã, chamado pelo médico Oswaldo Nunes, um herói daquele dia totalmente atípico na história de Osvaldo Cruz e das cidades brasileiras.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, o eclipse do Estado Novo e o desmantelamento da Shindô-Renmei, inicia-se um ciclo de emudecimento, de ambos os lados, sobre as quatro décadas de intolerância vividas pelos japoneses. Do lado local, foi sedimentando-se no mundo das letras a idéia do país como um "paraíso racial".
Do lado dos imigrantes, as segundas e terceiras gerações de filhos de japoneses se concentraram, a partir da década de 1950, na construção da sua ascensão social.
A história foi sendo esquecida, junto com o idioma e os hábitos culturais de seus pais e avós. Como diz a historiadora Priscila Nucci, da Unicamp, no seu trabalho "Os Intelectuais Diante do Racismo Antinipônico no Brasil -Textos e Silêncios", até os estudos sobre a imigração japonesa passaram a se focar nas questões ligadas à "assimilação, integração e aculturação", deixando um vácuo, um "silenciamento ou minimização das discussões sobre o racismo contra os japoneses no Brasil".



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MATINAS SUZUKI JR. é jornalista.

Militares, ciências, Educação Popular.

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