Friday, September 30, 2011

Um planeta muito populoso?

Confira o artigo abaixo do Le Monde Diplomatique do Brasil:

DOSSIÊ DEMOGRAFIA

Um planeta muito populoso?

Há muito tempo, líderes políticos têm discutido a evolução da sua população, confundindo número e potência. Atualmente, se soma a questão do envelhecimento, enquanto ressurge o milenar mito da superpopulação, levantado ainda por Platão e Aristóteles, o que revela que; é mais uma questão de cultura que de números


por George Minois



Somos muitos? É preciso controlar a natalidade para cumprir certos objetivos? Operar uma seleção antes do e no nascimento? Incentivar os nascimentos, não importando a qualidade dos pais e sua capacidade de educar os filhos? O homem tem o direito de interferir no processo de procriação? Essas perguntas se colocam desde que existem Estados organizados, com normas culturais e morais.

O espectro da superpopulação voltou à tona em 2008, por causa de uma baixa passageira dos estoques mundiais de alimentos e em razão da acelerada degradação do meio ambiente. Dar uma olhada nos números não é nada reconfortante: 218 mil bocas a mais para alimentar todos os dias no mundo, 80 milhões por ano, um efetivo de trabalho global de quase 7 bilhões, consumo crescente... A população parece ter um peso muito grande em relação aos recursos do planeta.

Mas a humanidade não esperou o início do século XXI para se preocupar com a superpopulação. Quatro séculos antes de nossa era, quando o mundo tinha menos de 200 milhões de habitantes, Platão e Aristóteles já recomendavam aos Estados uma estrita regulamentação da natalidade – o que revela a noção de superpopulação mais como uma questão de cultura que de números. Desde o “Crescei e multiplicai-vos” bíblico, vemos o confronto entre natalistas e simpatizantes do controle de natalidade. Os primeiros denunciam a superpopulação como uma ilusão; os últimos advertem sobre suas consequências.

Durante muito tempo não se dispôs de estatísticas. Como não era possível apoiar-se em dados confiáveis, o debate era acima de tudo filosófico, religioso ou político. Mas ainda hoje, a despeito da massa de dados disponíveis, continuam sendo em larga medida as orientações ideológicas e religiosas que definem o lado de cada um. Falar em superpopulação toca convicções fundamentais sobre a vida e seu valor. Daí a paixão com que o assunto é tratado.

Por milhares de anos temeu-se, sobretudo, um número muito baixo de nascimentos. Houve, no entanto, épocas em que regiões e países inteiros – como a Europa no fim do século XIII e início do XIV – enfrentaram uma grave superpopulação (embora relativa), levando até os teólogos a nuançar suas posições. As considerações morais sobre a castidade ou a “superioridade da virgindade” também entraram em debate, bem como a legalidade das práticas contraceptivas. Enfim, as proibições bíblicas sobre o onanismo (o “crime de Onã”, que derramou sua semente na terra) pesaram durante muito tempo sobre as discussões.

Há quarenta mil anos, com meio milhão de habitantes sobre a Terra, a ameaça de superpopulação podia parecer bastante longínqua. Porém os caçadores necessitavam de um espaço vital que assegurasse seu aprovisionamento de caça: em média, de 10 a 25 quilômetros quadrados por pessoa, o que limitava seriamente o tamanho de cada grupo. Se o número de pessoas vivendo exclusivamente da caça e da coleta fosse além da faixa entre 25 e 50, o grupo ficava exposto a grandes dificuldades de abastecimento. A superpopulação é, portanto, uma noção de geometria variável, estreitamente ligada aos recursos disponíveis. Mesmo assim, sua representação continua sendo a de pessoas comprimidas em um espaço diminuto, como sardinhas em lata.



Eugenista, malthusiano e... xenófobo

O número logo virou uma obsessão. Nas cidades gregas, o relevo impunha uma compartimentação: cada bacia se organizava como cidade independente, em células fechadas de dimensões reduzidas, onde a pressão humana era fortemente sentida; tal situação favorecia a tomada de consciência do fator demográfico. O clima político era pouco favorável à natalidade.

Em seus dois principais diálogos, A repúblicae As leis, Platão define uma população ótima em função do espaço e dos recursos disponíveis, e descreve os métodos de organização e funcionamento social – muitas vezes no limite extremo da realidade – necessários para alcançá-la. Na Política, Aristóteles segue o mesmo caminho: “O que faz a grandeza de uma cidade não é ser populosa”.1De todo modo, segundo ele, “um número grande demais não pode admitir a ordem: quando há cidadãos demais, eles escapam ao controle, as pessoas não se conhecem, favorecendo a criminalidade. Além disso, torna-se fácil para estrangeiros e metecos usurpar o direito de cidadania, passando despercebidos em razão de seu número excessivo”.2 E além do mais, muita gente significa muitos pobres, com o perigo de revolta. Não são tanto os recursos ou a alimentação que inquietam Aristóteles, mas a manutenção da ordem. O pensamento demográfico grego já coloca os termos do debate tal como o encontramos no período moderno e contemporâneo: ele é eugenista, malthusiano e... xenófobo!

Com a extensão do domínio romano, muda-se de escala, mas não necessariamente de mentalidade. A política dos governos é mais natalista. O que constitui ao mesmo tempo uma novidade e um fracasso, pois a fecundidade romana continuou fraca em comparação à de outras civilizações, como evidencia Tito Lívio: “A Gália era tão rica e tão povoada que sua população, muito numerosa, parecia difícil de manter. O rei, já idoso, desejando desencarregar o reino dessa multidão que o esmagava, enviou seus dois sobrinhos mundo afora em busca de novas terras”.3 Propaganda política: sendo muito numerosos, eles atacam seus vizinhos, os romanos, justificando em resposta a invasão da Gália.

Com o cristianismo, entre os séculos III e V, as autoridades abandonam qualquer intervencionismo. A questão da procriação passa do campo cívico e político para o registro religioso e moral. Um intenso debate se estabeleceu em torno dos méritos respectivos da virgindade – apresentada como virtude suprema a ser exaltada –, do casamento – desqualificado em favor do ascetismo – e do segundo casamento – digno de punição. Nesse clima austero, a questão continuava a mesma: deve-se povoar ou despovoar? Ser fecundos ou abstinentes? Para os cristãos, a resposta só podia ser encontrada na palavra divina. Mas os escritos bíblicos se contradizem... O trabalho dos padres da Igreja era mostrar, por força de acrobacias e contorcionismos retóricos, que tais contradições não existem, que Deus tem somente uma palavra, embora tenha ordenado a Adão e Eva que se multiplicassem, e em seguida tenha dito a São Paulo, no Novo Testamento: “É bom para o homem abster-sede sua esposa”.A tarefa não é fácil, mas, para os teólogos, nada é impossível. Porém, o Velho Testamento não traz nenhuma ambiguidade: “Crescei, multiplicai-vos, sede fecundos”.E prolíficos...



O povo, riqueza e flagelo

A relativa superpopulação da Idade Média teve efeitos muito concretos. Desde o fim do século XI, os ocidentais souberam explorar o peso do número. Eles tomaram consciência de sua superioridade numérica e fizeram dela uma arma. O papa Urbano II, em 1095, enviou hordas de cavaleiros a Jerusalém. Toda a epopeia das Cruzadas foi sustentada por um fluxo contínuo de Oeste para Leste, que não teria sido possível sem um excedente de população no seio da cristandade.

Assim seguiu o mundo ocidental até o início do século XIX. Homens da Igreja, intelectuais, teólogos, filósofos e escritores revezaram-se na teorização sobre a questão demográfica, navegando entre o medo do transbordamento e o trauma do grande vazio, as utopias natalistas e a inquebrantável fé na ordem divina como potência reguladora da presença do ser humano na Terra. O vulgum pecus, o povo, ora era visto como um flagelo, ora como uma riqueza. Todos desenvolveram suas explicações e formularam suas recomendações, embora a ferramenta estatística continuasse muito deficiente. Subpopulação, superpopulação: ao longo dos séculos, travou-se uma batalha furiosa entre aqueles que consideram uma mais arriscada que a outra para a sobrevivência da espécie humana.

A obra de Thomas Malthus,4 na virada do século XVIII para o XIX, é um divisor de águas na história das teorias demográficas. A população, afirma o economista e pastor britânico, aumenta mais rápido que a produção de alimentos, o que inevitavelmente conduzirá à superpopulação e à fome em grande escala. Ou deixamos assim, e as consequências serão brutais e dolorosas, com a natureza encarregando-se de eliminar o “excedente humano”; ou realizamos o controle de natalidade, começando por suprimir qualquer assistência aos pobres, a fim de incutir-lhes “responsabilidade” – sendo atitude “responsável” casar e ter filhos apenas quando estiverem garantidos os meios para alimentá-los e educá-los. Segundo Malthus, a rápida disseminação da miséria é um risco para a humanidade; é preciso, portanto, erradicá-la.

Pierre-Joseph Proudhon respondeu que não havia problema de superpopulação. Se a miséria se propaga, é por causa do sistema iníquo de propriedade que confere a alguns um poder injusto sobre os outros. Karl Marx, pouco interessado na questão demográfica em si, considerava Malthus um inimigo da classe trabalhadora, referindo-se a ele como “insolente sicofanta das classes dirigentes, culpado do pecado contra a ciência e de difamação da raça humana”.5 Marx acusa Malthus de acreditar em um “princípio da população”, lei natural absoluta, válida em qualquer momento e em qualquer lugar, que faria com que a população aumentasse sempre com mais rapidez que os recursos: “Essa lei da população abstrata só existe para as plantas e os animais, à margem da intervenção histórica do homem. O que importa não é o número de seres humanos, mas a repartição das riquezas”.6

Esses debates prosseguiram até meados do século XX, quando a humanidade entra em um crescimento desenfreado: 3 bilhões de pessoas em 1950; 6 bilhões em 2000. Já não se trata de crescimento, mas de uma explosão. Os demógrafos, economistas, geógrafos, além dos filósofos, historiadores, etnólogos e, claro, os políticos, ficaram divididos quanto à interpretação do fenômeno. Aos defensores da vida prolífera, independentemente de sua qualidade, os realistas opõem o necessário controle da procriação. Uns negam o próprio conceito de superpopulação, falando em desenvolvimento desigual; outros denunciam a loucura assassina dos natalistas, que condenam centenas de milhões de pessoas a morrer de fome. Na década de 1980, entram na conta as questões ambientais e ecológicas.



10 bilhões de habitantes

Na virada do século, os antimalthusianos buscam tranquilizar, apoiando-se nos fenômenos de transição demográfica em curso: as taxas de fecundidade estão desmoronando em todos os lugares, mesmo nos países muito pobres. Oque só confirma a “revolução demográfica” sugerida em 1934 por Adolph Landry, mostrando que, com o enorme crescimento da produção de bens, o problema da relação população/recursos seria superado. A partir daí, o ótimo populacional deveria visar a noção cultural de “felicidade” – noção qualitativa, não quantitativa.

Assim, a população se estabilizaria em torno de 9 bilhões de pessoas por volta de 2050, e 10 bilhões até 2150. Dado que este planeta – garante a maioria dos demógrafos – seria capaz de alimentar 10 bilhões de habitantes, como ele poderia estar “superpopuloso” com 7 bilhões? Se há no mundo um bilhão de pessoas subalimentadas e o dobro disso de pobres, talvez seja, afinal, em razão de uma má repartição dos recursos. Mas é desejável atingir esse número? Afinal, o empilhamento de 10 bilhões de pessoas, mesmo bem alimentadas, continua sendo um empilhamento de gente...

Em 1997, Salman Rushdie escreveu uma Carta ao sexto bilionésimo cidadão do mundo,7 que acabava de nascer: “Como mais novo membro de uma espécie particularmente curiosa, você logo se fará as duas perguntas de US$ 64 mil [N. E.: PIB per capita aproximado dos EUA] que todos os outros 5.999.999.999 se fazem há algum tempo: como chegamos aqui? E agora que estamos aqui, como vivemos? Podemos sem dúvida sugerir que a resposta à questão das origens requer que você acredite na existência de um Ser invisível, inefável, ‘lá de cima’, em um criador onipotente que nós, pobres criaturas, não conseguimos perceber, e muito menos entender... Por causa dessa fé, foi impossível para muitos países evitar que o número de seres humanos crescesse de forma alarmante. A superpopulação do planeta deve-se, pelo menos em parte, à loucura dos guias espirituais da humanidade. Ao longo de sua vida, você verá sem dúvida a chegada do nono bilionésimo cidadão do mundo. E se muitos homens nascem em parte por conta da oposição religiosa ao controle de natalidade, muita gente ainda morre também por causa da religião...”.

Treze anos depois, em 2011 ou, no mais tardar, início de 2012, espera-se a chegada do sétimo bilionésimo cidadão do mundo. Esse pequeno tem sete chances em dez de nascer em um país pobre, em uma família desfavorecida. Devemos enviar-lhe uma carta de boas-vindas, ou uma carta de desculpas?

George Minois

Demográfo.




THOMAS ROBERT MALTHUS

“Acredito poder defender honestamente dois postulados: em primeiro lugar, que a comida é indispensável à existência do homem; em segundo lugar, que a paixão recíproca entre os sexos é uma necessidade que permanecerá mais ou menos igual ao que ela é no presente. Afirmo que o poder multiplicador da população é infinitamente maior que o poder da terra de produzir a subsistência do homem.”



“Se não for contida, a população cresce em progressão geométrica. A subsistência somente cresce em progressão aritmética… Os efeitos desses dois poderes desiguais devem ser mantidos em equilíbrio por meio dessa lei da natureza que faz a comida ser uma necessidade vital para o homem.”

Ensaio sobre o princípio da população, 1798.



PIERRE-JOSEPH PROUDHON

“Há somente um homem excedente na Terra: Malthus.”

O sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria, 1848



MAQUIAVEL

“Uma nação não pode estar completamente repleta de habitantes, e estes não podem conservar entre eles uma repartição igual, pois todos os lugares não são igualmente salubres e férteis: os homens abundam em um lugar e faltam no outro. Se não é possível remediar essa distribuição desigual, a nação agoniza porque a falta de habitantes torna uma parte deserta, e a outra fica empobrecida por seu excesso de gente.”

Histórias florentinas, 1520-1526.


Palavras chave: Demografia, teorias, envelhecimento, economia,

http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=962 acesso em 30 de setembro de 2011.

Revoluções

Revoluções - tema do Le Monde Diplomatique do Brasil, segue um pequeno artigo sobre o assunto:

A volta das revoluções

Corbis / Latinstock

Mais de 20 mil pessoas participam, em julho de 2011, de protesto contra o governo de Sebastian Piñera em Valparaíso, Chile

por Silvio Caccia Bava

As revoluções estão de volta. Elas ocorrem quando menos se espera e muitas vezes surpreendem por seus protagonistas se constituírem como novos atores políticos. São processos que começam em razão de alguma violência, arbitrariedade ou discriminação, uma faísca num contexto de opressão, e não se sabe como terminam ou de que propostas de transformações são portadoras.

Só podemos compreender seus significados e potencialidades se construirmos para isso uma abordagem histórica. Por exemplo, uma história da opressão e da exploração, seja dos trabalhadores nas fábricas, que dá origem ao sindicalismo estadunidense; ou das mulheres, que dá origem ao movimento feminista; ou ainda dos homossexuais ou dos grupos indígenas, que defendem seus direitos.

Em uma revolução, o que está em causa é o poder. Destituir o poder opressor e criar novas formas de governar no interesse dos grupos que assumem o poder. Muitas vezes, quando a revolução ocorre, as aparentes identidades dos grupos oprimidos se desfazem e abrem campo para disputas, muitas vezes cruéis, entre os grupos que buscam a instituição da nova ordem. As contradições internas às revoluções são também algo importante de ser compreendido.

As lutas contra o jugo colonial, pela emancipação nacional, também fazem parte do repertório das revoluções. Essas lutas vão desde as lutas pela independência na América Latina e na África, por exemplo, contra as potencias europeias que as colonizavam; até as lutas anti-imperialistas do século XX e que adentram hoje o século XXI.

Mais recentemente, a Primavera Árabe nos traz surpresas. Povos que viveram por décadas a opressão de regimes autoritários, a partir das mobilizações bem sucedidas da Tunísia e do Egito, resolveram se sublevar e estão transformando radicalmente o cenário geopolítico do Oriente Médio e do Norte da África.

No mundo de hoje, globalizado, as experiências em qualquer país podem se transformar em referências para o mundo inteiro. E o sucesso das mobilizações que derrubaram os governos autoritários da Tunísia e do Egito mostrou o caminho da insurgência para muitos outros povos. Talvez tenham até estimulado o surgimento do movimento dos indignados, na Europa.

Mas nem sempre as revoluções garantem dias melhores. Muitas delas, ao longo da história, foram apropriadas por grupos de poder, contrariando até mesmo suas próprias bandeiras. Daí a importância da análise e da compreensão dos seus significados, simbólicos e políticos.

Esta edição da revista Dossiê 07 traz para você um pouco da história das revoluções e de como ela é contada, seja por seus protagonistas, seja por historiadores, seja pela literatura, na luta pela liberdade. Este olhar sobre o passado e o presente pode nos ajudar a entender o mundo em que vivemos.

Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.

Fonte: http://diplomatique.uol.com.br/edicoes_especiais_editorial.php?id=7 acesso 30 de setembro de 2011.

Homenagens aos 90 ano de nascimento de Henrique Cláudio de Lima Vaz

A revista IHU preparou uma série de entrevistas sobre Henrique Cláudio de Lima Vaz, vale a pena conferir no site da revista http://www.ihuonline.unisinos.br
Abaixo segue uma das entrevista:

Será a humanidade absorvida pelo mundo dos objetos, hoje virtuais? Uma pergunta que não cala
"Vaz foi dos primeiros a fazer a metacrítica teórica à razão instrumental, aceitando soberanamente o rótulo de se ter tornado reacionário. O que nunca foi", assevera Marcelo Fernandes de Aquino

Por: Márcia Junges

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"Entre os séculos XVII e XIX d.C., o agora do ato de filosofar – sua modernidade – não se eleva mais a um fundamento transmundano e transtemporal para assegurar as pretensões de seus métodos. A razão calculadora reorganiza os traços comuns do sistema simbólico, ou sistema das razões, da civilização que se colocara sob a regência do logos filosófico greco-cristão. Lima Vaz o denomina, inicialmente, idade pós-sacral, cultura pós-teísta, em seguida modernidade pós-moderna, fixando-se finalmente em modernidade pós-cristã", afirma Marcelo Fernandes de Aquino, professor e pesquisador do PPG em Filosofia da Unisinos e reitor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.

O Prof. Dr. Pe. Marcelo Fernandes de Aquino é pós-doutor em Filosofia pelo Boston College, Estados Unidos. Especialista em Hegel, fez doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde também obteve dois títulos de mestre, em Teologia e em Filosofia. Realizou graduação em Filosofia na Pontifícia Faculdade Aloisianum, Itália, e especialização em Filosofia na Hoschschule für Philosophie, em Munique, Alemanha. Foi reitor do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, MG. É autor de O conceito de religião em Hegel (São Paulo: Loyola, 1989).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Poderia explicar em que consiste a tríade que compõe o sistema vaziano: Antropologia, Ética e Metafísica? Quais são as relações que se estabelecem entre esses aspectos?

Marcelo Fernandes de Aquino - Antes de tudo, é preciso esclarecer a significação da ideia de sistema no pensamento de Lima Vaz. Segundo ele, o termo sistema é a transliteração do grego sýstema, proveniente do verbo synistánai, synistemí, que significa “estar de pé” ou “estou de pé”. Da acepção metafórica inicial aplicada a significar “conjunto” ou “reunião”, o termo sýstema foi empregado para designar o discurso (logos) cujas partes se interrelacionam por meio de conexões lógicas de sorte a formar um todo ordenado segundo critérios de natureza lógica. Melhor, significa um todo ordenado linguisticamente segundo critérios de natureza lógica cujas partes se interrelacionam por meio de conexões lógicas.
Para Vaz, a ideia de sistema é uma das raízes da civilização que ao longo de 26 séculos coloca a razão demonstrativa no centro do seu universo simbólico. Esse construto especulativo propõe-se pensar a liberdade ou unir dialeticamente liberdade e razão. Nele a liberdade não é exterior à razão. É intrínseca ao movimento de sua autoconstituição, ou, antes, é essa autoconstituição mesma. O desafio maior inerente à ideia de sistema é o de pensar a liberdade no próprio coração da necessidade racional que preside a construção do sistema das razões universais, e instaurar, assim, uma ordem translúcida às razões individuais numa história enfim sensata.

O problema das relações entre Sistema e Liberdade, para Vaz, configura uma opção intelectual básica cujas repercussões marcam profunda e decisivamente a história espiritual do ocidente. Se a razão demonstrativa é, por essência, sistemática, e se o sistema postula uma homologia com a realidade, onde situar a liberdade no interior do sistema? Essa é uma questão decisiva que, segundo ele, de Platão a Hegel, impele o desenvolvimento da ideia de sistema na filosofia ocidental.

Antropologia, Ética e Metafísica são dimensões fundamentais do discurso filosófico do todo. Essa ordem da exposição sinótica proposta por Vaz reflete a seriação cronológica do aparecimento dos livros Antropologia Filosófica, Introdução à Ética Filosófica e Raízes da Modernidade profundamente imbricada com as vicissitudes pessoais e as contingências históricas do existir individual de Lima Vaz. Não creio que esta ordem exponha o entrelaçamento do tempo histórico e do tempo lógico que tecem a trama da história da filosofia como intrínseca ao próprio ato de filosofar em favor da qual ele tanto se empenhou, nas aulas, nas conferências, nos escritos e nas conversas ao longo de sua fecunda atividade filosófica.

O leitor atento saberá matizar a eventual aproximação com a doutrina hegeliana dos três silogismos apresentada como fecho da exposição do Espírito Absoluto na Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Antes de tudo, seria o caso de aproximar Antropologia e Ética para entender o desenho e a envergadura especulativa da eventual doutrina vaziana do Espírito, nas vertentes subjetiva e objetiva. Pari passo, reconstruir a Filosofia da Natureza que Lima Vaz deixou nas notas e apostilas de cursos que deu em diferentes ocasiões e instituições.
Lembro que ele foi aluno e privou de intensa proximidade intelectual do Pe. Roser, fundador do Instituto de Física da PUC-Rio. Creio ter sido uma pena ele não ter dado continuidade à sua aproximação das categorias da mecânica da relatividade, pois ele teria feito com ela, o que Kant logrou fazer com as categorias da mecânica newtoniana.

IHU On-Line - De que forma a obra filosófica de Pe. relê criticamente a modernidade, diagnosticando sua crise?

Marcelo Fernandes de Aquino - Para Lima Vaz, a história intelectual da razão ideonômica que se desdobra de Platão a Hegel segue o curso das vicissitudes histórico-teóricas da noção de Ser na sua procedência aristotélica, passando pela inflexão henológica de Plotino , pela interpretação da especulação árabe, sobretudo aviceniana, pela recepção e evolução no pensamento latino-medieval desde as primeiras indicações de Boécio até seu apogeu metafísico no século XIII com Tomás de Aquino, pela inflexão desencadeada por Duns Scotus, pela sistematização suareziana do século XVI e sua posteridade na ontologia moderna de matiz cartesiano.

O significado desse curso histórico-conceitual é a passagem da concepção polissêmica ou analógica da noção de Ser da tradição aristotélico-tomásica para a concepção monossêmica ou unívoca de Ser da tradição escotisto-suaresiana. Duns Scotus , Guilherme de Ockham e Francisco Suarez anunciam outro ciclo de modernidade que eclode, grosso modo, com Descartes . Kant e Hegel o levam a sua completude. Feuerbach , Marx, Nietzsche, Freud são seus construtores maiores.

Como consequência dessa transformação da razão ideonômica em razão hipotético-dedutiva, esta história intelectual acompanha a rota da reformulação da metafísica em sistema, segundo a acepção deste termo consagrado na epistéme moderna. Essa transformação assinala o abandono da concepção da metafísica como ciência estruturalmente aberta no seu procedimento mais elevado como ciência do Absoluto ou theologia, para a concepção da metafísica como sistema fechado, de natureza axiomático-dedutiva, regido pelos princípios de causalidade e razão suficiente e pela noção unívoca de ser.
Entre os séculos XVII e XIX d.C., o agora do ato de filosofar – sua modernidade – não se eleva mais a um fundamento transmundano e transtemporal para assegurar as pretensões de seus métodos. A razão calculadora reorganiza os traços comuns do sistema simbólico, ou sistema das razões, da civilização que se colocara sob a regência do logos filosófico greco-cristão. Lima Vaz o denomina, inicialmente, idade pós-sacral, cultura pós-teísta, em seguida modernidade pós-moderna, fixando-se finalmente em modernidade pós-cristã.
O pensamento do mundo e do tempo, nos sucessivos ciclos da modernidade pós-cristã, passa a ser acompanhado pela intenção de efetivo e definitivo instalar-se no próprio tempo. A História passa a ser o primum ontologicum na fundamentação das razões da filosofia, o agora do ato de filosofar. As linhas fundamentais da representação do mundo e do tempo passam a ter outro traçado.

IHU On-Line - Qual é o impacto da filosofia de Hegel no pensamento vaziano? Em que aspectos Lima Vaz conserva e supera o hegelianismo?

Marcelo Fernandes de Aquino - Vaz considera a filosofia hegeliana como uma filosofia que pensa a liberdade no próprio coração da necessidade racional que preside à construção do sistema das razões universais e tende a instaurar uma ordem translúcida às razões individuais, numa história enfim sensata. Tenta remodelar – com que resultado? - a estrutura teórica da metafísica tomásica em chave dialética de inspiração hegeliana.
Inicialmente, procede por síntese dialética do simples ao complexo, para então seguir por procedimento analítico do complexo ao simples. A remodelação dialética do método metafísico desenhada por Lima Vaz diz respeito a um caminho do logos através de oposições que se apresentam tanto na ordem real quanto na ordem nocional, que o logos integra numa unidade superior. Oposição significa sempre distinção dos termos que se opõem. Oposição real implica uma distinção real dos seus termos. Oposição nocional implica distinção de razão dos conceitos que se opõem.
O procedimento dialético para Lima Vaz traduz a lógica intrínseca, o dinamismo próprio da inteligibilidade do conteúdo, da qual sua consideração e avaliação são inseparáveis. Não se deixa guiar por rígida necessidade em termos de lógica formal cujo procedimento aplica formas lógicas ao conteúdo que lhe é exterior. O caminho dialético avança através de opções ontológicas, onde razão e liberdade interagem para responder ao desafio das oposições que se manifestam na realidade. A afirmação “alguma coisa é”, segundo ele, constitui o conteúdo inteligível mais elementar do método dialético. Mediante o argumento de retorsão se exprime logicamente pelo princípio de não-contradição, suprassume a oposição mais primitiva que opõe o ser ao nada. Esse é o fundamento a partir do qual se forma a oposição do uno e do múltiplo que sobrelevada na relação de alteridade, dá início ao caminho da metafísica.

A síntese dialética percorrida por Lima Vaz aplica-se primeiramente à esfera do Esse absoluto, em seguida à esfera dos esse relativos. Parte da intuição e afirmação originais do esse e desenvolve as implicações lógico-dialéticas dessa posição inicial. A intuição do esse, no roteiro vaziano, não é uma intuição pura, a priori. Ao termo do percurso, obedecendo a procedimento analítico, retorna ao princípio. Instaura-se uma totalidade de estrutura dialética que realiza a natureza de um sistema aberto, já que seu termo é o reconhecimento de um hiato metafísico infinito, intransponível pelo discurso e que separa a esfera dos esse relativos da esfera do Esse absoluto e com ela a articula pela via da causalidade. Penso que na fase final de sua jornada filosófica, Lima Vaz tornou-se reticente quanto ao projeto hegeliano e, sem dúvida, quanto à própria modernidade pós-cristã.

IHU On-Line - Em que medida Lima Vaz procura responder ao avanço prodigioso da razão técnica e sua indigência ética, bem como ao niilismo na cultura que vem se firmando na modernidade pós-cristã? A partir dessa percepção, em que aspectos sua filosofia promove uma reflexão e uma crítica ao paradoxo da racionalidade ao qual estamos submetidos?
Marcelo Fernandes de Aquino - Segundo Vaz, os herdeiros de Duns Scotus aprofundaram o abandono da concepção da metafísica como ciência estruturalmente aberta no seu procedimento mais elevado como ciência do ser absoluto ou theologia pela concepção da metafísica como sistema fechado, de natureza axiomático-dedutiva regido pelos princípios de causalidade e razão suficiente e pela noção unívoca de ser. O conceito unívoco de ser da metafísica escotista recupera a primazia da essência inerente à metafísica grega.
Transformará profundamente a configuração do campo noético-especulativo sobre o qual se edificou a metafísica greco-cristã. Traçará o horizonte último da epistéme moderna. A idéia de Deus e sua nomeação filosófica, nesta primeira figura da modernidade pós-metafísica, migram da noção de ser do paradigma ideonômico clássico para o da onto-antropologia moderna. Inaugura-se o primeiro ciclo moderno do “fim da metafísica”, ao cabo do qual a antropologia passa a ocupar o lugar antes reservado à metafísica. Seu desdobramento resultará no advento da metafísica da subjetividade e, finalmente, na modernidade pós-metafísica. O niilismo contemporâneo será o ponto de chegada desta pretendida desconstrução da metafísica.

A teoria da representação desenhada pelo nominalismo tardo medieval suprimiu, pelo menos virtualmente, a distinção aristotélica entre as três grandes formas de conhecimento, o teórico, o prático e o poiético. Um campo ilimitado de possibilidades de referir-se ao objeto – na sua verdade, bondade ou utilidade – como sendo um ergon, isto é, um produto da atividade poiética do próprio sujeito abre-se para o sujeito nesta concepção que privilegia a representação como sendo o objeto imediato da intenção cognoscitiva. O espaço da representação submete o objeto aos procedimentos operacionais definidos e estabelecidos pelo sujeito, inaugurando novo estilo de trabalho teórico. Este novo estilo de trabalho teórico dá origem à forma de razão estruturalmente operacional, isto é calculadora, e à ciência físico-matemática. Razão calculadora e ciência físico-matemática são raízes da revolução científica, que transformou profundamente as referências do universo mental do ocidente, tornando possível a revolução tecnológica que criou para os humanos um novo mundo de objetos. Seremos absorvidos em nossa humanidade por este prodigioso mundo de objetos, hoje virtuais? Esta era a pergunta que não se calava a Lima Vaz em seus últimos anos de vida.

IHU On-Line - Qual é a importância do legado filosófico e teológico de Lima Vaz para a filosofia brasileira?

Marcelo Fernandes de Aquino - Antes de tudo, como ser humano, Lima Vaz nunca negociou suas convicções mais profundas no altar da fama. Nunca traiu os jovens que nele confiaram por medo da violência física, ou por conveniência aos vários oportunismos que rondam a vida intelectual brasileira. Cometeu acertos e erros sem escamotear sua fé cristã e sem esconder que era um sacerdote jesuíta.

Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4087&secao=374&limitstart=1 acesso em 30/09/2011

Militares, ciências, Educação Popular.

A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lóg...