Saturday, June 25, 2011

Filosofia, vida e memória

Filosofia, vida e memória é uma contribuição ao pensamento brasileiro, via Carlos Roberto Velho Cirne-LIMA, é uma entrevista a revista IHU - em homenagem aos seus 80 anos, Vamos conferir abaixo:




Carlos Roberto Velho Cirne-Lima
Uma vida na qual se entrelaçam Filosofia, competência no mundo dos negócios e a coragem de sustentar as ideias nas quais acredita. Assim é a trajetória de Carlos Roberto Velho Cirne-Lima, professor emérito da Unisinos, que acaba de comemorar 80 anos. Na entrevista que concedeu à IHU On-Line em sua residência, em Porto Alegre, dois dias depois de uma festa que reuniu colegas, ex-alunos, familiares e amigos, o filósofo hoje reconhecido mundialmente pela originalidade de suas pesquisas em Hegel, recordou os anos em que foi sacerdote jesuíta, colega do atual Papa Bento XVI (então apenas o jovem Joseph Ratzinger), e aluno do teólogo Karl Rahner, um dos grandes expoentes do início dos trabalhos do Concílio Vaticano II. Em função de divergências com Rahner e Ratzinger a respeito do conceito de Deus, Cirne-Lima decidiu sair da Companhia de Jesus e continuar carreira acadêmica na Filosofia. Após uma arguição de livre-docência sob a mira de metralhadoras, o filósofo foi cassado e se viu na iminência de assumir sua segunda profissão: administrador de empresas. Entre idas e vindas em grandes corporações, apoiado pela companhia constante da esposa Maria Tomaselli, Cirne-Lima venceu os dez anos de silenciamento ao retornar, em 1978, para a UFRGS. O resto dessa história vibrante você confere na entrevista a seguir.
Por: Márcia Junges
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Cirne-Lima: 80 anos celebrados em 1º de junho







Origens
Nasci em 1º de junho de 1931. Para contar minhas origens, é preciso retornar ao nome Cirne. Essa é uma família muito antiga, documentada nos séculos XII e XIII, vinda do Norte de Portugal, e que se radica em Pernambuco e na Bahia. Meu pai se chamava Ruy, era advogado e professor de direito. Meu avô era Elias Cirne-Lima, dentista e professor de odontologia. Era filho de Francisco de Souza Cirne-Lima, juiz de direito nascido em Pernambuco, mas trabalhou por todo Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul, onde se casou em terceiras núpcias, pois era viúvo. Com essa esposa, teve filhos aqui nascidos. Meu bisavô é Antônio de Souza Cirne, militar, alferes e depois general, casado com Isabel de Lima, de onde vem para as seguintes gerações o nome Cirne-Lima. Esse Antônio de Cirne provinha de uma família na qual os nomes Antônio e Francisco remontam a Portugal.
A palavra Cirne, originariamente, é o nome antigo da Ilha de Córsega no século VI antes de Cristo. A ilha se chamava, na época, Kyrne, e passou a ser chamada de Cyrne. Então, meus antepassados são mercadores gregos que fugiram da ilha grega de Córsega, no Mediterrâneo, rumo à Ibéria, e foram chamados como “aqueles que eram de Cyrne”. O nome sobrevive, mas pouca gente sabe sua origem.
Anticlericalismo e fervor religioso
Minha história mais recente começa com algo importante. Meu avô, Elias, meu bisavô Francisco e meu trisavô Antônio eram brasileiros, laicos, moderadamente anticlericais e maçons. Meu avô, maçom e anticlerical, tem dois filhos extremamente religiosos: meu pai e o tio Heitor, católicos fervorosos. Assim, há gerações de Cirne maçons e anticlericais, para a seguir nascer uma geração extremamente religiosa. Isso porque, quando os jesuítas, lá pelos idos de 1880, voltaram para São Leopoldo e criaram o colégio da Companhia de Jesus, trouxeram para o Rio Grande do Sul algo que não havia por aqui e que, lamentavelmente, as pessoas não falam e não sabem.
O catolicismo aqui admitia que o padre fosse casado, tivesse filhos, herança, dinheiro e ter terras. Isso era normal. Com a entrada dos jesuítas em São Leopoldo, é fundado um colégio onde é cumprida a lei do Concílio de Trento . As resoluções do Concílio de Trento, que nunca eram levadas a sério no Brasil católico, passaram a ser a partir de então. O Brasil católico daquela época, antes dos jesuítas, ainda não era tridentino. Assim, se um padre estivesse casado, era ilegal. Os jesuítas firmaram posição de que a religião era algo a ser levado a sério. Essa foi a Contrarreforma levada a cabo pelos jesuítas na Europa, em resposta à Reforma realizada por Martinho Lutero . Essa Contrarreforma entrou em São Leopoldo através dos jesuítas.
Essa reforma do cristianismo em São Leopoldo se dá quase ao mesmo tempo em que ocorreu no Colégio Anchieta, em Porto Alegre. Essa instituição foi fundada por jesuítas com a mentalidade da Contrarreforma, e eles vêm para cá numa época em que nem o arcebispo levava as coisas a sério. Depois, os arcebispos passam a ser alunos dos jesuítas, e começam a encarar as coisas de outra forma. O cristianismo Contrarreforma realizado no Colégio Anchieta irá refletir em Ruy Cirne Lima e Heitor Cirne Lima, que ocuparam cargos importantes. Eram alunos do Anchieta e, depois, se tornaram professores de direito e de medicina.

Uma continuação do pai
Os jesuítas começaram a treinar seus alunos, como nos cursinhos de pré-vestibular de hoje, para passarem nos concursos da faculdade de direito, e anos mais tarde, em medicina. Depois, foram fundadas as faculdades de filosofia por um aluno dos jesuítas: Armando Câmara. Ele é considerado o pai da filosofia brasileira. Foi professor de direito e fundador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e da faculdade de filosofia da UFRGS. Era um solteirão, neto do General Câmara. Morava no prédio que está tombado, ao lado da Assembleia Legislativa, que hoje é um museu. Conheci-o vivendo naquele local, pois era colega do meu pai.
Meu Tio Heitor fundou a faculdade católica de Medicina, depois federalizada. Nesse começo, sou a rigor uma continuação do meu pai. Sou supercatólico, e meu avô, que conheci e com quem convivi, era contra isso. Não entendia como eu poderia estudar para ser jesuíta em Salvador do Sul , depois passar três anos em Pareci Novo , três no Berchmannskolleg Pullach Bei München e outros quatro em Innsbruck. Meu avô não compreendia como eu poderia querer ser padre jesuíta. Ficou furioso comigo. Ele era anticlerical, mas como gostava muito de mim, acabou entendendo. Meu pai compreendeu minha escolha, e nunca nos desentendemos por isso. Ele era completamente a favor do que eu queria fazer. Então, “entrei na onda” do meu pai e, com 14 ou 15 anos, passo um ano em Salvador do Sul, para aprender latim após o colégio. Os outros três anos vivi em Pareci Novo, um dos quais estudando humanidades.

Irmão ministro
O que há de mais importante da minha juventude é o fato de que sou uma continuação ideológica do meu pai. Como ele era um católico pós-tridentino que recebeu dos jesuítas a ortodoxia religiosa muito forte e fundamentalista, continuei isso na minha juventude. Quando meus irmãos viram que saí da ideologia que seguia do nosso pai, deixando a ordem jesuíta, perceberam que também poderiam se “libertar”. Atualmente, um deles frequenta a missa com certa regularidade. Os outros são parecidos com meu avô, que ia à missa umas três vezes ao longo da vida. Ninguém é contra a igreja, todos são batizados, se casaram e, provavelmente, irão receber a extrema unção, mas nada muito além disso. Meu irmão Luís Fernando, que foi ministro da Agricultura, é bem laico. Aliás, ele assumiu esse cargo em 1969 por causa do nosso pai. Em 1964, quando houve a revolução, eu estava em Viena, e meu pai apoiou a situação. Ele se tornou secretário da fazenda do governo estadual de Ildo Meneghetti . Nesse período, Paulo Brossard era secretário da Justiça. Outros professores de direito assumiram cargos importantes no começo do regime militar. Eles tinham um compromisso por escrito e promulgado de que a revolução duraria um ano. Inclusive, pelo direito romano, uma ditadura poderia durar somente um ano. Esses advogados queriam que a revolução terminasse em abril de 1965. Meu pai deixou a secretaria antes de um ano, continuando como professor, e foi lançado para a sucessão do governo estadual do Rio Grande do Sul. A ideia era restabelecer a democracia no estado na segunda metade de 1965. Perachi Barcelos , coronel da Brigada, era o outro candidato. Como sou cassado pelo regime militar em 1969, eles convidam meu irmão para ministro, a fim de pacificar a família. Hoje, Luís Fernando é consultor, especialista em agricultura, atuando em grandes fazendas no Mato Grosso. Minha família é de profissionais liberais. Tenho dois irmãos falecidos, que eram advogados, e uma irmã também falecida.
Por: Márcia Junges
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Estudos
Em 1939 comecei o Primário no Colégio Anchieta. Em 1945 terminei o Ginásio. Em 1946, estive em Salvador do Sul para estudar latim. De 1947 a 1949, estive no Pareci Novo fazendo noviciado e juniorado, além de estudar grego e latim. Então, de 1947 em diante, fui jesuíta e uma continuação do meu pai. Aquilo que os jesuítas tinham feito em 1880 meu pai continuou exacerbado e eu continuei mais exacerbado ainda.
Na continuação desse processo, como eu era bom aluno, em outubro de 1949 os jesuítas me enviaram para cursar Filosofia na Alemanha, numa época em que o país estava destruído pela guerra. Ainda havia fome por lá, e distribuíam aqueles selos de racionamento, porque não havia comida suficiente. Passei três anos no Pullach, com os melhores professores de filosofia que os jesuítas tinham no mundo: De Vries, Lotz, Brugger, autor do famoso dicionário de filosofia.

Aluno de Rahner, colega de Ratzinger
Formei-me filósofo e passei meio ano no Brasil. Dei aulas no Colégio Cristo Rei, em São Leopoldo, e voltei à Alemanha em 1949. Em 1950 e 1951 estudo Filosofia. Em 1952 inicio o curso de Teologia. Volto aí a Frankfurt. Lá, os jesuítas tinham começado um curso nessa área, mas não me dei bem com os professores novos. Por isso, fiquei apenas um ano. Em 1953, saí desse colégio de Frankfurt, instalando-me no Colégio de Innsbruck, onde passei três anos. Lá, fui aluno de Karl Rahner , certamente o maior teólogo católico do século XX, e até hoje o é. Por três anos fui seu aluno em praticamente todos os semestres, três horas por semana, no mínimo, além de cursar um seminário de tarde inteira, semanal. Essa convivência com Rahner foi muito boa e amistosa.
Foi nessa época em que conheci Joseph Ratzinger , como colega. Ratzinger entrou um ou dois anos antes de mim. Ele se formou e eu ainda continuei. Logo, passa a ser bispo em um lugar pequeno na Alemanha. De lá, ele volta todas as semanas para Innsbruck a fim de participar do seminário semanal com Rahner. Então, no início, participava como teólogo e depois como jovem bispo.

Discordâncias teológicas
Já naquele tempo, Rahner e eu começamos a discordar teologicamente um do outro. O motivo era o conceito de Deus. O conceito de Deus que os jesuítas tinham naquela época remontava à Idade Média, e era de um Deus transcendente. Então, o mundo estaria aqui, no plano físico, e fora dele havia Deus. Assim, Deus não estava dentro do mundo, e o mundo não era Deus. Rahner e outros começam a dizer teologicamente que esse Deus, além de transcendente, era imanente, e estava aqui, conosco. Essa concepção será muito importante porque todo o Concílio Vaticano II irá girar em torno disso, numa luta de mostrar que a igreja é o Deus imanente. Então, Deus é transcendente mas imanente também, portanto a igreja é o Deus imanente. Só que aí as opiniões começaram a divergir. Comecei a me afastar das concepções de Rahner. Eu pensava que não era possível ser imanente e transcendente ao mesmo tempo. Rahner debatia comigo e eu insistia em minha opinião. No Concílio, Ratzinger tomou outra posição, acentuando ainda mais a imanência contra a transcendência.

Saída da Companhia de Jesus
A partir dessa discussão, saio da ordem porque não concordo com esse conceito de Deus. Em 1956 peço demissão aos jesuítas. E o motivo que me fez tomar essa atitude é que Rahner e os jesuítas tinham um conceito de Deus que era, ao mesmo tempo, transcendente e imanente, o que para mim era algo contraditório. E se era só transcendente, estava errado. A imanência é a totalidade, mas não é algo que é contrário à transcendência. Há uma diferença entre uma totalidade e o conteúdo de uma totalidade, mas trata-se de uma diferença muito pequena porque não pode haver uma totalidade sem conteúdo. Então, naquela época eu discordava dizendo que o mundo era uma totalidade, Deus era uma totalidade e esse Deus era o mundo. Sustentava que não era possível separar as coisas. Respondiam-me que eu estava perdendo o Deus transcendente, porque se dizia que Deus é a totalidade, tudo é Deus, então Deus desapareceu. Essa foi a grande discussão que tive com Rahner e Ratzinger e que me fez sair da Ordem. Passei um semestre no Brasil avaliando minha decisão e saí oficialmente em agosto de 1959. Decidi ter a minha religião, o meu Deus. Não tinha compromisso nem com Ratzinger, nem posteriormente com o Concílio Vaticano II. Rahner e Ratzinger continuaram com o Concílio. Rahner disse-me que era preciso fazer concessões, pois, caso contrário, seria impossível aprovar algo no Concílio. Eu respondi-lhe que não se podia fazer concessões erradas sobre coisas tão importantes. Assim, Rahner e eu brigamos. Depois de anos, ambos nos arrependemos, mas não nos encontramos mais. Soube através de Leonardo Boff , que foi seu aluno, que ele perguntava por mim e pedia notícias minhas.
Hegel, uma questão de “etiqueta”
Como ex-jesuíta, vou para Universidade de Viena terminar o doutorado. Eu já estudava Hegel nessa época, mas pouco. Naquele tempo os professores já precisavam ter um autor como o seu mais importante. Naquele período escolhi Hegel e continuei o estudado por motivos acadêmicos e intelectuais. Ser hegeliano é um problema muito mais de etiqueta do que de conteúdo. Hegel não é Hegel. Explico. Temos na filosofia moderna, a rigor, apenas duas correntes filosóficas. Uma delas vem de Descartes e chega até Kant . São os analíticos, duramente dualistas. Corpo e espírito são duas coisas diferentes e que não se juntam, dizem. Para juntá-las é preciso usar cola, e mesmo assim, ela não “pega”. A outra corrente vem do neoplatonismo, com Plotino , passa por Espinosa , chegando a Schelling , Fichte , Hegel e Marx , e diz que o universo é uma totalidade em movimento. Tudo é um todo que é diferenciado e está em movimento de evolução. Isso significa que Deus está aqui, ou então Deus não existe.
Todos pensadores que defendem a totalidade pensam assim. Eu usava Hegel porque é um dos filósofos melhores nesse período. Mas se não tivesse Hegel, citaria sem problema algum Schelling ou Espinosa, porque são muito parecidos, vêm da mesma escola. Eles são monistas, em oposição a Descartes e Kant. Acreditam numa única substância. Esse monismo está em evolução. As diferenças é que, para um autor, a evolução é necessária, enquanto que para outro há liberdade; isso é o Espírito que se desenvolve. Então, a diferença entre materialismo e espiritualismo é nula. Quando dizemos que tudo ficou matéria, tudo ficou espírito. Só faz sentido falar em espírito e matéria quando se é dualista. No monismo, podemos ser espiritualistas como Hegel, ou materialistas como o Marx original. A rigor, se tirarmos a palavra matéria e colocarmos espírito, tudo fica igual. Dentro desse esquema, sou monista, e não dualista. Meus colegas ficaram mais e mais dualistas, inclusive Ratzinger. Hoje, os jesuítas e o catolicismo são, em sua esmagadora maioria, dualistas, e não monistas. Aprendi o dualismo na escola, mas depois, na Filosofia, fui percebendo que deveria ser monista. Não é possível ligar ambas as coisas. Como fiquei monista, deveria dizer qual o autor que estudo, então escolhi Hegel.

Professor em Viena
Quando fui para Viena em 1959, já laicizado, tornei-me professor auxiliar de agosto daquele ano até agosto de 1965. Lá, meu chefe era Erich Heintel . Nesse período, o departamento de filosofia era muito centrado no idealismo alemão. Meus colegas falavam comigo sobre Hegel e Schelling com a maior naturalidade. Eram todos monistas. Assim como tive dificuldades e diferenças com a mentalidade católica, eles passaram pela mesma situação com a mentalidade protestante, uma vez que esta também era dualista. Alguns desses pensadores que saíram de Viena até ficaram dualistas, ma non troppo, como Karl Popper . Ele sai de Viena e não sabe direito se é monista ou dualista.

Dualismo mitigado
Dei-me conta de que a Filosofia moderna só tem duas correntes: a que vem do neoplatonismo e é monista, que continuo a seguir, e a dualista, que surge em Descartes e alcança Kant. Do ponto de vista prático, a esmagadora maioria das pessoas continua dualista. Quando dou aulas, as pessoas se confundem e não sabem do que estou falando. Aqueles que professam a religião católica ou luterana têm uma visão dualista e estranham o que falo. Isso é usual também na Alemanha em outras épocas. Só não tem esse sentimento de estranhamento quem é materialista ou idealista. O materialista convicto ficará mais de acordo comigo do que com um dualista tomista. Nos últimos 20 anos, com o aggiornamento que houve, o que aconteceu é que a Igreja Católica tentou se reestruturar com o monismo. Isso é fruto do trabalho de Rahner, que vai para o Concílio fazer a unidade da Igreja. O conceito de Deus e Igreja que Rahner traz dessa perspectiva era não de um monismo duro. Deus estaria lá, mas como totalidade, e Deus não estava transcendente. Foi introduzida a ideia de que imanência e transcendência são iguais, ou seja, crescendo uma, cresce a outra. Elas não seriam excludentes. Essa é a ideia de Rahner e De Lubac , por exemplo. A Igreja Católica naquele período pré-Concílio, e inclusive hoje, admite que deve ser modernizada, e o Deus modernizado em que transcendência e imanência coexistem é postulado. Então, existem dois tipos de católicos: aqueles que dizem que transcendência e imanência são inversamente proporcionais remontam a Ratzinger, e aqueles que dizem que crescendo uma, cresce a outra, sendo diretamente proporcionais, são o grupo moderno. É esse grupo que tentou fazer o Concílio. Já no princípio dos trabalhos esse embate produziu a cisão, e Ratzinger mudou de ideia, levando a igreja para esse lado. Durante o Concílio, esse conceito de Rahner foi derrotado e Ratzinger fica cardeal.
Rahner não consegue voltar à sua cátedra em Teologia. Morreu sem emprego, sem reconhecimento e triste. Ele é proibido de voltar a Innsbruck, onde era professor titular vitalício. Ratzinger e outros católicos transcendentalistas impedem-no de fazer isso. Ele é acolhido por Johann Baptist Metz , em Münster.

Ratzinger como papa
O quem vem pela frente com Ratzinger, na verdade “já veio”: ele é “águas passadas”. Ele apenas é papa agora. Quando começa a defender que imanência e transcendência são inversamente proporcionais, era jovem professor, depois bispo, cardeal e então papa. Essa mentalidade entrou no Concílio e teve preponderância. O Deus imanente era Deus, ma non troppo. A rigor essa discussão começa em Santo Agostinho e vem através da história. Tudo que está acontecendo na igreja agora é reflexo do que houve no Concílio Vaticano II. O problema não está resolvido dentro da instituição, mas para mim já está solucionado. Se hoje Ratzinger e eu debatêssemos novamente, continuaríamos discordando, mas hoje com ainda mais força porque ele não tem mais motivos para ter precaução, assim como eu. Na nossa idade, podemos dizer com mais franqueza o que antes recheávamos com sutilezas. Ratzinger está levando a Igreja à beira da morte. Se o seguinte pontífice continuar nesse caminho, a Igreja irá diminuir a tal ponto que irá minguar por falta de conteúdo. É minha honesta opinião.
Por: Márcia Junges
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História da Filosofia
O motivo pelo qual no Brasil se faz história da filosofia, e não Filosofia, é bem simples. Isso iniciou na USP, cuja opção política foi levada a cabo por Paulo Arantes . Cada um tem sua opinião particular, mas em termos de currículo, o que vale é a história da filosofia. Há pouca gente com um sistema próprio no Brasil, e que não segue a linha da USP. É o meu caso, que sou fruto da filosofia do Pullach Bei München, Innsbruck e Viena. Mas a filosofia da USP, que se espalhou por todo o Brasil via MEC, é aquela da história da filosofia.

Casamento e absolvição das “heresias”
Depois desse período em Viena, volto para o Brasil e me caso com Maria Tomaselli em novembro de 1965. Um mês antes da viagem para o Brasil, nos casamos no civil. Então, embarcamos em uma viagem de navio para cá. Casamos no religioso, numa cerimônia celebrada por D. Vicente Scherer . Como estávamos excomungados, tivemos que ser absolvidos, primeiramente. Recebemos uma licença especial para casar na capela de Dom Vicente, além da absolvição de todas as “heresias”. Apenas a família pôde assistir à cerimônia.
Maria e eu nos conhecemos quando eu era professor em Viena. Ela morava em Innsbruck, sua cidade natal, onde estudou Filosofia com professores católicos, mas muito fracos enquanto filósofos, como ela própria faz questão de salientar. Lá Maria fez seu primeiro semestre na Filosofia. Como todos falavam da boa filosofia de Viena, ela decidiu assistir aulas com Heintel, o professor mais importante da época. Nesse contexto nos conhecemos. Ocorre que Maria voltou a Innsbruck e seguiu lá o curso de Filosofia. Um ano depois, começamos a namorar “de longe”. Seu pai disse-nos que só poderíamos casar depois que ela concluísse seu doutorado em Filosofia, o que aconteceu de 1962 a 1965. Quando concluiu o curso em Innsbruck é que casamos. Depois que terminou a Filosofia, Maria nunca mais quis estudar o tema. Decidiu migrar para a arte. Se alguém diz que ela é doutora em Filosofia, ela desmente e dá risada.

“Estragar” a vida
Nunca ataquei a Igreja. Falo a respeito do que aconteceu, mas sem atacar a instituição. Prometi que não iria atrapalhar o Concílio. Quando saio dos jesuítas, brigando pelo conceito de Deus e, portanto, também de Igreja, naquele período Rahner disse que eu iria “estragar” a minha vida e a da Igreja. Então, disse-lhe que iria “estragar” apenas a minha vida. Assim, nunca polemizei contra a Igreja. Nesse meio tempo, Ratzinger ficou bispo, cardeal importante e cada vez mais transcendente. Eu, por outro lado, continuei professor monista.

Arguição escada abaixo
Logo depois de casar, fiz concurso para professor auxiliar de ensino, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Iniciei em março de 1966, no prédio ao lado da reitoria. Em agosto de 1968, faço minha livre-docência. É preciso contextualizar que 1968 é o ano das invasões estudantis. Nesse ano os estudantes de Paris invadiram a Sorbonne, e o mesmo aconteceu em Munique, quando as aulas foram canceladas. Em Frankfurt a suspensão das aulas fez com que os professores ficassem magoadíssimos com os alunos. Essa Revolução Estudantil de 1968 provocou grandes mudanças intelectuais no mundo inteiro, e também repicou em Porto Alegre. Estudantes da UFRGS, em agosto daquele ano, invadiram a universidade. Naquele exato momento, eu estava arguindo minha tese de livre-docência, no prédio ao lado da reitoria, no andar de cima. Minha banca, com cinco professores solenes, entre eles o grande jurista Miguel Reale , estava “atacando-me”, pois não sabia se eu era católico, idealista ou materialista comunista. Meu livro se chamava Dialética e realismo, e eles pensavam que a palavra dialética era mais marxista do que hegeliana. Por causa desse livro, Reale queria me “trucidar”. As notas que ganhei eram algo como 3 e 4, sendo que o 7 era o mínimo para passar.
Stein e eu fizemos nossas arguições na mesma época. Ele não teve problemas de ser acusado de comunista porque estudava Heidegger . Mas eu tinha, por causa da dialética. Além disso, os estudantes invadem o prédio e a polícia do DOPS entra com escada magirus, pela janela. As luzes tinham sido apagadas pelos estudantes. O presidente da banca disse que eu não deveria interromper a arguição, caso contrário a sessão perderia a validade. Miguel Reale continuou o exame no escuro. Uma luz surgiu, vinda de uma lanterna. Era o diretor Ângelo Ricci, que passa uma lanterna em nossos rostos e fala, apontando para a janela: “A faculdade foi invadida pelos alunos revoltosos. Para que esta arguição não perca a validade, a banca não pode ser interrompida. Deve continuar arguindo e vocês devem sair por ali”. Dois policiais de metralhadora em punho guarneciam a escada. Todos, então, descemos pela magirus, arguindo. Fomos acompanhados, no escuro, pelos policiais, rumo à Escola de Belas Artes. Levamos uns 15 minutos caminhando e arguindo, até chegar ao Instituto. Lá a sessão foi encerrada. Isso consta em ata até hoje arquivada na Faculdade de Filosofia da UFRGS. Torno-me, então, livre-docente.

Cassação
Não tive atuação política nem antes, nem depois desse momento, mas eu era um filósofo, e em 1968 acontece essa revolta estudantil e o AI-5 . A revolução militar iniciada em 1964 sofre uma revolução interna em 1969. O presidente Arthur da Costa e Silva fica doente e uma junta militar assume o governo e tudo fica mais “apertado” ainda. Havia listas de cassações. Professores da Universidade de São Paulo – USP de Sociologia e Filosofia eram cassados em grupos de 30 a 40 pessoas por vez. No Rio Grande do Sul, cassaram de 20 a 30 professores, sobretudo da Sociologia e Arquitetura. Da Filosofia, apenas dois foram cassados: Gerd Bornheim e Ernildo Stein. Nessa época eu ainda não tinha sido cassado. Os não cassados, como eu, se manifestam dizendo que aquilo era uma vergonha. Um grupo, capitaneado pelos dois Brito Velho (Carlos de Brito Velho, deputado, católico, e Vitor de Brito Velho, professor de Filosofia) fez um abaixo-assinado pedindo ao governo militar a revisão dessa postura. Assinei esse manifesto, ao lado de inúmeros outros colegas. Depois de um tempo, um assessor do ministro da Educação, Tarso Dutra, nos instou a retirar nossa assinatura. Instruiu-nos a nos retratarmos e afirmarmos o contrário. Recusei-me, junto de Bento Velho e Maria da Graça, hoje professora da PUCRS.
Em 1969 fui cassado, mas continuei dando aulas em Caxias de Sul. Só que isso não durou nem dois meses. Veio um ato complementar do governo militar dizendo que aqueles cassados pelo AI-5 não poderiam dar aula em nenhum lugar no Brasil. Então, fiquei desempregado e sem dinheiro. Nessa situação, apelei para minha segunda profissão, que aprendi em Viena.
Por: Márcia Junges
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Um filósofo executivo
Quando fui fazer o doutorado em Viena, já laico, Heintel perguntou-me que outra profissão eu tinha. Respondi que queria ser professor de Filosofia. Ele insistiu: “Com o que você ganha dinheiro? Professor não é emprego, não é profissão. Você precisa ter uma profissão; caso contrário, não irei orientá-lo”. Ele falou-me sobre vários dos filósofos do departamento que tinham outras profissões paralelas. Então, mandou-me arranjar um emprego e só depois procurá-lo para o doutorado. Procurei o aconselhamento na universidade de Viena e pedi que me ajudassem a encontrar algo com o que pudesse ganhar dinheiro o quanto antes. Aproveitei os créditos que já tinha cursado e, em um ano e meio, concluí o curso de Administração de Empresas. Assim, sou graduado nessa profissão pela Universidade de Viena. Então, fui procurar Heintel para fazer o doutorado.
No Brasil, quando revalidei o diploma em Filosofia, pensei em revalidar o de Administração também, por via das dúvidas. Foi justamente o que me salvou na época da cassação. Meu diploma de administrador foi validado na UFRGS e tenho registro de número 42 no Conselho Regional de Administração – CRA.
Quando vem a cassação e sou proibido de lecionar, pego meu currículum vitae, tiro a formação filosófica e apresento-o como administrador para possíveis empregadores. Em dezembro de 1969 torno-me funcionário do Banco Nacional do Comércio como escriturário no Departamento de Operações de Crédito Anormal – Deoca. Nesse departamento, o chefe precisa de novos colaboradores. Como eu sabia idiomas e contabilidade, fui contratado. Ninguém sabia que eu era filósofo, pois a pior coisa na época era ser filósofo, e sobretudo cassado.

Administrando a Borregaard
Um ano e meio depois, começa meu ano de peregrinações. Como tive sucesso no Deoca, a diretoria do banco enviou-me como representante dos bancos do Rio Grande do Sul para ser diretor do Dominium Café Solúvel, em São Paulo, na Avenida Interlagos. Era uma empresa que enfrentava problemas com intervenção federal, inclusive. O Banco Central colocou como interventor um senhor de nome Barbosa. Outro diretor, chamado Alvarez, era representante do Bradesco. Os três Bancos do Rio Grande do Sul (Sulbanco, Banco do Comércio e Banrisul) indicaram a mim como representante deles na Dominium. Assim, fiquei diretor dessa empresa por um ano em meio. Ainda como funcionário, começam as negociações para trabalhar na Borregaard, pois o governo em 1972 inicia a desapropriação dessa empresa. O ministro do Planejamento, Reis Veloso, ficou impressionado com o trabalho que eu tinha feito no Banco e na Dominium. Junto do ministro Delfim Neto, ficou meu amigo e apreciou o trabalho que havia feito. Então, ambos pediram-me para entrar em contato com a Borregaard, cuja fábrica brasileira situava-se em Guaíba, aqui no Rio Grande do Sul. Contudo, antes de entrar para essa empresa, passei todo o ano de 1973 numa missão ainda mais espinhosa: salvar e reestruturar o Diners Club do Brasil. O Diners era o grande cartão de crédito da época. Então, saí da Dominium, fui para o Rio de Janeiro e atuei nessa empreitada. Termino o trabalho e assumo na Borregaard em janeiro de 1974. Após estudar o caso da empresa por um mês, vejo que o grande problema era que os noruegueses, seus donos, quando projetaram a planta fabril, fizeram algo muito engenhoso, mas meio perverso. A fábrica de celulose no Brasil usava de árvores e solo baratos, e a celulose era produzida não branqueada e, principalmente, não peneirada. Os fardos de celulose que saíam de Guaíba, se fossem vendidos em outro lugar do mundo, quebrariam as máquinas ao serem processados. Isso porque esses equipamentos são compostos por rolos, que não resistiriam aos fardos repletos de nós. Então, esses fardos deveriam ser peneirados antes de serem prensados. Entretanto, apenas na Noruega é que ocorria a peneiragem e o branqueamento. Assim, metade da fábrica estava situada no Brasil, e a outra na Noruega. O produto daqui só poderia ser vendido na Noruega em função de questões técnicas. Reis Veloso se dá conta disso e convoca-me para mudar a situação. Primeiramente tive que fazer um contrato com os noruegueses para que eles branqueassem a celulose. Como estavam amargurados com esses dois ministros, eu servia de intermediário entre o governo e a Borregaard no Brasil e na Europa. Passado um tempo, começamos a branquear e peneirar a celulose aqui e vender em Amsterdam. Meu escritório funcionava em Frankfurt. Nesse período de 1974-1977, sou diretor da Borregaard em Guaíba, com casa nessa cidade e em Frankfurt, onde a Maria ficava a maior parte do tempo. Aliás, todo nosso casamento foi marcado por constantes viagens e mudanças, e muito companheirismo nessas situações de deslocamento. Nossa vida sempre foi bem atribulada. Quando acabei minha tarefa na Borregaard, o pessoal ficou bastante bravo comigo porque contrariei uma porção de coisas. A defesa que poderiam ter feito para mim deveria partir de Reis Veloso e Delfim, mas que a essas alturas já não tinham mais muita expressão política. Então, fico desempregado outra vez. De 1977 a 1979, o senador Severo Gomes convidou-me para ser diretor na Tecelagem Paraíba, no Nordeste. Então, mudamo-nos para Olinda-PE.

Retorno à UFRGS
Em 1979 vem a Lei da Anistia e recebo uma carta do reitor da UFRGS. Recebo a permissão para voltar e redijo uma carta aceitando o convite. De 1979 a 1983, como eu não tinha dedicação exclusiva à universidade e ganhava pouco dinheiro, empreguei-me numa companhia de seguros que depois foi engolida por uma grande companhia paulista. Assim, mantive paralelos a docência e o trabalho nessa empresa. Estava contratado como professor assistente e adjunto na UFRGS. Em 1985 faço concurso para professor titular e dedico-me exclusivamente à universidade. Aposento-me em 1990 na UFRGS e inicio carreira na PUCRS. Em 2000 encerro a carreira nesta universidade e começo na Unisinos, diariamente, até 2007. Em 2008, sou nomeado professor emérito e professor visitante dessa instituição. Agora estou aposentado. Também tive um período como professor em Kassel, dei conferências em Aachen e Praga.

Reconhecimento filosófico
O reconhecimento ao meu trabalho filosófico veio agora, na velhice. No início da minha carreira sou apenas um professor talentoso. Depois, sou cassado e ninguém pode nem falar a respeito da minha trajetória filosófica. Por dez anos dedico-me a administrar empresas e construo fama de bom executivo. Quando volto à Filosofia oficialmente, estou quase na estaca zero. Na UFRGS, inclusive, não me consideravam filósofo, mas um cassado anistiado. Quando entro na PUCRS, convidado por Jayme Paviani , é que vem o reconhecimento. Na época em que entrei na PUCRS o curso não era bem visto, e era preciso uma revitalização em sua pós-graduação, missão para a qual foram chamados Hans Georg-Flickinger , Ernildo Stein e eu. Depois, a Unisinos chamou-me para fundar o curso de pós-graduação em Filosofia. Ocorre que lá em 1952 eu dava aulas por um semestre em São Leopoldo, no Cristo Rei, migrando da Filosofia para a Teologia. Nessa época a Unisinos fundou no papel uma faculdade de Filosofia e como não tinha quase nenhum professor doutor, colocaram-me como um dos fundadores do curso de graduação. Então, sou um dos fundadores da graduação e da pós-graduação em Filosofia da Unisinos.
Por: Márcia Junges
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Lazer
Maria e eu gostamos de teatro e cinema. Assistimos a filmes quase todos os finais de semana. Como Maria é artista, está sempre pintando, fazendo gravuras e envolvida em atividades com seus alunos. Eu gosto muito de ler, e aproveito meu tempo para isso. Já naqueles dez anos como administrador, mantinha minhas leituras filosóficas em dia, porque caso contrário estaria desatualizado e liquidado. Hoje, continuo essa prática, e em ritmo mais intenso: a cada dois ou três dias leio um livro diferente. Estou atualizado em Filosofia, sei o que meus colegas estão fazendo e debatendo. Além disso, escrevo artigos.

Instituto Humanitas Unisinos
O IHU tem enormes méritos, mas está naquela ambiguidade que caracteriza a Igreja Católica. O IHU não sabe, ao certo, se é monista ou dualista. Essa posição de indecisão é a de muitos teólogos católicos contemporâneos, e inclusive da Unisinos em termos gerais.

Professor emérito da Unisinos
Quando recebi o título, ocorreu algo curioso. O reitor, Pe. Marcelo Aquino , meu amigo e colega, proferiu uma conferência na qual apontou a posição neotomista contemporânea. Não fica clara, contudo, se sua posição é pelo monismo ou pelo dualismo. Face ao discurso dele, reiterei minha posição monista. Não usei a palavra panteísta, que é “feia”. Mas essa divergência ficou clara na solenidade. No público, havia alguém que ligou para o provincial dos jesuítas daqui reclamando que estava sendo prestigiado alguém que não era suficientemente católico.


Saiba mais...
Carlos Roberto Velho Cirne-Lima é professor emérito do PPG em Filosofia da Unisinos, com o título de doutor honoris causa, concedido em 6 de junho de 2008. É graduado em Filosofia, pelo Berchmannskolleg, em Pullach (Alemanha), doutor em Filosofia, pela Universität Innsbruck (Áustria), e obteve livre-docência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Entre seus livros publicados, citamos Realismo e dialética. A analogia como dialética do Realismo (Porto Alegre: Globo, 1967), Sobre a contradição (Porto Alegre: Edipucrs, 1993) e Dialética para principiantes (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002). Seu livro mais recente chama-se Depois de Hegel. Uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico (Caxias do Sul, RS: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2006). Conheça, ainda, o seu site www.cirnelima.org.

Fonte http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3955&secao=366&limitstart=5 - acesso em 25 de junho de 2011

Monday, June 06, 2011

Indicação de livros

Indicação:

PAULANI, LEDA. Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2008.

_____________. Modernidade e discurso econômico. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2005.



No momento estou lendo dos bons livros e indico para quem quer conhecer os pressupostos econômicos da modernidade e a política econômica do Brasil no governo Lula, abaixo segue uma entrevista com a autora dos dois livros que saiu na IHU em outubro de 2008:


Réquiem para o neoliberalismo? Ainda é cedo. Entrevista especial com Leda Paulani


Na opinião da professora e economista Leda Paulani, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, Keynes ensinou que a teoria do livre mercado não funciona. “Quanto mais deixado a si mesmo, quanto menos regulado, tanto mais forte desponta sua tendência de se enroscar em suas próprias pernas, gerando crises como essa de agora”, afirma ela. “A crise de hoje é um misto de crise clássica com crise estritamente financeira e, tanto num quanto noutro lado, a crise de confiança está presente”. Em outras palavras, completa Paulani, “será muito difícil e demorado reativar a máquina do crédito, sem a qual a economia capitalista funciona muito mal”. Ao falar sobre a contribuição da teoria de Keynes, a economista acredita que certamente o autor diria a Lula para “não desperdiçar a oportunidade aberta pelo pré-sal e impor controles aos fluxos de capital, recuperando assim os graus de liberdade necessários para conduzir a política cambial e a política monetária de modo geral”.

Em relação à crise financeira internacional, Paulani vê como evento mais provável “a afirmação do discurso neoliberal, de modo que não é tão cedo que rezaremos sua missa de réquiem”.

Leda Paulani é doutora em Teoria Econômica, pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (USP). Obteve livre docência pela mesma universidade e é presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Econômicas e professora da USP, além de ser autora de obras como Modernidade e discurso econômico (São Paulo: Boitempo Editorial, 2005) e Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico (São Paulo: Boitempo Editorial, 2008). A professora esteve na Unisinos, participando do Ciclo de Estudos Fundamentos Antropológicos da Economia, no qual apresentou o pensamento de Guy Debord (1931-1994), com a palestra A mercadoria como espetáculo, em 17 de outubro de 2007.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido as teorias de Keynes podem ser úteis no sentido de compreender a crise financeira internacional? Keynes contribui para vislumbrarmos alguma saída ou alternativa?

Leda Paulani – A principal contribuição de Keynes, que salta à vista com esta crise, foi ele ter demonstrado que o sistema capitalista não produz por si mesmo o equilíbrio e a harmonia que a teoria econômica convencional (neoclássica) apregoa. Antes o contrário. Quanto mais deixado a si mesmo, quanto menos regulado, tanto mais forte desponta sua tendência de se enroscar em suas próprias pernas, gerando crises como essa de agora. Marx, de seu jeito, mostrou a mesma coisa. Dentre outras coisas, Keynes mostrou que, quando a crise é de confiança, não adianta muito oferecer liquidez, que o que é preciso é mostrar ao capital privado que há demanda no horizonte e que essas demandas viabilizam novos investimentos. A crise de hoje é um misto de crise clássica com crise estritamente financeira e, tanto num quanto noutro lado, a crise de confiança está presente. Isso indica que o tal pacote pensado pelo sr. Paulson talvez não seja suficiente para enfrentar o problema, mas, dada a atual pressão sobre os gastos governamentais americanos e o tamanho da dívida que eles já assumiram (os EUA vêm vivendo de dívidas já há alguns anos), a solução vislumbrada por Keynes, mesmo que fosse um dos remédios, está longe do alcance do governo americano. Em outras palavras, será muito difícil e demorado reativar a máquina do crédito, sem a qual a economia capitalista funciona muito mal.

IHU On-Line – A senhora acredita que a crise financeira internacional pode provocar mudanças no capitalismo?

Leda Paulani – A questão estrutural que está por trás disso tudo foi a mudança no sistema monetário internacional nos anos 1970 do século passado e que manteve a moeda americana como meio internacional geral de pagamento, mesmo com seu vínculo ao ouro tendo sido rompido. Isso deixou os Estados Unidos com a faca e o queijo na mão, pois sua moeda continuou a ser hegemônica, como já era desde Bretton Woods (1944), sem que a economia americana tivesse que pagar por isso o elevado preço de mantê-la permanentemente valorizada, o que colocava em xeque a competitividade de sua economia. Os EUA usaram e abusaram desse poder e pilotaram a chamada financeirização da economia. Por isso, já há algum tempo, se fala que o dólar americano vem perdendo as credenciais que permitem tal situação privilegiada, argumentando-se que o surgimento do euro, bem como o fortalecimento da economia chinesa e asiática, estariam mudando essa situação. A crise de agora oferece a esse tipo de argumento um forte elemento, pois, para além da desvalorização diária da moeda americana frente a outras moedas, coloca-se agora também a nu a fragilidade orgânica da economia americana. Nesse sentido, portanto, se a crise trouxer alguma mudança de peso no sistema capitalista, essa mudança estará sem dúvida relacionada à questão do dinheiro mundial. Não podemos esquecer, contudo, que o dólar americano continua sendo a moeda constitutiva de mais de 70% das reservas monetárias mundiais, o que por si só indica que essa transição do dólar para outra moeda qualquer não deverá ser nem tão simples nem tão rápida.

IHU On-Line – Em que medida a crise financeira internacional está relacionada com o fenômeno da financeirização da economia? Como Keynes analisaria o caso?

Leda Paulani – Evidentemente, crise e financeirização estão diretamente ligadas. Quando se fala em financeirização, o fenômeno que se quer capturar é o aumento crescente da importância da lógica financeira, de caráter rentista, que o capitalismo vem experimentando desde pelo menos o início dos anos 1980 do século passado. Empiricamente, isto é visível na comparação entre o crescimento da riqueza financeira mundial (ações e debêntures, títulos de dívida privados e públicos e aplicações bancárias) e o crescimento do PIB mundial. Entre 1980 e 2006, o primeiro cresceu mais de 14 vezes, enquanto o segundo não chegou a cinco. O aumento da importância da lógica financeira é proporcional ao crescimento da riqueza financeira e aos interesses materiais atrelados a esse crescimento. Ora, a lógica financeira, vale dizer, aquela que procura “fazer dinheiro” sem passar pela esfera produtiva, é a “matriz de todas as formas aloucadas de capital” e da “capacidade que o sistema tem de ir além de si mesmo”. O pai dessas idéias não é Keynes, mas Marx. Foi ele quem melhor definiu o crédito e o capital financeiro. É só na teoria de Marx que há um conceito tão importante quanto o de capital fictício, apto a esclarecer o caráter da crise de agora. Resumidamente, significa que se prega o rótulo de capital em muita coisa que está efetivamente longe de sê-lo. No entanto, como não se trata aí de ilusões subjetivas, mas de ilusões objetivamente constituídas, essas formas descarnadas começam a mandar no sistema como um todo. A posição disso num contexto que tem dinheiro inconversível funcionando como meio de pagamento internacional constitui uma combinação altamente explosiva e ainda mais contraditória do que as relações que constituem a espinha dorsal do capitalismo.

IHU On-Line – Como Keynes veria o chamado “livre mercado”?

Leda Paulani – Keynes foi um dos maiores críticos do livre mercado. Como já afirmei, ele duvidou seriamente da capacidade de o livre mercado produzir resultados equilibrados e convergentes com aquilo que se poderia chamar de “ótimo social”. Quando escreveu a Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, seu livro mais conhecido, ele já tinha à sua frente, como exemplo concreto de que sua desconfiança tinha fundamento, a crise dos anos 1930 do século passado. Como liberal que era e amante da sociedade organizada pelo mercado, entendeu que para salvar o capitalismo de si mesmo era preciso que o Estado, que, em princípio, pauta-se por uma outra lógica, vale dizer, uma lógica distinta da mera busca do lucro, estivesse permanentemente monitorando a máquina capitalista. Marx desconfiou tanto quanto Keynes da capacidade do sistema capitalista de produzir harmonia e simetria, enfatizando, inversamente, sua tendência a produzir desproporções cavalares, enormes concentrações de capital, miséria extrema e crises abissais. Como não tinha nenhum amor por esse tipo de sociedade, que considerava, ao contrário do que apregoava o liberalismo, tão violenta e discriminatória quanto as formações sociais anteriormente inventadas pelo homem, e como trabalhou com a lógica da contradição, fez uma crítica muito mais abrangente e fundamentada do que a de Keynes.

IHU On-Line – Seria o caso de retomar a macroeconomia keynesiana?

Leda Paulani – A macroeconomia keynesiana transformou-se num evento historicamente datado. É só num quadro como o que brotou da crise de 1930 e das duas guerras mundiais, sob a moldura da guerra fria, que tal macroeconomia pôde ter vida plena. Mas essa página a História já virou. Ficam alguns dos alertas de Keynes, como a necessidade de regular os mercados, principalmente o mercado financeiro, o que leva, por exemplo, à necessidade de controlar os fluxos internacionais de capital.

IHU On-Line – Como entender historicamente a construção do cenário financeiro internacional atual?

Leda Paulani – O cenário financeiro internacional atual é resultado de profundas transformações que estão em curso desde os anos 1960 do século passado, muitas delas resultantes do próprio sucesso das políticas de intervenção que vigoram desde o final da Segunda Guerra, tanto no centro do sistema capitalista quanto em suas periferias. O período de mais de 60 anos que se estende desde 1945 pode ser analisado de vários ângulos. O mais interessante, do ponto de vista da crise que ora presenciamos, é aquele que percebe o mundo construído a partir de Bretton Woods como uma derrota das chamadas altas finanças e do “financismo” e simultaneamente uma vitória da produção real de bens e serviços e, por conseguinte, do capital produtivo. Ora, esses anos dourados do capitalismo, quando a lógica produtiva dava as cartas e colocava as finanças a seu serviço, terminam no início dos anos 1970 do século passado, década na qual se combinam uma reversão cíclica, a enorme elevação dos preços de insumos básicos, a começar pelo petróleo, o fim oficial de Bretton Woods, com a desvinculação do dólar ao ouro, e o empoçamento de liquidez na city londrina, uma praça off shore, cujo crescimento de importância foi transformando o mundo capitalista e mudando o bastão de comando da esfera produtiva para a esfera financeira. A ascensão do neoliberalismo foi a contraparte ideológica dessa mudança.

O admirável mundo novo da globalização

O retorno vitorioso das altas finanças ao papel de mandarim se consagrou e se reforçou com a difusão dessas idéias, que não se limitaram a pregar o fim da “repressão financeira”, mas a ditar uma cartilha completa de reformas e ajustes que os estados nacionais deveriam empreender para recuperar sua saúde econômica e conquistar um lugar ao sol no admirável mundo novo da globalização. O resultado desse comando prolongado e do mundo desregulado e governado exclusivamente pela lógica do mercado (que, nesse quadrante histórico, consumou-se como lógica financeira), estamos vendo agora. Entretanto, isso não quer dizer que, nesse meio tempo, os estados nacionais tenham enfraquecido. Ao contrário, eles se fortaleceram de várias formas, inclusive com os meios violentos necessários para submeter todo o sistema econômico aos caprichos da valorização financeira e para viabilizar a extração de renda real que, de uma forma ou de outra, com maior ou menor correspondência, deve estar por trás do crescimento do capital fictício. Geopoliticamente, isso significou o fortalecimento dos EUA, situação que evidentemente se complica agora, mas cuja mudança radical não acredito que tão cedo aconteça.

IHU On-Line – A senhora acredita que o neoliberalismo está se aproximando do fim?

Leda Paulani – O discurso livre-cambista não deve se enfraquecer por causa dessa crise. Ao contrário, a crise será um belo álibi para a continuação da pregação anterior e para o reforço da exigência de mais reformas, mais ajustes, mais cortes de direitos, pois afinal estamos numa situação emergencial. Mesmo que a realidade desminta frontalmente a crença nas virtudes do mercado deixado a si mesmo, o discurso neoliberal continuará impassível a desfiar os seus disparates. É muito difícil que os EUA dêem o nome aos bois em relação à prática intervencionista que vêm adotando. Eles continuarão a pregar as virtudes do mercado e de sua capacidade auto-regulatória. Além do mais, mesmo que reste um tanto debilitada, a riqueza financeira deverá continuar a ver seu peso crescer como proporção da riqueza total, o que torna difícil acreditar que subitamente o discurso se altere.

IHU On-Line – Como avalia a postura do governo brasileiro? Se atingido pela crise, terá como se reerguer usando com “força” o vangloriado crescimento econômico? O que Keynes poderia ensinar a Lula?

Leda Paulani – A reação do governo brasileiro tem sido errática, ora afirmando que “a crise é lá deles” ou que o país não será afetado por ela, pois fez a “lição de casa” e os “fundamentos” da economia estão mais sólidos, ora concedendo que, de uma forma ou de outra, seremos afetados. Bem, é evidente que, sendo a crise do tamanho que é, dificilmente passaremos incólumes. Por mais que nosso sistema financeiro não tenha se envolvido no tipo de operação que detonou a crise, o aumento da insegurança e a perda de confiança nos negócios em geral tornarão, como já vêm tornando, muito mais difícil para as empresas que operam na economia doméstica a obtenção do crédito externo, fácil, barato e abundante de que até então desfrutavam, além de afugentar boa parte do capital que para cá tem vindo em busca dos elevados rendimentos e de ativos a preços baixos oferecidos pela economia brasileira. Além disso, a necessidade de honrar compromissos assumidos em outras praças deve levar embora outro tanto de capital. Acrescente-se ao cenário a maior fragilidade de nosso balanço de pagamentos (vide a estrutura muito mais rígida que hoje apresenta o balanço de serviços e rendas) e as conseqüências da crise para o desempenho de nossa balança comercial. O aumento do valor do dólar, com conseqüente desvalorização da moeda doméstica, pode não ser suficiente para compensar a queda de demanda pelas commodities que uma crise muito funda nos EUA provocará na economia mundial, particularmente no gigante chinês. Tudo somado, o tempo de bonança em nosso balanço de pagamentos pode estar chegando ao fim. Keynes certamente diria a Lula para não desperdiçar a oportunidade aberta pelo pré-sal e impor controles aos fluxos de capital, recuperando assim os graus de liberdade necessários para conduzir a política cambial e a política monetária de modo geral. Resta saber se a banca vai permitir tamanha autonomia. Como afirmei anteriormente, o evento mais provável é a afirmação do discurso neoliberal, de modo que não é tão cedo que rezaremos sua missa de réquiem.




Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=17156 07 de junho de 2011.

Diamante de 20 quilates:: Roberto Romano

artigo interessante do professor Roberto Romano, abaixo:

Artigo de Domingo, Roberto Romano. O Estado de São Paulo.

domingo, 5 de junho de 2011
Diamante de 20 quilates:: Roberto Romano


Sem um verdadeiro pacto federativo, demagogos chantageiam o Executivo e usam em proveito próprio os problemas do governo

Montesquieu assevera que um país enorme não pode ser dirigido de maneira republicana. O controle das massas em vastos territórios exige o despotismo. O filósofo tinha em mente a Rússia e outros Estados absolutistas. Os pensadores democráticos idealizaram um recurso para sanar o defeito indicado: a criação ou reforço de unidades políticas menores, reunidas por interesses comuns, cada qual mantendo seus alvos e liberdades. Surgiram então as federações modernas, a começar pelos Estados Unidos da América.

Mesmo ali, a busca do equilíbrio entre as unidades e o todo federativo trouxe problemas insolúveis. Só uma guerra conseguiu impor limites entre os direitos e deveres federais e os das unidades inferiores. Os EUA distribuem competências, salvam prerrogativas. Os Estados possuem leis diferenciadas, inclusive para arrecadar impostos.

A via para o poder municipal, estadual e nacional segue dois itinerários, fora dos quais é quase impossível o mando político. Os grandes partidos, Republicano e Democrata, açambarcam o mercado eleitoral, deixam às demais tendências o papel de meros pesos na balança. Em linguagem de M. Weber e R. Michels, eles são dominados por oligarquias que controlam a máquina da agremiação. Daí a relevância das eleições primárias. Nas últimas, os oligarcas tinham escolhido Hillary Clinton; as bases, Obama.

Por que evocar os EUA, quando se trata de refletir sobre os partidos políticos brasileiros? Desde quando éramos colônia aquele país nos serve de modelo comparativo, em detrimento de nossa autoestima. Os EUA resultam de uma rebelião, de baixo para cima, contra a coroa. O Brasil surge em sentido oposto. Dom João e seus descendentes imperiais tudo fizeram para impedir a prática republicana e federativa. Os princípios das revoluções modernas (a inglesa e a accountability, a americana e a federação, a francesa e a igualdade entre dirigidos e governantes) foram aqui proibidos. Nossa gente sempre foi controlada, de maneira despótica, por um centro esmagadoramente superior em direitos às unidades menores. Tais privilégios (com a desculpa de que os países vizinhos se esfacelaram em microssoberanias) resultam no reforço do absolutismo trazido da velha Europa, o monopólio das políticas públicas e dos impostos nas mãos do Executivo. A soma ditatorial de poderes deixa as regiões sem iniciativa na ordem pública (educação, segurança, transportes, hospitais, esgoto, água, etc.).

Sem verdadeiro pacto federativo, arrancar benefícios para as unidades menores exige grupos de pressão regional no Congresso. Demagogos pressionam o Executivo, movem a chantagem nos plenários e comissões, gabinetes e corredores. Líderes usam em proveito próprio ou grupal os problemas dos governos. Eles garimpam a corrupção ou a falta de comando. Anthony Garotinho apenas repete o modus operandi geral ao imaginar ter encontrado, no caso Palocci, um diamante de 20 quilates. Em suma: a flexível política partidária é gerada pelos excessivos poderes presidenciais (exasperados nas ditaduras do século 20) e pelas oligarquias que trocam apoios a preço vil.

Nos EUA, dois partidos monopolizam a política. No Brasil, o PMDB, federação oligárquica sem par ou concorrente, domestica regiões com base na troca de obséquios e recursos. O partido se firmou no governo Sarney como sanguessuga de votos e, no outro lado, de impostos. Dominando o favor, ele é o núcleo do poder político nacional. Os demais partidos o mimetizam, sem a maestria das suas práticas retrógradas e autoritárias.

Quanto ao PT e ao PSDB, o segundo saiu do PMDB, do qual guardou alguns costumes. Mas seu programa visava a instaurar no Brasil uma democracia moderna e federativa. Em oito anos do governo FHC ele foi digerido pelos oligarcas peemedebistas e seus colegas do PFL e se transformou num arremedo de oligarquia. Hoje, três ou quatro pessoas decidem as vias partidárias, sem preocupação com programas, conquistas de novos eleitores, etc. FHC, em artigo recente, indicou as mazelas tucanas, propondo remédios que, pelo andar da carruagem, jamais serão usados.

O PT reuniu várias correntes (marxistas, católicos, movimentos sindicais) e tinha como alvo socializar o Estado e a sociedade. Em oito anos de governo ele foi domesticado pelas oligarquias e se mostra como federação de micro-oligarcas. Basta ver as tensões entre o partido no Acre, em São Paulo, etc. Os grupos fortes do PT disputam a hegemonia junto à Presidência. O caso Palocci entra no cabo de guerra em que se joga o poder de fato.

No Brasil, dominado por organismos políticos que parasitam o Executivo federal, é impossível fazer oposição e fugir de retaliações contra as cidades e Estados. Daí a tibieza tucana na oposição e falta de coesão do PT nesta crise pré-inflacionária, de corrupção e de comando vivida pelos poderes. O Brasil, enorme território, ainda é governado de maneira despótica. Ele ignora as práticas modernas: democráticas, republicanas, federativas. E nenhum partido mostra disposição para mudar, de fato e de direito, tal cenário.

Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia na Unicamp. Autor de O caldeirão de medeia (Perspectiva)

Fonte: http://silncioerudoasatiraemdenisdiderot.blogspot.com/ 07 de junho de 2011.

A religiosidade mística em Wittgenstein

Gostei da entrevista do professor Paulo Margutti, conferir abaixo:


A religiosidade mística em Wittgenstein
Para Paulo Margutti, o que liga o primeiro ao segundo Wittgenstein é o misticismo. O contato com o Absoluto através da contemplação silenciosa se dá nas duas fases de seu pensamento

Por: Márcia Junges

“Minha ideia é que, separando o mostrar ético do mostrar lógico, é possível perceber a continuidade do misticismo em Wittgenstein exatamente porque a percepção do valor do mundo ainda existe, mesmo quando se abandona a lógica como sua essência”. A explicação é do filósofo Paulo Margutti, contando aspectos sobre a pesquisa que está realizando a respeito da importância e do papel da religião no pensamento de Ludwig Wittgenstein. Na entrevista que concedeu pessoalmente à IHU On-Line, Margutti assinala que, “na filosofia do Tractatus, assim como na filosofia das Investigações, entrar em contato com o Absoluto através da linguagem é algo muito problemático. Isso porque a linguagem é cheia de limitações”. E completa: “Se for correta a interpretação que faço do misticismo em Wittgenstein, este só pode acontecer em função da contemplação silenciosa. Podemos falar, falar e falar. Mas a única coisa importante que acontece é quando estamos calados”.

Outro tema da conversa com a IHU On-Line foi o fundamentalismo religioso e a tentativa neoateísta de provar que Deus não existe. Na opinião de Margutti, Richard Dawkins não sabe sobre o que está falando ao querer provar racionalmente a inexistência divina. O terrorismo árabe e o americano, exacerbados com o recente assassinato de Bin Laden, também estiveram em pauta: “A morte de Bin Laden não significa a morte do seu sonho. Para os fundamentalistas islâmicos, ele é um mártir. Sua morte implica em que o ideal árabe foi agredido duramente pelos americanos”. Segundo o filósofo, os Estados Unidos se acreditam “a polícia do mundo”, e a ONU só é por eles respeitada quando “está a favor de seus interesses”.

Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, Margutti graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, é especialista em Ciências do Homem e Fenomenologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas, e mestre em Filosofia Contemporânea pela UFMG. Cursou doutorado em Filosofia na Universidade de Edinburgo, Escócia, com a tese Wittgenstein and semantic presuppositions generated by definite descriptions in subject-position. É autor de Iniciação ao silêncio (Análise do Tractatus de Wittgenstein) (São Paulo: Loyola, 1998) e Introdução à lógica simbólica (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001). Margutti esteve na Unisinos nos dias 11 e 12-05-2011 como um dos conferencistas do Simpósio Margens da Palavra: veredas filosófico-literárias no Brasil.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Quais são suas descobertas com a pesquisa que está desenvolvendo a respeito de haver na continuidade do pensamento de Wittgenstein uma religiosidade mística? Por que o sujeito transcendental de tipo schopenhaueriano desempenha um papel fundamental nesse pensamento?

Paulo Margutti - A primeira coisa que impressiona em relação a essa pesquisa é o fato de que os estudiosos britânicos de Wittgenstein parecem se recusar a enxergar essa dimensão do seu pensamento. Entre esses filósofos analíticos, um deles, Peter Geach , acha que o único autor a ser lido para compreensão de Wittgenstein é Frege . Se isso fosse verdade, Wittgenstein seria uma pessoa completamente diferente. Geach se esquece de Schopenhauer, Mauthner e Tolstoi, que são claramente relevantes para Wittgenstein. Em segundo lugar, a pesquisa apresenta uma dificuldade em ser realizada porque, aparentemente, o misticismo de Wittgenstein está relacionado com a questão da lógica. No Tractatus logico-philosophicus (2. ed. São Paulo: USP, 1994) ele diz que a lógica é a essência do mundo e o místico envolveria a contemplação da essência do mundo. Se a lógica deixou de ser sublime, como ele diz nas Investigações filosóficas (Petrópolis: Vozes, 1996), então, aparentemente, não há mais misticismo no segundo Wittgenstein. Mas isso não condiz com as observações do próprio Wittgenstein, que encontramos em textos paralelos, da mesma época das Investigações, em que faz referência ao cristianismo como sendo a doutrina que dá sentido à vida, por exemplo.


Mostrar lógico e mostrar ético

Na minha pesquisa, o que percebi é a possibilidade de fazer uma distinção entre o mostrar lógico e o mostrar ético. O mostrar lógico envolve uma concepção fortemente influenciada pela ideia de sujeito transcendental de Schopenhauer. No autor alemão, o sujeito transcendental coloca o mundo dentro do molde do espaço, tempo e relações causais. O mundo é o que é, é o fenômeno que é porque o sujeito transcendental colocou-o dentro desse molde. Esse molde é a priori, transcendental e é ele que faz o mundo ser como é. Em Wittgenstein, não há nenhuma referência a espaço, tempo e relações causais como acontece no caso de Schopenhauer. Mas há uma referência ao espaço lógico. É como se em Wittgenstein, ao invés de se colocar o mundo dentro do molde espaço/tempo/relações causais, o sujeito transcendental o colocasse dentro de um espaço lógico que estabelece as condições de possibilidade do mundo e da linguagem. Por isso é que a linguagem pode descrever o mundo. A linguagem e o mundo estão dentro do mesmo espaço lógico, que foi imposto pelo sujeito transcendental. Mas isso é uma parte da experiência do mostrar. A outra parte é o sentido que isso dá à existência humana, o valor que pode ser encontrado no mundo. Isso independe desse molde lógico. Então, minha ideia é que, separando o mostrar ético do mostrar lógico, é possível perceber a continuidade do misticismo em Wittgenstein exatamente porque a percepção do valor do mundo ainda existe, mesmo quando se abandona a lógica como essência do mundo ou como aquele molde no qual ele foi colocado. Não precisamos disso para manter a perspectiva mística em Wittgenstein.


IHU On-Line - Qual é a relação entre a lógica e a experiência mística do Tractatus?

Paulo Margutti - Há uma carta que Wittgenstein escreveu para Paul Engelmann , seu amigo. Esse arquiteto teve a oportunidade de conversar sobre o Tractatus com seu autor, à época em que o livro estava sendo escrito. Isso foi durante a Primeira Grande Guerra, nas ocasiões em que Wittgenstein saía de licença das atividades do Exército. Então, ele ia para uma cidade no interior da Áustria, onde visitava a mãe de Engelmann. Geralmente jantava na casa dela e, após a refeição, Engelmann acompanhava o amigo filósofo ao seu alojamento. Nesse trajeto, Wittgenstein explicava a filosofia do Tractatus. Engelmann se identificava mais com o viés místico do que com o viés lógico da filosofia de Wittgenstein.

Ocorre que Engelmann encontrou certa vez um poema de um poeta alemão pouco conhecido, chamado Uhland . Esse poema fala sobre um conde que lutou nas Cruzadas e que, numa determinada ocasião, encontrou um cipreste pequeno no front. Pegou um galho da planta e prendeu-o ao seu capacete, usando-o nas batalhas. Quando retornou para casa, o cipreste foi plantado e cresceu, virando uma árvore. O poema termina com o conde já idoso, sentado embaixo dessa árvore que havia plantado. Engelmann ficou impressionado com o texto, e fez um comentário com Wittgenstein a respeito. O filósofo concordou com a avaliação de Engelmann e, ao responder, afirmou que o inexprimível se mostra de maneira inexprimível naquilo que é expresso. Isso é uma chave para compreendermos o que ele compreendia pelo mostrar ético, na definição que uso.


O valor ético da totalidade

Se considerarmos o poema de Uhland como um todo, ele se compõe de nove proposições que descrevem fatos a respeito da vida do conde. O poema é uma lista de fatos. Cada fato, independentemente, não tem valor algum. Mas se tomarmos a totalidade dos fatos expressos pelos versos, eles dão sentido e valor à vida desse conde. Isso é o mostrar ético ao qual eu me refiro. Cada proposição que descreve um fato da vida do conde pode ser analisada, conforme a filosofia do Tractatus, nos seus constituintes elementares, e portanto cada proposição tem a sua forma lógica que se mostra na medida em que descrevemos aquele fato. O conjunto delas também mostra a forma lógica, mas a totalidade dá um mostrar diferente, que é o valor ético da vida desse conde. Por isso esse poema é tão interessante, porque se presta a apresentar a distinção entre o mostrar lógico e o ético. É justamente essa relação que permite dizermos que a lógica desempenha um papel importante na filosofia do Tractatus, mas não é essencial para o mostrar místico, porque este ocorre quando vemos o valor ético para além da lógica. É nesse sentido que a lógica e a experiência mística no Tractatus se relacionam. Não é uma relação em que o mostrar místico seria essencialmente dependente do mostrar lógico, mas uma relação na qual o mostrar místico poderia existir, apesar da eliminação do mostrar lógico.


IHU On-Line - O que podemos entender por “jogos de linguagem religiosos na segunda filosofia de Wittgenstein”, tema de sua atual pesquisa?

Paulo Margutti - Muitos autores sugerem que, ao passar para a ideia de jogos de linguagem, Wittgenstein abriu uma porta para a entrada da linguagem religiosa no discurso filosófico. Isso não era viável no caso do Tractatus, em que predominava a análise lógica. Na verdade, esses autores se esquecem dos Diários Secretos de Wittgenstein, nos quais ele constantemente apela a Deus através da oração. Claro que ali havia linguagem religiosa! O difícil é explicar o sentido que ele via nessa linguagem. Na realidade, talvez a Conferência sobre a ética explicite isso, pelo menos um pouco. Através da oração a pessoa diz alguma coisa que não pode ser dita, mas é algo tão importante que é preciso respeitar aquela tentativa, ainda que fracassada. No caso do Tractatus, a posição é tão radical que podemos dizer que é imoral e ilógico dizer tais coisas. Nas Investigações parece que já não é mais imoral ou ilógico. Por isso é que as pessoas dizem que há uma diferença muito grande na filosofia do segundo Wittgenstein. Na verdade, o que vemos ali é a análise lógica tractatiana ser substituída pela noção de jogo de linguagem. E, se levarmos a sério o espírito do pensamento de Wittgenstein, concluiremos que jogos de linguagem religiosos sofrem da mesma dificuldade que os jogos de linguagem metafísicos: eles não conseguem superar as limitações da linguagem e expressar o Absoluto ou a Essência. Mas isso não impede que o mostrar ético esteja presente quando consideramos as sentenças pertencentes a um jogo de linguagem em sua totalidade. O inexprimível continua a se mostrar, inexprimivelmente, através do que é expresso no jogo de linguagem. O mostrar ético ainda estaria presente, embora o tipo de análise da linguagem seja bastante diferente. Apesar de haver uma abertura maior para os jogos de linguagem religiosos, eles ainda tentam dizer alguma coisa que esbarra nos limites da linguagem. Esses limites continuam a existir mesmo no caso das Investigações.


Contemplação silenciosa

Se for correta a interpretação que faço do misticismo em Wittgenstein, este só pode acontecer com base na contemplação silenciosa. Podemos falar, falar e falar. Mas a única coisa importante que acontece é quando estamos calados. Podemos tentar falar, mas vamos fracassar, e esse fracasso pode ser a grande lição para perceber que realmente não se pode falar sobre tal coisa, que deve ser apenas contemplada. Wittgenstein sugere, inclusive, que se deva primeiro ler o Tractatus, antes das Investigações para ter essa compreensão.


IHU On-Line - Rorty aponta que vivemos em um mundo contingente e precário, que nos faz rever crenças em função da mudança constante. Nesse sentido, como a democracia pode ser fortalecida frente à “mobilidade” da fé e das certezas características da pós-modernidade?

Paulo Margutti - É uma pergunta difícil porque o que as pessoas buscam quase sempre são critérios objetivos e garantidos. Nesse mundo globalizado em que vivemos esses critérios estão mais em falta a cada dia que passa. Tenho a impressão que isso só pode ser resolvido pelo diálogo, pelo consenso. As pessoas têm que conversar, e quando surgem novos problemas, muitas vezes é necessária uma reavaliação dos conceitos antigos, de forma que possamos encarar a nova situação. Vou dar um exemplo para explicar essa ideia. Antigamente, a morte acontecia quando o coração da pessoa parava de bater. Havia um conjunto de sintomas que as pessoas admitiam como constituintes do estado de morte. A partir desse momento, a pessoa era tratada como morta. Mas hoje em dia, com o avanço da tecnologia, nem sempre aquilo que se chamava morte continua sendo morte. Agora, uma pessoa sofre um acidente, para de respirar, o coração para de bater, mas, se tiver uma assistência médica rápida, em alguns casos, pode “voltar”. Morreu, mas voltou, dizem. A pergunta é: será que essa pessoa estava realmente morta? Quanto tempo o coração da pessoa deve ficar sem bater para que realmente se possa dizer que ela está morta? Com essa tecnologia toda, uma pessoa fica em estado de coma por anos a fio, presa a aparelhos e isso cria um problema ético grave. Devemos cuidar da pessoa sempre, pois enquanto há vida há esperança. Porém, como fica o caso de um coma de dez anos, ou mais? O que devemos fazer? Desligar, ou não, os aparelhos? O grande desafio está em enfrentar esses problemas com flexibilidade suficiente para resolvê-los sem deixar que os princípios rígidos do passado interfiram na solução. É muito fácil nos deixarmos prender ao passado e aos princípios e não resolver problemas prementes. Isso ocorre em todas as áreas.


Diálogo

Um outro exemplo pode ser encontrado na matemática. Atualmente as pessoas demonstram teoremas usando computadores. No passado os teoremas eram demonstrados por matemáticos. Tomemos o exemplo do famoso teorema das quatro cores. Esse teorema diz que todas as vezes que uma pessoa imprimir um mapa a cores, são necessárias apenas quatro delas para destacar um país dos seus vizinhos. Isso é dificílimo de ser demonstrado. Dois matemáticos programaram um computador para examinar todos os casos possíveis. Depois que o computador fez o trabalho e ficou claro que apenas essas cores eram necessárias, eles tinham que provar que o programa utilizado era exaustivo, que esgotava todas as possibilidades. Se isso ficasse provado, estaria demonstrado o teorema. Isso é completamente fora do padrão matemático tradicional, mas é o que está acontecendo. No começo muitos matemáticos diziam que era “trapaça”, pois não era matemática. Agora, estão constatando que essa “trapaça” é muito útil nas atuais demonstrações matemáticas.
Em algum tempo, talvez cheguemos a uma situação em que seja possível implantar um chip no cérebro das pessoas a fim de que elas possam falar vários idiomas ou mesmo possuir conhecimentos enciclopédicos sem precisar memorizá-los. Isso vai criar outro problema: quem terá acesso a esse chip? E qual é a relação entre quem tem acesso a esse chip com quem não tem? A única maneira de enfrentar essas situações é através do diálogo, da flexibilidade e do uso da imaginação criadora.


IHU On-Line - Por que persiste a rotulação dos ateus como iluministas e dos crentes como fanáticos? Ainda tem sentido falarmos nesses termos em nossa época?

Paulo Margutti - É muito fácil para uma pessoa religiosa se fanatizar subitamente, assim como é fácil para um ateu iluminista apontar a pessoa crente como fanática. Talvez seja mais fácil para quem tem fé compreender o ateu iluminista, do que o contrário. Isso porque o ateu não sabe sobre o que está falando. Wittgenstein fazia uma oposição muito clara a respeito disso. Ele dizia que a oposição entre uma pessoa que diz não crer em Deus e aquela que diz crer em Deus é muito maior do que a simples oposição lógica entre as duas proposições. Porque aquele que diz que não crê em Deus está num universo diferente daquele que diz que crê em Deus. Não se trata de uma simples oposição lógica. Há uma quantidade muito grande de pressuposições e princípios envolvidos dos dois lados, que ultrapassa a mera contradição entre a afirmação e a negação. São duas maneiras de ver o mundo completamente diferentes. Vamos analisar o caso de Richard Dawkins , que fala de Deus como um delírio, uma ilusão. Ele não sabe do que está falando, pois acha que pode provar racionalmente que Deus não existe, que pode contestar todas as provas da sua existência. Se ele disser isso a uma pessoa que crê em Deus, que sente Deus presente em sua vida, irá perder seu tempo, porque essa pessoa que tem fé não precisa de provas sobre a existência de Deus. Provar a existência de Deus para quem tem fé é ridículo, não tem o menor sentido. Quem diz que não acredita em Deus não sente sua presença. Essa pessoa precisa de provas, enquanto a outra, não. Se eu acredito em Deus, como é que vou provar isso para alguém que não acredita que ele exista? A questão não é provar que Deus existe, mas encontrá-lo de alguma forma, dentro de si ou no mundo ou em ambos. Há uma diferença brutal entre essas duas visões de mundo. Enquanto essa diferença for ignorada, o problema vai continuar, irá persistir. Hoje os neoateístas acham que têm todas as condições de provar que Deus não existe. Na realidade, eles não sabem sobre o que estão falando.


IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa publicação, o senhor diz que o pior fundamentalismo de nosso tempo é o islâmico terrorista contra o americano belicista. Qual é a sua análise desses fundamentalismos frente à morte de Osama Bin Laden?

Paulo Margutti - Lembro-me de ter lido uma manchete no The Economist, dizendo que Bin Laden estava morto, mas perguntando se seria possível matar seu sonho. Penso que esse é o problema. A morte de Bin Laden não significa a morte do seu sonho. Para os fundamentalistas islâmicos, ele é um mártir. Sua morte implica em que o ideal árabe foi agredido duramente pelos americanos. Agora, portanto, é a hora do revide, de receberem o troco. E os americanos estão cobertos de razão em terem receio das retaliações, que certamente virão.

Infelizmente, essa situação me lembra a teoria dos jogos, que define uma situação chamada “equilíbrio de Nash”. Nessa situação, nenhum dos jogadores consegue alguma vantagem se mudar unilateralmente a sua estratégia. Como resultado, todos mantêm as suas respectivas estratégias e o jogo atinge uma fase de equilíbrio, em que não há vencedores. Por exemplo, quando duas famílias brigam, e um dos membros de um desses grupos mata uma pessoa do outro, a espiral de violência não para nunca. A revanche é recorrente. No caso dos árabes e dos americanos, a situação de impasse é a mesma. Precisamos nos perguntar o que levou as coisas a tomarem essa proporção.


Terrorismo de estado

É fácil acusar Bin Laden de terrorista, o que de fato ele é. Mas que outra opção os americanos deixaram para os árabes em geral, a não ser o terrorismo? Enquanto os americanos não perceberem que dominar os árabes pela força das armas e da tecnologia tira deles o direito de serem tratados como interlocutores num diálogo de igual para igual, os próprios americanos é que serão considerados terroristas pelos árabes. O fato de os americanos terem invadido o Paquistão, matado Bin Laden nesse país e ter fugido com o corpo dele constitui um ato terrorista. Mas é um terrorismo de estado, contra qualquer tipo de preceito jurídico internacional. Ocorre que os EUA têm feito isso. Acham que são a polícia do mundo por saberem que tem mais poder do que qualquer outra nação. A ONU só serve para os EUA quando está a favor de seus interesses. Quando ela não está, é deixada de lado e passam por cima dela.


IHU On-Line - Assim, o Estado de exceção, para os americanos, tem sido a regra...

Paulo Margutti - Não propriamente uma regra, mas o recurso que eles têm quando a ONU não está a seu favor. Os judeus e americanos precisam se dar conta de que não dão outra opção aos árabes. Os árabes também precisam repensar toda essa situação, pois eles também têm sua parte de culpa. Um dos fatores que pode significar o início da morte do sonho de Bin Laden é a primavera árabe, marcada por esses movimentos em busca de democratização. Eles estão na contramão do sonho fundamentalista. Se tiverem sucesso, alguma coisa pode acontecer no sentido de os árabes se abrirem mais para um diálogo com o mundo Ocidental. Por outro lado, o mundo Ocidental também precisa mudar. E as regras do jogo precisam ser mudadas urgentemente, de maneira consensual. Caso contrário, continuará valendo o princípio: retaliação gera retaliação. O equilíbrio de Nash precisa ser alterado de alguma forma nesse jogo infeliz.


IHU On-Line – Tendo em vista sua participação no Simpósio Margens da Palavra – Veredas Filosófico-Literárias no Brasil, com a conferência sobre “Filosofia na Literatura Brasileira”, qual é o laço que une filosofia e literatura na obra de Rosa , sobretudo em Grande Sertão: veredas?

Paulo Margutti - Já ouvi comparações entre o Grande Sertão: veredas com o Fausto, de Goethe , em função do pacto com o Diabo. A obra de Rosa, do ponto de vista filosófico, envolve uma visão de mundo profundamente religiosa e humana, ao mesmo tempo. Penso que, nesse sentido, a leitura do Grande Sertão pode trazer mais ensinamentos filosóficos do que a leitura de um tratado volumoso de filosofia, exatamente por causa dessa profundidade e intensidade filosófica. Em minha conferência na Unisinos falei, sobretudo, a respeito de filosofia na literatura brasileira. Tentei mostrar que no Brasil, desde nossas origens portuguesas, adotamos uma perspectiva de ceticismo em relação à metafísica, vista como alta especulação que não leva a nada, uma vez que somos pequenos diante deste mundo de Deus. Pensamos que não valemos nada. Metafísica é vaidade. Por isso se costuma dizer que o brasileiro não tem cabeça filosófica. Na realidade, não somos muito dados a esse tipo de especulação. Somos céticos quanto a isso, pessimistas em relação ao mundo, e a solução que vemos é muito mais uma renúncia a esse mundo, encontrando a salvação em Deus. Se a pessoa não acredita em Deus, a solução é a experiência estética, como no caso de Machado de Assis . Assim, procurei mostrar que essa perspectiva é mais facilmente exprimível pelo viés literário do que através do texto filosófico tradicional. Na época colonial, a maior parte das obras filosóficas de peso no Brasil surge pelo viés literário. Depois disso, mesmo com a independência e a manifestação de filosofias mais estruturadas como a de Gonçalves de Magalhães , ainda persiste entre nós essa tendência de expressar nossas intuições metafísicas pelo viés literário. Diversos autores expressam isso muito bem, como Machado de Assis, Augusto dos Anjos , Clarice Lispector , Guimarães Rosa. Não quer dizer que só façamos filosofia desse jeito, mas uma característica importante do nosso pensamento é essa. Deveríamos prestar mais atenção à literatura brasileira porque ela nos ensina muito mais sobre filosofia do que poderíamos imaginar.


Um sertão universal

Guimarães Rosa está claramente dentro disso, sobretudo se pensarmos que ele foi capaz de contar uma história fáustica no sertão brasileiro, baseado no maravilhamento que esse local ocupa em nosso imaginário. Os portugueses viam o Oceano Atlântico como seu grande desafio. Ao chegarem ao Brasil, passaram a ver o Sertão como seu grande desafio. A noção de sertão tem influenciado profundamente o nosso imaginário literário. Alcântara Machado, no último capítulo de Vida e Morte do Bandeirante, dedica-se ao estudo do sertão. Euclides da Cunha fala, igualmente, de maneira magistral, sobre o sertão. Este sempre foi visto como um desafio. Rosa segue na mesma direção. Ele é impressionado pelo drama existencial do sertanejo, e mostra as características fáusticas desse tipo humano peculiar. Contando uma história tão particular, ele consegue atingir o máximo do universal. Aliás, parece que essa é a característica de toda e qualquer boa filosofia e literatura: quanto mais se mergulha no particular, mais se consegue mostrar alguma coisa da condição universal. Nesse sentido, Rosa tem muita relação com a filosofia. Grande Sertão é uma obra que merece ser lida, em que pese a dificuldade de se compreender a linguagem rosiana.


Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3879&secao=362 07 de junho de 2011.

Paul Ricoeur e o desejo de viver

Entrevista interessante sobre o desejo de viver em Paul Ricoeur, vamos conferir, abaixo:


Paul Ricoeur e o desejo de viver
Conservadora dos Arquivos de Paul Ricoeur, Catherine Goldenstein revela memórias da convivência com o amigo filósofo e sua esposa, Simone. Imensa fé no homem era um de seus pontos fortes, assinala

Por: Roberto Lauxen

Um filósofo cuja vida e obra eram inserparáveis. Assim era Paul Ricoeur. Uma de suas características mais impressionantes era o “potente desejo de viver”, recorda a conservadora dos Arquivos de Paul Ricoeur, Catherine Goldenstein. Em entrevista concedida pessoalmente a Roberto Lauxen, que nos enviou o material que segue, ela conta aspectos sobre a convivência com o amigo filósofo e sua esposa Simone Ricoeur. “Se falássemos de um problema, ele dizia muito rapidamente: ‘não podemos permanecer no lamento, é necessário ir mais adiante: propor uma reflexão que permita avançar. Não se trata de lamentar, mas avançar para o futuro’”. E completa: “Velar sobre o movimento que se apaga, mas sobretudo sobre o movimento que se constrói: este foi meu papel desde a morte deste amigo que era para mim Paul Ricoeur”.

Roberto Roque Lauxen é licenciado e mestre em Filosofia. É doutorando do programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale Rio dos Sinos - Unisinos e faz seu estágio de doutorado na École Pratique de Hautes Études – EPHE/Sorbonne com Bolsa da Capes. Tem vasta experiência de docência em nível de graduação e pós-graduação em Filosofia e vários trabalhos publicados na área de Filosofia. É pesquisador da filosofia de Paul Ricoeur.

Madame Catherine Goldenstein foi a colaboradora mais próxima dos últimos anos de Paul Ricoeur, e a quem ele confiou seus arquivos, daí a origem do título de Conservadora dos Arquivos Ricoeur. É a grande impulsionadora e articuladora das atividades do Fundo Ricoeur. Acolhe e auxilia pesquisadores de diferentes partes do mundo que vem aí realizar suas pesquisas. Publicou, junto com Olivier Abel, a obra póstuma Vivant jusqu’a la mort (2007), que são as últimas anotações em vida de Paul Ricoeur, e junto com Jean-Louis Schlegel organizou a coletânea de artigos de Paul Ricoeur Écrits et conférences 1: autour de la psychanalyse (2008).

Confira a entrevista.


Roberto Lauxen - Como você conheceu Paul Ricoeur?

Catherine Goldenstein - Fiz estudos de inglês em Nanterre nos anos 1966-1970. Portanto, ao menos conhecia o nome de Paul Ricoeur. Ele me disse rindo depois de nos conhecermos melhor: “Então, você também lançou-me pedras!”. Já tinha lido e estudado alguns de seus livros. Recordo-me, por exemplo, particularmente do estudo de Virginia Woolf em Tempo e narrativa. Mas quando conheci Paul e Simone Ricoeur num domingo de 1996, na paróquia protestante de Châtenay-Malabry, onde minha família e eu acabávamos de nos instalar, encontrei-os como qualquer dos outros paroquianos: acolhendo e reencontrando uns e outros, cantando, partilhando o pão e o vinho na ceia. Estávamos imediatamente próximos: Simone tinha envelhecido mais rapidamente que o seu marido, e parecia já uma pessoa idosa que tinha manifestamente necessidade de cuidados. Propus ir vê-la e de passear com ela quando estivesse sozinha. Paul Ricoeur estava em muito boa forma; continuava as suas viagens, suas conferências e estava feliz de saber, quando estava distante, que alguém dava assistência à sua esposa. É, portanto, a amizade com Simone que veio em primeiro lugar, apesar da nossa diferença de idade: eu tinha a idade de seus filhos.


Fragilidade

Fiquei imediatamente comovida ao ver Paul Ricoeur tão atento e terno, desamparado também, frente à sua esposa e seus problemas de saúde. Nunca fiquei intimidada, porque sentia demasiado nele não o homem público, mas o homem inquieto, que tinha necessidade de ajuda e da presença amigável, afetiva, para fazer face à doença da sua esposa, e me dizia: “Se apaga como uma pequena vela”. Eu ajudei sem dúvida a diminuir a angústia e a penalidade de um ou outro destes seus momentos. Eu prometi a Simone, que me pedia, de cuidar dele quando estivesse sozinho. E, com efeito, eu acompanhei Paul no luto da sua mulher em 1998 (luto particularmente cruel, pois eram casados desde mais de 60 anos!), e até ao fim da sua vida, em 2005. Habitavam na mesma casa há 50 anos; organizamo-nos para que ele pudesse terminar seus dias ai. Adormeceu para sempre na sua cama, pacificamente, sem tubos em todas as direções acima de sua cabeça, como se vê no hospital.


Roberto Lauxen - François Dosse nos ofereceu uma excelente biografia de Paul Ricoeur, delimitada pelo distanciamento do historiador, mas você viveu junto à família Ricoeur, com Paul e sua esposa Simone. A partir de seu testemunho e memória, o que destacaria como traços característicos do homem Ricoeur?

Catherine Goldenstein - A biografia escrita por François Dosse é notável, foi e permanece para mim um instrumento capital desde que organizo e trabalho sobre os arquivos de Paul Ricoeur. Tudo está lá! Quando penso que Paul Ricoeur nunca tinha visto nem confiado nenhum arquivo pessoal a François Dosse! Foi uma conquista e tanto! E de resto, aí está um detalhe revelador de Paul Ricoeur: ele não iria atender à pessoa que escrevia uma biografia sobre ele, nem lhe confiar arquivos para, sobretudo, não lhe influenciar, tanto mais que ele tinha muito cuidado em não misturar vida privada e vida pública. François Dosse foi muito respeitoso sobre este ponto.

Quanto a mim, é claro, sempre senti a obrigação de uma grande discrição; quero respeitar a confiança que eles depositaram em mim ao me aceitarem na sua intimidade: falar pouco, sempre encontrando o tom certo para falar sobre o que eu testemunhei. É porque estes anos passados preferi testemunhar esta afeição compartilhada não pelo discurso, mas pela ação: trabalhei muito para organizar os Arquivos, colaborei na preparação da biblioteca para a qual se construía uma magnífica concha, na constituição e animação da rede de investigadores e correspondentes - tudo isso que hoje chamamos “o Fundo Ricoeur”. Este investimento no trabalho tem por conseguinte uma motivação profunda, uma necessidade interior.


Retrato de um filósofo

Mas sinto que ainda tenho de dar um testemunho: acrescentar pouco a pouco alguns traços ao retrato do filósofo. Quero dizer, há a filosofia de Ricoeur, acessível nas suas obras publicadas, e há as atitudes fundamentais que se revelam no cotidiano; aquelas que entram em jogo quando se fala de ética. De resto, dizia-me às vezes: “não me faça dizer o que eu não disse! Você vigiará, não é?”; “Se alguém vos interrogardes, vos direis…”; “Trata-se de um testemunho.” Mas veja, fixo-me um caminho estreito entre tudo isso que se pode dizer sem estar a cair nem na futilidade psicológica, nem na narração hagiográfica, que Paul Ricoeur detestava. Dou-vos aqui, muito rapidamente, as pistas que me vêm à mente sobre o que observei.


Uma imensa fé no homem

Ele procurou incessantemente dar a cada um o sentido da sua capacidade/capabilidade (capabilité), através da qual ele encontrou a coragem e a força para agir. Era talvez o que o animava a aceitar ainda, com mais de 85 anos, a participar de múltiplos encontros organizados por grupos de todos os tipos: sindicalistas, políticos, profissionais (assistentes sociais, por exemplo), pesquisadores, religiosos, escolares, universitários. Dirigia-se a cada grupo após ter preparado com cuidado o que conviria à sua necessidade específica, mas sempre a um elevado nível de exigência intelectual para, dizia, “honrar a sua audiência”. Tinha mais de 90 anos quando o vi toda uma manhã de domingo a preparar cuidadosamente o que diria aos habitantes de uma cidade da região parisiense que tinha sido palco de violências comunitárias; uma reunião tinha sido organizada na catedral desta nova cidade. Um bispo, um imã, um rabino e Paul Ricoeur tinham sido convidados para animar esta reflexão. Este domingo após o meio-dia lá, um dia de novembro cinzento e congelado, ele falou longamente na frente de um público bem heterogêneo de cidadãos desta nova cidade, e quando retornou ele confiou-me, incrédulo e ligeiramente chocado: “Era o único que tinha preparado algo! Você percebe! Eu sempre preparo, por respeito com àqueles a quem sou chamado a falar.”

Eu nunca o ouvi relatar conversas indiscretas, fofocas, nunca ouvi tampouco falar mal de alguém. Eu creio que ele teria sido incapaz disso; na pior das hipóteses, ele poderia dizer: “Estou decepcionado com ‘X’...”. Na maior parte do tempo, a conversação seguia ao nível da marcha do mundo.


Avançar para o futuro

Se falássemos de um problema ele dizia muito rapidamente: “Não podemos permanecer no lamento, é necessário ir mais adiante: propor uma reflexão que permita avançar. Não se trata de lamentar, mas avançar para o futuro”; de onde a sua reserva em assinar apenas petições. Denunciar, sim, para propor ir mais adiante. Nunca deixar uma ideia sem conduzi-la até o limiar do que ela pode oferecer.
Não revolver sobre o passado: este revolver não potencializa ... “Não nos lamentemos sobre o que não é mais”, diz ele: “Congratulemo-nos com o que temos”, e era realmente sua atitude básica.
Destaco, ainda, seu potente desejo de viver, e viver com intensidade, sensível até ao fim. Este estado de comunicação permanente no qual ele estava. Os encontros, constantemente renovados, eram um dos motores da sua extraordinária vitalidade.

A sua preocupação de educador: sempre preparar o futuro, passar adiante o que aprendeu, leu, pensou; por seus livros e seus escritos “semear outras almas” de acordo com a expressão de Platão.
Seu temor visceral da violência: a convicção que a humilhação gera o desejo de vingança, que o ciclo da violência não pode então ser parado. Isto na marcha do mundo. A situação na Irlanda incomodava-o muito num certo momento, e evidentemente até a sua morte a situação de Israel; na sequência do 11 de setembro etc. Nas relações interpessoais, o que tornava-o em geral bastante vulnerável é que, ao invés de recusar algo que era-lhe pedido - entrevista, utilização de um dos seus textos, participação numa reunião etc. -, dizia sempre sim, mesmo ainda muito idoso ou sobrecarregado de trabalho, para não ferir ou ofender…
A fidelidade como modo de vida: fidelidade nos compromissos profundos, nas suas escolhas de vida. Sei que é um dos temas importantes da sua filosofia, mas o que eu posso atestar é que era realmente vivida.
Um último ponto a acrescentar - ou quem sabe o primeiro: a obra e a vida eram nele inseparáveis. Ele tinha necessidade de participar até mesmo na sua existência da justa afirmação do seu pensamento. Encontrei sob a sua pluma em 1965 esta observação: “Fazer da filosofia uma espécie de vida”. E isso resume efetivamente o que eu pude sentir junto dele.


Roberto Lauxen - Como Paul Ricoeur procurou conciliar sua vida profissional com sua vida familiar e qual a importância de Simone Ricoeur para a realização de sua imensa obra?

Catherine Goldenstein - Nunca direi o bastante quanto ao papel de Simone Ricoeur. Sua esposa foi capital. Ela era uma das pessoas que, parecendo se ocupar apenas da vida comum, trazia muito mais, trazia um pedestal de solidez sem o qual nada teria podido ser construído. Compreendo que desde que se uniram - tinham sem dúvida 20 anos um e outro –, ela desempenhou um papel fundamental no sistema de vida de Paul. Ela não era filósofa, nem uma intelectual, mas compartilhou toda sua vida e o progresso da sua carreira, os seus compromissos, os seus entusiasmos. Tiveram juntos cinco filhos, uma vintena de netos e bisnetos. Esta vitalidade da sua família congratulava Paul. Mas foi Simone quem assegurou a vida familiar, ouvi um de seus filhos comentar. O único rival que Simone pôde ter em sua vida foi a filosofia! Sei que os filhos sentiram com penalidade também esta rivalidade…

Fazemos em francês a diferença entre “familiar” (familier) e “familial” (familial). As minhas relações com Paul e Simone Ricoeur eram familiais, e permaneceram até a morte de Paul: havia entre nós toda a simplicidade da vida, a divisão de todas as preocupações, os desejos, as esperanças. A vida familiar de Paul existia, mas os seus filhos moravam longe, eram eles mesmos já avós, e não tinham adquirido o hábito da relação familiar com o seu pai: eu sentia certa intimidação recíproca entre eles.


Roberto Lauxen - Nós conhecemos através de muitas entrevistas, artigos e dedicatória de livros de Paul Ricoeur, a referência que ele faz a seus “amigos”, os presentes e aqueles que partiram ao longo de seus 92 anos de vida. Sabemos ainda que ele fez da amizade uma das expressões teóricas de sua ética. Há alguma diferença de sentido na referência que Ricoeur faz a seus amigos?

Catherine Goldenstein – Sim, certamente! Paul Ricoeur era um homem da amizade: é isso que eu entendi nos meus contatos pessoais com ele, as minhas conversas com os seus amigos, de antigos estudantes, e o que encontrei nos arquivos que ele conservou. Falou de maneira filosófica, como você recordou, mas na sua vida, a qualquer idade, isso foi algo de fundamental. Entre o “próximo” - aquele com quem era vinculado por uma vida compartilhada, “aquele que pôde congratular-se do meu nascimento e será afetado pela minha morte” -, e a massa inúmera de homens e de mulheres que não tem rosto, mas que é tocada pela sua obra, há toda uma gama de relações. Primeiro, os seus amigos próximos eram numerosos. E entre a relação interpessoal e a instituição, as inumeráveis ligações contavam para ele: tinha o sentido da comunidade, pensar juntos, mas sem nunca estar a se fechar numa relação ou numa única pertença.


Roberto Lauxen - Como você tornou-se a Conservadora dos Arquivos de Paul Ricoeur e como se constituiu o Fondo Ricoeur? Quais são as particularidades desses Arquivos e o que eles ainda podem nos revelar?

Catherine Goldenstein - Velar sobre o movimento que se apaga, mas sobretudo sobre o movimento que se constrói: este foi meu papel desde a morte deste amigo que era para mim Paul Ricoeur. Eu vejo gradualmente esta existência que começa a se desdobrar como numa história literária: evitar que ela seja parcializada; conservar a unidade: vida-obra, vida-encarnada; mas também, me importo muito com a coesão dos grupos de amigos, de parentes: Estados Unidos, França, Europa, América Latina, Japão. Por toda a parte Paul tinha amigos. Conheci-o ao redor deles quando vinham vê-lo em Paris ou o recebiam. Ele gostava de apresentar-lhes a mim. Por conseguinte, tentei manter estas relações através e em torno do Fundo Ricoeur.

Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3897&secao=363 07 de junho de 2011.

Irresponsável e Vândalo é o governador

Vergonha é ouvir o demagogo governador do Rio de Janeiro chamar os bombeiros de irresponsáveis e vândalos – irresponsável é o governador demagogo do Rio de Janeiro que paga um salário de R$950, 00 para os seus próprios soldados “salvadores de vidas” viver das migalhas ou levá-los a condição de sobrevivência. Vândalo é governo mediático do Rio de Janeiro que usa e abusa da mídia carioca e do país impondo a força física, a coerção e a mentira aos seus saldados aos seus eleitores e cidadãos.
Vamos parar de abuso de poder Cabral, não vivemos na ditadura militar e não queremos viver... vida digna aos saldados “salvadores de vida” – eles são soldados do Estado e não seus soldados
.

Veja o texto abaixo da Folha de São Paulo:



São Paulo, segunda-feira, 06 de junho de 2011

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Rio isola líderes dos bombeiros presos

Estado improvisa espaço para centenas de amotinados na prisão; Cabral elogia lealdade de quem não aderiu à invasão

Bombeiros recebem manifestantes como heróis; 300 pessoas acamparam em frente da Assembleia do Rio

Rafael Andrade/Folhapress

Bombeiro chora em protesto pela libertação de colegas presos, no último sábado, no Rio

ELVIRA LOBATO
MARCO ANTÔNIO MARTINS
DO RIO

DAMARIS GIULIANA
GABRIELA CAESAR
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO

O governo do Rio isolou os líderes dos bombeiros grevistas e improvisou um espaço para mantê-los presos.
Cerca de dez oficiais e lideranças do movimento foram separados do grupo de 439 presos e levados para o Grupamento Especial de Policiamento, em São Cristóvão (zona norte do Rio).
Os outros manifestantes presos, após a invasão do Quartel Central da corporação sexta-feira à noite, foram recebidos como heróis no quartel de Jurujuba, em Niterói, transformado em presídio improvisado.
"Agora, eles estão em casa, sendo tratados por colegas simpatizantes da causa", afirmou o advogado José Ricardo de Assis, que defende quatro oficiais presos.
Um bombeiro que estava de plantão na chegada dos presos, ontem, disse que eles foram recebidos com aplausos e palavras de incentivo.
A solidariedade dos demais membros da corporação preocupa o governo. Ontem, o novo comandante-geral dos Bombeiros, coronel Sérgio Simões, se reuniu com comandantes dos quartéis.
Em nota, o governador Sergio Cabral (PMDB) disse que os 17 mil bombeiros "orgulham o Estado" e que os que "são leais à premissa do salvamento têm e merecem do governo do Rio o diálogo".
Cabral afirmou que os invasores cometeram "um gesto de imensa irresponsabilidade" ao invadir o quartel levando crianças e marretas.
A categoria quer o aumento do piso salarial de R$ 950 para R$ 2 mil. No sábado, Cabral disse que até o final do ano o pleito será atendido.

DEPOIMENTOS
A Folha entrevistou, por celular, três dos detidos: o subtenente reformado Jorge Antonio de Freitas, 55, um sargento da ativa e um cabo que afirmou ser do serviço reservado da corporação.
Os dois primeiros disseram que faltou comida para os presos sábado e que eles passaram a noite em um micro-ônibus. O terceiro contou que fora escalado para se infiltrar entre os manifestantes. "Meu comandante tentou me soltar, mas disseram que lá quem manda era o corregedor. Estou preso até agora."
Os manifestantes podem ser indiciados por motim, danos ao patrimônio público e por impedir a saída de unidades de socorro.
Cerca de 300 bombeiros e familiares acamparam ontem nas escadarias da Assembleia Legislativa em protesto à prisão do grupo.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0606201113.htm 06 de junho de 2011.

Militares, ciências, Educação Popular.

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