Monday, December 26, 2011

Entrevista: Jean-Luc Marion

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/39486-o-natal-e-o-fracasso-do-pensamento-entrevista-com-jean-luc-marion Entrevista com Jean-Luc Marion
Não se julga um filósofo dos meios de comunicação. Jean-Luc Marion (1) é um intelectual de renome, reconhecido internacionalmente. Um ano atrás, ele foi oficialmente aceito na Academia Francesa; ocupou a vaga do cardeal Jean-Marie Lustiger de quem era amigo e conselheiro. Professor titular da cátedra de metafísica na Sorbonne – sucessor de Emmanuel Levinas, para ele um dos melhores filósofos do século XX – ocupa, na Universidade de Chicago, a que foi de Paul Ricoeur. Oferece-nos a sua reflexão sobre Deus, a fé e a Igreja.

A reportagem é de Josephine Bataille, publicada no jornal dos bispos italianos, Avvenire, 19-12-2010. A tradução é de Anete Amorim Pezzini.

Eis a entrevista.

Levinas, Ricoeur, Lustiger: o que evoca no senhor essa impressionante sucessão tripla?

Eu tento não pensar sobre essas coisas que um pouco me assusta, principalmente porque não houve nada premeditado. Minha vida é como eu imaginei que seria – eu sempre soube que, grosso modo, eu ia escrever livros de filosofia – e, ainda assim, eu nunca pensei que seria assim, de modo tão institucionalmente completo. Eu coloquei meus trabalhos uns em cima dos outros, como se constrói um muro de tijolos, o restante veio cada vez como um plus, quase com facilidade. Que meus livros sejam traduzidos, e, se eu escrever e isso criar uma imagem pública, não digo que eu seja completamente indiferente, mas, em certo um sentido, não é mais problema meu. É como se predispusessem as condições para um desenvolvimento que, de fato, não controlo.

Filósofo para quem a questão de Deus é uma questão fundamental, ele também é, antes de tudo, um crente. As duas dimensões estão ligadas?

Nascido em uma família católica firme em seus princípios, mas despreocupada com os detalhes, eu nunca tive contas em suspenso com a religião nem a sensação de que pudesse haver um conflito entre razão e fé. Mas eu sempre distingui os limites. Por outro lado, para mim, a ideia de ter de justificar-se filosoficamente a fé cristã é ridícula. Quando jovem, eu sonhava em ser um matemático, um centroavante do time de futebol do Racing Club da França e um campeão olímpico dos 1.500 metros. Também considerei a pintura; e eu devia escolher. Como me agradava pensar e discutir, a minha escolha recaiu sobre a filosofia. Como todas as atividades, também essa pode entrar em relação com a fé, mas não se trata de uma relação privilegiada ou obrigação. É-se um filósofo e cristão como se é jogador de futebol, pintor ou carpinteiro e cristão.

Em que os pensadores que proclamam a "morte de Deus" foram cruciais em suas reflexões sobre Deus?

Nos anos em que estudei filosofia, lia-se Nietzsche e falava-se muito da "morte de Deus". Mas, no final, trata-se de uma dimensão essencial da revelação cristã, segundo a qual Deus sobrevive na sua própria morte e integra-a! Então, o tema logo me pareceu demasiado grave para deixá-lo à polêmica anticristã. Na realidade, o que é a "morte de Deus" senão a constatação de que a definição de Deus que é dada – pensa-se-o como a origem do mundo, o mestre da moral, responsável pelo bem… – não se sustenta? Nós não negociamos com Deus, mas com uma certa filosofia (metafísica) que construiu aquele Deus. A "morte de Deus" é o fim de um Deus que tinha de morrer, porque não era mais Deus há muito tempo! Longe de fechá-la, esses pensadores reabriram a questão.

Para o senhor, o ponto não era tanto contradizer, quanto reconhecer uma falha do raciocínio filosófico?

Que relação poderia ter Deus com todas as definições que lhe impomos, quando falamos sobre ele? Aqueles que pensam que sabem as coisas em que acreditam são idólatras, assim como aqueles que afirmam saber o que não acreditam. Que seja impossível acessar Deus como se acessa o restante dos seres é algo sobre o que os crentes e não crentes sempre concordam. Ninguém jamais viu a Deus, diz o Evangelho de João (1, 18), e lá permanece sempre profundamente desconhecido, também reconhece Santo Tomás, na Súmula contra os Gentios.

Não se pode ter certeza sobre a questão de Deus?

Para explicar como o mundo vai, não precisamos de Deus, "hipótese inútil", como Laplace dizia. Por outro lado, quando se considera o que supera cada experiência humana possível, é-se obrigado a levantar a questão de Deus, isto é, daquele a quem nada é impossível. E reconhecer, ao mesmo tempo, que se trata de uma questão que nós jamais poderemos responder sozinhos. A peculiaridade de Deus é de ser parte daquilo que para nós é impossível. O impossível abre o lugar do divino.

Por que o ateísmo, em sua opinião, carece de lógica?

Porque nós não podemos dizer que Deus é impossível apenas porque nós, seres humanos, não podemos conhecê-lo: Deus está além do nosso conhecimento, por definição! Quando se diz que não é possível que Deus exista, apenas se combate uma representação de Deus que havíamos feito. Mas não resolve com certeza a questão de Deus, demostrando que não existe. A questão de Deus não pode ser jamais resolvida com o negativo, permanece aberta por definição. Sempre sobrevive à "morte de Deus", a história do pensamento é uma testemunha. Deus é sempre, pelo menos, "possível". Essa é uma certeza, e já diz muita coisa.

Uma vez que Deus é incognoscível, como a filosofia deve abordar a questão de Deus?

Perguntando-se não sobre o que Deus é – uma tarefa ilusória –, mas sobre a modalidade de relação que podemos ter com ele. Os pensadores da "morte de Deus" têm mostrado que entrar em um relacionamento de conhecimento com Deus não era adequado para a questão de Deus, porque Deus não é um "objeto de conhecimento" como os outros, que possa ser descrito e definido. A questão foi colocada em novos termos. Isso é o que me permitiu fazer essa forma de filosofia chamada fenomenologia: ela descreve a maneira como as coisas – ou pessoas – se dão, manifestam-se a nós, ainda antes de podermos considerá-las como objetos com uma óptica de conhecimento. Isso abre um campo muito mais vasto de reflexão.

Portanto, a Revelação não é uma "resposta" à questão da existência de Deus…

Os crentes são as pessoas que centram a questão de Deus sobre a forma de relação que podemos ter com ele. Ele nos ama? É amável? Tem-se acesso a ele? Salva da morte? O cristianismo é a revelação de que tal relação; é um Deus que diz, vós sois meus e eu sou vosso.

Em sua jornada de fé nunca passou por questionamentos assim humanos?

Eu confesso, sem querer chocar, nunca pensei seriamente que Deus não existisse. E não tenho dúvidas de um único artigo do Credo. Na verdade, ao contrário, tenho dificuldade de entender que não se possa acreditar, tanto mais que, à medida que envelheço, parece-me sempre mais evidente a harmonia das coisas. Por outro lado, a possibilidade de os homens rejeitarem a evidência é uma questão filosófica que me interessa muito: toda a vida é feita de evidências que não se veem. Então, eu não duvido da existência de Deus, mas eu duvido muito da minha própria, e isso parece mais racional. Há sempre ótimas razões para duvidar de si mesmo: conhecer-se e conhecer seus próprios limites. Eu experimentei algumas vezes, como todos, dificuldades na minha maneira de ser cristão: faz-se assim frequentemente o mal que não se quer, para retomar a fórmula de São Paulo, e às vezes também o que se quer. Mas, se nem sempre fiz tudo o que se deve fazer quando se é cristão, não é por isso que cheguei à conclusão de ter de mudar a moral cristã.

Em que ponto a filosofia cede o caminho para a fé?

O argumento filosófico simplesmente afirma que Deus é possível. Não se é obrigado a aventurar-se mais além. Se assim o fizer, é possível fazê-lo de várias maneiras: teologia, mas também poesia. Assim, a fé não é o único resultado possível da questão. Mas ela não pode sequer ser considerada um passo além da razão: é parte de um quadro absolutamente racional.

A Revelação responde à pergunta deixada em aberto pela filosofia?

Na verdade, não. Quando a Revelação chega e impõe-se historicamente não carrega uma "resposta", pois que vem modificar as perguntas, fazendo nascer uma lógica completamente nova. A Revelação produz a própria racionalidade, que os homens possam reconhecer, porquanto não seja o produto da sua inteligência. E, pelos seus efeitos civilizatórios, a revelação judaico-cristã está em uma boa posição. Promoveu o desenvolvimento da pintura e da música; impôs à filosofia perguntas que nunca haviam sido feitas antes; reclamou a independência da razão e da laicidade; a partir do interrogar-se sobre a representação do sagrado no ícone, levantou a reflexão sobre a imagem, sobre a capacidade de imitação, sobre o laço que ela entretece, de fato, entre o visível e o invisível.

Qual é a tarefa da teologia, se o homem não pode dizer nada sobre Deus?

A teologia deve partir da tomada de consciência de que Deus não se resume em qualquer definição: ela não é designada para dizer o que é Deus, mas como ele nos ama e como nós podemos amá-lo. Em poucas palavras, ela deve explicar em detalhe o conteúdo da Revelação, que a espiritualidade é uma forma de realizar.

O senhor está possuído da experiência amorosa de vida. Isto é, em última instância, a questão central da filosofia?

Eu sempre pensei que a realidade era apenas uma questão de amor. Uma das razões pelas quais eu acho que seja racional tornar-se cristãos é porque fala-se com o melhor do amor. Tudo o que fazemos, de uma forma ou de outra, fazemo-lo para responder a uma pergunta amorosa, para saber se eu amo e sou amado. Até o motor do conhecimento é o amor, uma vez que nos interessamos por aquilo que nos agrada. Então acho que é irracional partir de um ponto de vista diferente do amor, quando a vida cotidiana mostra-nos que só o amor é essencial para os seres humanos. E se o amor define o horizonte último da condição humana, de fato torna-se também o da racionalidade.

Se a racionalidade agisse em conjunto com o amor, então inteligência e verdade são os assuntos do coração.

Digamos que existem diferentes níveis de racionalidade. As perguntas lógicas, a matemática, a física, a técnica, abstratas não requerem uma racionalidade complexa, uma vez que, em princípio, podemos dominar todos os parâmetros. Arte, política, fé e amor são mais difíceis que matemática, porque há mais informações contingentes para gerenciar. Quando se tem a ver com fenômenos desse tipo é mais difícil saber e, por conseguinte, decidir, e está-se mais exposto ao erro. Isso não significa que esses fenômenos não possam dar lugar a decisões racionais. Mas eles têm sua forma de demonstração, os seus critérios específicos e, portanto, uma verdade própria. Pode-se assumir como verdade que alguém nos ama por um conjunto de indicadores que não têm nada a ver com aqueles das provas científicas, e todavia ter-se certeza.

Essas verdades complexas exigem uma inteligência superior?

Elas precisam vir a colocar-se em um nível mais abrangente da racionalidade. É por isso que os grandes santos são geniais: a partir do ponto de vista espiritual em que se encontram, compreendem melhor a realidade em relação àqueles que permanecem em seu próprio nível. Na minha opinião este é o caso do cardeal Lustiger. É evidente que há uma racionalidade superior a do amor. Ou do ódio: Hitler, como outros tiranos, era temido não pela eficácia técnica, mas pelo projeto moral. Geralmente, aqueles que negam a realidade do bem e do mal, e de qualquer dimensão espiritual, omitindo uma parte da complexidade do dado, estão condenados a perder a racionalidade, e isso vale para a liderança política do mundo. A revelação cristã, pelo contrário, é de grande ajuda para acessar este ponto de vista de cima.

O que acha da reforma da Igreja, o senhor que viveu a era do Concílio?

O Vaticano, no momento, realmente não me havia interessado e ele me tomou vinte anos para perceber o que tinha sido dito de fundamental. Um Concílio sempre provoca uma crise, pois intervém sobre problemas existentes; aguarda uma geração para confirmar o diagnóstico e aplicar o que foi percebido e iniciado. Hoje estamos nesse ponto, e por isso é que hoje nós devemos trabalhar! De resto, as instituições são, por definição, imperfeitas. Imaginar-se que possa haver uma Igreja sem relações de poder, sonhar uma instituição pura e transparente, parece-me infantil. A santidade, na Igreja, coexiste com as estruturas de poder, não as substitui. Entre os discípulos já havia relações de poder!

A questão da instituição da Igreja é importante para o senhor?

Confesso que não me sinto diretamente envolvido no seu sucesso nem no seu fracasso. Penso na minha experiência universitária que, em quarenta anos, viu acontecer uma vintena de reformas universitárias e percebeu que seu trabalho não dependia todas aquelas flutuações… Temos espontaneamente uma interpretação política e secular do poder na Igreja como se fosse uma multinacional qualquer. Mas os problemas internos da Igreja sempre tiveram uma única via de resolução: quando os Santos tomam conta da situação e criam novos movimentos, nova espiritualidade. O que me espanta não é que existam defeitos na Igreja. É que não há apenas defeitos e que ela conserva-se por mais de vinte séculos, embora se tratando somente de homens pecadores, e tanto mais visivelmente pecadores na medida em que pretendem falar em nome do Santo por excelência. Dito isso, eu sempre tive a impressão de uma grande liberdade na Igreja Católica, e eu nunca tive dificuldade em expressar minha opinião quando eu tinha uma, a custo de inimizar-me com os tradicionalistas ou os progressistas. Na Igreja, como na sociedade, o verdadeiro problema não é a liberdade de palavra. É ter uma palavra que realmente diga alguma coisa.

O senhor ficou ao lado do arcebispo de Paris, Jean-Marie Lustiger, por vinte anos.

Sim, mas em certo sentido, Lustiger não era a instituição. Eu o conheci em 1968, no Quartier Latin, depois no Sainte-Jeanne-de-Chantal para onde eu dirigia-me para ouvir seus sermões. Assim, tornamo-nos amigos, e eu o visitava muito, dando-lhe a conhecer aqueles que o visitavam, como Emmanuel Levinas. Quando ele se tornou bispo de Paris, institucionalizou essa relação: desempenhei os papéis de conselheiro e intermediário, especialmente em assuntos intelectuais. Mas não se aconselhava Lustiger, ao contrário, era ele quem aconselhava. Quanto ao resto, sou um simples batizado, que é praticante, que paga o óbulo e conserva um fundo de anticlericalismo como cada verdadeiro católico. Simplesmente feliz por viver nesta Igreja, a única que temos e que é suficiente.

Nota:

Jean-Luc Marion

1946 - Nasce em Meudon (Altos-do-Sena).
1967- 1973 - Normalista e agregado de filosofia, ele se inicia em teologia sob a orientação de Louis Bouyer, Henri de Lubac, Jean Daniélou...
1975 - Participa da fundação francesa da revista católica internacional Communio.
1980-2000 - Conselheiro de J. M. Lustiger.
Após 1995 - Ocupa a cátedra de metafísica na Sorbonne, fazendo também carreira na Europa e na América do Norte.
2008 - Eleito para a Academia Francesa.
2010 - Publica Le croire pour le voir [O crer para ver] (Le Cerf) e Certitudes négatives (Grasset)


Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/39486-o-natal-e-o-fracasso-do-pensamento-entrevista-com-jean-luc-marion

em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital

Um artigo interessante para os nossos tempos: Conferir abaixo: 01 de Dezembro de 2011 ENSINO SUPERIOR PRIVADO Da educação mercadoria à certificação vazia Enquanto não houver uma mudança radical, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor por Andrea Harada Souza O ensino superior, público e privado, no Brasil passou por grandes transformações nas últimas décadas. Essas mudanças – travestidas de democratização, por favorecerem o acesso – visaram atender a uma proposta de privatização e barateamento da educação. O Ministério da Educação (MEC) alardeia números, sobretudo para organismos internacionais – que obrigam o país a se enquadrar em padrões estipulados por eles na competição do mercado de consumo, trabalho e pesquisa –, que demonstram o crescimento do acesso ao ensino superior, ainda que distantes daqueles objetivados pelo Plano Nacional de Educação (PNE) (o acesso é de apenas 13,8% dos jovens, entre 18 e 24 anos). Porém, esse suposto processo de inclusão tem facilitado, para além do aceitável, um crescimento vertiginoso das instituições de ensino superior (IES) privadas, com desdobramentos que passam pela precarização do trabalho docente e pela formação duvidosa que essas empresas têm oferecido aos alunos por ela formados. A predominância de objetivos economicistas em detrimento dos pedagógicos nas IES privadas permitiu um fenômeno relativamente novo no Brasil: a formação de conglomerados educacionais, grandes empresas, de capital aberto e com forte participação de grupos estrangeiros em seu quadro de acionistas. A autorização para funcionamento dessa espécie de oligopólio do setor educacional tem intensificado a visão mercantil da educação superior no Brasil. Os exemplos mais representativos desse modelo de organização empresarial na educação ficam por conta dos grupos educacionais Kroton-Pitágoras, Estácio de Sá, SEB (Sistema Educacional Brasileiro) e Anhanguera Educacional. Esta última, com a recente aquisição da Uniban, passou a ser o maior grupo educacional do país, atendendo aproximadamente 400 mil alunos em campi espalhados por diversos estados brasileiros. Além disso, manteve sua projeção de crescimento de atingir 1 milhão de estudantes em cinco anos, segundo matéria do Valor Econômico de 17 de novembro de 2011. A alteração no padrão de financiamento das IES privadas promoveu uma mudança significativa no modelo de gestão: o papel que antes era predominantemente exercido por mantenedoras, de caráter familiar ou religioso, hoje passou a ser de responsabilidade de bancos ou fundos de investimentos que contratam executivos como seus representantes, padronizam procedimentos de relações de trabalho nos departamentos de recursos humanos e prestam contas ao fundo de ações. Decorre daí um perfil de gestão alinhavado com a lógica empresarial, sob responsabilidade de executivos, e muito distante dos objetivos educacionais que sempre foram sustentados por professores e pesquisadores. Abandono do Estado Tomado pela óptica do lucro, o setor educacional privado tem se valido, oportunamente, do abandono do Estado na oferta de vagas públicas para a formação superior. Dessa forma, as IES privadas, cuja existência deveria ter um caráter complementar, acabaram predominando e se consolidando em grupos que formulam e ditam as regras de seu interesse para a (des)regulamentação do setor, regras essas beneficiadas pelas chamadas políticas de parcerias público-privadas, as quais são alicerçadas sobre o princípio da transferência de dinheiro público para a iniciativa privada com a finalidade de que esta última cumpra o papel que o Estado se nega a exercer. No caso do ensino superior, essas transferências se dão predominantemente por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni) e do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), além dos programas de benefícios de isenção fiscal oferecidos pelo BNDES. Nesse ponto, o discurso falacioso do Estado e o do setor privado convergem: trata-se de iniciativas e proposições que manifestam concretamente a preocupação com a formação do brasileiro e com o desenvolvimento do país! De modo geral, a consolidação da mercantilização da educação e a formação de oligopólios educacionais têm ocorrido com base na incorporação de princípios e fundamentos do setor empresarial, ou seja, na otimização dos recursos. Como afirma Marilena Chauí (2001), “a Universidade está estruturada segundo o modelo organizacional da grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição”. Essa fórmula – clássica do neoliberalismo – consiste na diminuição das despesas para o consequente aumento dos lucros. Assim, com vistas a assegurar um perfil rentável − à empresa, é claro −, torna-se necessária a precarização das relações de trabalho: redução de salários, perda de direitos, ameaças e cobranças pelo desempenho da instituição nas avaliações externas promovidas pelo MEC são alguns traços da rotina de professores das IES privadas. Ao mesmo tempo, concorre para intensificar os contornos dramáticos desse quadro a expansão da modalidade EaD (educação a distância), que em 2010 fechou o ano com 973 mil alunos matriculados, o que corresponde a 30% de todos os universitários em instituições privadas. Nesse caso, a educação mediada pela tecnologia, que deveria servir para aproximar os extremos sociais, acaba por aprofundá-los. Contudo, para os empresários, o aliciamento desse recurso é tomado como mais uma vantagem mercadológica capitalista, sobretudo por potencializar sua capacidade de lucro. Na outra ponta, os salários praticados nas IES privadas são – via de regra – aviltantes, o que obriga muitos profissionais a lecionar em várias instituições, seja para compor a renda, seja para se prevenir das demissões, muitas vezes arbitrárias. Nesse contexto, os professores se veem impedidos de desempenhar tarefas diretamente ligadas à sua função (e ao ensino superior, ou seja, ensino, pesquisa e extensão), absorvidos que estão por uma jornada de trabalho extenuante. No entanto, paralelamente a isso, ocorre um processo silencioso de captura da subjetividade dos docentes com objetivo de estabelecer uma competição interna, cuja face mais alarmante é a perda da autonomia. Como toda competição tem exigências, impõe-se que esses profissionais – para terem condição de competir – sejam aguerridos, “pró-ativos”, competentes e indiferentes às questões coletivas, o que os leva a um distanciamento de seus sindicatos e associações e permite, muitas vezes, que sejam – deliberadamente – vistos como mão de obra manipulável pelos patrões. Precarização e intimidação Se de um lado temos a perda da autonomia dos professores como uma ameaça à própria noção de função docente, de outro notamos que, por parte dos empresários da educação, a oferta de uma formação aligeirada tem exigido profissionais cada vez menos críticos e progressivamente mais alienados da prática educativa. Não é raro o relato de professores do ensino superior que têm seus conteúdos – planos e ementas de cursos –, bem como suas avaliações, elaborados por um terceiro que nunca sequer esteve em uma sala de aula. Essa tentativa, por parte dos patrões, de padronizar a prática pedagógica para garantir um rendimento mínimo nas avaliações externas evidencia de maneira cabal seu propósito de controle absoluto sobre a mercadoria que vendem. Dessa forma, a reação e a resistência a essa prática de mercantilização da educação impõem grandes desafios. No estado de São Paulo, que acompanhamos mais de perto, tem sido cada vez mais difícil o enfrentamento com os patrões do ensino superior nas campanhas salariais organizadas por nossa federação, a Fepesp (Federação dos Profissionais de Educação do Estado de São Paulo), pois há um evidente conflito nas pautas apresentadas para negociação. Do lado de lá, a ofensiva é para subtrair direitos historicamente conquistados e que, vistos com a luneta do capital, representam entraves normativos à expansão dos lucros. Em razão disso, questões como plano de carreira, regulamentação da EaD e aumento real são deliberadamente ignoradas pelos patrões, que, por sua vez, promovem lobbiesjunto ao Poder Legislativo, a fim de que as regras do setor continuem a beneficiá-los. Entretanto, a predominância de valores empresariais na organização das IES e a falta de regulamentação efetiva por parte do MEC têm imposto uma permanente ameaça, ainda que velada, que é o desemprego. Assim, os professores insatisfeitos com salários e condições de trabalho incorporam a responsabilidade incutida pelo patrão, de que o mercado funciona assim: os insatisfeitos que se mudem. A aceitação dessa ideia leva a um comportamento defensivo, porque nos faz crer que nada pode ser feito e, por isso mesmo, qualquer iniciativa coletiva deve ser vista como prejuízo ao próprio trabalhador. Há também que se ressaltar a necessidade urgente de que o debate sobre a educação seja tomado como fundamento para um crescimento qualitativo e efetivo do Brasil, sobretudo para a população que ainda anseia conhecer na prática a longo prazo esse crescimento. Para validarmos o princípio democrático do direito à educação, sem, contudo, ignorar que o mercado do ensino privado não arrefecerá a curto prazo, precisamos assegurar o investimento de 10% do PIB na educação pública – que estimamos universal e de qualidade –, a fim de que ela seja o referencial para o setor privado, e não o contrário. Enquanto não houver uma mudança radical nesse quadro, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor. A forte presença do controle corporativo em um setor essencial como a educação provoca sérias fissuras na malha social, na medida em que os desdobramentos da transferência tácita da responsabilidade do Estado para a iniciativa privada têm autorizado o funcionamento de fábricas de diplomas com certificação vazia, para uma população que, embriagada pela democratização do acesso, ainda não se sabe enganada. Andrea Harada Souza Professora de literatura, presidente do Sinpro Guarulhos e membro da coordenação estadal da CSP-Conlutas Ilustração: Daneil Kondo Referências bibliográficas: CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.INEP. “Sinopse da educação superior no Brasil”, 2009. Disponível em: www.inep.gov.br. Palavras chave: educação, ensino superior, MEC, Estado, política pública, classes sociais, mercantilização,controle, financiamento, mercado, consumidor, sociedade, lucro http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=1072

Monday, December 12, 2011

‘A Privataria tucana’

Saiu na Carta Capital, conferir abaixo a reportagem Chega às livrarias ‘A Privataria tucana’, de Amaury Ribeiro Jr. CartaCapital relata o que há no livro Chega às livrarias ‘A Privataria tucana’, de Amaury Ribeiro Jr. CartaCapital relata o que há no livro Não, não era uma invenção ou uma desculpa esfarrapada. O jornalista Amaury Ribeiro Jr. realmente preparava um livro sobre as falcatruas das privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso. Neste fim de semana chega às livrarias “A Privataria Tucana”, resultado de 12 anos de trabalho do premiado repórter, que durante a campanha eleitoral do ano passado foi acusado de participar de um grupo cujo objetivo era quebrar o sigilo fiscal e bancário de políticos tucanos. Ribeiro Jr. acabou indiciado pela Polícia Federal e tornou-se involuntariamente personagem da disputa presidencial. 'A Privataria Tucana', de Amaury Ribeiro Jr. Na edição que chega às bancas nesta sexta-feira 9, CartaCapital traz um relato exclusivo e minucioso do conteúdo do livro de 343 páginas publicado pela Geração Editorial e uma entrevista com autor (reproduzida abaixo). A obra apresenta documentos inéditos de lavagem de dinheiro e pagamento de propina, todos recolhidos em fontes públicas, entre elas os arquivos da CPI do Banestado. José Serra é o personagem central dessa história. Amigos e parentes do ex-governador paulista operaram um complexo sistema de maracutaias financeiras que prosperou no auge do processo de privatização. Ribeiro Jr. elenca uma série de personagens envolvidas com a “privataria” dos anos 1990, todos ligados a Serra, aí incluídos a filha, Verônica Serra, o genro, Alexandre Bourgeois, e um sócio e marido de uma prima, Gregório Marín Preciado. Mas quem brilha mesmo é o ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil, o economista Ricardo Sérgio de Oliveira. Ex-tesoureiro de Serra e FHC, Oliveira, ou Mister Big, é o cérebro por trás da complexa engenharia de contas, doleiros e offshores criadas em paraísos fiscais para esconder os recursos desviados da privatização. O livro traz, por exemplo, documentos nunca antes revelados que provam depósitos de uma empresa de Carlos Jereissati, participante do consórcio que arrematou a Tele Norte Leste, antiga Telemar, hoje OI, na conta de uma companhia de Oliveira nas Ilhas Virgens Britânicas. Também revela que Preciado movimentou 2,5 bilhões de dólares por meio de outra conta do mesmo Oliveira. Segundo o livro, o ex-tesoureiro de Serra tirou ou internou no Brasil, em seu nome, cerca de 20 milhões de dólares em três anos. A Decidir.com, sociedade de Verônica Serra e Verônica Dantas, irmã do banqueiro Daniel Dantas, também se valeu do esquema. Outra revelação: a filha do ex-governador acabou indiciada pela Polícia Federal por causa da quebra de sigilo de 60 milhões de brasileiros. Por meio de um contrato da Decidir com o Banco do Brasil, cuja existência foi revelada por CartaCapital em 2010, Verônica teve acesso de forma ilegal a cadastros bancários e fiscais em poder da instituição financeira. Na entrevista a seguir, Ribeiro Jr. explica como reuniu os documentos para produzir o livro, refaz o caminho das disputas no PSDB e no PT que o colocaram no centro da campanha eleitoral de 2010 e afirma: “Serra sempre teve medo do que seria publicado no livro”. CartaCapital: Por que você decidiu investigar o processo de privatização no governo Fernando Henrique Cardoso? Amaury Ribeiro Jr.: Em 2000, quando eu era repórter de O Globo, tomei gosto pelo tema. Antes, minha área da atuação era a de reportagens sobre direitos humanos e crimes da ditadura militar. Mas, no início do século, começaram a estourar os escândalos a envolver Ricardo Sérgio de Oliveira (ex-tesoureiro de campanha do PSDB e ex-diretor do Banco do Brasil). Então, comecei a investigar essa coisa de lavagem de dinheiro. Nunca mais abandonei esse tema. Minha vida profissional passou a ser sinônimo disso. CC: Quem lhe pediu para investigar o envolvimento de José Serra nesse esquema de lavagem de dinheiro? ARJ: Quando comecei, não tinha esse foco. Em 2007, depois de ter sido baleado em Brasília, voltei a trabalhar em Belo Horizonte, como repórter do Estado de Minas. Então, me pediram para investigar como Serra estava colocando espiões para bisbilhotar Aécio Neves, que era o governador do estado. Era uma informação que vinha de cima, do governo de Minas. Hoje, sabemos que isso era feito por uma empresa (a Fence, contratada por Serra), conforme eu explico no livro, que traz documentação mostrando que foi usado dinheiro público para isso. CC: Ficou surpreso com o resultado da investigação? ARJ: A apuração demonstrou aquilo que todo mundo sempre soube que Serra fazia. Na verdade, são duas coisas que o PSDB sempre fez: investigação dos adversários e esquemas de contrainformação. Isso ficou bem evidenciado em muitas ocasiões, como no caso da Lunus (que derrubou a candidatura de Roseana Sarney, então do PFL, em 2002) e o núcleo de inteligência da Anvisa (montado por Serra no Ministério da Saúde), com os personagens de sempre, Marcelo Itagiba (ex-delegado da PF e ex-deputado federal tucano) à frente. Uma coisa que não está no livro é que esse mesmo pessoal trabalhou na campanha de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, mas sob o comando de um jornalista de Brasília, Mino Pedrosa. Era uma turma que tinha também Dadá (Idalísio dos Santos, araponga da Aeronáutica) e Onézimo Souza (ex-delegado da PF). CC: O que você foi fazer na campanha de Dilma Rousseff, em 2010? ARJ: Um amigo, o jornalista Luiz Lanzetta, era o responsável pela assessoria de imprensa da campanha da Dilma. Ele me chamou porque estava preocupado com o vazamento geral de informações na casa onde se discutia a estratégia de campanha do PT, no Lago Sul de Brasília. Parecia claro que o pessoal do PSDB havia colocado gente para roubar informações. Mesmo em reuniões onde só estavam duas ou três pessoas, tudo aparecia na mídia no dia seguinte. Era uma situação totalmente complicada. CC: Você foi chamado para acabar com os vazamentos? ARJ: Eu fui chamado para dar uma orientação sobre o que fazer, intermediar um contrato com gente capaz de resolver o problema, o que acabou não acontecendo. Eu busquei ajuda com o Dadá, que me trouxe, em seguida, o ex-delegado Onézimo Souza. Não tinha nada de grampear ou investigar a vida de outros candidatos. Esse “núcleo de inteligência” que até Prêmio Esso deu nunca existiu, é uma mentira deliberada. Houve uma única reunião para se discutir o assunto, no restaurante Fritz (na Asa Sul de Brasília), mas logo depois eu percebi que tinha caído numa armadilha. CC: Mas o que, exatamente, vocês pensavam em fazer com relação aos vazamentos? ARJ: Havia dentro do grupo de Serra um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) que tinha se desentendido com Marcelo Itagiba. O nome dele é Luiz Fernando Barcellos, conhecido na comunidade de informações como “agente Jardim”. A gente pensou em usá-lo como infiltrado, dentro do esquema de Serra, para chegar a quem, na campanha de Dilma, estava vazando informações. Mas essa ideia nunca foi posta em prática. CC: Você é o responsável pela quebra de sigilo de tucanos e da filha de Serra, Verônica, na agência da Receita Federal de Mauá? ARJ: Aquilo foi uma armação, pagaram para um despachante para me incriminar. Não conheço ninguém em Mauá, nunca estive lá. Aquilo faz parte do conhecido esquema de contrainformação, uma especialidade do PSDB. CC: E por que o PSDB teria interesse em incriminá-lo? ARJ: Ficou bem claro durante as eleições passadas que Serra tinha medo de esse meu livro vir à tona. Quando se descobriu o que eu tinha em mãos, uma fonte do PSDB veio me contar que Serra ficou atormentado, começou a tratar mal todo mundo, até jornalistas que o apoiavam. Entrou em pânico. Aí partiram para cima de mim, primeiro com a história de Eduardo Jorge Caldeira (vice-presidente do PSDB), depois, da filha do Serra, o que é uma piada, porque ela já estava incriminada, justamente por crime de quebra de sigilo. Eu acho, inclusive, que Eduardo Jorge estimulou essa coisa porque, no fundo, queria apavorar Serra. Ele nunca perdoou Serra por ter sido colocado de lado na campanha de 2010. CC: Mas o fato é que José Serra conseguiu que sua matéria não fosse publicada no Estado de Minas. ARJ: É verdade, a matéria não saiu. Ele ligou para o próprio Aécio para intervir no Estado de Minas e, de quebra, conseguiu um convite para ir à festa de 80 anos do jornal. Nenhuma novidade, porque todo mundo sabe que Serra tem mania de interferir em redações, que é um cara vingativo. Fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/a-%E2%80%9Cprivataria-tucana%E2%80%9D-de-amaury-ribeiro-jr-chega-as-bancas-cartacapital-relata-o-que-ha-no-livro/ - 13/12/2011

Friday, November 11, 2011

Ao prefeito de Piracicaba - sobre o anel viário

Segue abaixo a resposta ao Prefeito de Piracicaba Prefeito Barjas Negris, Bom dia! Que pena que em quase oito anos de governo na prefeitura de Piracicaba o anel viário não foi prioridade - (para o Estado muito menos). Podemos verificar pelo novo buraco na ponte o transtorno que isto causa no trânsito da cidade. Não se esqueça prefeito que pelo anel viário passa o desenvolvimento do país, sobre esse assunto o senhor conhece muito bem, pela "Escola de Campinas". Grato pelo retorno e atenção! Daner Hornich ________________________________________ Em 08/11/2011 16:26, Barjas Negri < bnegri@piracicaba.sp.gov.br > escreveu: Caro Daner, Em relação aos seus comentários a respeito do atual anel viário, informamos que optamos por fazer uma parceria com o Governo do Estado de São Paulo para a construção de amplo e moderno anel viário de Piracicaba, ligando as importantes Rodovias: 1. do Açúcar; 2. Luiz de Queiróz (SP 304); 3. Piracicaba-Limeira e 4. Piracicaba-Rio Claro, numa extensão de 9 quilômetros de pista dupla, envolvendo diversas obras de arte e duas novas pontes sobre o Rio Piracicaba. As obras estão com seu cronograma previsto para a conclusão em abril de 2013. Assim, os veículos que hoje trafegam pelo atual e precário anel viário terão mais segurança com a conclusão dessa obra. Segue mais informações em anexo. Em relação aos demais comentários os Secretários das respectivas pastas vão esclarecê-los sobre as ações executadas e em andamento. Atenciosamente, BARJAS NEGRI

Saturday, November 05, 2011

DEPENDÊNCIA DO PETRÓLEO

BIBLIOTECA VIRTUAL Tamanho da fonte: | | Imprimir | E-mail | RSS 31 de Outubro de 2011 DEPENDÊNCIA DO PETRÓLEO Energias renováveis: capitalismo, hegemonia e dominação Na sociedade contemporânea as fontes de energia de origem fóssil ocupam um lugar estratégico no sistema de produção, servindo como instrumento de dominação e reprodução do modo de produção capitalista. por Thulio Cícero Guimarães Pereira Muito se fala e escreve sobre energia a obtida a partir de fontes renováveis como uma das principais soluções para enfrentar o problema do aquecimento global, geração de renda e emancipação das comunidades locais. Organizações como a ONU, OCDE, Banco Mundial, FMI entre outros, promovem estudos e recomendações que apontam as energias renováveis como fundamentais para o desenvolvimento “sustentável” no século XXI. Mas o que se observa é que os esforços e investimentos nessa direção estão muito mais centrados na questão pragmática da segurança do abastecimento energético do que nas questões ambientais. As políticas e ações nessa área da Alemanha, França, EUA e China, demonstram haver preocupações muito maiores com o crescente problema do aumento do custo de extração do petróleo e acesso ao produto e rotas de abastecimento do que nas questões ambientais. Uma leitura mais atenta permite perceber que a ênfase maior na questão climática, e sua inclusão na agenda internacional de políticas públicas, vêm principalmente de atores europeus, cujas fontes energéticas estão sob controle direto ou indireto dos EUA ou da Rússia. A necessidade de ampliar a oferta interna de energia para reduzir a dependência alemã ou francesa das fontes do Oriente Médio e da Sibéria, colocam a questão da energia extraída de fontes alternativas ao petróleo e gás natural, como central na política européia. Neste sentido, para os europeus é estratégico promover o uso de outras fontes energéticas, todas com maior custo, nos demais sistemas econômicos concorrentes, sob pena ver inviabilizado o produto europeu no mercado internacional. Como estratégia parece ser fundamental mobilizar a opinião pública internacional em torno da questão do aquecimento global, para que os demais países assumam compromissos na direção da transformação de suas matrizes energéticas, agregando fontes mais caras em suas estruturas de produção. O sucesso de tal empreitada junto à opinião pública também abre espaço para a possibilidade de se desenvolver barreiras de cunho ambiental para a entrada de produtos concorrentes no espaço econômico da União Européia e demais atores engajados nesse debate. A leitura do que se produz em torno dessa questão apresenta um quadro quase que messiânico em torno das fontes renováveis, como se essa fosse uma questão de que necessitasse do voluntarismo engajado das forças sociais, em busca de um mundo melhor, uma nova utopia para a civilização. Não faltam exemplos, e entre eles o Brasil costuma ser apontado como uma “grande solução para um mundo desesperado por encontrar novos caminhos”. A matriz energética brasileira Esse discurso esquece que a matriz energética brasileira, onde as fontes renováveis representam 45% da matriz, em contraposição aos 7% da OCDE[i], é resultado de uma longa luta histórica para vencer a escassez da oferta de petróleo e gás em seu território, um dos principais instrumentos utilizado pelos grandes centros capitalistas para manter o controle sobre o país. Para se chegar a tal quadro, a sociedade brasileira empreendeu um brutal esforço para constituir cadeias produtivas baseadas em fontes como a hidroeletricidade e o etanol. Recursos públicos enormes foram transferidos, grande parte a fundo perdido, para construir essa infra-estrutura, recursos esses que se deixou de investir na erradicação da miséria, inclusive tendo sido seguramente um dos indutores de desigualdade e pobreza no Brasil. Sem esquecer que grandes projetos como, por exemplo, Itaipu, foi implantado durante a ditadura militar, que impôs à força o projeto muitas vezes lançando mão de atos de barbárie sociais e ambientais que ainda estão para serem descritos, se é que serão algum dia. Nessa história não houve espaço para ações voluntariosas ou apaixonadas em busca de um paraíso na terra. Os brasileiros sabem o quanto custou construir e manter tal matriz, cujo atributo tão propalado mundo afora como uma matriz “limpa”. Sabe-se que, quando vista de perto deixa muito a desejar, ou mesmo, em muitos casos, não passa de discurso carregado de cinismo e hipocrisia. Em contrapartida, boa parte da sociedade brasileira organizada percebe que esta é uma questão de sobrevivência, uma das poucas opções que restaram ao país para enfrentar os brutais mecanismos de subordinação econômica e política e, para tanto, entre um futuro de miséria e submissão imposto pela mecânica capitalista e, um outro, com um mínimo independência e dignidade social, o que tem justificado politicamente os esforços e conseqüências das ações em busca da autonomia, mesmo às custas de grandes passivos ambientais e sociais derivados de tais empreendimentos. Ora, seria pusilânime recomendar este resultado puro e simples da lógica do capital como exemplo para mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, quando se sabe que o quadro de degradação ambiental é conseqüência direta das transformações capitalistas, que no mundo contemporâneo atingiu proporções inimagináveis e conseqüências que ainda estão por serem descritas ou entendidas. A economia do Petróleo No centro do problema energia versus meio ambiente estão as energias fósseis como o petróleo, gás natural e carvão, mas erra-se ao identificá-las como o problema em si, como se a sua erradicação ou substituição por fontes alternativas poderiam mudar o encontro marcado que a sociedade contemporânea tem com as conseqüências das mudanças climáticas em curso, senão vejamos. A indústria petrolífera internacional constitui-se numa gigantesca cadeia produtiva, envolvendo milhões de trabalhadores, milhares de empresas, dezenas de Estados e governos, etc. De grande densidade social e econômica, esta cadeia envolve um arcabouço complexo de subsídios diretos e indiretos, explícitos e implícitos, com mecanismos sofisticados de autodefesa e sobrevivência. Tal estrutura complexa é o resultado da expansão capitalista nos últimos 120 anos, e não existem indícios visíveis de que tal sistema esteja com seus dias contados ou iniciando uma trajetória decadente. Muito pelo contrário, os preços atuais do barril de indicam que a cada dia os combustíveis fósseis se tornam um negócio ainda mais atraente. É necessário ampliar a análise e se perguntar por que o petróleo chegou a tal lugar no centro da cadeia produtiva moderna. Este debate normalmente é dominado por justificativas técnicas e operacionais, mas entendo que tais alegações só servem para encobrir a verdadeira razão pela qual ele e os demais combustíveis fósseis, como o gás natural e o carvão, estão na base da matriz energética mundial. Tais cadeias produtivas, pela sua natureza, exigem grandes concentrações de capital na construção, operação e manutenção dos seus processos de produção e distribuição. Na verdade, são instrumentos perfeitos de dominação e hegemonia capitalista. Alternativas energéticas somente encontrarão espaço para substituir fontes fósseis se tecnicamente permitirem manter ou construir mecanismos similares de dominação. Alternativas energéticas de características emancipatórias encontram diante de si barreiras políticas intransponíveis em todos os lugares, e somente em casos especiais, e muito específicos, como foi o caso brasileiro, poderão vingar como base de uma matriz energética, desde que não tenham grande impacto sobre o sistema internacional. A marginalidade continuará sendo a marca característica de tais fontes e, acredito eu, não há messianismo, voluntarismo, ou mesmo vontade política localizada que possa modificar tal situação. O tamanho e a complexidade dos interesses políticos e econômicos mobilizados em torno de tal cadeia produtiva, envolvendo capitalistas e trabalhadores, dificilmente poderá ser modificado com eficácia através de discursos e ações localizadas. Corre-se o sério risco de assistirmos à transferência pura e simples de mais recursos públicos para os cofres de grandes corporações por conta do discurso fácil e indefinido da “sustentabilidade”, aprofundando ainda mais as desigualdades no mundo em que vivemos. A febre do petróleo e do gás natural Nesse contexto, o que está acontecendo no Brasil pode sim servir de exemplo de como funciona a lógica capitalista com relação à energia. A analise do que está acontecendo em torno das reservas do Pré-Sal é bastante ilustrativa. Grandes forças políticas estão sendo mobilizadas em torno do petróleo e do gás, envolvendo boa parte do mundo político brasileiro, desde prefeitos das mais humildes cidades do interior, passando por vereadores, deputados estaduais, federais, senadores, o executivo até o judiciário, todas as suas esferas públicas estão mobilizadas em torno da discussão da partilha dos benefícios da exploração dessa fonte. Sem esquecer o engajamento direto das grandes federações de indústrias, centrais sindicais, universidades, imprensa e a comunidade científica. Os anúncios de investimentos de recursos públicos não são questionados, e não existe debate público para definir os rumos dos investimentos. Não é demais afirmar que as principais forças organizadas da sociedade brasileiras estão vivendo a febre do petróleo. O debate do desenvolvimento futuro do Brasil está galvanizado em torno do petróleo e, ao que parece, o pensamento crítico nacional foi anestesiado pelo cheiro do óleo e do gás encontrado na costa brasileira. O antigo sonho nacionalista, pelo qual a esquerda, e parte da direita, lutaram nos últimos 100 anos se realiza com a descoberta e exploração dos campos de petróleo a 350 km da costa brasileira, de frente para o principal mercado consumidor formado por São Paulo e Rio de Janeiro. Boa parte da sociedade brasileira percebe-se como protagonista de um momento de ruptura histórica, que está redefinindo as estruturas da produção capitalista brasileira, e por conseqüência, a estrutura social do país, que sente ter finalmente encontrado o seu futuro. O sentimento é de que o Brasil finalmente recebeu seu passaporte, ou o bilhete premiado, para entrar no fechado clube dos países ricos, aqueles de dominam os processos de divisão da produção internacional. Certamente que nesse cenário, os 45% de energia “limpa” poderá ser, em boa parte, queimado em nome do crescimento econômico, talvez, quem sabe, algo em torno de 27% poderá ser literalmente carbonizado na pira do desenvolvimentista, igualando o Brasil aos demais países “desenvolvidos” da OCDE, cuja grande meta é chegar em 2035 com uma matriz onde as fontes renováveis ocuparão um glorioso lugar de 18%1. Declarações do poder público brasileiro, como as da presidenta Dilma no dia de sua posse, reafirmando o compromisso com a manutenção da proporção das fontes renováveis na matriz energética, encontram diante de si a crescente articulação de grandes interesses sociais e econômico em torno do petróleo. As ações concretas na direção de aumentar os investimentos em fonte renováveis para manter sua proporção atual na matriz energética, terão que ser adotadas, sinalizando que as ações ultrapassam o campo da retórica. O problema é que o Pré-Sal exige e exigirá muito mais recursos, e é grande a probabilidade dele se tornar um enorme sorvedouro do orçamento público e privado brasileiro nos próximos trinta anos. Guardadas as devidas proporções, uma febre parecida está ocorrendo nos EUA, só que em torno do gás natural de xisto, também conhecido como “shale gas”, que promete reduzir consideravelmente a crescente dependência daquele país de fontes de energia no exterior. Após a publicação do relatório com o mapa internacional da mina pela USDA em abril de 2011[ii], é grande a probabilidade de que tal febre também contamine a Europa e China, onde estão grandes reservas, e até mesmo o Brasil, cujo potencial estimado das reservas próximas aos grandes centros consumidores, possivelmente não deixará o país de fora desse possível grande movimento de expansão capitalista. O interessante e sintomático, é que tais movimentos estão ocorrendo concomitantemente com a chamada “primavera árabe”, na qual parece que aqueles povos estão divisando algumas luzes de autonomia e liberdade, ao custo de muito sangue, numa história de dominação brutal determinada pelo petróleo. Ao que parece, a questão das fontes de energia continuará sendo fundamental para o sistema capitalista internacional, e não ha indícios de que a escolha das fontes deixará de ser determinada pela dinâmica da hegemonia e dominação do capital. Daí enxergar a possibilidade de transformar as fontes de energias renováveis em solução para o combate ao aquecimento global ou instrumento de emancipação das comunidades parece ser um exercício sem grandes perspectivas de sucesso. Soluções tecnológicas para energia “mais limpas” são conhecidas do mundo cientifico desde a segunda metade do século XIX, e os lugares que elas ocupam nas esquecidas prateleiras empoeiradas das universidades e laboratórios só servem para demonstrar que a questão chave parece estar em outro lugar, no campo das opções de modelos de organização social da produção. Ao que parece, é grande a probabilidade de que qualquer coisa diferente disso resultará no aprofundamento e reafirmação da hegemonia do petróleo e numa longa e grave crise ambiental global. Sem uma reflexão mais cuidadosa provavelmente a busca por um mundo capitalista movido à energias renováveis não passe de um belo sonho em uma noite de verão ou, em termos mais modernos e midiáticos, apenas um delírio na “primavera” energética. Thulio Cícero Guimarães Pereira Doutor em Sociologia Política e professor e pesquisador da Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR. Atualmente desenvolve pós-doutorado em Planejamento Energético na COPEE/UFRJ. [i]IEA - International Energy Agency. Energy. World Energy Outlook 2010. OECD/IEA, Paris, 2010, p. 622 e 690. [ii]U.S. Department of Energy - USDOE.. World Shale Gas Resources: An Initial Assessment of 14 Regions Outside the United States. U.S. Energy Information Administration, Washington, D. C, April, 2011. Disponível em . Acesso em 15 ago. 2011. Ilustração: Felipe Luigi Palavras chave: capitalismo, energia, energias renováveis, segurança energética Fonte: http://diplomatique.uol.com.br/acervo.php?id=2986

Merleau-Ponty - Um autor em diálogo com o mundo contemporâneo

Um autor em diálogo com o mundo contemporâneo Perseguido junto com Sartre por apoiar a Guerra da Argélia contra a França, Merleau-Ponty tem obra vasta e atual. Luiz Augusto Passos conta quais são as relações entre a fenomenologia do pensador francês e Paulo Freire nos movimentos sociais brasileiros na década de 1980 Por: Márcia Junges Página 1 de 2 Um autor a ser revisitado e que estabelece diálogos entre diversas correntes filosóficas e científicas. Assim é Merleau-Ponty, assinala o professor Luiz Augusto Passos, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Esse autor denuncia a pedagogia “adultocêntrica” e que não tem ouvidos e olhos para entender a criança, apontando que os pequenos vivem o mundo nele mergulhados por todos os poros. Merleau-Ponty “cultiva teimosia quase obsessiva de voltar sempre ao início, de fazer perguntas instigantes e de promover tremores de terra nas áreas já pacificadas, na suspeita de que é necessário uma hipercrítica. Nesse sentido, numa época em que se retornam a evidências ‘estabelecidas’ ou à deificação das ‘incertezas’ como caminho e prática individuais ou sociais, é bom revisitar Merleau-Ponty”. Passos possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Nossa Senhora Medianeira, São Paulo; graduação em Teologia pelo Colégio Máximo Cristo Rei, de São Leopoldo, RS; mestrado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; doutorado em Educação Pública pela Universidade Federal de Mato Grosso; e doutorado em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente leciona na UFMT e é um dos organizadores do Simpósio Internacional Merleau-Ponty vivo aos 50 anos de sua morte. Percursos ao redor da fenomenologia aos 90 anos do nascimento de Paulo Freire (http://gempo.com.br/portal/), que ocorre de 10 a 12 de novembro nessa universidade. É um dos autores de O eu e o outro na escola: contribuições para incluir a história e a cultura dos povos indígenas na escola (Cuiabá: EdUFMT, 2010) e escreveu Filosofia para educadores (Cuiabá: EdUFMT, 2008). Seu site pessoal é http://gempo.luizaugustopassos.com.br/ Confira a entrevista. IHU On-Line – Quais são os maiores motivos para se relembrar Merleau-Ponty 50 anos após sua morte? Luiz Augusto Passos – Os maiores motivos desta memória é o fato de Merleau-Ponty se constituir num autor que costura consensos no diálogo de distintas correntes filosóficas e científicas. Grandes problemas da humanidade, pelos processos de globalização, se agudizam por tratamentos sempre localizados e parciais, pois são compreendidos como dissociados da rede de interações que compõe a pessoa, as sociedades, o mundo e as questões do universo. Às crises globais respondemos com tratamentos periféricos ou sintomáticos. Buscam-se intervenções eficazes mediante tecnologias de alto impacto exclusivamente voltadas ao mercado. Ignora-se a fragilidade da vida, e as correções produzem um nível de exclusão das sociedades empobrecidas e em situação de vulnerabilidade ambiental. O pretendido progresso impõe a destruição dos meios de vida, de sobrevivência com destruição de padrões ético-políticos, aniquilação das pessoas pela hipertrofia de partidos e de estado, ou o seu contrário, a afirmação do individualismo e absolutização do narcisismo solitário contra processos de solidariedade e convivência. Sobrevive um materialismo prático destituído de espiritualidade pessoal e sem mística; ou o seu contrário grandes corporações religiosas que sobrevivem de sacrifícios humanos, por interesses monopolistas. Mantém-se a diluição dos direitos humanos numa atmosfera de justicialismo vazio. Não será possível a felicidade humana, sem que se afirme a esperança na vida em face da dissociação de nossa condição de seres políticos e voltados à comunicação e à comunhão, encarnado em estruturas políticas. Singulares e únicos, particulares como membros de comunidades específicas, universais não apenas enquanto gênero humano, somos seres planetários em comunhão através de uma relação inextrincável de todos/as com tudo e todos/as com todas as criaturas animadas e inanimadas do universo. Eu-outro-mundo Isso corresponde a um programa geral da filosofia de Merleau-Ponty? Absolutamente não. Ele, contudo, jamais ignorou todas essas dimensões em conjunção e se empenhou também em sua vida com todas as questões que dissesse respeito à guerra, ao terror, à desumanização, à hegemonia, à dominação, à emancipação política, à beleza e ética, à diferença cultural. O que ocorre é que Merleau-Ponty examinou e tematizou todas essas coisas da vida, da existência, dando-lhes o estatuto filosófico, tratando-as em sua origem primordial: a indissociabilidade do eu-outro-mundo; do espaço, tempo, da sexualidade. A fenomenologia da percepção registra o equívoco do divórcio entre as polaridades dialéticas pelas quais, diz Merleau-Ponty, todas as filosofias falam de sujeito e objeto, e não raro ou jogam fora o objeto para salvar o sujeito, ou jogam fora o sujeito para garantir a objetividade. Proclama até o fim de que não se neguem as contradições, articulando até o fim os polos contrários, sem eliminar as contradições, trabalhadas na perspectiva da vida. Adauto Novaes, em entrevista à revista IHU On-Line, menciona uma das contradições que se tenta driblar. Diz ele, “suspeitamos que nosso maior problema, hoje, está no descompasso da relação entre ciência e pensamento”. Ou, para usar os termos do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, no surgimento da rivalidade entre o conhecimento científico e o saber metafísico, entendendo por metafísico “não a construção de conceitos através dos quais tentaríamos tornar menos sensíveis nossos paradoxos”, mas como a experiência de todas as situações da história pessoal e coletiva, “e de todas as ações que, assumindo-as, as transformem em razão”. A conclusão de Merleau-Ponty no ensaio O Metafísico no Homem define bem nossa condição, hoje: “Uma ciência sem filosofia não saberia dizer literalmente do que fala; uma filosofia sem exploração metódica dos fenômenos só chegaria a verdades formais, isto é, a erros”. Estas são algumas razões que norteiam o evento da UFMT: retomar o caminho difícil de explicitar as ambiguidades, difundir a literatura do filósofo francês, torná-la inspiração teórico-metodológica das pesquisas, e responder ao interesse de professores, mestrandos, doutorandos, professores das redes públicas e particulares. Grandes narrativas Relembro, ainda, uma avaliação de Creusa Capalbo, companheira de estudos do professor Antonio Joaquim Severino, na Universidade Católica da Bélgica, que foi uma das primeiras brasileiras, junto com Joel Martins, a estudar com afinco a fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty. Antonio Joaquim Severino trará da Bélgica também o apreço acerca da obra de Emmanuel Mounier, que se inspirava na fenomenologia de Husserl, e é sobre Mounier que Severino fará sua tese doutoral na PUC-SP. Pode parecer às pessoas que possuam menos contato com a obra de Merleau-Ponty que ela seja uma obra superada ou secundária. É preciso lembrar que a professora Marilena Chauí produziu sua tese na Sorbonne sobre as anotações desse autor, nos últimos anos de sua existência, quando ministrava aulas no Collège de France. E nesse lugar Merleau-Ponty produziu um projeto ambicioso de revisão em todas as áreas da filosofia com reverberações para todo o conjunto das ciências a partir de balisas inéditas, e quais delas “dariam o que pensar”, menciona Chauí. Seu diálogo era um diálogo com o mundo contemporâneo. Ora, a fenomenologia sempre quis ser um âmbito de interlocução entre os múltiplos olhares das ciências e das filosofias. O plural que uso é imprescindível, posto que o fato de haver algum meio de campo consensual nessas ciências e nas filosofias, mas nenhuma das duas deve ser reduzir ao campo do consenso. Penso que não se possa e não se deva restringir conhecimentos, saberes, às grandes narrativas, que pretendiam englobar em visões sistêmicas e orgânicas uma visão de mundo que pretendesse dar conta de tudo. Merleau-Ponty abriu um diálogo ampliado com as posições filosóficas clássicas, o positivismo e o idealismo; debruçou-se também sobre a tradição existencialista e marxista, com as ciências humanas de modo geral: psicologia, pedagogia, antropologia, psicanálise, psiquiatria, ciências políticas, ética, dimensões da guerra, da violência, do terror, do reconhecimento. Isso tornou possível a busca de cotejar diferenças, buscando reiteradamente trazer às luzes invisibilidades e promover um conjunto de dimensões que permitissem evitar escolha entre a produção das ciências e aquela das filosofias. IHU On-Line – Por que sua obra é inspiração crescente para todas as áreas do conhecimento? Luiz Augusto Passos – Merleau-Ponty possui – vou utilizar a expressão do nosso poeta maior mato-grossense Manoel de Barros – uma ampliada noção dos (des-) limites do conhecimento humano e da produção da cultura e das ciências. Cultura e ciência ficaram empobrecidas quando se fecharam em dogmas, definitivos e conclusivos, sob pretensos saberes que delimitam a região do “conhecimento competente”, reservando, como sugere Marilena Chauí, áreas circunscritas para os discursos desautorizados. Merleau-Ponty, a cada achado, debruçava-se outra vez a perguntar pelo “fundo de silêncio que recorta as palavras”. Cultiva teimosia quase obsessiva de voltar sempre ao início, de fazer perguntas instigantes e de promover tremores de terra nas áreas já pacificadas, na suspeita de que é necessário uma hipercrítica. Nesse sentido, numa época em que se retornam a evidências “estabelecidas” ou à deificação das “incertezas” como caminho e prática individuais ou sociais, é bom revisitar Merleau-Ponty. Incapacidade de sínteses Ele se situa numa conexão pouco visível, na interface entre o moderno clássico e o pós-moderno: dialoga com Descartes, Kant e Hegel; com Marx, Scheller, Freud e Kafka; com Mauss e Lévi-Strauss; com Nietzsche, Foucault e Derrida. Inaugurou áreas de estudos pré-anunciadas por suas teorias que receberam confirmações de importantes descobertas, o circuito da sinestesia corporal, a aprendizagem corporeidade, a transcendência cotidiana; da impossibilidade de ver figura-fundo (a mulher idosa não poderá jamais ser percebida, ao mesmo tempo, com a moça): testemunha nossa incapacidade de síntese: a “fé perceptiva” sobre o outro lado do cubo que não vemos e dizemos que está lá. Percepções corporais vividas produzem um conhecimento do mundo mais adequado, por vezes, que aqueles das ciências modernas. Meu filho Matheus tinha menos de vinte dias, eu assobiava e via a atenção quase estática como ele me observava. De súbito, cada vez que eu assobiava ele produzia um biquinho como se fosse imitar. Minha mulher dissera que era impressão minha. Comecei a assobiar e ele se encantou por ver a comunicação que havia entre ele e eu. O professor Di Clemente[3] (Grupo de Estudos, Educação & Merleau-Ponty – Gempo/UFMT) menciona a existência, em Merleau-Ponty, do que se pode chamar um “cérebro” antes do cérebro. Os progressos na neurociência, na saúde, no urbanismo, na estética têm partido de contribuições significativas. IHU On-Line – Quais são as principais contribuições desse pensador para a filosofia, em específico à fenomenologia e à educação? Luiz Augusto Passos – Convocávamos nosso encontro falando da existência de fissuras, mas talvez se expresse melhor por alguns abalos sísmicos nas ciências contemporâneas, causados por Merleau-Ponty. Ele contribuiu para alguns consensos, pelo rigor, precisão e linguagem poético-literária que o ajuda a criar conceitos adequados à compreensão dos fenômenos. Ora, as ciências contemporâneas, obcecadas com o fato de que algumas coisas vão mal, trabalham compulsivamente para evitar o naufrágio. O que ocorrerá, caso não forem revistas algumas inadequações acerca da compreensão do mundo, do ser humano, das relações nossas com os/as outros/as e com o mundo? Muitos aspectos da fenomenologia merleau-pontyana não causaram ainda o imprescindível “espanto aristotélico”, essencial para a crítica de paradigmas, das pesquisas. Vou sair de generalidade e exemplificar, avisando que me aventuro, sem a intenção de que se ponha Merleau-Ponty nisso. Piaget está imortalizado na coleção Os pensadores, como filósofo, irritado com textos de Merleau-Ponty que dificultavam alguns princípios da epistemologia genética. O ponto de discórdia desencadeador era o texto Em toda a parte e em parte alguma, pelo qual Merleau-Ponty contrapõe o devir e o tornar-se, e a localização, como processo vivo. Assim o autor comenta que a filosofia está em todo lugar e em lugar algum, tanto quanto a vida estava em todo lugar e em lugar nenhum, não havia um local estático, um cérebro, que desse conta da abrangência da produção do conhecimento que passava pela sinestesia de cada um e de todos os sentidos em simultaneidade, produzindo significações, que implicavam num conhecimento sensível, do qual inclusive Merleau-Ponty sugeria a necessidade de reaprender a ver um mundo impossível de se explicar, e que fugia e se recolhia em dobras, envolto em mistério. Adultocentrismo Piaget não ignorou Merleau-Ponty. Leu-o e respondeu desautorizando que isso fosse falado em nome da ciência, entendendo na aporia de “em toda parte e em parte alguma” como licença poética absurda, antirracional, que poderia até atribuir-se a uma sabedoria de senso comum, mas não ao conhecimento das ciências. Merleau-Ponty está longe de ser considerado, por sua complexidade, na grande maioria dos cursos de psicologia e pedagogia. Sua obra A pedagogia e a psicologia da criança denuncia a pedagogia como “adultocêntrica”. Há uma forma prepotente e injusta dos pressupostos do desenvolvimento do conhecimento da criança, que a maltrata e, sobretudo, a ignora. A criança vive o mundo, mergulhada por todos os poros nele, numa relação visceral, intuitiva, cheia de significados, sem que nos seus primeiros anos possa concebê-lo e expressá-lo como “objeto” do pensamento. Cada um de nós viveu isso. Somos capazes de vivê-lo com intensidade e de compreendê-lo sensorial e intuitivamente, um mundo mais verdadeiro do que aquele expresso pela razão moderna. A epistemologia genética tem sido preferencialmente o modelo tanto da pedagogia como da psicologia, que se difunde sem considerar a crítica do Merleau-Ponty. Há na epistemologia genética um sutil etnocentrismo alimentado por um evolucionismo linear – duramente atacado por Hobsbawm em seu prefácio às Formações pré-capitalistas de Marx e Engels. Tese de que a humanidade e os sujeitos humanos são estrutural e substancialmente os mesmos; a diferença cultural com distâncias astronômicas de um grupo humano para outro mostra – na expressão de Clifford Geertz – “fósseis humanos” ainda contemporâneos que sobrevivem nas sociedades sem estado, de sorte que essa condição ‘primitiva’ mostra a nós que eles hoje são o que éramos ontem. Do outro lado estamos nós, no plano civilizatório cultural mais complexo. No mais alto patamar de desenvolvimento, obtido pela superioridade do pensamento abstrato, lógico-matemático, que permitiu às sociedades capitalistas, brancas, criar esta sociedade que representa a melhor humanidade possível à qual todas as outras sociedades (atrasadas) deveriam ser estimuladas a diminuir a diferença através de processos tecnológicos de impacto, em curto prazo, acelerado diminuir as distâncias, posto que todas as sociedades estão destinadas universalmente a esse desenvolvimento, por justiça. Pedagogia sem ouvidos Isso legitimaria, diz Hobsbawn, a intervenção do grupo em condições de superioridade de justificar intervenções por meio de aceleração qualificada, para fazê-lo amanhã o que somos nós hoje, permitindo-os o desenvolvimento máximo acenado aos humanos, os moldes da civilização ocidental. Isso se chama, no melhor português, assimilação! Perversão do nosso autoconhecimento que nega efetivamente o outro como o outro, e busca homogeneizar não os reconhecendo como humanidades universais, mas, ao mesmo tempo, diversas. Merleau-Ponty diz na Fenomenologia da percepção sobre o tempo o que se poderia dizer em todos os outros âmbitos: “Há mais verdade nas personificações míticas do tempo do que na noção de tempo considerado, à maneira científica, como uma variável da natureza em si ou, à maneira kantiana, (...) isso porque enfim há no coração do tempo um olhar, ou (...) alguém para quem a palavra possa ter sentido”. Professor Fabio Di Clemente, no seminário “Corpo Carne e Ser” que nos ministrava, comentava a severa crítica feita por Merleau-Ponty quando perante um desenho uma criança que expressara a imagem de sua mãe, e a proporção da lágrima excedia em espaço, o desenho. Para Piaget tratava-se de uma incapacidade e falta de maturidade para expressar a harmonia da proporção objetiva do conjunto que se apresentava no real; para Merleau-Ponty era por excesso de entendimento; a leitura preponderante naquela cena era expressa pelo que interessava agora: o sofrimento da mãe. Ela se atinha ao essencial colhido por sua percepção. Merleau-Ponty censura uma pedagogia que não tem ouvidos, olhos para entender a criança, e tem dela os estereótipos gerados por uma cultura tutelar, autoritária que pretende saber e oprime a diferença concebendo-a, como expressara Dussel, que considera os oprimidos como exterioridade, apêndice e adereço de mau gosto, destituídos de centralidade, entendimento e interioridade. Merleau-Ponty, ao tratar ainda, o outro, denuncia o processo excludente e ratifica essa dimensão em suas críticas de Mauss a Lévi-Strauss, cujo olhar datado da modernidade não tem consciência de que seu olhar datado invisibiliza o que ela própria não pode e não quer ver. Além disso, reduz as outras sociedades pela transposição da epistemologia moderna, cientificista, de reduzir o desconhecido ao conhecido, de tomar emprestado o modelo das ciências da natureza e das suas sociedades para uma leitura contrastante e comparativa – não se comparam sem injustiça coisas diferentes! – impedidas de reconhecer o outro por ele mesmo, e olhá-lo como dependente, tutelado e “menor”. Não era raro afirmar que os nativos fazem rituais e conduzem cerimônias com alta densidade simbólica, mas precisam recorrer ao antropólogo para dizer-lhes o que estão mesmo fazendo. Reduz-se, assim, as sociedades à mesmidade, e como negativo e faltante nelas, daquilo que possuímos em excesso Página 2 de 2 IHU On-Line – Como se articulam os conceitos da fenomenologia de Merleau-Ponty e Paulo Freire nos movimentos sociais na década de 1980? Luiz Augusto Passos – Somente no doutorado da UFMT, por provocação de Maria de Lurdes Bandeira de Lamonica Freire, fui desafiado a ler a Fenomenologia da percepção em diálogo com a descrição densa de Clifford Geertz. Isso se constituiu num privilégio e compromisso que herdei de levar adiante este diálogo. Paulo Freire, ao contrário, era trabalhado na Paróquia Nossa Senhora do Rosário, de Cuiabá, MT, dos jesuítas, da qual participei desde o final de 1979. O trabalho acontecia numa perspectiva freiriana no que dizia respeito às ações educacionais e políticas, aspecto indivisível de Freire. A paróquia mantinha movimentos populares e círculos de cultura, um deles sistemático no bairro Quarta-Feira, com crianças e adolescentes que faziam uma horta comunitária na casa da Ir. Dineva Vanuzzi, falecida há pouco, e se organizavam contra os processos de repressão conduzidos pelo Estado e pelo aparato policial militar que realizava execuções. A paróquia se inspirava na teologia da libertação e foi importantíssima a presença do padre João Manoel Lima Mira que iniciara em Cuiabá o trabalho com universitários improvisando um restaurante naturalista e macrobiótico, bem como aulas livres de kung fu. Tratava-se, pela teologia da libertação, de convergência com os mesmos caminhos da “gentificação” – isto é, a arte de contribuir na feitura das pessoas pela comunhão, proporcionando autonomia e emancipação, e atuação de denúncia e anunciação, na perspectiva do reino de justiça, que já estava em parte entre nós, reino de paz, liberdade, justiça e de vida em plenitude. O projeto de humanização plena, as dimensões da justiça, da liberdade estão todos presentes em Merleau-Ponty. Contato com o marxismo Tivemos em vista em nossos trabalhos de pesquisa no GPMSE algumas orientações teórico-metodológicas que fomos buscar na fenomenologia de Merleau-Ponty. Sabíamos que havia uma imensa comunhão de Paulo Freire com o pensador francês. Tenho sobre isso um verbete no Dicionário Paulo Freire em que expresso mais extensamente a relação entre fenomenologia de Merleau-Ponty e Freire. Freire se dizia dialético e fenomenológico. Desde a Pedagogia do oprimido, Paulo Freire possui a consciência da relação visceral entre esta pedagogia e a fenomenologia. Mas implica, como em Merleau-Ponty, muitos pontos de contato com o marxismo. Alguns princípios nos impulsionam, como a inseparabilidade entre sujeito e objeto que coexistem, ainda que o mundo nos preceda. Merleau-Ponty pergunta: “Quando minha mão direita toca meu braço esquerdo, quem é que toca e quem é tocado?” Na verdade, sujeito e objeto se fundem naquele momento e adquirem uma coincidência inclusive sofisticada, na qual estou ao mesmo tempo dentro e fora de mim, imanente e transcendente a mim, vidente e sensiente ao mesmo tempo. Não aplainamos polos de contradição; mantemos a ambiguidade – conceito merleau-pontyano – até o fim. Ambiguidade que só pode ser suprimida por má fé, ou admitindo uma preponderância de um dos polos sobre o outro. O mundo só era natural no período precedente à nossa entrada nele. A partir daí temos a inauguração de uma confusão – assim chamada por Merleau-Ponty entre eu, outro, mundo, com certa reversibilidade inconclusiva. Buscar enxergar todos os sentidos possíveis, posto que a realidade é polissêmica e inesgotável. Muniz Rezende dizia: há sentido, e alguns só percebidos por outros olhares. É preciso, reincidentemente, realizar uma interlocução de perspectivas e de olhares e dos lugares experimentados por outras humanidades que lhe permitiram conhecer o mundo só acessível por sua carne e naquele lugar donde nós não poderemos estar. Compartilhar desarmadamente sentidos significa acrescer outros sentidos plausíveis que permitam ampliar o conhecimento do mundo e nos aproximar do sentido humano e histórico, antes invisíveis. Saber que a realidade é mistério, como nós mesmos somos mistérios, parcialmente revelados pela face do outro que me diz, em parte, o que sou. Vale Manoel de Barros: “O melhor de mim são os outros!” Não damos conta de nós! Somos incompletudes. O mistério que somos, contudo, não nos conduz a um epistemicídio. Leonardo Boff diz de maneira feliz que mistério não é o que não podemos conhecer, mas que ao conhecer somos impelidos muito além, mostrando-nos outra vez nossa impotência da abraçar a totalidade. Merleau-Ponty fala de horizontes que aos nossos passos recuam sempre mais. Captando invisibilidades Nossas pesquisas se voltam a investigar os sentidos que movem as pessoas, e priorizamos pessoas e movimentos coletivos dos setores populares por razão de justiça. Professor Di Clemente busca em Merleau-Ponty a relação do “sistema dos objetos” com “o sistema humano”, “abraçados”. Nossas pesquisas não comunicam apenas o que percebemos, mas de onde e como percebemos. Não nos negamos como autores/as, pois a interpretação só é plausível na intersubjetividade. Deixar explícito que nossos escritos possuem interesses, o que vemos, compreendemos e interpretamos não é de imaculada conceição. Não pretendemos que o que vimos e interpretamos seja ponto de chegada, síntese universalmente válida, conclusiva acerca do mundo: não é. Buscamos captar invisibilidades, sentidos ocultos. Não nos debruçamos sobre dados significativos estatisticamente, mas aqueles que quebram e que, apesar da globalização e da homogeinização - aquela singularidade ali circunscrita -, permite um mundo mais oxigenado e menos petrificado. Não pretendemos que nossos trabalhos e pesquisas tenham aderência universal e sirvam como receita de bolo a outras pesquisas. IHU On-Line – Quais são as proximidades entre o pensamento de Merleau-Ponty e Mounier? Luiz Augusto Passos – Mounier teve duas faces muito decisivas. Era um filósofo de rara envergadura intelectual, um mestre e raro comunicador. Possuía uma coerência e envergadura ética que respaldava abrir diálogo com todas as correntes políticas e ideológicas e com os governos. Além disso, era um místico: cristão ativista, corporificava, diria Freire, o que acreditava. As proximidades entre Merleau-Ponty e Mounier vinham da atuação de ambos no campo da cátedra. No campo do diálogo político face às situações injustas, emprestava sua voz. Ambos eram homens de partido, com ideais democráticos e de justiça social muito definidos. As questões epistemológicas de Merleau-Ponty são ressaltadas na entrevista de Adauto Novaes. Di Clemente desenvolve as questões da bioética e da biopolítica em Merleau-Ponty em sua livre docência. Referência decisiva é aquela hoje expressa pela ética da libertação do argentino Enrique Dussel, para Mounier e Freire: o princípio categórico e absoluto de qualquer ética é a vida, e a resistência e luta contra tudo que conduza à morte, como o terrorismo de Estado, os totalitarismos e qualquer opressão aos mais oprimidos. Perseguições Merleau-Ponty fala que o totalitarismo é uma tara. Sai do Partido Comunista ao qual se filiara quando da invasão da Hungria. Sofre perseguição junto com Jean-Paul Sartre por apoio à Guerra da Argélia contra a França. Mounier é o grande criador da pedagogia da alternância retomada pelo Movimento dos Sem Terra – MST, e estendia a educação não somente aos jovens, mas às suas famílias. Ao contrário do que parece, Merleau-Ponty tinha um simpatia pela Igreja, mas sofria críticas por parte dela, pois pontuava a ausência da democracia interna, e as questões “enciclopedistas” que tomaram a moral sexual da igreja. Estava nas ruas de Paris nas grandes manifestações políticas, como Mounier e Freire. Mounier estabelecera grande corrente de diálogo onde vigia intolerância. Merleau-Ponty o fazia escrevendo. Em suas aulas era muito expressivo, mas tímido fora delas. Ambos consideravam ser a educação um direito, como tarefa política cuja centralidade era a própria o educando, fosse ele criança, adolescente ou adulto. Havia em ambos um conceito das crianças como seres de direitos inalienáveis e como cidadãos plenos. E toda a educação era voltada para a vida com uma perspectiva de conhecimento em profundidade e não em extensão, herança da Escola Nova de Dewey. IHU On-Line – Quais são as atividades previstas no Simpósio Merleau-Ponty: cinquenta anos da morte do autor, organizado pela UFMT? Luiz Augusto Passos – Esperamos um público em torno de 450 pessoas no Teatro Universitário da UFMT. O clima é de exposição de telas inspirados no tema Quiasma, do artista plástico de renome internacional Claudyo Casares, uma delas realizada para a arte do evento, a releitura de A dança de Matisse. Começaremos com a execução da Sonata de Viteuil que Merleau-Ponty tinha por referência. Ela rompe com o sentido clássico, tanto quanto a estética merleau-pontyana, e terá arranjo do professor pesquisador e maestro Abel Santos, que a executará na Viola de Cocho cuiabana junto à camerata formada pela Orquestra Sinfônica da UFMT. Conferencistas de âmbito internacional, como Serge Latouche, Fabio Di Clemente, Creusa Capalbo, que circula nos ambientes merleau-pontyanos na Europa, e Edebrande Cavalieri (UFES) são conferencistas do encontro. Outras presenças serão Gabriel Mograbi (UFMT), Jovino Pizzi (UFPEL), Regina Célia Popim (Unesp), Reinaldo Matias Fleury (Mover/UFSC), Diélcio Moreira e Celso Prudente (Cinema Negro, Comunicação e Linguagem) e Guilherme Romanelli, pesquisador, maestro, e violinista da UFPR. O evento terá oficinas, rodas de conversa, apresentação de trabalhos, conferências comentadas e ampliadas. Portanto, uma festa no coração da América Latina, seu marco geodésico. .

Contribuições de Merleau-Ponty à matemática são um de seus legados mais importantes, pontua Verilda Speridião Kluth.

Kant e Merleau-Ponty: um debate entre filosofia e matemática Contribuições de Merleau-Ponty à matemática são um de seus legados mais importantes, pontua Verilda Speridião Kluth. De acordo com a pesquisadora, a matemática pode “ser pensada como presença no momento de percepção” Por: Márcia Junges Página 1 de 2 “Não vejo nos pensamentos de Merleau-Ponty os mesmos princípios que regem a explicitação dos juízos sintéticos a priori de Kant, pois os juízos são imagens do mundo, enquanto que os núcleos de significação que compõem o primado do conhecimento em Merleau-Ponty são presença de mundo corporificada, relações orgânicas entre sujeito e mundo explicitadas na noção de corpo próprio como sujeito da percepção”. A explicação é da matemática Verilda Speridião Kluth, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E completa: “O próprio Merleau-Ponty na introdução de seu livro A fenomenologia da percepção faz uma crítica à bilateridade das relações sujeito e mundo posta em Kant, afirmando que a análise reflexiva, a partir da experiência do mundo, reconstitui a experiência para o sujeito como algo distinto dela e apresenta uma síntese universal como algo, sem o qual não haveria mundo”. Licenciada e bacharel em Matemática pela Fundação Educacional de Bauru, Verilda Kluth é mestre e doutora em Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, com a tese Estruturas da Álgebra – investigação fenomenológica sobre a construção do seu conhecimento. Docente na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, é presidente da Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos - SE&PQ, além de membro da Sociedade Brasileira de Educação Matemática – SBEM. Confira a entrevista. IHU On-Line – Quais são as maiores contribuições de Merleau-Ponty ao estudo da matemática? Por que sua filosofia inspira o estudo dessa ciência? Verilda Speridião Kluth – A característica mais conhecida da matemática é a sua abstração. E o abstraído é entendido como algo que está fora do alcance, fora do campo de percepção, fora do campo das sensações. A matemática torna-se com isso uma disciplina estranha àquele que não a estuda ou a aplica em sua profissão. É difícil reconstituir o caminho de volta que a põe no mundo. Muitas tentativas educacionais têm sido pensadas para apresentá-la ao público em geral de forma a ser compreendida, dada a necessidade dessa compreensão que é imposta pela nossa civilização, principalmente porque o conteúdo matemático traz em seu bojo uma abrangente aplicabilidade que perpassa não só as relações comerciais e políticas, mas também a construção de conhecimento de outras áreas científicas, tonificando o obscurecimento de seus conceitos e processos. Muitas vezes as dificuldades em matemática afastam possíveis interessados nos estudos que dela dependem, contribuindo para o aprofundamento da cisão entre ciências exatas e ciências humanas. A contextualização da matemática, que une a matemática constituída ao cotidiano das pessoas, tem sido um dos recursos didático-pedagógicos utilizados para a construção da aproximação entre o sujeito e a matemática. Núcleos de significação Em meu entender, a principal contribuição dos pensamentos de Merleau-Ponty é o aprofundamento que realiza de algumas ideias husserlianas, esclarecendo-nos um modo de compreender a construção desse caminho de volta ao evidenciar o enraizamento do primado do conhecimento na relação homem/mundo, e ao designar a percepção como a primeira camada do sentir. Isso nos permite dizer de uma contextualização que, embora ainda esteja em concordância com a aplicabilidade da matemática, não só diz dela, mas também de aspectos ontológicos, extremamente necessários para compreendermos a construção do conhecimento matemático realizada pelo sujeito e para mantermos a autoctonia dessa ciência, tão importante no momento de avaliarmos sua aplicabilidade em termos da ética, da estética e da sustentabilidade. Numa visão fenomenológica husserliana e merleau-pontyana, o termo contexto não se restringe às condições externas, como, por exemplo, juros de um empréstimo, tampouco apenas ao potencial intelectivo particular daquele que vive o acontecimento, saber calcular o juro ou ser capaz de aprender a calcular o juro. O contexto tem como fundante uma situação de acontecimento que possibilite a presença do núcleo de significação, do qual emerge a estrutura do juro. O contexto, assim entendido, caracteriza-se como coexistência de valores, como aquilo que legitima uma aplicabilidade compatível dos objetos matemáticos na vida das pessoas e nas ciências em geral. A meu ver, os educadores matemáticos fenomenológicos que se orientam pelas ideias de Merleau-Ponty têm como uma de suas preocupações buscar a compreensão dos núcleos de significação que deram e dão, ainda hoje, origem aos objetos matemáticos, fazendo jus à contribuição que o autor nos deixou. Porque aí temos a possibilidade de conhecermos não só aspectos dos objetos matemáticos, mas também o que é sentido e pensado por aqueles que os vivenciam. IHU On-Line – Em que consiste a investigação fenomenológica sobre a construção do conhecimento das estruturas da álgebra? Verilda Speridião Kluth – As investigações sobre O que acontece no encontro sujeito-matemática? e Estruturas da álgebra – investigação fenomenológica sobre a construção do seu conhecimento, ambas acessíveis em: http://www.sepq.org.br/61.asp, se entrelaçam. Enquanto a primeira foca o momento em que a matemática se faz presente para o sujeito na relação homem/mundo e estuda como se dá o primado do conhecimento das noções de formas matemáticas, a segunda questiona como acontece a construção do conhecimento matemático formal ao longo do tempo, inserida em uma tradição. Nela as estruturas algébricas são colocadas em epoché pela interrogação: Como se revela o pensar no movimento da construção do conhecimento das estruturas álgebras? Ela é uma investigação teórica que tece uma metodologia própria fundamentada na hermenêutica filosófica de Gadamer[1] posto em Verdade e método e no texto de Husserl intitulado Die Urstiftung und das Problem der Dauer. Der Ursprung der Geometrie (O estabelecimento e o problema da duração. A origem da geometria). Os textos citados possibilitam a realização de uma análise intencional retrospectiva de obras sobre as estruturas matemáticas. Novos horizontes Através dessa análise constatamos que os números complexos constituem um cirscunstancial propulsor das noções de estruturas matemáticas. Com isso pudemos evidenciar os números complexos como uma ontologia formal, descrição realizada por Husserl, como o primado das estruturas da álgebra. A descrição da análise intencional retrospectiva torna-se, como parte dos procedimentos da investigação, o texto-solo para compreendermos o movimento da construção do conhecimento das estruturas da álgebra. Desse segundo momento de análise, chegamos a três categorias abertas: os modos de doação das estruturas da álgebra; as estruturas das presenças: estrutura da álgebra e ser humano; e o modo de ser matemático do ser humano. Com a compreensão até aí elaborada sobre o movimento da construção do conhecimento das estruturas da álgebra tecemos uma articulação inspirada em Husserl, utilizando uma complementação à obra A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental intitulada Schichten des Weltbewustsein – em português: Camadas da consciência de mundo e nos pensamentos de Merleau-Ponty sobre o cogito, em torno da interrogação: Como se revela o pensar no movimento da construção do conhecimento das estruturas álgebras? Resumidamente, o pensar que se revela no movimento da construção do conhecimento das estruturas da álgebra não se trata absolutamente de um jogo, de uma articulação lógico-matemática de regras; ou de uma articulação puramente interpretativa/associativa de uma linguagem desvinculada da compreensão que é: presença das estruturas da álgebra em sua características fundamentais e presença do ser humano em seu potencial intuitivo/criativo. Ele diz de um olhar que o ser humano lança sobre o já conhecido, os números, que é novo porque vislumbra novos horizontes; porém, esses novos horizontes contemplam e têm raízes no conhecimento matemático historicamente instituído. IHU On-Line – O que acontece no encontro sujeito-matemática? Há uma problematização de Merleau-Ponty sobre essa intersecção? Verilda Speridião Kluth – No texto Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty traz alguns exemplos matemáticos para esclarecer a elaboração de seu pensamento, mas ele não problematiza de forma direta o encontro sujeito-matemática. Em meu entender, ele descreve o encontro sujeito-mundo. Esse encontro se dá na percepção, momento em que temporalidade e espacialidade se fazem presentes; é o tempo-lugar onde o sujeito está, em que o sujeito é sendo. Dessa forma, o encontro é abertura e doação de sentido (Sinngebung) de mundo. Nele se colocam presenças: homem e mundo. Presenças que se dão perfiladas. Perfis ou núcleos de significação de mundo que, ao serem incorporados no momento da percepção, tecerão a primeira camada de sentir o mundo, tendo como fundo o mundo percebido, entendido aqui como o mundo natural, o mundo cultural, os seres – semelhantes ou não – e o mundo em construção. E como o real é um tecido sólido que não espera os nossos juízos ou nossas asserções para juntar a si os fenômenos, esse encontro é também um encontro do sujeito com os objetos da nossa cultura, com tudo aquilo que se põe como presença doando-se enquanto sentido de mundo. A matemática poderá, então, ser pensada como presença no momento de percepção. E a interrogação se coloca, pondo o encontro sujeito-matemática em epoché. Essa problematização, pensada aqui como pergunta norteadora, é levantada e pesquisada na minha dissertação de mestrado. Respondendo à questão “o que acontece no encontro sujeito-matemática?”, numa interpretação inspirada nas ideias de Merleau-Ponty, de depoimentos sobre atividades vividas por participantes de um curso para formação de professores de escolas Waldorf”: a matemática manifesta-se no corpo próprio e no mundo. O sujeito percebe-se como formas: geométrica e numérica, ora como formas percebidas, ora como formas sentidas e ora como formas produzidas. Dá-se a percepção de estruturas de mundo que podem estar presentes tanto na matemática como na música, ou ainda no mundo natural, que reafirmam as possibilidades doadas à criatividade humana, engendradas pelos núcleos de significação de mundo. Sentido e existência Perceber e sentir os núcleos de significação no já conhecido pelo sujeito – o retorno “às coisas mesmas”, como anunciado por Husserl e explicitado por Merleau-Ponty – abrem-se à compreensão em várias perspectivas; a construção da realidade vai se pondo concomitante à construção do conhecimento no sentido de que a realidade não está descolada da aparência das coisas: ela é a armação de relações que diz respeito a todas as aparências. Disso temos que, no mundo real, o sentido coincide com a existência, contraem-se relações a todos os momentos. Nas palavras de Merleau-Ponty: “o real distingue-se de nossas ficções porque nele o sentido investe e penetra profundamente a matéria”. Como último destaque desta pesquisa, ao analisarmos o encontro sujeito-matemática, emergem modos de sentir a própria percepção da matemática. É nessa camada da construção do conhecimento, seguindo o pensar merleau-pontyano da exploração sensorial, que se constitui da vivência da unidade do sujeito e da unidade intersensorial do objeto, que temos a possibilidade de compreender o objeto matemático vivido – a unidade do objeto – na dimensão temporal e na dimensão espacial, ou seja, por em evidências seus aspectos humanos em termos de comportamento rítmico, métrico, criador, prazeiroso, revelador, de equilíbrio e imaginativo que revelam a fisionomia da forma sentida. A forma produzida, aquela que é construída ou posta em desenho, revela uma fisionomia de desafio, favorável a abdução e imaginação cinética. Por outro lado, na unidade do sujeito revela-se uma unidade que não é real. Ela está no horizonte da experiência e a subjetividade só é encontrada em estado nascente na temporalidade, que é a camada primordial em que nascem as ideias. Ao vivê-las o sujeito sente-se seguro. IHU On-Line – Como se dá o diálogo entre a filosofia da educação matemática em relação às grandes perguntas ontológicas e epistemológicas da filosofia? Verilda Speridião Kluth – Embora perceba laços entre as perplexidades destacadas nas interrogações da filosofia e da filosofia da educação matemática que se referem a perguntas ontológicas, epistemológicas – principalmente aquelas que procuram elucidar a construção do conhecimento matemático tanto do ponto de vista da construção que o sujeito realiza nos processos educacionais como a construção realizada no movimento das tradições –, eu penso que o principal elemento que une as duas áreas de forma significativa e que sustenta os diálogos possíveis é o modo como elaboram a busca de compreensão ou explicitação do perguntado. Evidencio aqui o modo de construir trajetórias de compreensão que diz do pensar filosófico como um pensar interrogativo, analítico, crítico e reflexivo sobre ocorrências, textos, propostas, realizações que permeiam as atividades humanas. Em particular, na filosofia da educação matemática, as ocorrências, os textos, as propostas e as realizações estão contextualizadas no movimento que vai se dando e se pondo como constituído no seio da educação matemática; e de seus efeitos para a sociedade. Ao ser tecida uma reflexão sobre essa realidade, poderá vir a ocorrer não só um diálogo entre perguntas levantadas pela filosofia, mas também por compreensões elaboradas por ela que iluminam caminhos de busca e que fornecem respostas ou parte delas às perguntas formuladas pela educação matemática, como num círculo hermenêutico sustentado por um pensar filosófico. Por exemplo, a pergunta “o que acontece no encontro sujeito-matemática?” já tem em sua constituição a afirmação de que tal encontro acontece. A legitimação dessa afirmação vai ser explicitada numa perspectiva filosófica para que a própria pergunta ganhe peso e profundidade. Por outro lado, ao estarmos inseridos no contexto da educação matemática, imbuídos do modo filosófico de se aproximar do mundo, poderemos formular perguntas filosóficas referentes às ocorrências desse contexto específico indagando: o que elas são, como elas se dão; por que são o que são, o que fazer ou ainda perguntas de cunho filosófico sobre os sujeitos que vivenciam essas ocorrências. Portanto, é o modo de pensar filosófico que coordena a investigação e que se revela no modo de perguntar e de buscar. IHU On-Line – É possível apontar uma influência de Immanuel Kant e seus juízos sintéticos a priori, possíveis na matemática, no pensamento de Merleau-Ponty? Verilda Speridião Kluth – Bem, essa é uma pergunta interessante e bastante complexa. Para respondê-la terei que retomar alguns aspectos da teoria kantiana tecendo um paralelo com a teoria merleau-pontyana. Não há como negar que Kant deixa um legado muito importante para o desenvolvimento da fenomenologia ao distinguir a coisa em si do fenômeno. Ele nos faz ver que não podemos apreender nenhuma coisa como existente se nós não nos experimentarmos existentes ao apreendê-la. Assim, o ato de ligação é visto como o fundamento do ligado, portanto a unidade de consciência é contemporânea à unidade de mundo. Com isso podemos entender que em Kant o primado da construção do conhecimento é a experiência. Quando não consideramos a descrição kantiana de como se dá a experiência, poderíamos dizer que aí haveria uma confluência entre aquilo que Kant compreende por experiência e aquilo que Merleau-Ponty vai descrever como vivência; aquilo que Kant descreve como juízos sintéticos a priori e os núcleos de significação, oriundos da descrição da percepção em Merleau-Ponty, que estão em sintonia com a unidade primordial posta na “reflexão noemática” de Husserl. O próprio Merleau-Ponty, na introdução de seu livro a Fenomenologia da percepção, faz uma crítica à bilateridade das relações sujeito e mundo posta em Kant, afirmando que a análise reflexiva, a partir da experiência do mundo, reconstitui a experiência para o sujeito como algo distinto dela e apresenta uma síntese universal como algo, sem o qual não haveria mundo. Em contrapartida, para Merleau-Ponty, o mundo está ali antes de qualquer análise que possamos fazer dele. O real deve ser descrito, e não podem ser incorporadas à percepção as sínteses que são da ordem do juízo, dos atos ou de predicação. Nas palavras de Merleau-Ponty, no texto acima referido, “A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explicitadas. (...), o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”. Juízos sintéticos a priori Vejamos agora, por meio de exemplos, como essas duas formas de pensar o como se dá a experiência de mundo vão constituir seus esquemas explicativos do como se dá a construção do conhecimento matemático, em particular como se “chega” ao triângulo ou ao número. Para Kant, podemos traçar um triângulo na nossa imaginação sem nenhuma interferência essencial dos sentidos externos, ou seja, sem qualquer interferência do mundo. Precisamos apenas [da intuição] espaço que nos é dado pela sensibilidade pura. Como qualquer triângulo traçado é imperfeito, é a imaginação, faculdade intelectual, que nos permite obter a imagem do conceito de triângulo, que é uma imagem idealmente perfeita. O conceito de triângulo é, assim, o de uma figura plana limitada por três segmentos de reta, apresentada no espaço, por meio de uma construção temporal, um exemplo arbitrário de triângulos. Da mesma maneira nós nos representamos os conceitos numéricos na intuição pura do tempo. Por exemplo, o conceito de sete (7) é intuitivamente representado por uma sequência de sete instantes em sucessão temporal. Há a possibilidade de espacializarmos essa representação, ao imaginarmos os instantes como pontos. Representando assim os momentos de retenção dos instantes na memória, obtendo o número cardinal. Para Kant as verdades matemáticas, conceitos e asserções, são sintéticos, ou seja, aqueles que não são analíticos, nos quais a ideia denotada pelo sujeito contém a ideia representada pelo predicado; e também são a priori, ou seja, prescindem de dados empíricos. Sua teoria não dá conta de explicitar toda a matemática. Como, por exemplo, uma figura de muitos lados ou um número muito grande. Distanciamento Para Merleau-Ponty, a forma é uma configuração, é a própria aparição de mundo e não sua condição de possibilidade; com ela nasce uma norma; ela é a identidade entre exterior e interior. Esses pensamentos quando assumidos para explicitar a construção do conhecimento matemático leva-nos a afirmar que o triângulo, é uma configuração cujos elementos: lados, ângulos e vértices possuem valores sensoriais que são determinados por suas funções no conjunto. Assim, os três segmentos de reta tornam-se lados do triângulo ao fundar três vértices, e os pontos de encontro dos segmentos de reta tornam-se vértices ao fundar lados. Dá-se assim, o nascimento de uma norma. O triângulo, agora como um objeto percebido é a identidade entre aquele que percebe e o mundo que se mostra. O mesmo se dá ao pensarmos as formas numéricas, uma explicitação já posta em Husserl a partir da ideia de ser os números uma pluralidade determinada. Não vou me ater a isso. Ao articularmos as ideias de Merleau-Ponty com o corpo de conhecimento matemático, vemos ser explicitada a percepção de mundo como o primado de seu conhecimento numa concepção fenomenológica de homem e de mundo. Não vejo nos pensamentos de Merleau-Ponty os mesmos princípios que regem a explicitação dos juízos sintéticos a priori de Kant, pois os juízos são imagens do mundo, enquanto que os núcleos de significação que compõem o primado do conhecimento em Merleau-Ponty são presença de mundo corporificada, relações orgânicas entre sujeito e mundo explicitadas na noção de corpo próprio como sujeito da percepção. Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4155&secao=378&limitstart=1

Militares, ciências, Educação Popular.

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