Tuesday, June 17, 2014

Ataques à greve dos metroviários são símbolo da criminalização das lutas trabalhistas


Ataques à greve dos metroviários são símbolo da criminalização das lutas trabalhistas

Para sindicalistas e especialistas, repressão policial, multas pesadas, limitação a novas paralisações e autorização para demitir grevistas podem intimidar mobilizações de outras categorias.
A reportagem é de Rodrigo Gomes e publicada pela Rede Brasil Atual – RBA, 16-06-2014.
Especialistas e dirigentes das centrais sindicais avaliam que as reações do governo de Geraldo Alckmin (PSDB) e da Justiça do Trabalho contra a greve dos metroviários de São Paulo são sintoma de um avanço da criminalização dos movimentos de trabalhadores no país, que seguem à mercê de repressão física e jurídica, mais ainda com a perspectiva de mudanças na legislação pertinente às greves no serviço público. Um relatório da Comissão Mista do Congresso Nacional propõe maior rigidez sobre a ação grevista nos serviços públicos, elevando praticamente todas as categorias do funcionalismo a "serviço essencial", além de definir que a greve só pode ocorrer com paralisação parcial e nunca com 100%.
O relatório da comissão é de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR) e proposto como substitutivo ao Projeto de Lei do Senado (PLS) 710, de 2011, do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP). O tucano já havia elevado de 11 para 21 os serviços considerados essenciais e Jucá somou à lista outros dois, incluindo, por exemplo, os serviços diplomáticos e de educação infantil e fundamental, implicando quase todas as categorias nessa condição.
Ambos os textos fixam um percentual mínimo de trabalhadores que devem permanecer nos postos durante o movimento grevista. O "piso" de trabalhadores que devem continuar na ativa em caso de greve, pelo projeto de Jucá, ficaria em 50% da categoria, em qualquer caso. Se o serviço é considerado essencial, o percentual sobe para 60%. E no caso da segurança pública, passaria a ser obrigatório que 80% dos trabalhadores sigam nos postos. A lei é dura: se esses percentuais forem desrespeitados, a greve será imediatamente considerada abusiva, sem necessidade de julgamento da Justiça do Trabalho sobre o assunto.
Lei 7.789, de 1989, que trata do "exercício do direito de greve" não define um mínimo de trabalhadores em atividade nos serviços essenciais, mas coloca a questão como responsabilidade de trabalhadores e patrões, que devem definir o percentual em comum acordo. A nova norma, que independe de diálogo entre trabalhadores e patrões, retira os empregadores inteiramente do debate.
A mesma norma define 11 serviços como essenciais, como, por exemplo, o tratamento e o abastecimento de água, a assistência médica e hospitalar, o transporte coletivo e o controle de tráfego aéreo. "Essa proposta vai destruir aquilo que nós conquistamos com a Constituição de 1988. É acabar com o direito de greve", avalia a secretária de Relações do Trabalho da CUT, Maria das Graças Costa. "Qual será a representatividade de uma greve em que 60% da categoria continua em suas funções?", questiona.
Para a dirigente, esse tipo de proposta, aliada a decisões como a do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, que expediu liminar para que os metroviários mantivessem 100% dos servidores trabalhando em horários de pico, e pelo menos 70% no restante do tempo, ao custo de multa de R$ 100 mil por dia pelo descumprimento, são demonstrações de que existe, no Brasil, um forte movimento para calar os trabalhadores, vindo principalmente da Justiça. "O direito de greve está sendo massacrado, tanto no setor privado como no público."
Após o descumprimento, por parte do sindicato, da determinação sobre a quantidade mínima de trabalhadores na ativa, a Justiça impôs uma segunda multa, de R$ 500 mil por dia, para impedir a continuidade da paralisação. A Justiça Trabalhista decidiu ainda pelo desconto dos dias parados e autorizou a demissão de grevistas – o que se realizou no dia seguinte ao julgamento, dia 9 passado, quando 42 dirigentes e delegados sindicais foram dispensados por justa causa. Dias antes, o governo paulista já havia recorrido à força da Tropa de Choque da Polícia Militar para acabar com um piquete na estação Ana Rosa, da Linha 1-Azul do Metrô.
Graça Costa destaca que a situação de repressão não se dá somente em São Paulo e lembra o pedido de prisão contra a presidenta do Sindicato Único dos Trabalhadores no Serviço Público de Blumenau (SC), Sueli Adriano, no início deste mês. "Isso se deu porque, após a decisão da Justiça, os trabalhadores decidiram, de forma unânime, continuar a greve iniciada em 21 de maio por um reajuste salarial que reponha 20 anos de defasagem". A paralisação dos servidores prossegue.
"Essas decisões estão impactando muito severamente a organização sindical e a liberdade de organização dos trabalhadores", complementou Graça Costa. Para ela, o governo federal e o Congresso deveriam, em primeiro lugar, garantir o cumprimento da Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da liberdade sindical.
Para o especialista em direito Jorge Luiz Souto Maior, a questão é ainda mais grave e histórica. "O Brasil sempre foi um estado repressor aos trabalhadores. Historicamente, o direito de greve ainda está por ser construído", avaliou. Para ele, a legislação de 1989 já pode ser considerada restritiva e caminha para se tornar ainda pior graças aos textos em discussão no Congresso. "Em vez de avançarmos, estamos retrocedendo", afirmou.
O especialista considera que os únicos atos de ilegalidade durante o processo da greve, iniciado dia 5 último, foram do governo estadual e do judiciário. "Os trabalhadores seguiram todos os passos da legislação para a realização da greve. A série de ilegalidades que se viu foram as ações para afastá-los da greve", explica. Entre elas, Souto Maiordestaca a imposição de 100% de operação dos trens em horário de pico, não se dispor a negociar esse atendimento mínimo e o uso de força policial para impedir piquetes.
A Justiça do Trabalho chegou ainda a congelar preventivamente R$ 3 milhões do Sindicato dos Metroviários de São Paulo para garantir o pagamento das multas pelas paralisações que se concretizaram após o julgamento do TRT, que somam R$ 900 mil, e também das que poderiam ter ocorrido, caso os trabalhadores seguissem com a greve por mais dias. Criticado pelo golpe às finanças da entidade, o tribunal voltou atrás e definiu o congelamento do valor exato das multas devidas.
"Fica transparecendo que, de fato, há uma represália para meter medo na classe trabalhadora. E não só nos metroviários, mas em todos os trabalhadores", pondera Souto Maior.
Uma situação semelhante ocorreu em 1995, quando os petroleiros realizaram uma paralisação nacional que durou 32 dias, com o objetivo de impedir a privatização da Petrobras. O Tribunal Superior do Trabalho julgou a greve abusiva no sétimo dia e o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) demitiu 88 trabalhadores e puniu centenas com suspensões e advertências. Cada um dos 20 sindicatos estaduais que participaram da paralisação recebeu multa de R$ 2,1 milhões.
Apenas em 2003, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Palácio do Planalto, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) conseguiu a anistia contra 88 demissões, 443 advertências, 269 suspensões e 750 punições de trabalhadores que participaram das greves.
Há reações contra a intransigência do Metrô e do governo paulista, mas tímidas. Nesta sexta-feira (13), a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego autuou o Metrô por atitude antissindical devido às demissões. O superintendente Luiz Antônio de Medeiros afirmou em entrevista coletiva, logo após a assembleia dos metroviários que decidiu por não realizar greve ontem (12), na abertura da Copa do Mundo, que "o Metrô desrespeitou as leis brasileiras e internacionais sobre direito de greve. Os fiscais constataram que as demissões se deram por prática antissindical e não por supostos atos violentos."
As centrais também apoiaram os trabalhadores grevistas e os presidentes das entidades participaram inclusive de reuniões de negociação, buscando a reintegração dos 42 trabalhadores demitidos.
Para o presidente da CUT, Vagner Freitas, houve uma ação claramente antissindical contra a greve dos metroviários e essa postura política deve ser enfrentada por todas as categorias. "Tentou-se limitar o sindicato pelo viés econômico. Usou-se a força policial para intimidar os trabalhadores, não só os metroviários, em sua organização. Nós estamos atentos a isso e vamos combater essas práticas a cada minuto."
O presidente da UGT, Ricardo Patah, ressaltou que a greve não pode ser limitada, pois é um direito constitucional. E considera que houve exagero de todas as partes. "Estamos vivendo um momento delicado por conta da Copa do Mundo. Os metroviários podiam ter considerado isso. A Justiça, porém, exagerou na exigência do contingente mínimo de trabalhadores e o governo pesou a mão com as demissões”, afirmou.
O secretário-geral da Força Sindical, João Carlos Gonçalves, o Juruna, considera que o direito de greve não pode depender de interpretação da Justiça. "Precisa ter melhor ponderação. Houve exagero do tribunal ao aplicar uma multa que pode restringir a atuação do sindicato." Para ele, a melhor resolução seria o cancelamento das demissões. "A greve é um direito constitucional e os trabalhadores não podem ser demitidos por exercê-lo."

Por que somente os trabalhadores são “vândalos”?


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Por que somente os trabalhadores são “vândalos”?

"Mas a coisa esquentou mesmo com a greve dos metroviários em São Paulo. A grita foi geral e a imprensa, quase sempre uníssona, bradou contra mais essa paralisação, que foi deflagrada por milhares de trabalhadores cujo piso salarial era pouco mais de R$ 1.300", escreve Ricardo Antunes, professor titular de Sociologia do Trabalho noIFCH/Unicamp, em artigo publicado pelo jornal O Estado S. Paulo, 15-06-2014.
Eis o artigo.
A retomada das greves no Brasil não é algo recente. Na pesquisa qualificada que faz há muitas décadas, o Dieesenos mostra que desde 2003 elas vêm se ampliando sistematicamente. Começou com 340 naquele ano e chegou a 873 paralisações em 2012, um salto bastante expressivo.
Suas reivindicações foram: no setor industrial, 42,7% objetivavam maior participação nos lucros e resultados, essa pragmática empresarial que obriga os trabalhadores a aumentar seus salários somente quando produzem mais. Foram seguidas por melhor alimentação (37,6%) e reajuste salarial (29,7), entre outras. Nos serviços, a alimentação puxou 43,1% das greves; os reajustes salariais contabilizaram 40,7%, e o pagamento de atrasos salariais totalizou 34,1%.
E, se em 2013 tudo indica que esses números avançaram ainda mais, neste ano, a tomar pelo que estamos vivenciando, haverá um crescimento exponencial das paralisações. Para bem compreender essa explosão recente, temos que olhar com atenção para o Brasil desde junho de 2013.
De um modo breve, desde aqueles levantes de junho que o País mudou de qualidade. Ocorreu algo excepcional em nossa história, dado pela intersecção entre três movimentos que caminhavam em paralelo e se entrecruzaram, produzindo um choque social e político profundo. Primeiro, desde 2008 as lutas globais vêm se ampliando em todas as partes do mundo. No Oriente Médio, na Ásia, na Europa, até atingir o coração do Império, os EUA, para ficar nesses exemplos. E essa onda foi vista por todos os brasileiros. Sua lição basilar: para se conquistar algo é preciso tomar as praças públicas, pois os organismos de representação (com os Parlamentos à frente) estão completamente na berlinda.
Segundo, esse movimento mais global encontrou uma situação especial no Brasil: o governo do PT comemorava dez anos de um “novo ciclo” quando as rebeliões de junho de 2013 roubaram o bolo de Lula e esparramaram seus farelos pelas praças de todo o País. Ruiu o mito da “nova classe média”, em plena festa do seu primeiro decênio. Os assalariados que encontram empregos recebem, em sua grande maioria, até um salário mínimo e meio; trabalham para estudar e estudam para melhorar no trabalho. O canudo da faculdade privada lhes faz derrapar ainda mais nos empregos voláteis. Pagam essas faculdades e encontram empregos com altas taxas de rotatividade, ainda mais terceirizados, mais adoecidos, mais precarizados, sofrendo assédio moral, etc. Em suma: muito mais privação do que realização. E, para trabalhar, dependem do transporte público, quase todo privatizado e degradado; se adoecem, oscilam entre a tragédia dos hospitais públicos e os engodos dos convênios privados. Uma hora a situação iria fazer água, e isso ocorreu em junho do ano passado. (Aqui vale um parênteses: o mito tucano, esse não ruiu porque simplesmente nunca existiu, uma vez que seu projeto é majoritariamente sustentado pelo voto conservador que não se assusta com o aumento da segregação social no País.)
O terceiro foi um espetacular elemento contingente. A celebração tríplice das Copas (das Confederações, da Fifa e das Olimpíadas), imaginada por Lula e pelos grandes capitais como coroamento de um ciclo virtuoso, fez desabrochar seu exato inverso e o descontentamento explodiu.
Assim, junho de 2013 se adensou com os trabalhadores-estudantes urbanos lutando pelo passe livre e contra a degradação da vida nas cidades, elevando a um patamar superior o levante das periferias, fortalecido com o MTST e sua emblemática ocupação da Copa do Povo. E esse descontentamento se generalizou.

Já as greves e manifestações deste maio e junho de 2014 consolidam a rebeldia do trabalho, dos homens e mulheres que se desgastam na indústria, nos transportes, no funcionalismo público (hospitais, previdência, escolas e universidades públicas), em uma onda de paralisações que atinge muitos milhares de trabalhadores e trabalhadoras. (Os docentes e funcionários das universidades públicas paulistas, em exemplo que deve ser único neste período, receberam a acintosa proposta de reajuste zero, a pretexto de que a gestão anterior da USP, cujo ex-reitor foi escolhido pelo governador do PSDB desconsiderando a vontade da maioria de comunidade acadêmica, foi pautada pelo descalabro. A onde privatista exacerbou-se. Mas vale olhar para a explosão da crise universitária do Chile, depois de décadas de privatismo desde a ditadura de Pinochet, que gerou uma explosão social intensa nos últimos anos.)
Uma rápida fenomenologia das greves pode recordar a emblemática paralisação dos garis, durante o carnaval do Rio. Contra uma direção sindical atrelada e cupulista, os garis perceberam que na festa carioca a limpeza não rimava com a falta de presteza da prefeitura em relação a seu exaustivo labor diário. Seguiram-se outras tantas greves, como a dos motoristas e cobradores do Rio, São Paulo, em São Luís, entre incontáveis cidades onde houve paralisação no sistema de transportes, um dos motes centrais, vale lembrar, dos levantes do ano passado. Ora contra as direções sindicais, ora com o seu apoio, as greves encontram seu principal elemento causal na precariedade das condições de trabalho e salário.
Mas a coisa esquentou mesmo com a greve dos metroviários em São Paulo. A grita foi geral e a imprensa, quase sempre uníssona, bradou contra mais essa paralisação, que foi deflagrada por milhares de trabalhadores cujo piso salarial era pouco mais de R$ 1.300. Valor, como se sabe, insuficiente para viver em uma cidade com alto custo de vida e ainda com inflação em crescimento.
Depois de alguns dias de paralisação, foram duramente reprimidos pelo governo Alckmin, com ação policial, demissões e acusação de “vandalismo” (os mesmos trabalhadores que, com zelo e cuidado, conduzem os metrôs diariamente) e ameaçados com mais 300 demissões se a greve voltar. Paralela e curiosamente, as transnacionaisAlstonSiemens, entre outras, bem como seus gendarmes que praticaram fraudes volumosos em obras de ampliação do Metrô, sob governos do PSDB, como a imprensa e Justiça têm divulgado intensamente, ainda não sofreram nenhuma punição exemplar. E vale também recordar que os metroviários se utilizam de um direito constitucional (o direito de greve) que foi obtido depois de décadas de luta contra a ditadura militar.
Por fim, um argumento recorrente contra as greves, é de que elas são “oportunistas” por ocorrerem às vésperas daCopa. Mas a Fifa, essa transnacional do (des)entretenimento global não está impondo sua marca e seus “parceiros” para lucrar ainda mais compulsivamente com sua Copa? Não obrigou o País a mudar sua legislação para poder vender bebidas alcoólicas nos estádios e assim ganhar ainda mais? Não é que até o acarajé ela tentou extirpar do estádio (ou arena?) em Salvador? E o empresariado do ramo de hotelaria não está cobrando o que quer, assim como os restaurantes?
Vem então a pergunta que não quer calar: por que somente os trabalhadores são “vândalos” e proibidos de lutar por seus direitos neste momento em que o mundo inteiro está olhando para o Brasil?

Tuesday, June 10, 2014

"O Brasil sofre de transtorno bipolar", Entrevista com Vladimir Safatle


"O Brasil sofre de transtorno bipolar", Entrevista com Vladimir Safatle

Para o filósofo Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP e autor de livros como A Esquerda que Não Teme Dizer seu Nome e Grande Hotel Abismo: Por uma Reconstrução da Teoria do Reconhecimento, o primeiro passo para pensar melhor o Brasil é superar a “mania-depressão” em que os brasileiros oscilam, ora achando que são os melhores, ora os piores do mundo.
A entrevista é de Letícia Duarte, publicada pelo jornal Zero Hora, 08-07-2016.
Em entrevista por telefone, o professor da USP analisa o legado das manifestações de junho. Ao mesmo tempo em que comemora uma “latência do possível”, identifica um vazio.
"A gente está num momento de vazio político que o Brasil nunca conheceu. Desde 1930 você tem ciclos políticos no Brasil em gestação. Agora temos um ciclo que se esgotou e não tem nenhum outro no lugar", observa.
Eis a entrevista.
Na época das manifestações de junho do ano passado, o senhor afirmou que uma sociedade que passa por tamanhas mobilizações populares fica para sempre marcada. Qual é a marca mais visível neste primeiro ano das manifestações?
Ficou a abertura de um campo de instabilidade e de indeterminação na política brasileira. Em maio de 2013, se alguém chegasse e dissesse: daqui a um mês nós vamos ver 1 milhão de pessoas na rua, essa pessoa seria vista como uma caricatura. Hoje ninguém tem coragem de dizer que não é possível. Então abre uma latência do possível. Há muito mais coisas possíveis do que antes.
E acho que isso é um dado muito importante, porque através da abertura dessa latência novas experiências políticas podem ser paulatinamente formadas. A gente tem uma ideia meio instantaneísta das ações, de achar que uma ação produz o seu efeito no instante em que ela aparece. E nem sempre é assim. Às vezes ela demora muito tempo para produzir de fato seus efeitos.
Em coluna recente na Folha, o senhor cita Deleuze dizendo que o novo nunca aparece de uma vez. Que o novo, para poder sobreviver, precisa revestir-se por um tempo da capa do já visto. Esse elemento está aparecendo agora?
Eu acredito muito nisso. O que há de mais novo nisso é a formação de novos sujeitos políticos. Não são aqueles atores vinculados às instituições tradicionais, vinculados a sindicatos, partidos. São atores que aos poucos vão aparecendo em cena, inclusive trazendo tópicos que antes poderiam parecer totalmente despropositais, como transporte público gratuito, a restrição do valor dos aluguéis, o problema do déficit habitacional. Essas questões vem aparecendo com cada vez mais força, porque são a exposição mais sistemática da irracionalidade do modelo político e econômico ao qual o Brasil está submetido há muito tempo.
Quais as principais diferenças entre os protestos de 2013 e os de agora?
Os de agora ainda não têm muita cara, porque estão no início. A gente não sabe de fato quais são os protestos de agora. A gente viu alguma coisa aqui em São Paulo, em algumas outras cidades, algo muito pontual. Falar qualquer coisa neste momento seria muito temerário. Mas uma coisa é certa: a gente está numa situação em que tudo pode acontecer, inclusive nada. Mas pode acontecer qualquer coisa, haja viso o aparato militar que o governo montou, com medo de aconteça.
E pensando no futuro: para onde estamos indo? Tem como prever alguma direção?
Com certeza a gente está indo para uma situação melhor do que antes. Faz parte da política brasileira que ela se decida em grande medida nas ruas. Esse é um dado da história do Brasil. A gente teve um momento nos últimos 20 anos de estabilidade, graças aos governos Lula e Fernando Henrique, em que houve menos manifestações de rua. Mas nos anos 80 tinham greves gerais no Brasil, tudo parava. Nos anos 60, o Brasil era um país de alta mobilização, tanto à esquerda quanto à direita.
Então eu diria que nós estamos simplesmente voltando para esse padrão de atuação política brasileira, que eu diria muito melhor, porque não é o padrão dos lobbies, dos acordos partidários escondidos, dos conchavos eleitorais. Mas é o padrão do conflito de expectativas no interior da sociedade. Acho que você tem os verdadeiros atores aí. O problema do outro modelo é que a política se transforma num grande acordo florentino, dos acertos entre partidos, que isso é o que faz com que a população tenha uma descrença em relação à política.
No livro A Esquerda que Não Teme Dizer seu Nome o senhor afirma que a esquerda abriu mão dos fundamentos de sua política, acuada por críticas e experiências feitas enquanto estava no governo e seduzida pelos "confortos do poder". E defende que a esquerda recoloque no debate político tudo aquilo que seria "inegociável": a defesa radical do igualitarismo, da soberania popular e do direito à resistência. Como o senhor vê hoje os rumos da esquerda no Brasil?
Estamos numa situação bastante complicada. Existe uma demanda por uma política de esquerda mais clara. Durante muito tempo se fez pesquisa sobre direita e esquerda no Brasil e se chegava à conclusão de que a maioria da população era conservadora. Até porque boa parte das pesquisas eram baseadas em questões de costume: "você é contra ou a favor do aborto? O que pensa do casamento homossexual?" Quando se colocaram questões econômicas: "você é contra ou a favor da intervenção do Estado?", o número de pessoas de esquerda aumentou exponencialmente, o que demonstra, muito claramente, uma consciência tácita da população brasileira de que há uma política, principalmente do campo econômico à esquerda, que é mais adequada ao Brasil.
Mas ela desapareceu do debate, pura e simplesmente. Não há política de esquerda sem pelo menos três questões fundamentais: primeiro, uma defesa radical do igualitarismo. A gente vive num país onde mesmo essas questões que são pautas reformistas sociais democráticas clássicas, como imposto sobre grandes fortunas, estão ausentes do debate político brasileiro. Que são pautas que poderiam indicar onde o Estado poderia conseguir se financiar para oferecer serviços públicos de qualidade para seus cidadãos. O segundo ponto é a defesa radical da democracia direta. Existe uma tradição ruim na esquerda, que é uma tradição dirigista, centralizadora. Há uma exigência de mostrar que nós podemos avançar muito no modelo de democracia que não só apenas os processos decisórios, mas de gestão, sejam pensados em democracia direta. E o outro, que é fundamental para a esquerda, é o direito humano, que é o direito de resistência. Falar em direitos humanos é falar em resistência. O que está longe de ser o caso do Brasil, onde se criminaliza qualquer tipo de revolta, o mais rápido possível.
Depois de seu nome ter sido substituído na candidatura do governo de São Paulo sem aviso prévio, o senhor fez críticas contundentes à direção do PSOL e defendeu a necessidade de "uma esquerda não dirigista". O que fica dessa experiência pessoal?
Primeiro, o PSOL é um partido de muitas tendências, muito diferentes uma das outras. Isso pode parecer um problema, mas também pode aparecer como uma força. Existe uma militância muito ligada à juventude no PSOL que tem uma consciência muito clara da necessidade de inventar um novo tipo de organização, que não seja simplesmente a repetição de velhos vícios de organizações de esquerda, que são um elemento deslegitimador. Acredito que boa parte da desconfiança de parte da população em relação à esquerda se dá por isso: para você ter legitimidade do que você fala, você tem que mostrar que é capaz de fazer dentro da sua casa o que se propõe a fazer fora de casa. E isso falta, em larga medida. Você não pode propor uma prática profundamente democrática se você enquanto organização está longe de ter democracia interna.
Qual é o maior desafio de um filósofo na política partidária?
É entender que a filosofia não produz acontecimentos, os acontecimentos são produzidos fora, e nós simplesmente procuramos ir onde o acontecimento está. Por que eu aceitei uma coisa dessas? Porque sempre houve dois tipos de intelectual, ou pelo menos hoje é assim. Aqueles que são ligados a suas especialidades, e falam a partir de suas especialidades, e aqueles que se transformam em intelectuais orgânicos, totalmente vinculados às pautas de partidos. Então um muito longe, um muito perto do processo. E eu acreditava que era possível fazer alguma coisa no meio do caminho. Você entra em um dado momento, para você conseguir pensar mais perto das coisas, e depois você sai, para que você possa saber o que você realmente possa fazer. Eu ainda acredito que isso seja possível, necessário.
Na Europa estamos assistindo a uma elevação da extrema direita, em parte associada a uma desilusão com as políticas de esquerda. Esse movimento o preocupa?
Eu acho que é um dos movimentos mais sérios e graves da história nos últimos 40 anos. Essa extrema direita não veio para ir embora. Isso não é um ponto fora da curva. É um processo que está em crescimento contínuo há pelo menos 10 anos. Eles vieram para ficar, porque é uma direita popular. Não é uma direita clássica, ligada a certos setores, sistema financeiro. É uma direita inclusive capaz de mobilizar algumas políticas de esquerda para continuar com sua lógica de exclusão, de ódio racial, de paranoia identitária, de xenofobia. É realmente fascista. Mais uma vez a Europa demonstra que em situações de crise ela não tem outra resposta a não ser realimentar as suas paranoias identitárias, como um sistema defensivo, ao invés de reinventar sua política socioeconômica. É uma crise que nunca foi produzida por imigração, ao contrário.
Tem um estudo da OCDE que saiu no ano passado que demonstrava que a Europa precisava era de mais 35 mil imigrantes se quisesse continuar o nível de produção com o acúmulo que se encontra hoje. Então nunca foi um problema de imigração, e sim um problema ligado à maneira como a comunidade europeia se descapitalizou rapidamente ao entregar um trilhão de euros ao sistema financeiro internacional, e agora isso é visto como um problema cultural-imigratório. Você transforma um problema econômico num problema cultural. Isso eles conseguiram fazer de maneira perfeita. Você pega a política do partido (socialista) francês hoje, do ponto de vista de debate cultural e de imigração, não se diferencia nem uma vírgula da política pregada pela Frente Nacional (de extrema-direita). E você teve casos do ministro do interior de então, hoje o primeiro ministro Manuel Valls, que fazia caça contra ciganos. E estamos em 2014. Fazendo discurso que eles não tem os mesmos valores que nós temos, que implica em direito de Imigração. Chega uma hora em que as pessoas olham e falam: eu prefiro o original à cópia.
Parte dessa ocupação pela extrema direita seria uma omissão da política socialista?
Você pode colocar isso na conta da política socialdemocrata com certeza. Se os sociais-democratas que estavam governando a Europa nos anos 90 tivessem sido mais duros em relação à política de direitos humanos mais efetiva e menos discriminatória, com integração política dos imigrantes... Você pega a Assembleia Nacional francesa, vê quantos descendentes de árabes têm? Não deve ter três, numa Assembleia de mais de 500 lugares. Isso em uma população onde se tem mais de 10% de árabes. Que integração é essa, em que você não partilha poder? Não existe isso.
Em seu livro O Cinismo e a Falência da Crítica, o senhor aponta um esgotamento da crítica tradicional do capitalismo e propõe o cinismo como uma categoria para análise das dinâmicas da racionalização em operação no capitalismo contemporâneo, com a chamada racionalidade cínica cunhada por Sloterdjik. Quais são as manifestações mais evidentes desse cinismo na sociedade brasileira atual?
O cinismo não deve ser compreendido como um julgamento moral. Tem uma peculiaridade nessa discussão sobre o cinismo que são esses momentos em que o discurso é capaz de se estabilizar mesmo com falta de legitimidade. Mesmo em situações de crise de legitimidade, você continua agindo como se nada tivesse acontecendo. Você não precisa mais estar convicto do que você faz para agir. Você age mesmo sem convicção. Esse é um dos piores sintomas da vida social contemporânea. Posso dar uma imagem para isso. Freud descrevia um sonho que ele teve, em que estava numa mesa, com a família, e o pai conversava com todo o mundo de maneira normal, mas Freud começa a chorar, dizendo: meu pai não sabia que estava morto.
Ele agia como se estivesse vivo, mas estava morto. Nossa vida contemporânea tende a funcionar quase dessa maneira: você age como se nada estivesse acontecendo, como se tudo estivesse garantido, do ponto de vista de legitimidade, mas ninguém mais acredita nos próprios papéis. Mesmo a socialização de nossa criança: elas consomem hoje desenhos animados em que os próprios personagens criticam os papéis que representam. Esse modelo é um dos piores, porque não se trata mais de criticar tentando desvelar alguma coisa que a pessoa não saberia. Você é obrigado a ver a impotência da sua crítica diante de um sistema em que ninguém mais acredita nas figuras de poder, e é exatamente porque ninguém acredita que elas permanecem. Porque se você pedisse crença para as pessoas, elas diriam: agir já é difícil, agir com convicção é um pouco demais.
Qual a sua opinião sobre o livro Capital no Século 21, do economista francês Thomas Piketty, que vem causando polêmica ao apontar um aumento no crescimento da desigualdade de renda no mundo nas últimas décadas?
É impressionante a polêmica, porque o livro é simplesmente óbvio. Ele simplesmente demonstra: veja, nosso capitalismo, é um capitalismo patrimonial, no qual um conjunto limitado de famílias continua detentora do capital durante décadas. Durante todo o século XX, não teve grandes modificações. Essas famílias vão criando um sistema rentista, se alimentando das fortunas acumuladas, e vão conseguindo influenciar os governos, e os governos vão criando situações cada vez mais favoráveis para o rentismo. Ou seja: não para produzir, mas simplesmente aproveitar sua riqueza e investir num sistema financeiro que é cada vez mais autossuficiente, mais autônomo.
Essa é uma das razões para explicar porque a nossa desigualdade regrediu ao nível do século XIX. A única coisa fantástica no livro é que ele simplesmente mostrou isso. Os dados são de uma obviedade absoluta. E a gente ficou durante 20 anos dentro desse mantra neoliberal de que a gente estava numa sociedade de produção de riquezas, uma sociedade de ascensão ligada a sua capacidade de empreendedorismo, sua força de inovação, e blabla. E ele mostrou que isso era falso. A quantidade de pessoas que tem mobilidade social é mínima. Isso que é triste. Essa era a discussão que a gente devia estar tendo hoje. Ninguém está falando da estatização total dos meios de produção, da sociedade socialista, do comunismo cubano. São questões muito concretas, que as pessoas sentem isso na pele.
O Brasil tem vivido um espírito de ame-o ou deixe, com uma parcela da população muito otimista, e outros muito pessimistas. Onde o senhor se alinha?
O Brasil sofre de um transtorno bipolar, a gente vive da mania-depressão. Tem momentos em que se acha que o Brasil é a nova Roma, como dizia o Darcy Ribeiro, que vai mostrar ao mundo o caminho da transformação. E tem momentos em que você acha que o Brasil é a catástrofe mundial, que é o pior país do mundo, o país onde tudo dá errado. Esse tipo de bipolaridade, que também afeta os intelectuais, deveria ser superada de uma vez por todas. O Brasil é um país cuja população tem uma força incrivelmente resistente contra uma série de desmandos, tem uma história de resistência inacreditável, e tem também várias oportunidades perdidas, como todo grande país. O que você não pode no Brasil é viver é entre a mania e a depressão. Se você conseguir escapar desse tipo de acepção, talvez você consiga pensar melhor o Brasil.

Sunday, June 08, 2014

COPA 2014 Estamos sofrendo uma manipulação brutal

ENTREVISTA NO Le Monde Diplomatique do Brasil sobre a Copa 2014.

Entrevista de novembro de 2011.


COPA 2014
Estamos sofrendo uma manipulação brutal
Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, denuncia a manipulação do amor dos brasileiros por sua cidade e pelo futebol como forma de conquistar apoio para a realização da Copa do Mundo. Ele alerta: é um grande negócio para as grandes empresas, não vão sobrar migalhas
por Luís Brasilino
DIPLOMATIQUE – No estudo “Cidades de exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro”, o senhor afirma que os megaeventos realizam de maneira plena e intensa a cidade de exceção. O que isso significa na prática?
CARLOS VAINER – São processos resultantes de uma maneira de pensar a cidade que se fortaleceu com a ofensiva neoliberal. Esta pensa a intervenção do Estado na economia e na vida social como essencialmente perversa, já que o mercado seria a forma mais adequada de alocar recursos da sociedade. Na cidade, isso se materializa em uma crítica feroz a todas as formas de organização que caracterizaram o planejamento urbano desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que tinham como elemento principal um plano de ocupação do solo que leva em conta a cidade como um todo, buscando racionalizar o crescimento e a evolução da cidade e organizar a ocupação do espaço. Esse planejamento centralizado, muitas vezes tecnocrático e autoritário, foi objeto de duas críticas. A primeira, de movimentos populares, reivindica descentralização, com participação expressiva da sociedade civil no planejamento da cidade. A outra crítica identifica a intervenção do Estado como um obstáculo ao livre desenvolvimento urbano. Assim, o planejamento centralista, tecnocrático e autoritário que existia durante a ditadura militar recebe, nos anos 1980 e 1990, um ataque pela esquerda e outro pela direita. E, apesar da Constituição de 1988 estabelecer que todas as cidades com mais de 20 mil habitantes devem ter um plano diretor, ao longo da década seguinte a correlação de forças vai caminhar em direção ao projeto neoliberal. Este vai atacar de maneira brutal todas as formas de regulamentação. Mesmo com a aprovação do Estatuto das Cidades, o que avança é a concepção da cidade pensada como empresa, que compete com outras “empresas” em um mercado mundial de cidades para atrair capitais, investimentos, turistas. Isso promove uma guerra aberta de cidades contra cidades, cada uma oferecendo vantagens mais absurdas que a outra para atrair capitais.
Se a cidade é pensada no modelo de empresa, ela deve ser dirigida como tal, não pode ficar submetida a regras rígidas, tem de ser flexível e capaz de aproveitar as janelas de oportunidade que o mercado mundial oferece. Na legislação brasileira, essa flexibilização toma a forma da “operação urbana”, que autoriza o governo local a desrespeitar as leis sempre que houver uma negociação caso a caso. Isso passa a dominar o planejamento de algumas cidades, excluindo a ideia de um planejamento compreensivo, ainda mais o planejamento democrático-participativo. Em uma empresa, não dá para fazer democracia, tem de fazer negócio. E como o negócio é feito? Caso a caso. Com as parcerias público-privadas, uma negociação caso a caso entre poder local e as empresas privadas, a cidade inteira torna-se objeto de negociação, como acontece no Rio de Janeiro. Essa cidade em que a negociação ad hoc impõe-se sobre a regra geral é uma cidade cada vez mais regida pela exceção.

DIPLOMATIQUE – E como a Copa do Mundo atua nesse contexto?
CARLOS VAINER– O megaevento agudiza e aprofunda essa ideia de cidade de exceção: as regras todas vão para o espaço. A legislação de exceção produzida para acolher esses eventos é o exemplo mais puro do que estou falando. Por exemplo, todas as empresas associadas ao COI e à Fifa não pagam impostos. A lei de responsabilidade fiscal, que estabelece um limite de endividamento, é flexibilizada para obras associadas a megaeventos. Por que um município pode se endividar para fazer um estádio e não pode para fazer saneamento básico? A Fifa agora quer proibir a comercialização de qualquer produto que não seja de seus associados em um raio de 2 quilômetros dos eventos e das áreas de interesse dos jogos. E também viola direitos humanos consagrados em nossa Constituição, como o direito à moradia. Em nome desses projetos, atualmente se procede a uma limpeza social e étnica, expulsando populações; 170 mil pessoas serão removidas em nosso país.

DIPLOMATIQUE – Essa cidade de exceção tem um corte de classe, ou seja, quem perde e quem ganha com esse modelo?
CARLOS VAINER– A cidade de exceção é uma face da moeda. A outra é o que chamo de democracia direta do capital, com a cidade segmentada em projetos singulares, cada um deles sendo objeto de uma negociação particular, que denominam publicamente de parceria público-privada. A área portuária do Rio de Janeiro é um caso insuperável. Nela, 5 milhões de metros quadrados, praticamente no centro do Rio, foram entregues a uma operação urbana; um consórcio empresarial, que evidentemente não foi eleito para isso, que vai ter poder de governo sobre uma parte vital da cidade. E com financiamento público. É um deslocamento brutal de recursos públicos não apenas financeiros, mas fundiários, de potencial construtivo, paisagístico. Em Curitiba, o Atlético Paranaense vai construir o estádio da Copa, só que a prefeitura ampliou o índice de ocupação nessa área, de maneira que, em potencial construtivo, transferiu para o clube o equivalente ao que ele vai gastar no estádio. Alguns projetos só podem ser explicados por uma vontade antipopular profunda. A Vila Autódromo no Rio de Janeiro está sendo deslocada apenas porque o pobre é considerado um vizinho indesejável; não há nenhum projeto que ocupe aquela área. Em Pequim, essa limpeza social teve efeitos dramáticos: mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas. Na África do Sul, foram realizadas operações nas áreas próximas aos estádios para impedir que os pobres “poluíssem” o caminho.
Voltando ao termo, não é que vai se seguir a legislação vigente sobre a ocupação e o uso dos espaços públicos. Não. É feita uma legislação de exceção. A Lei Geral da Copa estabelece uma pena específica para o uso indevido do logo da Fifa. Se você usa indevidamente uma marca comercial, você estava passível de sofrer as penalidades da lei. Mas aqui não; existe uma tipificação criminal de exceção. Foi criada uma secretaria especial de segurança dos grandes eventos no âmbito do Ministério da Justiça. Estamos criando novos órgãos no Estado. Tribunais especiais de exceção.
A soberania de espaços públicos é entregue a uma entidade privada estrangeira. Quer dizer, quem determina quem entra em espaços públicos e quanto se paga vão ser eles. Sabemos que querem eliminar o direito à meia-entrada. No Pan do Rio em 2007, um contrato com uma empresa de fast food proibia a entrada de qualquer alimento nos estádios. O sanduíche da sua namorada ou da sua avó não poderia adentrar no Engenhão porque você estava obrigado a comer o “saudável” hambúrguer da tal rede. Para ver se não portavam comida, as pessoas eram revistadas na entrada do estádio. Não podia entrar com água. Veja bem, regime de exceção é um termo delicado para isso.

DIPLOMATIQUE – E os estádios, o senhor acredita que eles poderão levar desenvolvimento ao menos para as regiões onde serão instalados?
CARLOS VAINER– Falemos de experiências concretas. Em Pequim, os grandes equipamentos estão vazios. Na África do Sul, já discutem a demolição de alguns estádios. O Parque Aquático Maria Lenck, feito para o Pan, não serve para as Olimpíadas. Em Brasília, eles pretendiam fazer um estádio de 70 mil lugares para poder competir com São Paulo pela abertura – agora sabemos que São Paulo foi escolhida, mas, de qualquer maneira, um estádio da Copa tem de ter 40 mil lugares. Vocêsabe qual é o público médio de Brasília? Duas a três mil pessoas. Em São Paulo, o Morumbi estava lá. Mas foi necessário vetar o estádio para poder fazer uma grande obra que, se não passar de R$ 1 bilhão, já estamos no lucro. Manaus não tem time na primeira divisão. Natal, Cuiabá e Brasília também.

DIPLOMATIQUE – Por que a iniciativa privada não coloca dinheiro nesses projetos?
CARLOS VAINER– Para cada prefeitura, o BNDES deu uma bolsa-estádio de R$ 400 milhões. Por que é que eu vou fazer um estádio de 250 se posso começar com 400? Por que botar meu dinheiro se tem o BNDES me dando a juros subsidiados? De repente eu vou fazer um hotel. Mas o BNDES também financia hotéis, tem uma linha de financiamento para empreendimentos e eventos sociais variados. E vou ter isenção de IPTU. E não tocamos em um ponto gravíssimo, que são as condições de trabalho nas obras associadas a esses eventos. Apesar das afirmações de que os prazos estão sendo respeitados, ninguém duvida de que eles estão atrasadíssimos. E as obras de mobilidade também não vão ficar prontas a tempo. Evidentemente, nada está sendo feito. Quando chegar 2012, 2013, vão começar a acelerar esse processo. Isso tem duas dimensões: uma, mais dinheiro; dois, as condições de trabalho vão se degradar, os acidentes de trabalho vão se multiplicar, a jornada vai ser estendida... É a crônica da violação aos direitos trabalhistas anunciada. (Ver mais na pág. 8)

DIPLOMATIQUE – Um dos argumentos mais utilizados pelos promotores da Copa são as estimativas dos recursos que serão gerados pelo evento. Em geral, as projeções ultrapassam R$ 100 bilhões...
CARLOS VAINER– Realmente é um belo negócio, não há dúvida. Copa do Mundo não tem a ver com esporte, mas com negócio. A questão é saber quem se beneficia. Vou dar pequenos exemplos de diferentes maneiras de abordar a aplicação de recursos. São recursos, quase todos públicos, que estão gerando empregos. Mas esses postos de trabalho seriam gerados se os recursos estivessem sendo aplicados na construção de hospitais, de escolas, em saneamento básico, transporte público de massa. Existe uma coisa em economia que se chama custo e oportunidade. É o custo e benefício comparado com outros investimentos que você poderia fazer com esse mesmo recurso. Por exemplo, investi R$ 1 bilhão no Maracanã. Isso gerou 1.500 empregos durante um ano e meio. Mas esse mesmo R$ 1 bilhão gasto em habitação popular, saneamento básico, postos de saúde, escolas e outras necessidades sociais também geraria 1.500 empregos, só que teria um efeito diferente porque o produto desse investimento em si já seria um ganho social.
O segundo ponto é a forma de distribuição dos recursos públicos. Por exemplo, a recepção de turistas pode ser feita por grandes cadeias ou pode ser disseminada. Ao chegar hoje a Copenhague, na estação de trem, você vai ao serviço de recepção de turistas e vão lhe perguntar: o senhor quer ficar em um hotel ou em uma casa de família? Em que bairro? A prefeitura cadastra famílias que têm um quarto, inspeciona, e elas recebem turistas. Por que isso acontece? Porque, assim, a riqueza gerada é distribuída de maneira mais ampla.
Com a alimentação é a mesma coisa. Se a concedo a exclusividade da comercialização para uma única empresa, estou concentrando as vantagens advindas daquele evento. É o que ocorre quando proíbo os ambulantes de vender sanduíches. É a lógica do grande negócio para as grandes empresas. Se vai acontecer um show de música no Ibirapuera, seu entorno vai encher de gente que vai vender cerveja, sanduíche etc. Às vezes são trabalhadores desempregados, às vezes são empregados que vão fazer um bico. [Na Copa] Não vai ter isso! A repressão ao vendedor informal, ao trabalhador honesto que está na rua tentando sobreviver, vai ser brutal. É fundamental esclarecer isso porque há uma ilusão enorme, uma expectativa, porque as pessoas estão acostumadas com um certo laxismo no Brasil. Quando há um grande fluxo de recursos em uma direção, desse duto pinga alguma coisa para os de baixo, em um fenômeno que os economistas chamam de efeito de gotejamento. As migalhas do banquete que caem da mesa. [Na Copa] Não vai cair migalha. Eles são de um apetite interminável. As experiências internacionais já mostraram isso. Os vendedores ambulantes das cidades sul-africanas foram expulsos para 50 quilômetros das cidades. O espaço público é entregue às grandes corporações, e os pobres não são removidos apenas em termos habitacionais, mas em termos paisagísticos. Eles são cada vez mais vistos como uma classe perigosa que deve ser mantida a distância.

DIPLOMATIQUE – O senhor desenha um quadro muito grave. O governo tem possibilidades de atenuar essa situação?
CARLOS VAINER– Há algumas sinalizações positivas, mas o essencial do aparelho de Estado brasileiro em nível federal, estadual e municipal está comprometido com os grandes empreendimentos. Foi gerada toda uma legislação de exceção que viabiliza esses eventos, disponibilizam-se recursos públicos de maneira geral e há ainda uma ausência total de informação. O Estado não informa sobre as escolhas. A legislação brasileira estabelece que obra de impacto urbano tem de ser discutida com a sociedade. Quando é que a sociedade discutiu a mudança do plano metroviário do Rio de Janeiro? Há uma falta de informação total. Não se sabe quanto vai gastar, não se sabe quanto da população será removida.
É o seguinte. Eu amo minha cidade, você ama a sua. E gostamos que as pessoas venham visitá-la. Quando recebe um amigo de fora, você mostra o que São Paulo tem de melhor. Faço a mesma coisa no Rio; não vou levá-lo para ver a miséria. Isso é normal nas pessoas. Além disso, nós gostamos de esportes, adoramos futebol, sou Fluminense. Pergunto: você gostaria de ter uma Copa do Mundo em sua cidade? Claro, vai vir um monte de gente, vai ser uma festa, vamos ter jogos de futebol... Esses sentimentos todos estão sendo manipulados. As pessoas não sabem qual é o custo que isso vai ter. Elas não vão conseguir comprar ingresso. O Maracanã, que já foi um estádio para 170 mil pessoas, está resumido a 80 mil. O preço vai impedir o torcedor que mora na zona leste de São Paulo de pegar uma passagem e entrar no estádio. E, provavelmente, ele não vai conseguir nem beber a cervejinha dele porque a festa não é para ele. Só que a gente não sabe disso, não temos essa experiência. Diante da total falta de informação, acreditamos que vamos poder vender mais, ganhar mais, que vamos ver jogo de futebol. Não vamos. É a manipulação de um sentimento legítimo que nós temos. Ontem fui dormir tarde porque estava vendo a seleção brasileira feminina de vôlei jogar. Eu gosto, fiquei emocionado quando tocou o hino porque elas ganharam a medalha de ouro. Vai fazer o que comigo? Vai dizer que eu sou idiota? Faz parte de nossa formação. E isso é manipulado de forma brutal. Há muita dificuldade em desfazer esse sonho, o que só vai acontecer quando as pessoas não puderem chegar a 5 quilômetros do Itaquerão, quando descobrirem que o preço é inalcançável e que 80% das entradas foram vendidas na Europa. E elas não vão poder tomar a cervejinha delas porque está proibido, só pode beber Budweiser. Não vai poder comer o sanduíche da vovó, vai ter de comer fast food.

DIPLOMATIQUE – E o senhor identifica uma resistência na sociedade civil?
CARLOS VAINER– Ela acontece. Já temos comitês populares da Copa constituídos em todas as cidades-sede. Uma das bandeiras é “Copa sim, remoção não”. Outra é “um tostão para a Copa, um tostão para a educação, um para a saúde”. E há algumas vitórias. Em Porto Alegre, uma remoção foi derrotada na luta. Há movimentos não apenas entre as comunidades populares ameaçadas. Estou me referindo, por exemplo, à Associação Nacional de Torcedores, que está na luta contra a elitização dos estádios. Há uma série de grupos de esportistas que protestam porque propagandeiam que os Jogos Olímpicos darão um grande impulso para a disseminação e popularização da prática esportiva no país. Só que os recursos não fluem para isso. Há também alguns setores sérios na imprensa... Embora achemos que a resistência aqui é pequena, colegas de outros países se impressionaram com a maneira precoce de nos organizarmos. Não se trata, evidentemente, de impedir que a Copa ou as Olimpíadas sejam realizadas no Brasil, mas de assegurar que uma parcela desses recursos seja destinada às necessidades sociais e que a população não seja vitimada pela grande festa do negócio.

Luís Brasilino
Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.


Ilustração: Daniel Kondo

01 de Novembro de 2011
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Padre Júlio Lancellotti é intimidado por ter dado entrevistas contra a PM


Uma simples blitz policial é um estratagema de excesso de poder ou do pequeno poder policial truculento, imagine em grandes proporções na nossa sociedade. Já recebi por telefone uma chamada para comparecer ao batalhão para saber do desfecho de uma reclamação. 

Reportagem da IHU:

Padre Júlio Lancellotti é intimidado por ter dado entrevistas contra a PM

Nestes tempos de protestos, aqueles que estão do lado de cá, da rua, longe do sistema institucionalizado, sofrem as consequências por criticar o sistema. Quando estas pessoas buscam mudanças nas formas de se fazer política, e começam a ter êxito, imediatamente se sujeitam a várias formas de intimidações.
A reportagem é publicada pela página Advogados Ativistas, 29-05-2014.
Intimidar é fazer com que outros façam o que alguém quer, através do medo. A intimidação é a resultante do desajuste da compulsão competitiva normal de dominância inter-relacional, geralmente vista em animais, mas que é mais completamente modulada por forças sociais em seres humanos.
Basta o cidadão querer exercer os seus direitos de ter voz, ou defender aqueles que não têm, que logo, os braços armados deste malfadado sistema insistem em reprimir. Não é de hoje que a violência Estatal alcançou o asfalto, e também há tempos que elas estampam as capas dos jornais. Entretanto, muita coisa acontece aos sussurros dos torturadores psicológicos, que atormentam a segurança do cidadão que se presta manifestar.
Pessoas como o Padre Julio Lancellotti, grande parceiro dos moradores de rua e apoiador dos protestos populares. Ao olhar mais atento,  é comum o vê-lo cruzando a multidão em meio a faixas e gritos de ordem. Sempre sereno em suas palavras, trata-se de uma figura que conforta àqueles que estão ali presentes. De outra forma, o Padre Júlio, apesar da serenidade e postura pacífica, não é um cidadão passivo. Ele tem enfrentado intimidações e ameaças veladas do sistema e dos seus maus policiais.
Estes dias, após ser acertado por um estilhaço de uma bomba de gás lacrimogênio durante um protesto, ele concedeu entrevistas à mídia, repudiando a atitude daqueles policiais que o teriam acertado. - “O que me feriu mais foi a repressão e violência geral da PM. Acho que eles precisam ter outras formas para agir”, disse o Padre ao portal G1. “Toda ação tem uma reação. É preciso saber lidar com essa insurgência da juventude” – complementou. No dia seguinte, o Lancellotti recebeu mensagens no celular enviadas por militares da alta cúpula repudiando a entrevista concedida e intimidando-o de forma velada.
Esta foi a mensagem encaminhada para o Padre Júlio:
    "Senhor Padre - Bom dia.
    Em face do sue total desconhecimento sobre a atuação da Polícia Militar nas manifestações de rua, demonstrado no seu depoimento prestado em matéria do Estadão, nesta data, iremos chamá-lo para acompanhar os próximos planejamentos e reuniões: quem sabe o Sr possa nos ajudar, não é?”
É claro que um funcionário público, militar, em uma instituição altamente burocratizada não deveria ter a liberdade para enviar mensagens de texto de cunho intimidatório. Caso a polícia quisesse que o Padre Júlio acompanhasse as reuniões da corporação, que o fizesse por meio de ofício formal, assim como sempre o fizeram. A atitude de tal policial eventualmente pode não ser encarada como crime, porém é no mínimo anti-ético e intimidador.
Juridicamente falando, intimidar é ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto grave. Os tribunais brasileiros têm aceito, embora nem sempre este posicionamento não seja dominante, ameaças vagas e incertas. Ameaça vaga é aquela em que o agressor não discrimina devidamente o que ocorrerá ou contra quem se voltará a ação (ex. “a sua família vai pagar o preço”, “você pode perder tudo” se” divulgar o meu vídeo, irá pagar caro” etc). Para a jurisprudência brasileira, é necessário também ter o chamado animus freddo, caracterizado pelo tom calmo do agente, do mesmo modo como ocorreu na mensagem irônica direcionada ao padre.
Assim como no caso do Padre Júlio, são corriqueiras às intimidações veladas aos jornalistas quando retratam os fatos sombrios da corporação militar. A mesma atitude ameaçadora atingem os advogados quando são perseguidos por policiais após as manifestações e até mesmo quando são vigiados enquanto tomam cerveja numa mesa de bar.
Se não bastasse estas intimidações corriqueiras, no qual infelizmente já estamos aprendendo a lidar, ativistas estão sendo ameaçados dentro dos coletivos e ocupações, invadidos por policiais. Diversas buscas sem mandado insistem em ocorrer e até mesmo a família destes jovens ativistas estão apanhando dentro de suas casas, quando destas invasões, sem direito a câmera, holofotes, nem defesa. E tudo isto está ocorrendo como uma forma de intimidação institucionalizada para que a rua se cale. Mas não.

Queremos o futebol de volta! Por um futebol sem o controle da FIFA. Entrevista especial com Christian Russau


Queremos o futebol de volta! Por um futebol sem o controle da FIFA. Entrevista especial com Christian Russau

"Conforme os cientistas do Instituto Alemão para Ciências Econômicas, a Copa na Alemanha, em 2006, não gerou “nenhum impulso conjuntural relevante” e os efeitos econômicos “não tiveram dimensão perceptível na economia”. A conclusão deles foi: “Não houve aumento do consumo privado durante o período da Copa”, informa o jornalista e cientista político alemão.
“Diferentemente do Brasil, na Alemanha não houve protestos e a grande maioria dos alemães era a favor da Copa. Por que isso? Na Alemanha não houve remoções, não houve os custos sociais que ocorreriam caso fosse realizada uma tentativa política de reestruturação das cidades em torno do argumento da Copa, porque os estádios já estavam lá, e a infraestrutura também”, avalia o jornalista Christian Russau.
Para ele, nos dias atuais, a população alemã conseguiu se distanciar o suficiente do evento para fazer sua própria reflexão sobre a organização da Copa, a atuação da FIFA e os lucros históricos de 816 milhões de francos suíços obtidos pela entidade no período entre 2003 e 2006. “Somente agora, com todos esses relatos nos jornais sobre os absurdos da Copa no Brasil e noQatar, as pessoas aqui na Alemanha estão formando um sentimento generalizado de repúdio à FIFA. Só que querem ver a Copa. Torcemos ainda para que um dia a FIFA não seja mais a entidade que organiza e controla a Copa. Queremos o futebol de volta!”, exalta.
Christian Russau cita as exigências feitas pela FIFA para a realização da Copa de 2006 nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, mas destaca também as iniciativas que se opuseram à barganha comercial que visava beneficiar a entidade e seus parceiros de negócios. Ele cita dois exemplos: “Próximo ao famoso estádio de Dortmund, no lugar chamado Westfalenhalle, há muitos anos existe um ‘U’ gigante em cima de um prédio fazendo propaganda para uma determinada marca de cerveja da região. Esse ‘U’ é um símbolo popular na cidade. E o que exigiu a FIFA? Para proteger o seu patrocinador de cerveja para a Copa, a FIFA mandou que o ‘U’ fosse retirado. A cidade de Dortmund recusou-se a isso e somente conseguiu a liminar jurídica argumentando motivos de patrimônio histórico. Em Colônia, a FIFA exigiu que uma parada de ônibus ao longo do estádio a qual leva o nome de uma fábrica fosse rebatizada por quatro semanas como ‘parada estádio da Copa’. Para isso, todos os folhetos da cidade com os roteiros de ônibus teriam de ser reimpressos. Mas a Prefeitura de Colônia não cedeu à pressão da FIFA”.
Christian Russau é jornalista alemão e ativista de direitos humanos, mora e trabalha em Berlim. Escreve para diversas mídias alternativas. Estudou Ciências Políticas e Filosofia na Freie Universität – FU (Universidade Livre), de Berlim, Alemanha, e na Universidade de São Paulo - USP, onde obteve o doutorado com a tese Urteil und Gemeinsinn. Ein Beitrag zur Theorie des Politischen von Hannah Arendt(Juízo e bom senso. Uma contribuição para a Teoria da Política de Hannah Arendt).
Trabalhou oito anos no Centro de Pesquisa e Documentação Chile-América Latina (FDCL), em Berlim, entidade à qual continua ligado. Também é ativo na rede alemã de organizações de solidariedade ao Brasil, a KoBra - Kooperation Brasilien. Christian é um apaixonado por futebol, torcedor do Tennis Borussia - TeBe, clube da sexta divisão alemã e que pratica, na avaliação do jornalista, “um futebol autêntico”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que impacto a Copa de 2006 produziu sobre a Alemanha? A identidade do país após a Copa era a mesma de antes?
Christian Russau – O legado mais visível é que desde então os alemães parecem ter uma relação mais leve com seu próprio país. E, no exterior, aquela imagem dos alemães como pessoas sérias, não festivas, também mudou com as enormes festas daquele verão. Mas existem outros impactos, que não são tão visíveis, e são bastante preocupantes. A vigilância por vídeo do espaço público na Alemanha, por exemplo. Antes da Copa de 2006 só havia vigilância por vídeo em meia dúzia de cidades. Esse número pulou para 30 durante a Copa, e continua subindo. Embaixo do argumento de “segurança”, os políticos conservadores sempre introduzem algo dizendo que aquilo era necessário para o evento — e depois aquela “novidade” se torna a “regra”.
Outra questão são os absurdos direitos extraconstitucionais que o país ofereceu à FIFA — em todas aquelas leis para as quais o governo conseguiu o aval do parlamento durante as quatro semanas de futebol. Como a atenção midiática e da opinião pública se focalizava mais no futebol, para os políticos era o momento oportuno de sancionar leis que normalmente seriam altamente contestadas. Em meio a toda aquela euforia, passou quase despercebido o maior aumento do imposto sobre faturamento, equivalente ao ICMS brasileiro, na história da Alemanha: de 16% para 19%, aprovado em 16 de junho de 2006. Esse aumento em três pontos percentuais representou uma carga mensal alta que atingiu especialmente as camadas mais pobres da população, na comparação com os mais afortunados. Ou na véspera do clássico Alemanha x Argentina [disputado em 30-06-2006], quando o governo alemão aprovou uma série de leis para mudar impostos que, em condições normais, teriam sido motivo de debates acirrados na imprensa e pela opinião pública.
Ocorre que a Alemanha estava tomada pela febre do futebol. E para aumentar a tensão, no dia do jogo das quartas-de-final contra a Argentina, o parlamento alemão resolveu colocar em pauta nada menos do que a maior reforma da história da República Federal da Alemanha desde 1949. Todos os artigos da Constituição que tocam a relação entre governo central e estados da federação, bem como as respectivas atribuições, foram modificados. Segundo as transcrições do debate no Legislativo, os parlamentares pareciam muito apressados para terminar a votação ainda antes de o jogo começar.
IHU On-Line – No que diz respeito ao clima festivo, seria correto afirmar que a Copa do Mundo representou o momento de maior alegria e união dos alemães desde a queda do muro de Berlim, em 1989?
Christian Russau - Falando em termos de um clima geral festivo, sim. Ninguém esperava que nós, os alemães, de repente nos tornássemos anfitriões festejando aquele verão nas ruas, nos bares, nos botequins da forma que fizemos, mas com certeza não se pode subestimar a influência que teve o clima para isso — foi um verão excepcional, com um calor inesperado que durou do primeiro minuto até o apito final da Copa.
Houve aquele medo de que poderiam acontecer ataques racistas ou que os hooligans nazis poderiam causar tumultos, mas felizmente isso não aconteceu. Esse era um tema que se discutia muito antes da Copa. Havia o alerta que o conselho dos africanos de Berlim publicou, o alerta sobre as chamadas “no go areas”, áreas onde negros deveriam ir com maior cuidado ou mesmo não ir, por causa da alta probabilidade de ataques neonazis naqueles locais. Houve uma grande discussão sobre isso, os políticos afirmando “que isso na Alemanha não tem”, mas, ao final, como a imprensa continuou insistindo no tema, algumas cidades tomaram medidas para evitar os ataques nazistas e racistas.
IHU On-Line - Antes da Copa, os alemães eram conhecidos pela resistência em utilizar símbolos nacionais, como a bandeira, e em vestir as cores do país. Quais eram os principais motivos para isso? Há hoje uma espécie de orgulho nacional renovado?
Christian Russau - Desde o final da Segunda Guerra Mundial e da libertação da Alemanha do fascismo, qualquer insinuação de nacionalismo, patriotismo ou demonstração de orgulho nacional dos alemães era tida como vergonhosa. Qualquer gesto neste sentido era visto como suspeito. Para muitos, era assim: mostrar patriotismo por um país que causou duas guerras mundiais e que cometeu a pior barbárie da história, o holocausto, era inimaginável. Isso não quer dizer que não havia nacionalistas ou patriotas na Alemanha, só que eram uma minoria. Nas escolas, o hino nacional fazia parte do programa, mas quase nunca era cantado. Até os anos 1990, nem os jogadores da seleção cantavam o hino nacional antes dos jogos. Muitos deles mantinham a boca fechada. Bandeiras da Alemanha podiam ser observadas aqui e acolá durante os jogos da seleção nos estádios, mas muito raramente eram vistas nas ruas. O patriotismo alemão tinha praticamente desaparecido do país após o fim da Segunda Guerra Mundial. Eu pessoalmente diria, graças a Deus!
Só que, na Copa de 2006, de repente isso tudo mudou. Uma pesquisa feita naquele ano com alunos e alunas revelou que, por causa dos jogos, “passou a ser normal usar as cores nacionais para a maioria dos jovens”. Para muitos alemães e observadores de fora, aquilo foi uma surpresa; para alguns, chegou a ser um choque. Naquele verão da Copa de 2006, aparentemente voltou tudo aquilo que, durante quase 60 anos, ninguém na Alemanha parecia ter sentido falta: bandeirinhas nacionais nos carros e caminhões, nas sacadas e janelas... Para os alemães, tornou-se aparentemente normal ter uma relação “menos tensa” com a própria Alemanha. Naquele verão de 2006, o que se via era um patriotismo festeiro. Afinal, é algo que cada pessoa teria que decidir por si mesma. Eu pessoalmente nunca cantaria o hino alemão e não necessariamente vou torcer para a seleção alemã. Torço para um futebol lindo. Mas, em geral, se compararmos o grau de patriotismo na Alemanha com o de outros países, aqui ele ainda continua sendo menor.
IHU On-Line - Qual foi a relação entre investimentos públicos e investimentos privados na Copa de 2006? Qual foi o total de recursos investidos na Copa, oficialmente e extraoficialmente?
Christian Russau - Depois da Copa, o governo federal alemão lançou um relatório dizendo que os gastos públicos federais destinados diretamente à organização do evento somaram apenas 294 milhões de euros, e que um total de 530,7 milhões de euros em dinheiro público foi investido nos níveis federal, estadual e municipal para as reformas ou novas construções de doze estádios, os quais chegaram a custar um total de 1,4 bilhão de euros — o que equivaleria a dizer que o dinheiro público gasto representava um terço do total de custos do evento. Considero isto altamente duvidoso. Um montante de 3,7 bilhões de euros dos cofres públicos federais foram investidos na ampliação das autoestradas no país, como o governo mesmo registra em seu relatório final da Copa de 2006. Mas, o que diz o governo? “Não incluímos essas despesas no orçamento geral da Copa”. Por que não? Um colega jornalista, Jens Weinreich, dá a explicação: “A arte consiste em incluir o mínimo possível de custos no orçamento e indicar o máximo possível de gastos previstos como investimentos, não os ligando diretamente às Olimpíadas ou à Copa do Mundo. Assim, acaba-se chegando a um belo superávit nos respectivos orçamentos”.
Do outro lado vale também lembrar que é verdade ser difícil alocar exclusivamente no item Copa do Mundo projetos de infraestrutura financiados com recursos públicos, uma vez que na Alemanha ainda ocorre um verdadeiro boom de construção pós-queda do Muro. Os estados da antiga Alemanha Oriental continuam recebendo meios públicos para projetos de infraestrutura através do adicional de solidariedade cobrado nos impostos; Berlim ainda se encontra no boom imobiliário depois da queda do Muro, da unificação, da mudança da capital e do aumento de atratividade da cidade em termos mundiais. Mas quem sabe avaliar quanto os gastos em infraestrutura feitos antes do anúncio da decisão da FIFA de que a Alemanha sediaria a Copa de 2006 influenciaram nesta decisão? Quem sabe avaliar quanto alguns políticos sonharam com a Copa e encaminharam projetos de infraestrutura antes dessa decisão ser anunciada? Economistas alemães fizeram as contas em 2009 e descobriram que os gastos públicos em todas as cidades-sede da Copa de 2006, incluindo todas as medidas de infraestrutura, somaram cerca de 7 bilhões de euros. Mas ainda assim é difícil vislumbrar um limite claro entre investimentos feitos exclusivamente para a Copa ou para outros fins. Simplesmente não se pode medir isso.
IHU On-Line - Quais foram as principais obras realizadas para o evento? Como se deram as relações de trabalho na realização das mesmas? Qual era a origem dos operários?
Christian Russau - Dos 12 estádios, 7 foram renovados e 5 foram construídos, com o custo total que citei antes, de 1,4 bilhão de euros. Mas, de novo, não se pode atribuir isso exclusivamente às demandas e necessidades da Copa. Por exemplo, os times de Bayern München e Schalke 04 já tinham tomado a decisão de construir um estádio próprio bem antes da Copa. Também todas aquelas exigências de ter cadeiras nos estádios (e acabar com os espaços da Geral) foram estabelecidas pela UEFA já nos anos 1990 para os times que participam da Liga dos Campeões ou da, à época, Copa UEFA [hoje, Liga Europa]. Infraestrutura, como falei, é algo que está sendo feito desde a reunificação, em outubro de 1990. Então, não se pode atribuir isso diretamente à Copa ou não.
No começo dos anos 1990, muitos operários vieram de Portugal ou da Irlanda. Depois, de outros países mais, sempre conforme a situação econômica de cada época. Na União Europeia, existe a livre escolha de onde trabalhar. Mas, para evitar que haja concorrência no mercado da construção civil de quem trabalha por um salário ainda menor que os outros, os sindicatos estão na luta faz anos para que tenhamos na Alemanha também um salário mínimo fixo válido para todos os empregos. O novo governo acabou de decidir que teremos isso na Alemanha a partir de 2017. O que já existe são salários mínimos para alguns setores. Na construção civil, por exemplo, se paga atualmente 11,10 euros por hora.
IHU On-Line - A população alemã aprovava a realização do torneio antes do início do mesmo? Quem se posicionava de modo contrário à realização do evento? Houve manifestações?
Christian Russau - Diferentemente do Brasil, na Alemanha não houve protestos e a grande maioria dos alemães era a favor da Copa. Por que isso? Na Alemanha não houve remoções, não houve os custos sociais que ocorreriam caso fosse realizada uma tentativa política de reestruturação das cidades em torno do argumento da Copa, porque os estádios já estavam lá, e a infraestrutura também.
Em Berlim houve um protesto de rua contra o Ministério de Relações Exteriores, que se negou a dar vistos para jogadores de rua de Gana e da Nigéria, que foram convidados a participar de um evento patrocinado pelo próprio governo federal: a copa do Streetfootballworld, cujo objetivo era trazer times juvenis de diversos países para campeonatos de futebol de rua na Alemanha. Essa era a ideia. Mas os pedidos de visto das equipes de Gana e daNigéria foram recusados. Segundo o ministro responsável, os menores sonhavam com uma carreira profissional de jogador de futebol no exterior [o que, na leitura do ministro, poderia incentivá-los a não voltar para os seus países de origem] — e aí os vistos foram negados. Altamente discriminatório. Qual o jovem de qualquer país que joga futebol de rua que não sonha com uma carreira profissional? Infelizmente, na Alemanha há ainda muito racismo — especialmente quando se fala de um racismo das instituições, que tenta se disfarçar.
Contra o racismo houve uma ação muito bacana na abertura da Copa do Mundo da Alemanha: era de um grupo de brasileiros, o Coletivo 3 de Fevereiro. Na fanfest, no meio de um milhão de pessoas, eles conseguiram passar pelos seguranças com uma bandeira antirracista de 20 metros por 15 metros com a frase “Know Go Area”, fazendo alusão ao alerta do conselho de africanos de Berlim sobre os “no go areas”. Os seguranças acharam que era uma enorme bandeira do Brasil e, quando a TV mostrou as imagens da multidão festiva lá na fanfest, de repente via-se aquela enorme bandeira desmascarando o racismo alemão — e o mundo inteiro está assistindo. Muito bacana.
Mas, em geral, quase não houve protestos contra a Copa. O que houve, sim, eram manifestações ligadas a um outro evento: os Jogos Olímpicos. Quando Berlim candidatou-se, entre 1991 e 1993, para os Jogos Olímpicos de 2000, formou-se um enorme movimento contra aquele megaevento, porque as pessoas temiam — com toda razão — todos aqueles processos de reestruturação da cidade que acompanham esses megaeventos.
E em Berlim, com a queda do muro e a reunificação da cidade, já vivíamos um enorme processo de reestruturação. Então, para aquele movimento “Berlin Nolympic City”, que era composto por pessoas dos mais diversos segmentos da sociedade, era óbvio que se deveria lutar contra a candidatura de Berlim para os Jogos Olímpicos de 2000. Com muitas manifestações, atividades e contrapropaganda, o movimento conseguiu abalar no exterior e no próprio comitê olímpico a imagem de uma Berlim feliz por ser cidade-candidata aos Jogos Olímpicos.
Como também os protestos em Munique no ano passado e o plebiscito de lá mostraram, a população está contra a cobiça do Comitê Olímpico Internacional - COI. Este sentimento as pessoas têm também em relação à FIFA, só que há uma diferença: contra a Copa na Alemanha ou a FIFA, ninguém foi a uma manifestação; contra os Jogos Olímpicos e o COI, sim. Isso tem a ver com a maior descentralização dos eventos da Copa, o que não acontece com os Jogos Olímpicos — onde praticamente tudo se passa em uma única cidade.
IHU On-Line - A Copa da Alemanha representou uma experiência inclusiva coletiva para a população ou foi um evento direcionado a uma minoria?
Christian Russau - Era difícil conseguir ingressos para os jogos, mas isso era mais algo por causa dos milhões de fãs do mundo todo que queriam assistir às partidas e nem tanto por causa do valor dos ingressos. As cidades organizaram grandes fanfests, com mais de um milhão de pessoas na rua, como ocorreu em Berlim, mas o que era muito maior (e muito mais bonito) eram as multidões de pessoas nos botequins, nos biergärten alemães, as pessoas que colocaram a TV e algumas cadeiras e sofás na rua para assistir aos jogos, com cerveja barata do supermercado e curtindo o verão que parecia não acabar nunca.
IHU On-Line - Houve alguma vantagem econômica ao país pela organização do torneio? O lucro econômico foi repartido por quem?
Christian Russau – Antes da Copa, o governo alemão estimou um aumento do consumo em torno de 10 bilhões de euros durante o evento, o que representaria 0,5% do Produto Interno Bruto - PIB. Nem pensar! Os dados macroeconômicos eram — segundo pesquisadores — muito menores. Conforme os cientistas do Instituto Alemão para Ciências Econômicas, a Copa não gerou “nenhum impulso conjuntural relevante” e os efeitos econômicos “não tiveram dimensão perceptível na economia”. A conclusão deles foi: “Não houve aumento do consumo privado durante o período da Copa”.
Em 2004, a Agência Federal para Trabalho e Emprego previa “100 mil novos empregos”. Dois anos mais tarde, em janeiro de 2006, a mesma agência já falava em apenas 50 mil empregos. E que tipo de emprego era esse? Segundo o próprio ministério, eram “em sua maioria empregos no setor de venda de refeições, em bares ou como segurança” — portanto, de curto prazo. Os únicos setores que aumentaram significativamente o volume de vendas foram três: a venda de equipamentos eletrônicos aumentou 5,2%, ou 227 milhões de euros, crescimento, em grande parte, atribuído aos novos televisores de tela plana; o setor hoteleiro do país recebeu 10% a mais de turistas do que o previsto, o que forneceu receitas extras de 220 milhões de euros; no setor de restaurantes e bares, não foram exatamente os restaurantes que ganharam, porque as vendas de refeições cresceram só 0,3% — o que cresceu drasticamente foi a venda de bebidas, que subiu 4,7%.
Afinal, a indústria que mais lucrou com a Copa na Alemanha foi a das cervejarias. E a FIFA, claro. Esta entidade de “utilidade pública”, sediada na Suíça, faz balanços de cada Copa do Mundo em períodos de quatro anos. Esses períodos costumam começar no dia 1º de janeiro, depois da realização da última Copa, e vai até 31 de dezembro do ano da Copa seguinte. O resultado, como ela mesma declarou: “No período de 1º de janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2006, a FIFA contabilizou receitas totais no valor de 3,238 bilhões de francos suíços, contra despesas totais de 2,422 bilhões. Disso resulta um resultado líquido de 816 milhões de francos suíços nos quatro anos. A FIFA fechou o período 2003–2006 com um resultado recorde de 816 milhões de francos. O capital próprio fechou 31 de dezembro de 2006 com 752 milhões de francos suíços, o maior valor nos 103 anos de história da FIFA”.
IHU On-Line - A FIFA solicitou privilégios e direitos especiais durante a realização da Copa? Quais foram atendidos? Quais foram negados?
Christian Russau - No dia 6 de julho de 1999, o governo social-democrata e verdes entregou à FIFA uma longa lista de garantias governamentais, anunciando medidas, assegurando amplos privilégios à associação futebolística, seus patrocinadores e parceiros, bem como aos jogadores das seleções de outros países e seus assessores: isenções fiscais, adaptações às taxas alfandegárias e modificações de leis para garantir os privilégios da FIFA. Somou-se a isto uma série de garantias relativas à modernização de estádios e a reivindicação da FIFA de reservar um raio de cerca de um quilômetro em torno dos estádios para que os direitos sobre marcas fossem adaptados às necessidades da entidade. Assim, os estádios de futebol se tornaram territórios licenciados pela FIFA e em torno deles só poderia haver publicidade e produtos dos seus parceiros comerciais. Aquela área de exclusividade para os patrocinadores oficiais da Copa não se limitou apenas aos estádios e arredores, mas a todos os lugares no país inteiro onde houvesse comemorações de torcedores e eventos relacionados à Copa.
Nos estádios, em vez da marca de cerveja preferida, os torcedores foram obrigados a tomar a cerveja americana Budweiser. O nomeBudweiser na Europa normalmente está associado unicamente à cerveja original com este nome, a Budweiser da República Tcheca. Mas, como aAnheuser-Busch, dona da marcaBudweiser, é patrocinadora da FIFA, pode vender a marca dela exclusivamente nos estádios com o nome Anheuser-Bud, uma cerveja que aqui na Alemanha quase ninguém bebe. Mas aí houve outros problemas, que a própria FIFA causou: próximo ao famoso estádio de Dortmund, no lugar chamadoWestfalenhalle, há muitos anos existe um “U” gigante em cima de um prédio fazendo propaganda para uma determinada marca de cerveja da região. Esse “U” é um símbolo popular na cidade. E o que exigiu a FIFA? Para proteger o seu patrocinador de cerveja para a Copa, a FIFA mandou que o “U” fosse retirado.
A cidade de Dortmund recusou-se a isso e somente conseguiu a liminar jurídica argumentando motivos de patrimônio histórico.
Em Colônia, a Fifa exigiu que uma parada de ônibus ao longo do estádio a qual leva o nome de uma fábrica fosse rebatizada por quatro semanas como “parada estádio da Copa”. Para isso, todos os folhetos da cidade com os roteiros de ônibus teriam de ser reimpressos. Mas a Prefeitura de Colônia não cedeu à pressão da FIFA.
Com tudo isso, a imagem negativa da FIFA na opinião pública cresceu ainda mais. As pessoas começaram a se convencer de que a FIFA é uma organização funcionando como uma máquina de dinheiro. Até o prefeito de Munique, Christian Ude, chegou a criticar publicamente os “acordos leoninos” da entidade.
IHU On-Line - Quem ganhou com a Copa de 2006? Qual é o sentimento dos alemães hoje em relação à FIFA?
Christian Russau - A FIFA fez aquele lucro enorme de 816 milhões de francos suíços. Mas somente hoje em dia os alemães estão começando a ter uma reflexão sobre a FIFA. Somente agora, com todos esses relatos nos jornais sobre os absurdos da Copa no Brasil e no Qatar, as pessoas aqui na Alemanha estão formando um sentimento generalizado de repúdio à FIFA. Só que querem ver a Copa. Torcemos ainda para que um dia a FIFA não seja mais a entidade que organiza e controla a Copa. Queremos o futebol de volta!

Militares, ciências, Educação Popular.

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