Saturday, May 31, 2008

A atualidade de Max Weber

SAIU NA REVISTA CULT,

A atualidade de Max Weber


A noção de "patrimonialismo" continua a orientar parte significativa da reflexão sociológica nacional. No entanto, é preciso fundamentar um novo paradigma à luz da própria crítica weberiana

Por Jessé de Souza

Max Weber é provavelmente o autor mais influente e conhecido no âmbito das ciências sociais. Não apenas a sociologia e a ciência política modernas o têm como autor central e referência constante, mas também o direito, a economia, a administração de empresas e até a filosofia mobilizam várias de suas interpretações e idéias. É difícil imaginar um pensador contemporâneo que não tenha sido influenciado por suas idéias. Em Pierre Bourdieu e Jürgen Habermas, por exemplo, a influência é decisiva. Mas também no contexto brasileiro, Weber não só é um dos autores mais citados nas teses acadêmicas de ciências sociais entre nós, mas também foi inspiração para a produção do conceito mais influente, ainda hoje, da sociologia e da ciência política brasileiras: a noção - ambígua e equívoca, como teremos, mais adiante, ocasião de explicitar - de patrimonialismo. O que explica tamanha influência?

Sua influência diz respeito à especificidade do que ele denominava de "racionalismo ocidental". "Racionalismo" significa a forma, culturalmente singular, de como uma civilização específica e, por extensão, também os indivíduos, que constituem sua forma de pensar e agir a partir desses modelos culturais, interpreta o mundo. Isso implica, antes de tudo, que não existe definição "universal" possível acerca do que é "racional" ou do que seja "racionalidade". A forma como a racionalidade vai ser definida em cada sociedade específica depende, desse modo, da matriz civilizacional a qual essa sociedade particular pertença. Em relação à civilização ocidental moderna, Weber irá definir seu racionalismo específico como sendo o do "racionalismo da dominação do mundo". Esse racionalismo difere de modo profundo, por exemplo, dos racionalismos não-ocidentais como o da "fuga do mundo", típico da sociedade de castas hindu, ou do racionalismo da "acomodação ao mundo" típico da sociedade tradicional chinesa. O racionalismo da dominação do mundo vai ser definido por uma "atitude instrumental" em relação a todas as três dimensões possíveis da ação humana: ação no mundo exterior, na natureza; no mundo social; e no próprio mundo subjetivo, como meros "meios" para a consecução de fins heterônomos como poder e dinheiro.

Weber logra transformar a percepção de uma "racionalidade objetiva" que se impõe aos sujeitos de modo independente de sua vontade, no fundamento mesmo de uma "sociologia compreensiva", toda voltada a captar o "sentido subjetivo" das ações humanas. É que, no "racionalismo moderno", são os pressupostos da "ação eficaz", no sentido de efetivamente transformadora da realidade externa, que a tornam "compreensível" para todos, permitindo a "evidência intersubjetiva" que garante a cientificidade de proposições e descrições da realidade.

Mas Weber não formula apenas a possibilidade de junção científica dos aspectos subjetivos e objetivos no contexto do "racionalismo da dominação do mundo". Ele inspirou também, precisamente por ter captado a "ambigüidade constitutiva" do racionalismo singular ao ocidente, os dois diagnósticos mais importantes para a autocompreensão do ocidente até nossos dias: uma concepção liberal, afirmativa e triunfalista do racionalismo ocidental; e uma concepção crítica desse mesmo racionalismo, que procura mostrar sua unidimensionalidade e superficialidade.

Para a versão liberal e afirmativa, Weber fornece, por um lado, sua análise da "revolução simbólica" do protestantismo ascético, para ele a efetiva revolução moderna, na medida em que transformou a "consciência" dos indivíduos, e a partir daí a realidade externa, e não o contrário, como na Revolução Francesa, que termina em restauração do poder monárquico. É a figura do protestante ascético, dotado de vontade férrea e com as armas da disciplina e do autocontrole, quem cria o fundamento histórico para a noção do "sujeito moderno" e até mesmo para a noção moderna de "personalidade" enquanto entidade percebida como um todo unitário com fins e motivos conscientes e refletidos. Todas as versões apologéticas do "sujeito liberal" (às vezes, com a contribuição de Tocqueville, sujeito também tornado unidimensional e acrítico) nutrem-se, quase sempre com fundamento empírico na história da pujança econômica e política americana, em maior ou menor grau, da figura do pioneiro protestante weberiano. Por outro lado, é Weber quem reconstrói sistematicamente a lógica de funcionamento, tanto do mercado competitivo capitalista, quanto do Estado racional centralizado, de modo a percebê-los como instituições cuja eficiência e "racionalidade" não teriam igual. Ainda que a perspectiva liberal apologética se restrinja ao elogio do mercado, confluem, aqui, os aspectos subjetivos e objetivos (institucionais) que fundamentam, de modo convincente, a afirmação do "dado", ou seja, do mundo como ele é.

Mas Weber (e nisso reside sua atualidade extraordinária) também percebia o lado sombrio do racionalismo ocidental. Se o pioneiro protestante ainda possuía perspectivas éticas na sua conduta, seu "filho" e, muito especialmente, seu "neto", habitante do mundo secularizado, é percebido por Weber de modo bastante diferente. Para descrevê-lo, Weber lança mão de dois "tipos ideais", ou seja, de modelos abstratos, no caso, de modelos abstratos de condução de vida individual, os quais se encontram sempre misturados em proporções diversas na realidade empírica concreta. Esses "tipos ideais", que explicam o indivíduo típico moderno para Weber, são, por um lado, o "especialista sem espírito", que tudo sabe acerca do seu pequeno mundo de atividade e nada sabe (nem quer saber) acerca de contextos mais amplos que determinam seu pequeno mundo, e, por outro lado, o "homem do prazer sem coração", que tende a amesquinhar seu mundo sentimental e emotivo à busca de prazeres momentâneos e imediatos.

Se a primeira leitura fornece o estofo para a apologia liberal do mercado e do sujeito percebido como independente da sociedade e de valores supra-individuais, a segunda leitura marcou profundamente toda a reflexão crítica até nossos dias. A percepção do indivíduo moderno como suporte das ilusões da independência absoluta e da própria perfeição narcísica, quando, na verdade, realiza, sem saber, todas as virtualidades de uma razão instrumental que termina em consumismo e conformismo político, está na base de todas as variações influentes do assim chamado "marxismo ocidental". Esse termo, denominação ampla que se refere às perspectivas intelectuais que procuraram unir o impulso crítico do marxismo com a análise weberiana do racionalismo ocidental enquanto razão instrumental, foi a base de praticamente todas as concepções críticas do século 20.

Weber no Brasil
No Brasil, a influência do pensamento weberiano é dominada pela leitura liberal apologética. É de Weber que se retira a autoridade científica e a "palavra", no sentido do "nome" e não do "conceito científico", para a legitimação científica da noção central, ainda hoje, da sociologia e da ciência política brasileira: a noção de "patrimonialismo", para indicar uma suposta ação parasitária do Estado e de sua "elite" sobre a sociedade. Entre nós, no entanto, esse conceito perde qualquer contextualização histórica, fundamental no seu uso por Max Weber, e passa a designar uma espécie de "mal de origem" da atuação do Estado enquanto tal em qualquer período histórico. Em Raymundo Faoro, por exemplo, que fez dessa noção seu mote investigativo - enquanto na maioria dos intelectuais brasileiros ela é um pressuposto implícito, embora fundamental - a noção de patrimonialismo carece de qualquer precisão histórica e conceitual. Historicamente, na visão de Faoro, existiria patrimonialismo desde o Portugal medieval, onde não havia sequer a noção de "soberania popular" e, portanto, não havia a separação entre bem privado (do rei) e bem público, já que o rei e seus prepostos não podiam "roubar" o que já era dele de direito.

Em segundo lugar, no âmbito de suas generalizações sociológicas, o patrimonialismo acaba se tornando, de forma implícita, em um equivalente funcional para a mera intervenção estatal. No decorrer do livro de Faoro, o conceito de patrimonialismo perde crescentemente qualquer vínculo concreto, passando a ser substitutivo da mera noção de intervenção do Estado, seja quando este é furiosamente tributário e dilapidador, por ocasião da exploração das minas no século 18, seja quando o mesmo é benignamente interventor, quando D. João cria, no início do século 19, as pré-condições para o desenvolvimento do comércio e da economia monetária, quadruplicando a receita estatal e introduzindo inúmeras melhorias públicas.

A imprecisão contamina até a noção central de "estamento", uma suposta "elite" incrustada no Estado, que seria o suporte social do patrimonialismo. O tal "estamento" é composto, afinal, quem o suporta e fundamenta? Os juízes, o presidente, os burocratas? O que dizer do empresariado brasileiro, especialmente o paulista, que foi, no caso brasileiro, o principal beneficiário do processo de industrialização nacional financiado pelo Estado interventor desde Vargas? Ele também é parte do "estamento" estatal? Deveria ser, pois foi quem econômica e socialmente mais ganhou com o suposto "Estado patrimonial" brasileiro.

A quem interessa a idealização do mercado e a demonização do Estado?
Como fica, em vista disso, a falsa oposição entre mercado "idealizado" e Estado "corrupto"? Ora, trata-se de um conceito que se refere a todos e a ninguém e pouco ou nada esclarece. Se o potencial científico e esclarecedor dessa noção é tendencialmente nulo, o mesmo não pode ser dito de seu potencial ideológico e político. Ela "simplifica" e "distorce" a realidade social de diversas maneiras e sempre em um único sentido: aquele que simplifica e "idealiza" o mercado e subjetiviza e "demoniza" o Estado. De weberiano, pelo menos, esse processo não tem nada. Vimos que a marca da riqueza da reflexão weberiana é precisamente perceber a ambigüidade constitutiva dessas instituições fundamentais do mundo moderno e, com isso, perceber a ambigüidade imanente ao próprio racionalismo ocidental. O mercado cria riquezas com uma eficiência singular, mas produz, simultaneamente, desigualdades e injustiça social de todo tipo. O Estado pode agir das mais diversas maneiras, dependendo da correlação de forças política que esteja no controle do poder de Estado.

Como uma hipótese tão frágil, pode-se perguntar o leitor atento, conseguiu ser até hoje o conceito central da reflexão brasileira, a tal ponto que é repetido, mesmo hoje, não só pela maioria dos intelectuais, na universidade e fora dela, mas também pela mídia e pelos cidadãos comuns nos bares de esquina do Brasil afora? Se quisermos responder a essa questão "weberianamente" - o Max Weber crítico que sempre se interessou pela forma como indivíduos e classes "legitimam" seus "interesses" materiais e ideais criando "racionalizações convincentes" -, temos que perceber as necessidades e interesses que esse tipo de visão de mundo justifica. A quem interessa "demonizar" o Estado, pleitear o Estado mínimo, criticar a incipiente assistência social estatal, e, em suma, reduzir os interesses da sociedade aos interesses da reprodução do mercado?
Quaisquer que sejam os interesses em jogo, o tema do patrimonialismo, precisamente por sua aparência de "crítica radical", dramatiza um conflito aparente e falso, aquele entre mercado e Estado, sob o preço de deixar à sombra todas as contradições de uma sociedade que naturaliza desigualdades sociais abissais e um cotidiano de carência e exclusão. Na crítica deste paradigma ultrapassado e superficial, e na construção de outros mais adequados e verdadeiramente críticos, a tradição crítica que Weber também inspirou pode construir, também entre nós, uma alternativa fundamental para a auto-reflexão dos brasileiros. É de se esperar, como vemos, que as tradições que se alimentam da riqueza da obra desse pensador cada vez mais atual, ainda continuem a desempenhar, aqui e alhures, um papel nada desprezível.

Jessé de Souza é professor de sociologia da UFJF e organizador do livro A atualidade de Max Weber (Editora UNB), entre outros


fONTE: http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=20E706E2-C7EC-40FD-A886-92E8D595EDB7&nwsCode=D994722C-6B25-4D99-9802-4EAF32967382

"para que poetas em tempo indigente?"

Arte em tempos de indigência?
Artigo da revista CULT.


Encontros sobre arte e filosofia, como os Seminários Internacionais de Vila Velha, no Espírito Santo, transformam-se em uma nova modalidade de resistência política

Por Eduardo Socha*



Seminários "para que poetas em tempo indigente?", em Vila Velha, março de 2008: participação expressiva do público e de
importantes figuras do meio acadêmico e artístico consolidam encontro na agenda dos principais eventos culturais do país.

Isolar uma frase de seu contexto e reproduzi-la como slogan para o fácil comércio no mercado das idéias: este talvez seja o procedimento mais eficaz para se corromper a obra de um filósofo. Adorno, cujo pensamento sempre recusou a falsa objetividade do saber positivista, também não escapou desse jugo de caráter publicitário. Arrancaram-lhe de um artigo de 1949, "Crítica da cultura e sociedade", uma frase que o tornaria conhecido e igualmente desdenhado pelo público que um dia já ouviu falar em seu nome. Adorno teria dito com todas as letras que "escrever um poema depois de Auschwitz é um ato de barbárie". A declaração foi (e ainda permanece) objeto de escárnio e ódio e se converteu numa espécie de adágio que acompanha qualquer referência ao filósofo. Adorno? Ah, o sujeito carrancudo que falou mal do jazz, criou a noção de indústria cultural e "proibiu" moralmente a poesia depois de Auschwitz. É claro que Adorno voltaria a encarar a questão, em 1966, três anos antes de sua morte, tentando desfazer o mal entendido. Começava então afirmando que é próprio da filosofia nunca se exprimir de maneira totalmente literal, na linguagem asséptica de alguma cartilha científica. Pois o efeito retórico de toda formulação filosófica pertenceria a seu próprio núcleo expressivo, não podendo ser tratado como simples ornamento. Quando tal efeito é anulado, reduzindo a declaração a seu valor de face, perde-se de vista o verdadeiro alcance de sua intenção. Mas qual o sentido, afinal, da "proibição" adorniana de 1949?

Para Adorno, o choque do pós-guerra, subitamente convertido em recalcamento social, exigia uma nova reflexão sobre o papel cultural da arte, para que não fosse ocultada a dialética inevitável entre cultura e barbárie, dialética que a experiência recente do nazismo havia demonstrado. Reprimir a lembrança do passado recente - esquecer rápido Auschwitz e forjar uma joie de vivre burguesa sustentada por uma arte parasitária - era assim a pior forma de realizar o acerto de contas social, necessário para tornar viável o resgate de uma certa noção de progresso. A frase de efeito do filósofo deveria ser entendida como a ponta retórica do iceberg proposto pela sua teoria, que identificou paralelos ideológicos entre a propaganda fascista e o mecanismo da indústria cultural, fenômenos marcados pela reversão da razão em mito. Na verdade, como o próprio filósofo diria em 1966, era mais do que urgente escrever poesia, mas aquela poesia atenta para a premissa hegeliana de que enquanto houver consciência do sofrimento, deve existir uma arte para dar forma objetiva a esta consciência. Ao dedicar mais da metade de sua produção intelectual à estética, Adorno sabia que as relações entre arte e política estão longe de ser inocentes e que não deveriam ser analisadas separadamente. Daí o motivo central para sua frase de efeito. Se, por um lado, é falsa a idéia de ver a arte e a cultura como simples epifenômenos sociais, como expressões singularizadas do espírito de época de uma comunidade, por outro, quem reduz o papel da arte apenas a um setor organizado de lazer, perde a chance de realizar o mapeamento da complexa rede que une política e cultura. A verdadeira análise das dinâmicas sociais estaria, para Adorno, na tensão dialética entre esses pólos.

Mesmo que não concordemos com as teorias de Adorno, o exemplo dado pela sua frase de efeito e pela sua polêmica nos autoriza a dizer que as relações arte e filosofia devem ser compreendidas sob a perspectiva mais ampla de um debate acerca da própria organização política de uma sociedade. Dito de outro modo, a produção de idéias envolvendo arte e filosofia é indispensável para a compreensão e para a definição dos destinos da política, no sentido forte do termo. Levando em conta a dispersão contemporânea dos valores estéticos e a progressiva institucionalização da barbárie, a urgência de reflexões dessa natureza torna-se cada vez mais evidente. Por outro lado, não é difícil perceber que a concretização dessa necessidade sempre esbarra em limitações graves, principalmente aquelas associadas à precariedade estrutural de um país periférico. Cabe então a pergunta: de que maneira é possível estabelecer, no Brasil, um espaço regular para discussões sobre arte e pensamento que consiga ir além dos muros universitários?

Superar o alarmismo
Iniciativas como os ciclos de conferência organizados há vinte anos por Adauto Novaes ainda são bastante raras. Mas uma resposta interessante vem sendo empreendida curiosamente em Vila Velha, no Espírito Santo. Há três anos, o Museu Vale realiza em suas instalações um importante fórum de seminários internacionais, aberto ao grande público, cuja temática focaliza as relações entre arte e pensamento no século 21. Fazendo parte da programação estável do museu (criado há dez anos com uma notável vocação pedagógica e comunitária) e integrando a agenda dos eventos culturais relevantes do país, o projeto dos seminários chama a atenção já de início: seja pela consolidação de um importante espaço de reflexão fora do eixo Rio-SP, seja pelo esgotamento de todas as vagas em poucas horas após a abertura das inscrições; motivos que por si só fornecem os indícios de uma demanda crescente por esse tipo de evento. A última edição, realizada em março deste ano, partiu de uma indagação corrosiva do poeta romântico alemão Friedrich Hölderlin, cujo desalento ressoa com brutal intensidade no contexto de hoje - "... e para que poetas em tempo indigente?" A pergunta encerra paradoxalmente uma elegia do poeta, na qual se coloca em dúvida o próprio direito de existir da arte; algo que Adorno, para ficarmos no exemplo da frase de efeito, nunca deixou de problematizar no plano histórico e conceitual.

Contudo, a proposta dos seminários de Vila Velha, reunindo filósofos, historiadores, psicanalistas e críticos consagrados, deseja em cada edição superar o alarmismo de uma catástrofe absoluta e inevitável da arte. Pois a indigência espiritual e material do nosso tempo, marcado pela crise geral de sentido, não deveria impedir o reconhecimento da experiência transgressora que o conteúdo de verdade da arte pode promover. Segundo o organizador do evento, Fernando Mendes Pessoa, é inegável que "a arte propicia um acontecimento fundamental capaz de transformar essa indigência", embora tal transformação não se converta em objeto localizável de acordo os parâmetros de uma lógica mercantil.

Assim, para dar conta do desafio de compreender aquilo que escapa à redução sócio-cultural da arte no mundo contemporâneo (quer dizer, para que a arte não seja o lugar pedante de "grã-finagem cultural"), a organização optou neste ano pela divisão dos seminários em dois momentos: "a indigência de nosso tempo" e "para que arte hoje?". Ou seja, não se quis apenas avaliar a perda do caráter formador das instituições artísticas (museus, academias de belas-artes, orquestras etc) na formação de subjetividades; confirmar a "era do vazio" após o esgotamento das possibilidades de renovação política e espiritual; constatar a instrumentalização tirânica e diária de quase todos os nossos desejos pela publicidade; ou, até mesmo, verificar de que modo uma certa "estética da miséria", que o olhar ocidental deseja impor sobre o Brasil, continua a orientar os critérios de justificação para a arte realizada no país.

A tônica da última edição dos seminários, na verdade, foi atualizar a questão sobre a legitimidade da arte, sobre seu próprio "direito de existir" em novos tempos de indigência. Assim, a partir de autores clássicos e contemporâneos, o encontro buscou neste ano debater a necessidade que todos possuímos daquele espanto contínuo e renovado que apenas a criação artística concede, necessidade que provém de um impulso vital. Desestabilizar percepções estruturadas, implodir a visão habitual das coisas: aí estaria o potencial subversivo e transformador da arte, cujo questionamento sempre perturba o consumo dócil das opiniões, a imposição do pensamento único, a adesão irrefletida ao pré-estabelecido. Como foi declarado nos seminários, a própria pergunta "para que arte?" torna-se falsa na medida em que não há definição universal e satisfatória de arte; ou seja, não há definição que dê suporte para a procura de um sentido, de um "para que" - é da própria natureza do novo não se conformar ao já existente. Nesse compromisso com o novo, nesse questionamento perpétuo sobre o instituído, arte e filosofia se encontram e podem ganhar contornos políticos. Afinal, se, apesar do progresso tecnológico e econômico, enfrentamos o risco de um novo estágio de indigência espiritual e de conseqüente avanço da barbárie impulsionado por um capitalismo suicida, os seminários lembram que temos a arte precisamente para não perecer nessa indigência. Com isso, comprovam mais uma vez que o próprio debate sobre arte e filosofia, sobre o campo fecundo de reflexões que tal confronto estabelece, é também uma forma discreta (porém decisiva) de resistência política.

* O autor viajou a convite da organização do evento "Seminários Internacionais Vale". Mais informações sobre o evento em www.seminariosmv.org.br


FONTE: http://revistacult.uol.com.br/website/site.asp?edtCode=EF641083-3D32-4F8C-9C5D-30564DAAF6B4&nwsCode=A50BBF25-FC80-4588-B95A-00766DCE954E

Estranha justiça, cuja base é a falta da necessária verdade

Bom artigo do professor Roberto Romano.


Em defesa da Unicamp (2)

(*) Roberto Romano da Silva





As acusações inverídicas contra a Unicamp, emitidas por frei David dos Santos, o líder da Educafro, mostram que seus ataques não visam apenas conseguir cotas para seus liderados. Elas visam interferir nas formas de recrutamento, ensino e investigações acadêmicas. Depois da ditadura militar e de suas violências no campus, agora vêm os aiatolás com a renovada tentativa de domesticar a universidade em favor da visão teológico-política. A mesma visão que norteia a tutela exercida por vários padres sobre setores do movimento negro. O que mais irrita aqueles clérigos é a autonomia da universidade. Ela impede o exercício de sua peculiar cura d’almas, na qual destruir a essência acadêmica é o maior objetivo, para erigir a fé submissa aos ditames sacerdotais.

Nos séculos 17 e 18, a Sorbonne atacou, quando não tinha mais autonomia, a ciência representada por Descartes e Pascal. Tal perda ocorreu no século 16 sob Gerson, o reitor que abandonou a liberdade acadêmica em troca das verbas para o sustento da escola superior. Segundo ele, a universidade deveria fornecer técnicos eficazes à Igreja, ao Estado e à burguesia comercial. Com a Faculdade de Medicina manteria os corpos saudáveis no trabalho e na guerra. As Faculdades de Artes e Decretos orientariam a política. A Teologia formaria os dirigentes das almas. Gerson define rígida hierarquia entre os três setores: primeiro a teologia, depois os estudos jurídicos e a medicina.

A universidade deveria manter a unidade da Igreja e do Estado, ao mesmo tempo em que aperfeiçoava o mercado. Com a perda da autonomia, diz J. Le Goff (Pour un Autre Moyen-Âge) a corporação “dos manipuladores de livros se transformou num grupo de teólogos decoradores de textos que se arvoraram em policiais do espírito e dos costumes, queimadores de livros”. Rei, papa ou comerciantes pagavam as contas das escolas, mas exigiam “o direito de apresentação, o patronato. A corporação universitária não gozava inteiramente de um dos privilégios essenciais das corporações, o auto-recrutamento. Ela parece ter-se resignado facilmente a esta limitação de sua independência por vantagens materiais”. Estava pronta a “polícia ideológica a serviço dos poderes. (...) A Renascença vê uma domesticação das universidades pelos poderes públicos” ou pela Igreja.

No século 18, a pesquisa e o ensino livres foram obras de pessoas exteriores à universidade, como os Enciclopedistas liderados por Diderot. No campus, Imanuel Kant, na crítica da desrazão universitária - O Conflito das Faculdades - ironiza as “Faculdades Superiores” (Teologia, Medicina, Direito): “o que mais interessa ao governo é o que lhe possibilita a mais forte influência – e a mais durável – sobre o povo, os objetos das Faculdades superiores são dessa natureza”. Nas faculdades “superiores” não existia liberdade de pesquisa, pois tudo vinha dos ministérios. Nelas era ignorado o uso público da razão, professores e alunos eram postos tratados como crianças que jamais deveriam argumentar contra as decisões dos príncipes. Na universidade assim concebida, diz Kant, o todo é uma fábrica, professores e alunos são engrenagens da máquina que produz obediência coletiva, como nas demais burocracias religiosas ou de Estado.

Essa prática trouxe os piores abusos, a perversão máxima no século 20 totalitário. Energúmenos políticos inventaram a religião blasfema da raça pura e a impuseram aos campi da Alemanha, Itália, França, e demais países de tradição anti-semita (M. Stolleis, A History of Public Law in Germany, 1914-1945).

Quando movimentos dirigidos por religiosos e fanáticos tentam impor regras de recrutamento para a universidade, atentam contra a autonomia acadêmica. O narrado em meu artigo anterior é claro: para domesticar a universidade vale tudo, inclusive o dado falso de que na Faculdade de Medicina da Unicamp, 90% dos que ingressam no vestibular, um ano depois são reprovados. Esta falácia digna da propaganda sem peias, serve o desejo de desmoralizar os campi para neles incutir a suposta justiça clerical. Estranha justiça, cuja base é a falta da necessária verdade. Continuarei o assunto na próxima semana.



(*) Roberto Romano da Silva é Professor titular de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor de Ética, também pela Unicamp. Doutor em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e membro do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Unicamp, é autor dos livros "Brasil, Igreja contra Estado", de 1979, "Copo e Cristal, Marx Romântico", de 1985, e "Conservadorismo Romântico", de 1997.

Os artigos do Professor Roberto Romano da Silva também são publicados.

Fontes: http://www.ucho.info/roberto_romano.htm

Sunday, May 04, 2008

Quando se trata de política, é preciso aprender a pensar em termos limitados.

Boa leitura e reflexão:

Saiu na folha de São Paulo:

04/05/2008 - 02h29
Leia correspondência inédita entre Hannah Arendt e o estudante Hans-Jürgen Benedict
da Folha de S.Paulo
Em carta de 1967, a pensadora antecipa questões que estariam no centro dos acontecimentos do Maio de 68.
Hans-Jürgen Benedict
355 Marburg
Universitätsstrasse 30-32
Marburg, 3 de junho de 1967
Estimada senhora!
Ao reler, nos últimos dias, seu livro sobre a Revolução Húngara e o imperialismo totalitário, senti-me como quem recorda, depois de muito tempo, os ideais de sua própria juventude e só consegue vê-los à distância, tristemente, como através de um véu.
Do mesmo modo, os acontecimentos desde então lançaram uma nova luz sobre as suas idéias de outrora, cujo apelo não perdeu atualidade: conservar a memória dos acontecimentos é tão necessário agora como então, e a repressão brutal à revolução deve ser continuar a ser objeto de condenação. O que me parece ter envelhecido é a posição a partir da qual a senhora argumentava em seu livro. Como também me parece questionável a veemência de seu veredicto, a ênfase com que a senhora condenou o imperialismo russo.
Para começar por este último ponto: talvez a reviravolta na política russa ainda não fosse visível à época da redação do ensaio. Mas mesmo se fosse esse o caso (coisa de que duvido: a nova tendência foi volta e meia ocultada por crises e só ganhou nitidez a partir de Kossygin e da não-intervenção no conflito do Vietnã), isso justificaria o esforço de negar substancialmente ao comunismo toda possibilidade de mudança e fixá-lo definitivamente em suas feições stalinistas? Isso não significaria limitar a abertura da história no que tange à esfera de poder comunista?
Seus prognósticos quanto aos desenvolvimentos externos e internos bem podiam ser precisos naquela ocasião, mas não necessariamente assim. Justamente essa suposta ausência de potencial do "imperialismo totalitário" vem agora se vingar: já há muito que não há terror organizado na URSS, e a política exterior de coexistência da URSS vem lhe valendo a crítica de contribuir para a persistência da miséria no Terceiro Mundo.
A mudança de rumo da política russa surpreendeu a todos, de tal modo que se torna mais urgente a questão de saber de onde ela provém. A senhora concordaria com a idéia de que a etiqueta de "totalitarismo/ poder absoluto" já não faz justiça ao comunismo russo e de que já não se pode dizer que este opere unicamente por "considerações de poder" e almeje apenas a "construção de um mundo fictício"? A própria renovação do comunismo russo, tal como se exprime na definição de coexistência formulada no programa do Partido Comunista da URSS em novembro de 1961, não mostra que ele se volta a se comprometer com uma renovação do gênero humano e com um mundo melhor, que idéias originais da revolução, enterradas durante o stalinismo, voltam a cobrar vida?
Em segundo lugar: a situação se inverteu desde a Revolução Húngara. Essa mesma situação não nos força a reformular --ainda que com pesar e a contragosto-- o título de seu livro como "A Guerra do Vietnã e o Imperialismo Americano"?.
A senhora não se identificou, em seu ensaio, com a posição do Ocidente, por mais que fosse dali que criticasse o imperialismo totalitário. Tratava-se, para a senhora, de dar contornos nítidos à liberdade genuína que se mostrava na Revolução Húngara. Ao fazê-lo, a senhora excluía, de caso pensado, o problema econômico, a assim chamada questão social, de vez que esta não pertenceria, a seu ver, ao âmbito da política.
Mas a questão social não se tornou, hoje em dia, o problema político por excelência?
A luta do Terceiro Mundo contra a pobreza, a fome e o analfabetismo não tem a ver com liberdade, humanidade e solidariedade num sentido revolucionário? Sua redução do problema e sua interpretação da Revolução Francesa como má revolução não justifica o modo de pensar do governo norte-americano, que se sente no direito de intervir "onde quer que haja governo fracos e tecidos sociais instáveis" (McNamara)?
Em seu grande livro sobre a revolução, a senhora responsabilizou o pauperismo das massas na revolução francesa pela desfiguração de baixo para cima do processo de realização da liberdade revolucionária.
A alternativa, hoje, seria a pacificação americana "de cima para baixo"? E ainda por cima com a pretensão de pôr fim definitivo à "época dos revolucionários românticos e agressivos" (Walt Rostow)?
Se for assim, então essa pacificação de cima para baixo terá de reconhecer que inadvertidamente se transformou em contra-revolução no sentido clássico do termo.
Em outras palavras: em que termos a senhora esboçaria o capítulo adicional da história da revolução que os últimos desenvolvimentos tornaram necessário?
Permita-me, ainda a esse respeito, acrescentar mais uma questão, derivada da introdução a seu novo livro: mesmo contrapondo-se antiteticamente revolução e política de poder, não haverá distintas formas de violência, uma que se exerce como fim em si mesma, e uma outra que se exerce como meio de abolir a si mesma? A violência será mesmo "muda"? A resistência violenta dos oprimidos do Terceiro Mundo não fala por muitos livros?
Escrevo-lhe estas linhas no mesmo dia em que se divulgou que um estudante berlinense foi morto por um policial durante as manifestações contra o xá da Pérsia. Estas já não são questões meramente acadêmicas na Alemanha Ocidental.
Anticomunismo, falta de liberdade política e injustiça no Terceiro Mundo parecem formar um complexo. A guerra do Vietnã demonstrou para nós, estudantes, a unidade do mundo e a necessidade de transformá-lo. Começamos a entender que estamos envolvidos na persistência de situações indignas na Pérsia, no Vietnã ou no Brasil. Acreditamos ter aprendido --e em boa parte por sua influência-- com o nosso passado e por isso nos sentimos implicados onde quer que algo de semelhante se repita.
Sua resposta a estas perguntas não apenas seria de grande valia para nós como também fortaleceria nossa oposição.
Com admiração,
Hans-Jürgen Benedict
Com Tradução de SAMUEL TITAN JR.
*
Hannah Arendt
370 Riverside Drive
New York, NY 10021
25 de novembro de 1967
Prezado senhor Benedict,
O senhor está a par das errâncias de sua bela carta, que só me chegou às mãos, depois de todas as tribulações, quando eu já me aprontava a embarcar num avião. Quero tentar responder-lhe agora; é uma pena que deva fazê-lo por escrito.
O senhor diz ter relido minha brochura sobre a revolução húngara [1956]. Até onde sei, a editora Piper a retirou do mercado --com a minha concordância. Suas objeções estão corretas-- são as mesmas que me faço hoje. Não pus fé no desenvolvimento da situação na Rússia.
E, para lhe mostrar o que penso hoje, remeto-lhe em anexo a nova introdução a "As Origens do Totalitarismo", republicado aqui no ano passado. Não vale a pena mandar o livro inteiro, uma vez que não alterei nada, exceto a introdução à segunda edição (que corresponde à edição alemã); na segunda edição americana, publiquei como epílogo minhas considerações sobre a revolução húngara --que agora simplesmente excluí. Também lhe envio o prefácio inédito ao volume sobre o imperialismo de meu livro sobre o poder total-- para a edição em brochura, a editora decidiu dividi-lo em três volumes. Creio que o senhor encontrará a resposta a suas perguntas nesses textos; no caso da introdução datilografada, o senhor pode começar a ler a partir da terceira seção, à página 14. Respondo, portanto, apenas aquilo que o senhor não encontrará necessariamente nos textos anexos.
Jamais ataquei o comunismo enquanto tal, muito menos o reduzi a uma posição totalitária. Sempre me manifestei com toda clareza contra a identificação de Lênin com Stálin ou mesmo de Marx com Stálin. Não diria que o comunismo se modificou, mas sim que a forma de domínio se transformou. O que temos hoje na Rússia, é a ditadura do partido único, uma variante da tirania --e apenas isso-- que era de se esperar pelo curso "normal" das coisas após a morte de Lênin, não fosse a intervenção de Stálin. Também não acredito no "potencial" de autotransformação do sistema totalitário --seria como se uma monarquia absoluta pudesse rumar por si só para uma monarquia constitucional.
A morte de Stálin, a derrota e a morte de Hitler --esses acontecimentos externos foram decisivos. Se subestimei alguma coisa, foi o assim chamado fator subjetivo, isto é, o elemento estritamente pessoal e, a par dele, a dificuldade de encontrar sucessores para o déspota. As coisas poderiam ter tomado outro rumo, caso se tivesse encontrado alguém disposto a seguir em frente-- talvez Béria, se bem que duvido muito. Inclino-me a pensar que nem mesmo Kruschev (ou seja lá como se grafa seu nome em alemão), no ano de 1957, quando escrevi a brochura, sabia por certo até onde as coisas chegariam --por mais que estivesse bem mais decidido do que eu pensava a pôr fim aos traços mais essencialmente criminosos do sistema.
Também no que toca o seu segundo ponto --imperialismo americano no Vietnã--, estamos de acordo quanto ao essencial, como o senhor verá pelo novo prefácio.
O único elemento de consolo na história toda é que o país vai se agitando mais e mais e que o governo não pode fazer nada a respeito, se não quiser atingir os fundamentos da república. Confio que o senhor esteja a par disso e não entrarei em detalhes. Pode bem ser que estejamos no início de um novo desenvolvimento imperialista --não necessariamente totalitário; o que é certo é que a república dos EUA não sobreviverá a um tal curso das coisas, isto é, a república como forma de governo, não o próprio país. Também o país se encontra sob grave ameaça, mas isso não me importa tanto. Minha lealdade vincula-se a esta república --não ao país-- e, é claro, também às pessoas, entre as quais, feitas as contas, me sinto melhor do que nunca.
O senhor me pergunta ainda se a questão social se tornou a questão política por excelência. A luta contra a pobreza e a fome diz respeito exclusivamente à pobreza e à fome, pelo menos no que diz respeito aos pobres e famintos, que não costumam ser os que conduzem ou que poderiam conduzir essa luta.
E a luta contra o analfabetismo é cada vez mais uma pré-condição para o fim da pobreza e da fome. A pobreza e a fome (chame-as como quiser) impediram que surgisse, dos movimentos de libertação na Ásia e na África, surgisse alguma coisa com um mínimo de estabilidade. A pobreza e a fome criaram o vácuo de poder --também na América do Sul, onde a corrupção dos governos é o reverso dessa medalha-- que agora está ressuscitando o imperialismo.
Toda formação política se caracteriza pelo poder (não pela violência!) que ela é capaz de exercer; pobreza, fome e analfabetismo criam apenas impotência. Não me venha com os vietnamitas, que de fato conquistaram poder no curso da guerra de guerrilha; nós já os conhecíamos quando ainda se chamavam "indochineses". Não são absolutamente um povo miserável, mas um povo desafortunado, mas altamente dotado e herdeiro de uma cultura antiga. Trata-se, ali, de libertação nacional, mas não, absolutamente, do que entendemos por liberdade. E o mesmo vale, creio eu, para Cuba, onde cabe a nós a culpa maior pelo desdobrar dos acontecimento rumo à tirania russa. Mas olhe bem para os outros Estados sul-americanos.
Bem, chegamos então ao "capítulo adicional da história da revolução que os últimos desenvolvimentos tornaram necessário". Quisera eu ser tão otimista quanto o senhor! A Pax Americana, contra a qual Kennedy se exprimiu com veemência e que Johnson proclamou abertamente, é um pesadelo imperialista --mas, por isso mesmo, apenas um sonho.
A "pacificação de cima para baixo" de que o senhor fala é impossível tecnicamente, seja em termos militares ou econômicos. Ninguém é rico o bastante para ajudar a quem não consegue se ajudar; foi possível dar auxílio à Alemanha ou ao Japão, mas não há como ajudar a Índia, o Egito ou o Congo. E, no que diz respeito aos militares, a Guerra do Vietnã deveria ser prova suficiente de que as superpotências já não têm como conduzir guerras convencionais; e graças a Deus estão todos de mãos amarradas no que diz respeito à guerra atômica. É claro que seria possível invadir o Vietnã, o Vietnã do Norte e ocupar e violentar o país com alguns milhões de soldados. Mas, sem falar nos tremendos riscos políticos, quantas vezes um país como os EUA poderia se permitir esse tipo de coisa?
De resto, o senhor tem razão em mencionar Walt Rostow nesse contexto. Ele de fato quer uma contra-revolução, e a ideologia sob a qual navegam todos os esforços nesse sentido é o anticomunismo, cuja origem e formulação ideológica se deve, como o senhor sabe, em boa medida a ex-comunistas. Como um amigo, o crítico norte-americano Harold Rosenberg, escreveu a Sartre há alguns anos: tome cuidado com o comunismo, ele é canteiro do anticomunismo! Précisément!.
No que diz respeito à violência: não há revolução que tenha triunfado graças à simples violência. Há, é claro, o levante violento dos oprimidos, que entretanto só conseguiu alguma coisa quando o poder do Estado já estava minado. É sempre a impotência, a cólera cega e tremenda dos impotentes que se manifesta como violência.
Quando ela triunfa, o caos puro e simples se instala no dia seguinte --simplesmente porque todos que descarregaram sua ira começam imediatamente a divergir. Daí não virá nenhuma resistência. E, se acha que algo do gênero está se dando no Vietnã, creio que o senhor está fundamentalmente equivocado. E creio haver algo do gênero, um erro do mesmo gênero, em outra de suas observações. O senhor afirma que a guerra do Vietnã teria revelado aos estudantes "a unidade do mundo e a necessidade de transformá-lo". Quanto a esse último ponto, podemos concordar sem mais delongas; mas a "unidade do mundo", supondo que o senhor entenda por esse termo mais que uma espécie de solidariedade, é apenas um sonho. Apenas em termos técnicos o mundo constitui uma espécie de unidade. Sob todos os outros pontos de vista, sobretudo no que diz respeito à política e às chances de um desenvolvimento rumo à liberdade, cada país constitui um caso à parte.
Tome a questão da guerra de guerrilha. Sem dúvida, uma modalidade de luta muito eficaz para povos oprimidos, sobretudo diante de invasores estrangeiros. Mas quantos povos, em sua opinião, estão em condições de organizar uma guerra assim? Não se esqueça de que a expressão Terceiro Mundo é apenas um conceito negativo e se refere a todos aqueles povos que não se encontram nas esferas de poder russa ou americana. O senhor acha mesmo que isso basta para constituir uma unidade?
Quanto ao seu último ponto, não resta dúvida de que estamos envolvidos na persistência de "condições indignas" na Pérsia, no Vietnã e no Brasil, mas não cabe a nós transformá-las. Esta me parece ser uma espécie de delírio de grandeza às avessas. Tente fazer política na Pérsia, e o senhor logo estará curado. Sua responsabilidade diz respeito a impedir que se perpetuem condições indignas na Alemanha ou que se matem estudantes durante uma manifestação. Temo que isso já o manterá mais que ocupado.
Politics, like charity, begins at home. Se amanhã --e isso seria bem possível--, após a retirada das tropas americanas do Vietnã, os vietnamitas começaram a se degolar mutuamente, eu não me sentirei em nada responsável. A política é sempre, entre outras coisas, a arte do possível, e as possibilidades dos homens e dos povos são sempre limitadas. Não reconhecer esses limites é um delírio de grandeza, por mais que este se oculte por trás de sentimentos sublimes.
E isto, em política, é muito perigoso, ainda mais na Alemanha. Espero que não tenha aprendido isto com meus escritos. É verdade que Clémenceau disse (durante o affaire Dreyfus): "L'affaire d'un seul est l'affaire de tous", mas é claro que ele se referia a todos os franceses. Se um cavalheiro de Pequim tivesse aparecido então para lhe dizer que o affaire também lhe dizia respeito, Clémenceau provavelmente o teria julgado ligeiramente perturbado.
Não me leve a mal! Tais confusões, por mais que sejam elementares, produzem-se facilmente quando se começa a generalizar. Em certo sentido, todos nós incorremos nelas, mas é preciso prestar atenção para não perder o bom senso.
Nenhum de nós pode mudar todo o mundo, porque nenhum de nós pode ser cidadão do mundo; e costumam se inclinar por uma responsabilidade mundial justamente aquelas pessoas que fogem, por razões compreensíveis, à responsabilidade por seu mundo. Não há como determinar teoricamente os limites, que entretanto facilmente se mostram em termos práticos. Quando se trata de política, é preciso aprender a pensar em termos limitados.
Isso não é fácil para quem, como o senhor ou como eu, vem de uma tradição filosófica pesada e grandiosa como a alemã, pois é da essência do pensamento transpor limites.
Poderíamos continuar a conversar e a discutir nestes termos, sem --quero crer-- cair em birras ou meras disputas. Mas está carta já está longa demais. E agora me ocorre que não lhe escrevi com uma cópia em carbono para o professor Bahr. Posso pedir que encontre uma máquina xerox e lhe faça chegar uma cópia?
Com os melhores votos, sua
Hannah Arendt
Tradução de SAMUEL TITAN JR.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u397646.shtml 04/05/2008

Comentário: é sempre bom refletir sobre os diversos pontos de vista e analisar com cautela e prudência as construções dos nossos julgamentos sobre os acontecimentos em meio a tantas ideologias emergindo.

Daner Hornich

Thursday, May 01, 2008

A CONDIÇÃO MISERÁVEL DO TRABALHADOR

A reprodução de uma reflexão deste mesmo blog:


A CONDIÇÃO MISERÁVEL DO TRABALHADOR


Às vezes temos em nossas companhias pessoas ilustres para conversar e refletir sobre as condições políticas, sociais, econômicas e religiosas do nosso país, do nosso estado e da nossa cidade que fazem refletir e questionar o nosso imaginário estabelecido.
Um desses personagens é Karl Marx (1818 – 1883) – filosofo alemão – importante interprete da condição humana do mundo moderno e de modo especial – do mundo do trabalho e da condição miserável do trabalhador, com uma “existência animal”, diante das exigências capitalistas.
Numa dessas conversas e reflexões com Karl Marx fiz alguns passeios por suas argumentações que são validas para os nossos tempos na sociedade brasileira ao falar do trabalhador, isto é, “a existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição de existência de qualquer mercadoria. O trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele conseguir chegar ao homem que se interesse por ele. E a procura, da qual a vida do trabalho depende, depende do capricho do rico e capitalista” (Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, 24).
Na sociedade mundial e em especial em nossa sociedade a condição do homem moderno e contemporâneo é a de uma simples mercadoria que dependem dos caprichos dos ricos e capitalistas que exploram, dominam e consumem a força vital corporal e espiritual do trabalhador – que numa situação de precariedade e servidão, são exemplos os nossos cortadores de cana no Brasil e entre outros escravos da tecelagem na China.
Não podemos esquecer do processo de industrialização corrente no mundo que rebaixou o trabalhador “... à (condição) de máquina, a máquina pode enfrentá-lo como concorrente” (Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, 27). Além de transformar o homem numa máquina, produziu sua concorrência que “... tal, como o acúmulo de capital aumenta a quantidade da indústria e, portanto, de trabalhadores, essa mesma quantidade da indústria traz, através dessa acumulação (Accumulation), uma grande quantidade de obras malfeitas (Machwerk) que se torna sobreprodução (Überproduktion) e acaba: ou por colocar fora (da esfera) do trabalho uma grande parte de trabalhadores, ou por reduzir o seu salário ao mais miserável mínimo” (Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, 27).
A argumentação acima é alarmante na época de Karl Marx, mas uma constatação em nossos tempos, que privilegiam a acumulação do capital com tecnologia e inovações, por meio, do mercado financeiro competitivo, concorrente e corrupto que desvaloriza o trabalhador, objeto de troca com um preço cada vez mais reduzido, ou seja, uma mercadoria transformada em uma classe de escravos.
Contudo, a conversa se agrava quando encontramos o seguinte argumento: “..., uma vez que, segundo Smith, uma sociedade em que a maioria sofre não é feliz, mas uma vez que a situação mais rica da sociedade conduz ao sofrimento da maioria, e que a economia nacional (de maneira geral, a sociedade do interesse privado) conduz a esta situação mais rica, (deduz-se que) a infelicidade da sociedade é a finalidade da economia nacional” (Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, 28).
Essa é a fotografia da sociedade brasileira – a foto de uma sociedade em que a maioria trabalhadora sofre em detrimento dos poucos ricos que subsiste como uma elite sem projeto de nação, mas que usa dos benefícios públicos para engordar os seus bens privados e alargar a desigualdade e a injustiça social que joga o nosso Brasil num buraco de explorações, roubo e lamaçal de sujeira, que usa a máquina estatal e desvaloriza o seu trabalhador ao vender a sua própria dignidade.

Daner Hornich é Mestre em Filosofia e doutorando em filosofia (PUC –SP),
Professor

Militares, ciências, Educação Popular.

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