Saturday, July 26, 2014

MANIPULAÇÃO GLOBAL: Jornal Nacional manipulou documentos para criminalizar manifestantes, dizem advogados

Jornal Nacional manipulou documentos para criminalizar manifestantes, dizem advogados

Material veiculado pela TV Globo sequer foi disponibilizado para o desembargador do caso e nem para os advogados dos envolvidos.
A reportagem é publicada por Brasil de Fato, 24-07-2014.
A reportagem do Jornal Nacional, da TV Globo, que relacionou as manifestações no Rio de Janeiro com atos criminosos, mesmo sem ter provas concretas, não passou de uma ‘manipulação de narrativa’ e ‘criação de contextos próprios’.
A análise foi feita pelos advogados ativistas - grupo de advogados que atua em defesa dos manifestantes que vão presos em protestos de rua. A reportagem, que foi ao ar na segunda-feira (21), iniciou dizendo que a Globo teve acesso a ‘depoimentos de testemunhas e escutas telefônicas’.
Esse material, segundo os advogados ativistas, não foi sequer disponibilizado para o desembargador do caso e nem para os advogados dos envolvidos. “No entanto, a emissora conseguiu todo o material em ‘primeira mão’ e publicou no Jornal Nacional”, dizem.
No decorrer da reportagem, uma série de imagens violentas é transmitida pela emissora. Os advogados esclarecem que esse tipo de veiculação ‘é para que o telespectador faça inconscientemente a associação entre os acusados e os crimes’.
Nesta quarta-feira (23), o desembargador Siro Darlan, da 7ª Câmara Criminal do Rio de Janeiro, concedeu habeas corpus aos 23 ativistas que tiveram prisão preventiva decretada pela Justiça carioca. Em sua justificativa, Darlandeclarou que a ordem de prisão carece de fundamentação.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533606-jornal-nacional-manipulou-documentos-para-criminalizar-manifestantes-dizem-advogados


Thursday, July 24, 2014

A Igreja do Papa Francisco. Um pequeno decálogo. Artigo de Victor Codina

Um bom artigo do teológo jesuítas Victor Codina sobre a Igreja de Papa Francisco e a boa leitura do freio ao desenvolvimento do Concilio Vaticano II, no site do IHU:


A Igreja do Papa Francisco. Um pequeno decálogo. Artigo de Victor Codina

“Devemos afirmar que é uma ilusão pensar que as reformas e mudanças eclesiais vêm exclusivamente de cima. A história nos ensina que as grandes transformações da Igreja (como também da sociedade...) surgiram debaixo para cima, a partir de onde ordinariamente age o Espírito: desde os leigos, os pobres, as mulheres, a gente marginalizada. Cabe a todos renovar e reformar a Igreja a partir do Evangelho, convertendo-nos a Jesus de Nazaré e ao seu Reino. Sem a cooperação e a iniciativa da base, a Igreja nunca vai mudar.”
A reflexão é do teólogo jesuíta Víctor Codina, em artigo publicado no sítio espanhol Religión Digital, 20-07-2014. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Em 28 de fevereiro de 2013, Bento XVI abandonava o Vaticano, de helicóptero, para dirigir-se a Castel Gandolfo. Começava, assim, na Igreja católica o tempo chamado sede vacante, que terminou no dia 13 de março de 2013 com a eleição de Jorge Mario Bergoglio como Papa Francisco.
 
Fontehttp://bit.ly/1pbDEI3 
Mas, esta viagem de Bento XVI a Castel Gandolfo não encerrava apenas o seu pontificado, nem significava apenas uma substituição no Vaticano, mas suporia uma profunda mudança eclesial.
Para compreender esta afirmação devemos nos remontar ao tempo de João XXIII e à convocação do Concílio Vaticano II, em 1959. O Vaticano II (1962-1965) significou o “réquiem do constantinismo”, ou seja, a superação do estilo de Igreja da cristandade vigente desde o século IV e que se reforçou e consolidou no tempo de Gregório VII: uma Igreja convertida em uma grande instituição clerical, centralizada em Roma, fechada ao mundo, única âncora de salvação, uma espécie de grande pirâmide monárquica e vertical, triunfalista e dominadora.
Vaticano II oferece outra imagem de Igreja, Povo de Deus, que caminha com toda a humanidade rumo ao Reino de Deus, que respeita a liberdade religiosa e reconhece que o Espírito do Senhor dirige não apenas a Igreja católica, mas todas as Igrejas cristãs e todas as religiões e todos os povos para a salvação. Daí nasceu a índole misericordiosa, esperançosa e dialogante do Vaticano II, frente ao dogmatismo intransigente e inquisitorial da Igreja cristandade. Foi um verdadeiro Pentecostes, como João XXIII havia desejado e pedido.
Mas, este concílio inaugurado por João XXIII e encerrado por Paulo VI logo suscitou suspeitas, reações contrárias e medos. Criticaram-se os abusos e exageros cometidos em nome do concílio, temia-se a perda da identidade eclesial, preocupava o fato de que se pudesse chegar a uma ruptura e a uma divisão eclesial, eclodiram sentimentos de saudade da velha e tradicional Igreja da Cristandade, a Igreja das catedrais e das Sumas Teológicas...
Isto explica que os últimos anos do pontificado de Paulo VI (alguns acreditam que já a partir da publicação daEncíclica Humanae Vitae sobre a “pílula”, em 1968) e, sobretudo, nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, realizaram-se uma leitura e uma hermenêutica do Vaticano II mais em continuidade com a tradição anterior do que com a novidade e o aggiornamento que havia impulsionado o bom Papa João. A partir de então o impulso conciliador se diluiu e houve freios em todas as instâncias (liturgia, ecumenismo, colegialidade episcopal, autonomia das Igrejas locais, responsabilidade laical, profetismo da vida religiosa, novos sinais dos tempos, novas teologias, inculturação...) e se passou da primavera conciliar ao inverno eclesial.
Sem dúvida, João Paulo II teve um grande dinamismo geopolítico e queria reformar a Igreja e implantar o concílio, mas mantendo inalterada a doutrina e a estrutura eclesial existente. Não é casual que o Papa polonês fizesse parte do grupo minoritário do Vaticano II que dissentia de muitas das propostas conciliares e defendia a chamada “linha cracoviense”. Ratzinger por sua vez, apoiou teologicamente o pontificado de João Paulo II e uma vez eleito pontífice como Bento XVI buscou, sem dúvida, uma renovação eclesial, mas a partir de uma filosofia e uma teologia tão ortodoxas e racionais que fechavam o caminho para uma real inovação na Igreja.
Seria falso deduzir do que foi dito anteriormente que o Vaticano II não produziu frutos positivos, mesmo em meio ao inverno eclesial. Assim como seria falso acreditar que na época da Cristandade não houve grandes elementos de vida e santidade. O Espírito não deixa de vivificar sempre a Igreja e suscita continuamente movimentos de reforma e de retorno ao Evangelho: nunca na Igreja faltaram santos e santas, profetas e místicos, reformadores e renovadores. Mas não se pode ocultar que as consequências eclesiais da postura neoconservadora do pós-concílio foram funestas. Bento XVI, comentando o episódio evangélico da tempestade acalmada, confessava:
“Também hoje a barca da Igreja com o vento contrário da história, navega pelo oceano agitado do tempo. Tem-se muitas vezes a impressão de que está para se afundar. Mas o Senhor está presente”.
Na realidade, não era apenas o vento adverso da história que sacudia a barca eclesial, mas a própria estrutura da barca, muito pesada e com muitas rachaduras. Se a isto acrescentarmos os abusos sexuais do clero e os escândalos econômicos do Banco Vaticano, compreender-se-á o descrédito a que havia chegado a Igreja e o êxodo crescente de fiéis que abandonaram a Igreja. Não é estranho que Bento XVI, com grande humildade, realismo e coragem, renunciasse e afirmasse: “Já não tenho mais forças”.
Os gestos simbólicos do Papa Francisco
O novo Papa Francisco, antes de pronunciar discursos e escrever encíclicas foi realizando uma série de gestos simbólicos de grande carga significativa que foram facilmente captados por todo o mundo e foram amplamente difundidos pelos meios de comunicação.
Estes gestos foram mudando o ambiente eclesial dominante, aproximaram a Igreja do mundo de hoje e suscitaram a esperança de uma nova primavera eclesial: proclama-se simplesmente Bispo de Roma, assume o nome deFrancisco, o poverello de Assis que queria reformar a Igreja, pede orações por ele ao povo, beija um menino deficiente e abraça um homem com o rosto totalmente deformado, na Quinta-Feira Santa lava os pés de uma jovem muçulmana de uma prisão, em Assis come com crianças com síndrome de Down, vai à ilha de Lampedusa em sua primeira viagem para fora de Roma e joga uma coroa de flores amarelas e brancas ao mar em memória dos emigrantes mortos, convoca um dia mundial de oração e de jejum pela paz na Síria interpelado fortemente pelos rostos das crianças mortas por armas químicas, usa seus sapatos velhos em vez dos sapatos vermelhos de seu antecessor, opta por não morar nos Palácios Apostólicos Vaticanos, mas na residência de Santa Marta, viaja porRoma em um carro simples e pequeno para não escandalizar as pessoas dos bairros periféricos populares, responde a perguntas de um jornalista não crente, convida rabinos da Argentina para visitá-lo em Santa Marta, presenteia sapatinhos para o neto de Cristina Fernández de Kirchner, recebe Gustavo Gutiérrez, o pai da Teologia da Libertação, leva um ramo de flores à sepultura do Pe. Pedro Arrupe, convida quatro mendigos para o seu aniversário, visita favelas no Rio e casas de migrantes africanos em Roma... Estas “florzinhas do Papa Francisco”, assim como as “florzinhas de João XXIII”, foram facilmente entendidas pelo povo.
Os especialistas em semiótica ressaltam o valor significativo dos gestos simbólicos, que vão além das palavras, pois os símbolos sempre dão o que pensar. Isto é verdade, mas à margem desta explicação semiótica, há outra razão mais profunda que explica esta mudança de receptividade eclesial e mundial: estes gestos simbólicos de Francisco têm um profundo sabor evangélico, têm o cheiro do Evangelho, de Jesus de Nazaré. Por isso, não apenas seus gestos, mas também suas palavras são acolhidas agora de uma forma nova.
O que Francisco diz e faz não é senão traduzir o Evangelho para o mundo de hoje: está mais preocupado com a fome no mundo do que com os problemas intraeclesiais, afirma que mais do que se centrar obsessivamente nos problemas morais é preciso anunciar a grande alegria da salvação que vem de Jesus, sonha que a Igreja seja uma Igreja pobre e dos pobres.
Pouco a pouco foi acrescentando aos gestos simbólicos mensagens de grande conteúdo pastoral, desde as suas homilias diárias na Capela de Santa Marta até a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Se João Paulo II e Bento XVI eram professores universitários, Francisco é, sobretudo, pastor, como João XXIII.
Mudou totalmente o clima pastoral, há um ar novo vindo desta vez do Sul, “do fim do mundo”, do mundo dos pobres. Os gestos e palavras de Francisco não são fruto de uma improvisação, mas consequência do seu trabalho pastoral em Buenos Aires, do seu contato com o povo, com as favelas, com os padres “villeros”. Mudou também o clima eclesial, há alegria e entusiasmo entre os fiéis, há expectativa e surpresa nos ambientes sociais e políticos que o nomearam o Homem do Ano; 2013 foi o ano do Papa Francisco.
A Igreja do Papa Francisco
Depois de um ano, qual é o balanço do pontificado de Francisco, qual é a imagem da Igreja de Francisco que vai se desenhando? Quais são as características da Igreja segundo Francisco? Apresentamos um pequeno decálogo.
1. De uma Igreja poderosa, distante, fria, endurecida, medrosa, reacionária, da qual as pessoas se afastam e abandonam... a uma Igreja pobre, simples, próxima, acolhedora, sincera, realista, que promove a cultura do encontroe da ternura. O novo Bispo de RomaFrancisco, reconhece-se pecador e pede orações; recorda que a Igreja necessita de uma conversão e uma contínua reforma evangélica, uma reforma à moda Francisco de Assis.
2. De uma Igreja moralista obsessivamente preocupada com o aborto, com o controle de natalidade, com o casamento homossexual... a uma Igreja que vai ao essencial, que se centra em Jesus Cristo contemplado e adorado, recupera o Evangelho, anuncia a grande Boa Notícia da salvação em Cristo, pois Jesus é o único que atrai; quer difundir o cheiro do Evangelho de Jesus, pede aos jovens que não se envergonhem de ser cristãos, que coloquem Jesus Cristo no centro das suas vidas, a fé em Jesus Cristo é coisa séria, não uma fé descafeinada. Não pode ser um cristianismo de meras devoções, sem Jesus. O Papa, assim como Pedro, não tem ouro nem prata, mas traz o mais valioso: Jesus Cristo, Ele é a única riqueza. Mas um Jesus Cristo morto e ressuscitado; não se deve ficar no sepulcro, não se deve ser cristão de quaresma sem Páscoa... A alegria do Evangelho enche o coração de todos os que se encontram com Jesus.
3. De uma Igreja centrada no pecado e que fez do sacramento da confissão uma tortura e converteu o acesso aos sacramentos em uma alfândega inquisitorial... a uma Igreja da misericórdia de Deus, da ternura, da compaixão, com entranhas maternais, que reflete a misericórdia do Pai, uma Igreja sobretudo hospital de campanha que cura feridas de emergência, que cuida da criação, na qual os sacramentos são para todos, não só para os perfeitos. A convocação de um Sínodo sobre a Família e o questionário que enviou e que trata de temas pastorais urgentes como a situação dos divorciados recasados, a união de homossexuais, as relações pré-matrimoniais, o controle de natalidade e o magistério sobre a moral sexual... indica que há um desejo de ampliar o campo da misericórdia e estendê-lo a todas as situações conflitivas.
4. De uma Igreja centrada nela mesma, autorrefencial, preocupada com o proselitismo... a uma Igreja dos pobres preocupada sobretudo com a dor e o sofrimento humano, a guerra, a fome, o desemprego juvenil, os anciãos, onde os últimos sejam os primeiros, onde não se possa servir a Deus e ao dinheiro; uma Igreja profética, livre em relação aos poderes deste mundo; na Evangelii Gaudium afirma que o atual sistema econômico baseado na idolatria do dinheiro é injusto, pois enriquece alguns poucos e converte uma grande maioria em massas sobrantes, é um sistema excludente que mata; por isso, lança um “não” a uma economia de exclusão, um “não” à nova idolatria do dinheiro, um “não” ao dinheiro que governa em vez de servir, um “não” à desigualdade que gera violência. EmLampedusa, critica a atitude dos países ricos em relação aos emigrantes africanos e asiáticos, muitos dos quais morrem na tentativa de chegar às costas europeias: é uma vergonha, vivemos na bolha do consumo e com o coração anestesiado diante do sofrimento alheio; no Brasil, diz aos jovens que arrumem confusão e sejam revolucionários em busca de um mundo melhor e mais justo; afirma que as confissões religiosas do mundo inteiro devem unir-se para resolver o problema da fome e da falta de educação...
5. De uma Igreja fechada em si mesma, relíquia do passado, com tendência a olhar para o próprio umbigo, com sabor de estufa, que espera que os outros venham até ela... a uma Igreja que sai às ruas, “rueia a fé”, vai às margens sociais e existenciais, às fronteiras, aos que estão longe, mesmo sob o risco de sofrer acidentes; não teme uma Igreja minoritária e pequena, contanto que seja semente e fermento, que abra caminhos novos, que vá sem medo para servir, uma Igreja ao ar livre, que sai às sarjetas do mundo, uma Igreja em estado de missão.
6. De uma Igreja que discrimina os que pensam diferente, os diversos, os outros... a uma Igreja que respeita os que seguem sua própria consciência, as outras religiões, os ateus, os homossexuais, dialoga com não crentes, com judeus, nossos irmãos maiores, uma Igreja de portas abertas, atenta aos novos sinais dos tempos.
7. De uma Igreja com tendência restauracionista e que tem saudades do passado... a uma Igreja que considera que oVaticano II é irreversível, que é preciso implantar suas intuições sobre a colegialidade, evitar o centralismo e o autoritarismo no governo, caminhar em meio às diferenças. O próprio título de Bispo de Roma é uma confirmação da colegialidade episcopal, da colegialidade com seus irmãos bispos. O Papa reconhece que não tem resposta para todas as questões, que é preciso reformar o papado, que é preciso dar responsabilidades aos leigos, dar maior protagonismo à mulher, desclericalizar a Igreja, pois o clericalismo não é cristão.
8. De uma Igreja com pastores fechados em suas paróquias, clérigos de despacho, que buscam fazer carreira, que estão no laboratório e às vezes acabam sendo colecionadores de antiguidades, com bispos que sempre estão nos aeroportos... a pastores que cheiram a ovelha, que caminham na frente, atrás e no meio do povo; o carreirismo é a lepra do papado, a cúria é vaticanocêntrica e facilmente transfere sua visão ao mundo.
9. De uma Igreja envelhecida, triste, com gente com cara de cadáver ou com sorriso de aeromoça... a uma Igreja jovem e alegre, fermento na sociedade, com a alegria e a liberdade do Espírito, com luz e transparência, sem nada a ocultar, com flores na janela e cheiro de lar, onde os jovens sejam protagonistas, pois são como a menina dos olhos da Igreja.
10. De uma Igreja ONG piedosa, clerical, machista, monolítica, narcisista... a uma Igreja Casa e Povo de Deus, mesa mais que estrado, que respeita a diversidade, onde os leigos, as mulheres, as famílias jogam um papel relevante. É a Igreja de Aparecida, de discípulos e missionários para que os nossos povos em Cristo tenham vida, uma casa eclesial onde reina a alegria.
Na realidade, depois de um ano de sua gestão pastoral como Bispo de Roma podemos afirmar que com Franciscoretomou-se o Vaticano II que havia ficado de algum modo silenciado e estacionado. Não inventa nada de novo, reassume o impulso pentecostal do Vaticano II. A Igreja do Papa Francisco no fundo é a Igreja do Vaticano II, a mesma Igreja que sonhou João XXIII e que até agora havia sido fortemente freada e diluída. Volta a renascer uma primavera eclesial.
Não é pura casualidade que Bergoglio provenha da América Latina, uma Igreja que recebeu o Vaticano II com grande criatividade e profundidade: a Igreja de Medellín e Aparecida, a Igreja com alguns bispos verdadeiros Santos Padres da Igreja dos pobres – como Helder Câmara e Romero –, a Igreja das comunidades de base, da Bíblia devolvida ao povo, a Igreja da profunda religiosidade popular dos pobres, a Igreja de leigos comprometidos com a justiça e com a pastoral, a Igreja de uma vida religiosa inserida entre os pobres, a Igreja de numerosos mártires assassinados por defenderem a fé e a justiça.
Questionamentos e interrogações
É muito o que o Papa Francisco realizou em seu primeiro ano de pontificado, mas é muito o que ainda resta por fazer. Cabe a Francisco levar a término questões que o Concílio iniciou, mas não chegou a concretizar, como o modo de eleição dos bispos, fazer que os sínodos sejam não apenas consultivos, mas deliberativos, favorecer a autonomia e a responsabilidade das Igrejas locais...
E enfrentar o que o Vaticano II não tratou, mas que são tarefas e desafios urgentes: reforma do papado e da cúria, abandono de chefatura do Estado Vaticano, mudar o modo de eleição do Papa, revisão da estrutura de cardeais e núncios, abandonar o episcopado honorífico e sem diocese real dos dirigentes dos dicastérios da cúria, repensar o papel da mulher na Igreja, promover a ordenação de homens casados, revisar a moral sexual e matrimonial, a pastoral com os divorciados recasados, o problema da homossexualidade, a relação com os teólogos, assumir o grande desafio ecológico...
Acrescentemos a tudo isso a necessidade de responder à problemática religiosa e espiritual que surge do novo contexto sócio-cultural, científico e técnico do mundo de hoje, do novo tempo axial que está aparecendo com paradigmas que rompem os esquemas religiosos provenientes do neolítico – centrados no sacerdote, no altar e no sacrifício –, reagir diante das novas formas de espiritualidade e de agnosticismo, etc. Atualmente, o problema já não é, como no Vaticano II, perguntar: “Igreja, o que dizes de ti mesma”, mas “Igreja, o que dizes sobre o mistério de Deus”
Poderá um só homem levar a cabo estas reformas tão necessárias e urgentes? Não é carga excessiva para o primado de Pedro? Não deveria ser uma tarefa colegial de todos os bispos, mais ainda de toda a Igreja? Não é o próprio Francisco quem nos pede que todos sejam “audazes e criativos”?
Devemos afirmar que é uma ilusão pensar que as reformas e mudanças eclesiais vêm exclusivamente de cima. A história nos ensina que as grandes transformações da Igreja (como também da sociedade...) surgiram debaixo para cima, a partir de onde ordinariamente age o Espírito: desde os leigos, os pobres, as mulheres, a gente marginalizada. Cabe a todos renovar e reformar a Igreja a partir do Evangelho, convertendo-nos a Jesus de Nazaré e ao seu Reino. Sem a cooperação e a iniciativa da base, a Igreja nunca vai mudar.
 
Fontehttp://bit.ly/1pbDEI3 
Enquanto agradecemos ao Senhor pelo grande dom doPapa Francisco que devolveu a alegria à Igreja, estejamos dispostos a colaborar na renovação da Igreja. O Papa Francisco já nos abriu o caminho.
Terminamos com uma poesia de Rafael Alberti (1902-1999), poeta espanhol, na qual simula um diálogo entre a estátua de bronze de Pedro do Vaticano e o Senhor:
“Diz, Jesus Cristo
Por que me beijam tanto os pés?
Sou São Pedro aqui sentado,
em bronze imobilizado,
não posso olhar para o lado nem dar um pontapé,
pois tenho os pés gastados, como vês.
Faz um milagre, Senhor.
Deixa-me descer ao rio
voltar a ser pescador
que é o que sou”.

Tuesday, July 22, 2014

"É preciso apurar as noções de democracia, de união federal, sociedade livre, etc., se quisermos pensar o Brasil." Roberto Romano

Caderno Aliás, Estado de São Paulo, 19 de julho de 2014

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Novidade faisandée

Roberto Romano - O Estado de S. Paulo
19 Julho 2014 | 16h 00

Renovação do carcomido une tanto a ‘nova’ candidatura oficial quanto os ‘novos’ oposicionistas

Paulo Uchôa/Leia Já Imagens; Robson Fernajdes/Estadão; e Andre Dusek/Estadão
Evasivas. Todo debate que exige firmeza e competência é afastado pelos candidatos
Em sabatina realizada essa semana um candidato à Presidência da República, que se apresenta como arauto do novo na política, justificou suas alianças com políticos regionais retrógrados. Ele afirmou, sem titubear, ser preciso atingir o domínio do poder central que alimenta os mesmos coronéis para… acabar com os oligarcas! O enunciado doura a velha pílula distribuída a mancheias em eleições majoritárias do Brasil. Nada foi dito pelo candidato sobre o preço a ser pago aos velhos políticos pelo apoio recebido. A fuga, na campanha, de temas polêmicos em termos éticos, como no caso do aborto, é um verdadeiro lip service aos vetustos donos de votos. Modo geral, todos os itens dos debates que exigem firmeza e competência são afastados pelos candidatos, para não perder nas urnas. Temos aí o nó górdio do presidencialismo brasileiro. A vagueza dos programas de governo, requentados e postos ao dispor da Justiça Eleitoral, vem da ausência de ideologia, doutrina, política consistente, o que gera acertos esdrúxulos como os defendidos pelo candidato sob a capa do “realismo”. O exemplo torna evidente a crise de legitimidade que corrói o Estado brasileiro. A hipertrofia do Executivo federal é paga com trocas de cargos, atraso, controle dos eleitores, venalidade parlamentar, olhos cegos da Justiça. 

Nossa desordem institucional segue a ampla crise do Estado no âmbito planetário. A máquina de governar, firmada nos séculos 16 e 17 na Europa, mostra claros sinais de exaustão. Tomemos os famosos monopólios do Estado expostos por Max Weber. Durante séculos os engenheiros do poder civil tentaram impor aqueles monopólios usando a mentira (a raison d’État), a dissimulação, o segredo, a força desabrida contra os direitos da cidadania. Hoje, mesmo para Estados poderosos, é difícil a imposição legítima da força física (na polícia e na guerra). Finanças predatórias impedem arrecadar o suficiente para manter políticas públicas (saúde, educação, lazer, ciência e tecnologia). Quadrilhas ligadas ao comércio de drogas, tráfico de escravos, prostituição lavam dinheiro e desafiam sistemas penais. Até o Vaticano precisou suspender a nada santa lavanderia nele instalada, como muitos governos laicos. Os monopólios da força física, da norma jurídica e da captação dos impostos são ineficientes para atender às necessidades de uma população planetária que migrou para as grandes cidades. 

Políticas públicas exigem grandes recursos humanos e financeiros. Impossível garantir o controle urbano e dos elementos (solo, água, ar, por exemplo) sem gastos estratosféricos em formação de pessoas especializadas, laboratórios, máquinas. A ciência e a técnica precisam mover recursos em escala macrológica para atingir em parte os objetivos de fornecer água, energia elétrica, comunicação social, saúde pública, esgotos, vias públicas, empregos. A previdência social resume todos esses aspectos, pois deve garantir o futuro do idoso em ambiente urbano, inseguro, ameaçado por epidemias. 

Apenas um exemplo: a Darpa (Defense Advanced Research Projects Agency) dos EUA recebia há tempos cerca de US$ 3 bilhões para aplicar em pesquisa universitária sobre pontos vitais, como serviços e investigações médicas. Hoje, seu orçamento cresceu. Mas o incentivo monetário, naquele país, é bem maior no campo da defesa: em 1990, apenas em fundos “secretos” (que garantem a espionagem e outros itens da segurança nacional), o estimado pelos especialistas era de US$ 30 bilhões. Para manter o caixa em situação precária, naquele país ocorre uma guerra perene entre Executivo e Legislativo, guerra que se amplia ao plano da saúde pública, educacional, etc. Mesmo com eficaz política de taxação, a crise de 2008 abalou a economia e a ordem nacional. Municípios antes prósperos, como Detroit, encontram-se à beira da falência. Algo similar ocorre na Europa: a França, a Inglaterra e a Alemanha enfrentam de maneiras diferentes os desafios de manter políticas públicas estáveis. Outras nações, como a Espanha, a Itália e a Grécia, sofrem uma tempestade no plano fiscal e cortam direitos sociais antes garantidos. 

Se voltarmos os olhos ao Brasil, percebemos a fenda aberta diante da sociedade e dos poderes públicos. Quase atingindo a cifra de 200 milhões de habitantes, não possuímos meios para lhes garantir as condições básicas de existência moderna. O gasto nacional em ciência e tecnologia é de 1,74% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto nos EUA, China e Japão é de 3% a 4%. O sr. Luiz Inácio da Silva afirmou que, ao final do seu primeiro mandato, a aplicação em ciência e tecnologia seria de 4% do PIB. A desmesura da promessa mostra que os problemas mais prementes são tratados com superficialidade pelos partidos e líderes políticos. 

Sem ciência e técnica proporcionais ao tamanho de nossa população urbana, impossível propor ações que garantam direitos estáveis à cidadania. Num país em que cerca de 60% das coletividades não têm água e esgoto dignos do nome, é clara a camuflagem dos problemas operada pelos programas de governo, não só dos que habitam hoje os palácios como das oposições. 

Daí a retórica oca que fala em “mais novidade” e do “novo na política” e silencia sobre os meios e recursos a serem movidos para se estabelecer ou ampliar a infraestrutura necessária à técnica, à mobilidade urbana, etc. O palavrório da propaganda, em todos os partidos de grande porte, cala os projetos sérios nas políticas públicas. 

No que diz respeito à garrulice sobre o “novo”, Joe Klein, abalizado analista da propaganda e dos fatos eleitorais nos EUA, mostra que o truque de alardear a superioridade de uma candidatura surgiu com o gasto e conservador Richard Nixon em 1968. Como fazer votar numa pessoa que, diziam seus adversários democratas, não era fiável sequer para garantir a qualidade de um carro usado? Fácil: os marqueteiros idealizaram um “new Nixon” ao gosto do mercado. O truque deu certo, o que levou Daniel Boorstin a escrever (no livro The Image) que líderes inventados pelo marketing são “uma nova categoria do vazio”. A mágica de renovar o carcomido, no Brasil de hoje, é usada servilmente e causou a coincidência entre a “nova” candidatura oficial e as “novas” candidaturas oposicionistas, que se ocupam em preservar “o que está bom” sem ousar dizer o quê. Outros exemplos de cópia canhestra do marketing político norte-americano pela propaganda brasileira podem ser rastreados no livro de Joe Klein Politics Lost - From RFK to W: How Politicians Have Become Less Courageous and more Interested in Keeping Power than in Doing what’s Right for America. 

Nossa história escancara o controle férreo das províncias, depois Estados, pelo poder central. É como se as regiões, sobretudo as que se levantaram em armas (Rio Grande do Sul, Pernambuco, Pará, Bahia, São Paulo, para recordar apenas algumas), fossem submetidas ao butim permanente dos que dirigem o todo nacional. Resulta que a nossa “federação” concede pouquíssima autonomia aos Estados e municípios, em todas as políticas públicas. A partir de Brasília, regras uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional. Do Oiapoque ao Chuí há uma uniformização gigantesca que obriga os poderes regionais a se pautar pelo tempo longo da enorme burocracia federativa, perdendo tempo precioso para o experimento e modificações das políticas públicas em plano local. 

Em outras federações, como a norte-americana, vigoram leis diversas nos setores penais, educacionais, tecnológicos. No Brasil, a mão de ferro da Presidência controla, dirige, pune e premia os Estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes temporários do Planalto. Nesse controle, os vetustos oligarcas regionais surgem como operadores de face dupla: servem para trazer os planos do poder central aos Estados e para levar ao mesmo poder as aspirações de Estados e municípios. O lugar onde ocorrem as negociações entre os dois níveis (central e estadual) normalmente é o Congresso. Ali, Presidência e ministérios buscam apoio a seus alvos, inclusive e sobretudo na proposição de leis. É impossível conseguir recursos orçamentários sem as “negociações”. Assim, os planos de inclusão social e democratização societária patinam na enorme lama do “grande Brasil”, enquanto as unidades federadas aguardam as “providências” de uma burocracia lenta, incapaz de entender os vários ritmos e formas de vida e pensamento regionais. 

No âmbito fiscal, a concentração de poderes deixa Estados e municípios à míngua. Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas, como no caso das exportações, não são repassadas às unidades menores ou não são repassadas em tempo certo, permanecendo nos ministérios econômicos. Governadores e prefeitos são reduzidos à mendicância junto ao poder central. É praticamente impossível democratizar a sociedade sem a efetiva federalização do Brasil. Testemunhamos, todos os anos, a caminhada de prefeitos do país inteiro rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em leis eleitorais e de estruturas burocráticas. Enquanto tal situação permanecer, a fábrica de manobras corruptas (nas duas pontas, nos municípios e na capital da República) estará em pleno funcionamento. Uma Presidência limitada no tempo tenta pressionar o Legislativo para que ele emita leis favoráveis às pretensões do Executivo. De modo idêntico, vêm as pressões sobre o Judiciário para que reconheça a legitimidade das mesmas leis. 

Os compromissos com a república dos coronéis diminuem o ímpeto do planejamento sóbrio, da chamada às competências técnicas, do diálogo efetivo com os eleitores. As linhas frouxas dos programas partidários tocam superficialmente nas reformas (outro mantra que se repete há pelo menos 50 anos) necessárias. Fala-se em reforma política sem tocar na atual estrutura dos partidos: oligarquizada, nada receptiva para com os eleitores da base, pois consultas aos votantes do partidos deixaram de existir e jamais tivemos eleições primárias entre nós. O caixa do fundo partidário e os programas televisivos são propriedade dos dirigentes, ninguém é candidato sem o baciamano e a bênção dos donos de partido, que permanecem nas direções ad eternum. Tais posseiros da política mandam nos partidos, mesmo quando presos por sentença do STF. Falar em reforma sem democratizar as agremiações é puro escárnio. Para atender os financiadores de campanha, nenhum problema grave da economia, do urbanismo, dos transportes é tratado nos programas com rigor e profundidade. Para agradar à massa, nenhum tema controverso é discutido. A ladainha entoada por todas as candidaturas importantes vem de Poliana: tudo será róseo, se formos eleitos. Lembram o Fura-Fila, que ajudou um prefeito complicado a vencer eleições para a Prefeitura de São Paulo? Agora, o canto das sereias é ainda mais onírico, mais mentiroso, mais lesivo aos interesses do País.

É preciso apurar as noções de democracia, de união federal, sociedade livre, etc., se quisermos pensar o Brasil. Aqui, o modo de unir os Estados tem pouco de “federalismo”. Segundo a jurista Anna Gamper, “o federalismo combina o princípio da unidade e da diversidade. As partes constituintes devem ter poderes próprios e devem ser admitidas a participar do nível federal”. Mas Brasília controla os Estados, para que sustentem os interesses de quem ocupa a Presidência. As oligarquias regionais trazem os planos do Executivo nacional aos Estados e levam ao mesmo poder as pautas das regiões. 

Voltemos às alianças defendidas pelo “novo”candidato à Presidência (ele não é único a advogar tais acertos com velhos oligarcas): é no mercado entre candidaturas e coronéis que se evidencia o atraso do Estado brasileiro. Defender estratégias fundamentadas em acordos com políticos ultrapassados é propor ao eleitor um oxímoro conhecido, o de uma “novidade faisandée”, que cheira mal. Assim, os “programas de governo” exalam populismo sem descer aos problemas concretos do mundo e da nossa terra. Os candidatos e partidos sabem que a urna, por enquanto, é apenas a licença concedida para o arbítrio. Os príncipes absolutistas não precisam prestar contas a ninguém. Pior para a saúde, a educação, a segurança, os bolsos da cidadania. 
*
Roberto Romando é filósofo e professor de Ética na Unicamp

Ditadura nunca mais? Aparato policial e juridico parece não viabilizar o Estado Democrático de Direito.

"Se a sociedade não resiste, o autoritarismo se legitima"

Copa do Mundo acabou. Remoções, isenções tributárias, descumprimento de princípios constitucionais foram algumas das ações realizadas para a garantia da realização deste evento, e noticiadas pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em um especial publicado durante o mundial. A questão agora é pensar o que ficará para depois da Copa. Mas às vésperas do final, algumas pistas foram deixadas sobre outro possível legado: a violência policial e jurídica como tentativa de abafar manifestações.
A entrevista é de Viviane Tavares, publicada pelo sítio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), 11-07-2014.
Os principais casos aconteceram em São Paulo, quando dois ativistas foram presos, e no Rio de Janeiro, onde 26 prisões ‘preventivas' foram decretadas, sendo consideradas uma ilegalidade por diversas organizações e juristas. O Juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Roberto Souto, nesta entrevista, analisa essas ações que resultaram em prisão de manifestantes, fala sobre a Lei Geral da Copae aponta para o risco que o Brasil pode correr de continuidade deste Estado de Exceção que se deu durante o evento.
Eis a entrevista.
Qual é a fundamentação legal dos mandados de prisão temporária de mais de 40 manifestantes no Rio de Janeiro na véspera da Copa do Mundo? Que leis foram usadas como referência pela polícia civil e pela justiça?
Associação dos Juristas para a Democracia (AJD) fez uma nota repudiando este ato, citando exatamente as ilegalidades, porque teve pessoas que não haviam cometido nenhum crime e foram presas por uma suposição de que poderiam cometer algo ilegal. E, mesmo no ato de prisão, nada foi apresentado concretamente como elemento de acusação. Há um somatório de ilegalidade, até no ponto de vista da extrapolação de competência, com a polícia do Rio de Janeiro indo até o Rio Grande do Sul para fazer uma prisão.
A questão é que no direito existem controvérsias sobre como interpretar certas leis. De todo modo, no caso do direito penal, essas questões não são tão afeitas a isso. A privação da liberdade deve ser feita de forma muito clara, com algo muito evidenciado. E não há a possibilidade de prisões sobre cometimento futuro. Então, por mais que queiram trazer para o ponto de vista teórico do assunto, acho que realmente o caso em si foi cometido de ilegalidade.
De acordo com a AJD, isso só foi possível desta maneira para a preservação do evento da Copa a qualquer custo. E dentro deste propósito estava evitar manifestações e protestos. A partir disso, se instaurou na sociedade brasileira uma espécie de Estado de Exceção, visualizando a supressão temporária da ordem constitucional para uma finalidade que era fazer a Copa.
Outras prisões semelhantes aconteceram também envolvendo protestos contra a Copa do Mundo. O caso de Fábio Hideki que, segundo a polícia de São Paulo, foi preso "em flagrante delito", mas sem nenhuma prova que justificasse essa prisão, e está hoje no presídio em Tremembé é simbólico. Como você avalia este caso sobre a questão da legalidade e no seu caráter político?
O que está havendo no contexto geral é a quebra de um preceito fundamental, que é a presunção da inocência. As pessoas estão sendo presas sem uma acusação concreta. O vídeo que está circulando na internet prova isso. Ele [Fábio Hideki] foi simplesmente conduzido à delegacia, preso e só depois começaram a apresentar acusações sobre fatos que ele supostamente teria cometido. Isso é uma insegurança muito séria para qualquer cidadão:. Vê você primeiro ser preso e depois ser informado da acusação. Faz lembrar o clássico do Franz Kafka ‘O Processo', no qual um conjunto de acusações vem se formando paulatinamente e quebrando toda a ordem democrática de um Estado de Direito.
Polícia civil, justiça e polícia militar têm agido juntas nesses processos. Quais são as instâncias de governo e poderes envolvidas? Qual o papel dos governos estaduais, do governo federal e do judiciário nesses processos?
Nesse objetivo de preservação da Copa, que não é partidária porque todo mundo se envolveu, toda a estrutura repressiva acabou sendo visualizada neste sentido, com Exército, Polícia Civil e Militar para evitar as contestações políticas em relação à Copa. E foram cometidas várias arbitrariedades. Elas já existiam de certo, é verdade, mas chegaram a tal ponto... Em São Paulo, chegaram a cercar e sitiar uma praça com o batalhão da Tropa de Choque. Com isso, tentaram evitar que um debate ocorresse na localidade. Proibiram um ato de reunião e manifestação verbal. As pessoas não estavam interferindo no direito de ir e vir, no trânsito e foram tratadas como se criminosas fossem. Isso, em nenhum aspecto, pode ser justificado.
Em um texto recentemente publicado pela Boitempo, você diz que o que está em jogo é a vigência das instituições do Estado Democrático de Direito, com uma porta aberta para o Estado de Exceção. Em 1964, o marco do Estado de Exceção foi o Golpe. Qual pode ser o marco agora?
A gente sempre deve preservar o Estado Democrático de Direito. Mas nesses momentos o Estado usa o argumento da excepcionalidade para inviabilizar as próprias promessas da democracia. E qual a análise que faço disso? Que temos que preservar a democracia e evitar a todo custo qualquer tipo de exceção a esta ordem constitucional. Qualquer justificativa pode ser utilizada a todo tempo, a qualquer instante, e ferir direitos fundamentais dos cidadãos, que passam a ser meras abstrações.
Se vivemos num Estado de direito, com instituições democráticas em pleno funcionamento, mas essas instituições agem infringindo a lei e os direitos que deveriam garantir, qual o caminho? Existem instâncias internacionais com alguma capacidade real de intervenção?
A gente tem que pensar em nossa capacidade interna de mobilização, informação, contrainformação, para estabelecer uma resistência a este avanço autoritário. Se a sociedade não resiste, o autoritarismo se legitima, de uma forma incontestável mesmo do ponto de vista internacional, por exemplo. Mas, antes de tudo, devemos acreditar em nossa capacidade interna de não permitir que isso aconteça, fazendo acreditar que se essa arbitrariedade que atinge a um diz respeito a todos, porque pode atingir a qualquer um a qualquer instante. Além de ser uma preocupação com outro, passa a ser a preocupação consigo mesmo. Mas deve-se ter também uma preocupação solidária, de se colocar no lugar do outro e tentar sentir a dor dele.
Além do mais, a lógica autoritária não respeita nenhum tipo de coerência. Aproveitando o mote da Copa: a Fifa - que é uma entidade que lucra com superpoderes, não tem respaldo democrático nem popular e não possui instituições que a coordenem ou controlem - julga os casos como quiser e age como soberana. Imagina se isso passa a ser feito pelos governos?
No seu texto você compara o caso dos manifestantes presos com o caso de Raymond Whelan? Qual a relação entre eles?
Vale lembrar que o empresário foi solto, mas, agora, foi preso novamente. Naquele momento, ao suspender aquela prisão, ele estava sendo tratado como um cidadão que não gerava nenhum perigo para sociedade, uma pessoa que poderia responder em liberdade àquela acusação. Enquanto que o outro, o Fábio [Hideki], preso por estar em ato de solidariedade, com emprego fixo e estudante, foi tratado como criminoso incorrigível e perigoso para sociedade. Isso ajuda a mostrar como estávamos envolvidos em uma lógica de repressão aos movimentos sociais, sem muita coerência argumentativa.
As "provas robustas e consistentes" encontradas no Rio de Janeiro foram computadores, celulares, máscaras de gás lacrimogêneo, jornais subversivos, bandeiras, um cigarro de maconha e uma arma que era do pai de um dos acusados. Como você avalia esse cenário, do ponto de vista jurídico e político?
Poderíamos dizer que essas caracterizações são grotescas se não fossem trágicas, porque ferem os direitos fundamentais como o da liberdade ideológica. Todo mundo tem o direito de se posicionar a favor desta ou aquela teoria, daquilo que acredita. Mas, ao mesmo tempo, isso alimenta uma lógica autoritária, da quebra de um regime democrático, e não podemos esquecer que vivemos isso durante 21 anos, exatamente pelos mesmos motivos, pelo combate ao comunismo.
Você acha que a Lei Geral da Copa abriu precedente para esta repressão? E este legado repressor vai ficar após o fim do evento?
Lei geral da Copa abriu espaço para isso e para várias outras exceções do nosso Estado constitucional, principalmente, quando se trata de questões trabalhistas. A gente viu claramente questões que envolviam a ineficácia da ordem constitucional durante a Copa, como trabalhado voluntário, infantil, a ampliação da terceirização na construção civil, as horas extras. Do ponto de vista comercial, os espaços exclusivos para comercialização, a isenção do ponto de vista tributário, a dispensa de licitação. A Lei Geral da Copa abriu a excepcionalidade na ordem constitucional, atingiu as instituições, sobretudo quando elas vislumbraram a necessidade de preservar a exceção aberta pela lei e de constituir, na atuação policial, o impedimento das indignações. Embora a Lei geral da Copa não autorize de forma direta isso, especificamente com prisões, do ponto de vista principiológico, incentivou. Agora tem um risco: que ele seja preservado. E é a isso que devemos estar atentos, porque uma vez aberta a porta, as coisas tendem a ter uma continuidade. Não é pelo o que eu torço, evidentemente, mas temos que traçar o risco para evitá-lo.

O ensino a qualquer custo e a falta de compromisso com a educação brasileira. Entrevista especial com Daniel Cara

Entrevista na IHU sobre a educação brasileira:

O ensino a qualquer custo e a falta de compromisso com a educação brasileira. Entrevista especial com Daniel Cara

“O Plano Nacional de Educação - PNE foi aprovado praticamente por unanimidade por todos os partidos, e tanto nos programas de governo da candidata à Presidência da República Dilma Rousseff, como também dos candidatos Aécio Neves e Eduardo Campos, o PNE é quase totalmente marginalizado. Então, não existe um compromisso de fato em fazer com que o PNE seja um instrumento basilar da área de educação e da própria gestão pública como um todo”, adverte o cientista político.
Foto: criticabaixadasantista.blogspot.com.br
“O texto do Plano Nacional de Educação - PNE foi muito tímido perante as necessidades na área de educação (...) e é muito aquém das necessidades e daquilo que a sociedade brasileira precisava ter como base em um Plano Nacional de Educação”, avalia Daniel Cara, em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone.
PNE (PL 8035/10), aprovado na Câmara dos Deputados no mês passado, estipula as metas educacionais para os próximos dez anos com o objetivo de melhorar os índices educacionais do país.
De acordo com Daniel Cara, alguns pontos acrescentados ao Plano pelos parlamentares são “contraditórios com o conjunto do texto”, como a permissão para parcerias público-privadas e a remuneração dos professores por resultados. “O problema é que remunerar os professores por cumprimento de metas relacionadas a testes padronizados acaba sendo uma medida contraproducente à qualidade da educação, a qual tem sido revogada mundo afora. Então, infelizmente, o Plano estimula no Brasil uma prática que já é ultrapassada em países mais desenvolvidos em termos educacionais”, critica.
Coordenador Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação desde junho de 2006, Daniel Cara assinala que, entre as propostas do PNE, destaca-se a tentativa de universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até 2020, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%. Outra preocupação do Plano é em relação à redução das taxas de analfabetismo e analfabetismo funcional de 30 milhões de brasileiros, sendo destes pelo menos dois milhões de jovens. Segundo ele, o ensino brasileiro, sobretudo os anos finais do ensino fundamental, “que é exatamente a etapa anterior ao ensino médio, é de baixa qualidade. (...). Isso resulta em uma população que, quando ingressa na universidade, não tem a formação básica necessária para fazer um bom curso e depois se tornar um profissional pleno. Trata-se, portanto, de um prejuízo grande para o próprio desenvolvimento do país”.
Favorável à expansão do ensino superior no Brasil, ele é categórico: “não dá para expandir a educação superior a qualquer custo e em qualquer nível, é preciso expandir a educação superior com qualidade, e isso não é tão simples”. As melhorias e os investimentos devem ser feitos na educação superior pública, sugere, e reitera: “O ponto chave que precisa ser bastante providenciado é que Prouni e Fies devem ser tratados como medidas emergenciais, mas dificilmente se tornarão medidas emergenciais, porque têm grande impacto social. É claro que é melhor o acesso a alguma educação de ensino superior do que nenhuma, mas a qualidade dessa educação superior é muito baixa. A capacidade dessa educação superior com Prouni ou Fies em gerar, por exemplo, melhor empregabilidade ou conseguir romper as dificuldades econômicas brasileiras em áreas que são chave, é enorme, porque a formação é quase sempre pior do que a formação ofertada pelas escolas técnicas de nível médio.
Então, não vejo Prouni e Fies como a solução, nem como a principal política de expansão da educação superior, como tem sido tratado pelo governo. A principal política de expansão da educação superior tem de ser na educação pública superior; é essa que tem, tradicionalmente, mais qualidade”. A crítica se estende ainda à atuação do Ministério da Educação na fiscalização dos cursos nas universidades privadas, que foram amplamente expandidas em todo o país. “OMinistério da Educação regula um pouquinho as áreas que considera mais sensíveis, como a do Direito, da Medicina, mas, por exemplo, nos cursos de licenciaturas e Pedagogia, se vê que essa regulamentação não ocorre. Como resultado, percebemos que tem aumentado muito a quantidade de professores que não têm condições de dar aula.”
Daniel Cara também questiona o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego - Pronatec, o carro-chefe do governo federal. “Do lado de educação técnica de nível médio, a perspectiva do plano é de enfrentamento à nova visão do Pronatec da presidente Dilma, que tem uma visão do ‘curso a qualquer custo’. Então, é oferecido qualquer curso para qualquer formação profissional, o qual não garante empregabilidade. (...)
Pronatec traz muito retorno para o governo por conta da facilidade na criação de matrículas, pelo retorno de propaganda e, além disso, traz um retorno que faz parte do jogo político, que é o de financiamento de campanha, como oProuni e o Fies também trazem”, enfatiza.
Daniel Cara é bacharel em Ciências Sociais e mestre em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP. É membro titular do Fórum Nacional de Educação e foi membro da direção da Campanha Global pela Educação entre janeiro de 2007 e fevereiro de 2011. Hoje é membro doComitê Diretivo da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação - Clade.
Confira a entrevista.
Foto: educacaointegral.org.br
IHU On-Line - Qual era a proposta do Plano Nacional da Educação - PNE original e quais mudanças foram feitas ao longo do processo de tramitação no Congresso? Como ficou o texto aprovado na Câmara dos Deputados no dia 25 de junho?
Daniel Cara – O texto original do PNE foi muito tímido perante as necessidades na área de educação e as próprias expectativas da área, porque ele deveria ter sido pautado pelas diretrizes aprovadas na Conferência Nacional da Educação, e não foi o que aconteceu. Então, é um plano muito aquém das necessidades e daquilo que a sociedade brasileira precisava ter como base em um Plano Nacional de Educação.
O texto que foi sancionado e está publicado, está bem mais próximo das necessidades da área. Para se ter uma ideia de um parâmetro comparativo importante, o texto original do Plano Nacional de Educação, proposto no governo Lula, apontava 7% do PIB para investimento público em educação, considerando parcerias público-privadas. Mas, em 26 de junho de 2012, nós conquistamos, na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a aprovação de 10% do PIB para a educação pública. Então, o texto desconsiderava parcerias público-privadas, mas na versão final publicada, foram determinados investimentos da ordem de 10% do PIB em parcerias público-privadas. Esse é um dos aspectos que não ficou bom no plano, porque nós acreditávamos que o correto seria um investimento público na educação pública. Mesmo assim, o plano é mais ousado e muito mais consistente em termos educacionais do que o plano original enviado pelo presidente Lula, e isso aconteceu essencialmente por conta da participação da sociedade civil.

“O analfabetismo absoluto é uma chaga social brasileira que precisa ser resolvida”

IHU On-Line - Que outras propostas discutidas foram ou não acrescentadas ao PNE?
Daniel Cara – Houve questões que foram acrescentadas ao plano e que são até contraditórias com o conjunto do texto, como, por exemplo, a permissão para parcerias público-privadas e a questão da remuneração dos professores por resultados. Esse aspecto não constava no texto original, nem era parte das demandas da sociedade civil, mas foi adicionado tanto por parlamentares ligados ao governo como por parlamentares ligados à oposição. O problema é que remunerar os professores por cumprimento de metas relacionadas a testes padronizados acaba sendo uma medida contraproducente à qualidade da educação, a qual tem sido revogada mundo afora. Então, infelizmente, o Plano estimula no Brasil uma prática que já é ultrapassada em países mais desenvolvidos em termos educacionais.
IHU On-Line – Apesar desses problemas, você menciona que o PNE tem a possibilidade de mudar a realidade da educação pública brasileira, possibilitando escolhas com padrão mínimo de qualidade. O que é o Custo Aluno Qualidade Inicial? Qual a situação das escolas brasileiras em relação ao Custo Aluno Qualidade Inicial?
Daniel Cara – O Custo Aluno Qualidade Inicial - CAQi é um mecanismo de financiamento da educação, desenvolvido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a partir de 2002, na época do governo Fernando Henrique Cardoso. É um mecanismo que contabiliza quanto custa a educação pública de qualidade para o alcance de um padrão mínimo de qualidade, e está pautado na precificação de insumos e na garantia desses insumos para todas as escolas públicas. Então, quais são os insumos? O primeiro grupo está relacionado à valorização dos profissionais da educação. Isso significa remuneração inicial dos professores adequada, uma política de carreira que mantenha os professores motivados, que mantenha a carreira docente com professores que estão de fato envolvidos no processo do magistério, como também a formação continuada desses profissionais. O segundo grupo está relacionado à organização escolar, especialmente à distribuição do número de alunos por turma, porque salas superlotadas são completamente improdutivas em termos educacionais. E, por último, existem os insumos infraestruturais que todas as escolas têm de ter, como laboratórios de informática, bibliotecas, laboratórios de ciências e quadras poliesportivas cobertas.
Hoje apenas 0,6% das escolas brasileiras tem esses insumos, especialmente os infraestruturais. Para que todas as matrículas atuais alcançassem esse padrão de qualidade, seriam necessários investimentos anuais na ordem de 46 bilhões de reais, segundo estimativa de 2012, os quais precisam ser reajustados sempre que se verificar a necessidade. Praticamente a totalidade desse recurso de 46 bilhões, segundo o Plano Nacional de Educação, tem de ser transferida do governo federal para governos estaduais e municipais, como prevê o paragrafo 1º do artigo 211 da Constituição.

“O PNE propõe que em 10 anos seja possível universalizar a alfabetização”

IHU On-Line - Entre as metas do PNE, pretende-se universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até 2020, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%, nesta faixa etária, e elevar a escolaridade média da população de 18 a 24 anos de modo a alcançar o mínimo de 12 anos de estudo para as populações do campo, da região de menor escolaridade no país e dos 25% mais pobres, além de igualar a escolaridade média entre negros e não negros, com vistas à redução da desigualdade educacional. Tendo em vista essas metas, pode nos dar um panorama em relação à quantidade e à qualidade dos ensinos fundamental e médio brasileiro? Há uma crítica positiva no sentido de dizer que mais crianças estão na escola, contudo, permanecem as críticas negativas acerca da qualidade do ensino brasileiro. Como se mede e avalia quantidade e qualidade no ensino?
Daniel Cara – O ensino fundamental, especialmente os anos finais, que é exatamente a etapa anterior ao ensino médio, tem um forte déficit de qualidade: o ensino oferecido é de baixa qualidade e não permite a apropriação da cultura pelos alunos, e isso deve ser o objetivo fundamental da educação. Isso resulta em uma população que, quando ingressa na universidade, não tem a formação básica necessária para fazer um bom curso e depois se tornar um profissional pleno. Trata-se, portanto, de um prejuízo grande para o próprio desenvolvimento do país. O ensino fundamental, aparentemente, está resolvido em termos de matrículas, mas só aparentemente, porque as populações do Norte e Nordeste do país, as populações do campo, quilombolas, indígenas e as pessoas com deficiência não têm acesso ao ensino fundamental e muito menos ao ensino médio. Então, ainda temos de criar um volume grande de matrículas, especialmente nessas regiões, para dar conta das demandas educacionais.
Em termos de qualidade, os dados são sofríveis. O PNE aponta caminhos interessantes, como, por exemplo, maior uso de tecnologias nas escolas — claro que isso adiciona um custo — e estratégias pedagógicas que estimulem os alunos a práticas mais criativas do que as práticas tradicionais das escolas. Então, existem caminhos que foram determinados peloPNE, os quais precisam ser equilibrados. Agora, resta saber quais serão os esforços dos governos em cumprir o Plano Nacional da Educação.

“Precisamos expandir a educação superior e precisamos fazer isso urgentemente”

Eleições
Um dado extremamente estarrecedor é o de que o PNE foi aprovado praticamente por unanimidade por todos os partidos, e tanto nos programas de governo da candidata à presidência da República Dilma Rousseff, como também dos candidatos Aécio Neves e Eduardo Campos — e que a verdade seja dita, Eduardo Campos soube trabalhar melhor essa questão —, o PNE é quase totalmente marginalizado. Então, não existe um compromisso de fato em fazer com que o PNE seja um instrumento basilar da área de educação e da própria gestão pública como um todo, porque o esforço do Plano Nacional da Educação é fazer com que ele seja uma lei central dentro do conjunto da administração pública e não só da área de educação. Até porque, obviamente, oPNE vai envolver um esforço grande da área de planejamento, orçamento e gestão do Ministério da Fazenda, por conta do aumento dos recursos que dirige. Portanto, é extremamente preocupante o fato de os candidatos escantearem o PNE.
IHU On-Line - Outra meta do PNE é elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e erradicar, até 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional. Quais são as causas do analfabetismo funcional, e é possível estimar o percentual de analfabetos funcionais no país?
Daniel Cara – É possível determinar a quantidade de analfabetos funcionais pelas metodologias — que agora são oficiais porque são do IBGE. A ideia de analfabetismo funcional é do Instituto Paulo Montenegro, vinculado à empresa IBOPE. Segundo dados oficiais, existem hoje no Brasil quase 30 milhões de analfabetos funcionais; isso significa que deveríamos reduzir esse volume para 15 milhões, segundo o PNE. O analfabetismo absoluto é uma chaga social brasileira que precisa ser resolvida. A responsabilidade do analfabetismo obviamente não é do cidadão analfabeto, porque ele foi vítima de uma sociedade extremamente trivial; trata-se de uma responsabilidade do Estado brasileiro. Esta questão está posta naConstituição de 88, que previa, em 10 anos, a universalização da alfabetização no país. Essa meta não foi alcançada nem conquistada, porque hoje os governos tratam a questão do analfabetismo como uma questão secundária; praticamente se tem a expectativa de que os analfabetos faleçam, porque em geral é uma população mais velha, muito embora o país tenha cerca de 2 milhões de jovens analfabetos. Trata-se de um desrespeito enorme ao direito das pessoas, uma falta de compromisso público flagrante, mas é um fato. Como nós não aceitamos esse fato, porque trabalhamos na perspectiva do direito, o PNE propõe que em 10 anos seja possível universalizar a alfabetização.

“O setor privado na educação — salvo raríssimas exceções — é extremamente dedicado ao núcleo mais fácil, então, investe muito pouco na universidade, remunera mal os professores e não se preocupa com os critérios de educação”

IHU On-Line - Outra meta é oferecer educação em tempo integral em 50% das escolas públicas de educação básica. Qual é o percentual de escolas públicas que oferecem ensino em tempo integral e qual a importância dessa medida para a formação das crianças e jovens?
Daniel Cara – Essas são medidas complexas, e o mais importante dessa meta é a referência para 25% das matrículas. O dado de quantas escolas oferecem educação em tempo integral no Brasil não é seguro em relação ao que existe hoje. Às vezes uma escola tem uma turma com aula em tempo integral e o restante das turmas não, mas se contabiliza como ensino integral. Por outro lado, de vez em quando o governo solta um dado, depois solta outro, então, num momento é um milhão de matrículas em tempo integral, em outro são dois milhões. O fato é que o Brasil tem de alcançar um quarto de suas matrículas em educação básica pública em tempo integral no final do plano em educação, ou seja, 10 milhões de matrículas. É um número bastante alto, mas é uma meta cumprível, e não está entre as metas mais difíceis.
O que torna o cumprimento da meta mais difícil é exatamente a qualidade da educação integral ofertada. Então, se a educação integral for pautada pelo ocupacionismo, que é simplesmente dar uma atividade de contraturno, normalmente uma atividade desvinculada do projeto político-pedagógico e mais vinculada ao lazer, a meta é cumprida com maior facilidade, mas sem os resultados esperados, sem garantir maior aprendizado, melhor formação dos estudantes, sem promover cidadania. Agora, se for para fazer do jeito correto, é muito mais difícil, o que significa articular a educação integral por meio de um projeto político-pedagógico, envolver os professores e não só os oficineiros e fazer atividades que tenham sentido dentro desse projeto político-pedagógico. Então, as atividades culturais têm de corresponder ao projeto político-pedagógico e gerar relação entre as áreas de ciência, geográfica, eventualmente o ensino de música à matemática, por exemplo. Esse desafio da educação em tempo integral mais completo e mais consistente vai determinar qual a capacidade do Estado brasileiro de cumprir essa meta.

“New York Times e Wall Street Journal apontam que o mercado da educação privada, principalmente de ensino superior no Brasil, vai ser o maior mercado do mundo em educação”

IHU On-Line - Elevar a qualidade da educação superior pela ampliação da atuação de mestres e doutores nas instituições de educação superior para 75%, no mínimo, do corpo docente em efetivo exercício, sendo, do total, 35% doutores, está entre as metas para o ensino superior. Qual a importância de elevar o número de pessoas com formação superior no país, e como se dá a relação entre a formação superior e a formação técnica no Brasil?
Daniel Cara – O avanço do ensino superior é desejável, porque oBrasil tem uma taxa de escolarização bruta da população muito baixa e uma taxa de escolarização líquida praticamente irrisória, se comparado até com países da região. A taxa de escolarização líquida está próxima de 14% da população e a estimativa é de que se tenha uma taxa mais próxima à da Argentina só daqui a dez anos. A educação superior naArgentina é tratada como um bem público e o aluno pode reivindicar a matrícula. O ponto central de toda a história é que nós precisamos expandir a educação superior e precisamos fazer isso urgentemente. Agora, não dá para expandir a educação superior a qualquer custo e em qualquer nível, é preciso expandir a educação superior com qualidade, e isso não é tão simples.
No Plano Nacional de Educação determinamos uma demanda de cinco milhões de novas matrículas na educação superior, sendo que, destas, dois milhões devem ser feitas na rede pública. Esse é um caminho que acreditamos que pressione pela qualidade, especialmente no setor privado, que, ao ver esses dois milhões de matrículas, tente disputar a atenção dos alunos, porque o setor privado na educação — salvo raríssimas exceções — é extremamente dedicado ao núcleo mais fácil, então, investe muito pouco na universidade, remunera mal os professores e não se preocupa com os critérios de educação.
Educação técnica e a propaganda do Pronatec
Agora, do lado de educação técnica de nível médio, a perspectiva do plano é de enfrentamento à nova visão do Pronatecda presidente Dilma, que tem uma visão do “curso a qualquer custo”. Então, é oferecido qualquer curso para qualquer formação profissional, o qual não garante empregabilidade. O Plano Nacional de Educação pretende criar um milhão de novas matrículas públicas para técnico profissional de nível médio, e isso vai fazer uma grande diferença, porque a boa escola pública brasileira é a escola técnica, que tem de longe a melhor qualidade. Essa é a matrícula que tem de se expandir, e não a matrícula do Pronatec.
IHU On-Line - O Plano Nacional de Educação tem a intenção de substituir o Pronatec nesse sentido?
Daniel Cara – Não vai ter esse risco porque o Pronatec traz muito retorno para o governo por conta da facilidade na criação de matrículas, pelo retorno de propaganda e, além disso, traz um retorno que faz parte do jogo político, que é o de financiamento de campanha, como o Prouni e o Fies também trazem. A participação do setor privado na área de educação tende a subir nos próximos anos; o New York Times e o Wall Street Journal apontam que o mercado da educação privada, principalmente de ensino superior no Brasil, vai ser o maior mercado do mundo em educação, porque há também a disposição do governo em transferir recursos.
Isso tudo gera um tensionamento em relação ao que propõe o Plano Nacional de Educação, mas o PNE não vai conseguir suplantar todo esse contexto criado pelo governo em relação à educação.
IHU On-Line - O índice de não empregabilidade dos alunos do Pronatec é alto?
Daniel Cara – Não dá nem para saber qual é o índice do Pronatec; é pior do que isso. Quando se perguntou para oMinistério da Educação, há uma semana, durante a final da Copa do Mundo, qual era o grau de retorno do Pronatec, oMinistério assumiu que não tem essa resposta. Não sei se nos últimos dias conseguiram buscar esse dado.
IHU On-Line – O senhor mencionou que não se pode expandir o ensino universitário a qualquer custo. Nesse sentido, como avalia programas como Prouni e Fies e as políticas públicas dos últimos anos em relação ao acesso à universidade? Há críticas positivas, no sentido de que possibilitou o ingresso de mais estudantes ao ensino superior e, por outro lado, há críticas negativas, no sentido de que os alunos chegam à universidade com deficiências na formação básica; ao mesmo tempo, abriram muitas universidades de baixa qualidade e há um interesse maior pelo diploma do que pelo ensino. Que contradições o senhor percebe em relação a essas questões e que modelo de país está se formando com essas políticas?
Daniel Cara – O problema do Fies e do Prouni não é de custo, até porque as matrículas não custam tanto para as universidades privadas como custam para as públicas. Hoje, a educação básica fica com 85 centavos e o ensino superior fica com 15, essa é uma distribuição que está aquém inclusive dos países mais desenvolvidos, em que a educação superior chega a ficar com 30, 20% do investimento geral da educação. Então, precisa, sim, ter um investimento maior no ensino superior, porque vai ter expansão de matrículas, como também precisa ter na educação básica. No todo, em números absolutos, o investimento tem de aumentar bastante.
Agora, o ponto chave que precisa ser bastante providenciado é que Prouni e Fies devem ser tratados como medidas emergenciais, mas dificilmente se tornarão medidas emergenciais, porque têm grande impacto social. É claro que é melhor o acesso a alguma educação de ensino superior do que nenhuma, mas a qualidade dessa educação superior é muito baixa. A capacidade dessa educação superior com Prouni ou Fies em gerar, por exemplo, melhor empregabilidade ou conseguir romper as dificuldades econômicas brasileiras em áreas que são chave, é enorme, porque a formação é quase sempre pior do que a formação ofertada pelas escolas técnicas de nível médio. Então, não vejo Prouni e Fiescomo a solução, nem como a principal política de expansão da educação superior, como tem sido tratado pelo governo. A principal política de expansão da educação superior tem de ser na educação pública superior; é essa que tem, tradicionalmente, mais qualidade.

“Os principais avanços do Brasil na área da educação são frutos do trabalho da sociedade civil, embora haja tentativas do governo de se apropriar dessas conquistas”


IHU On-Line - Investimento em universidades públicas evitaria o crescimento de tantos Centros universitários e universidades de baixa qualidade?
Daniel Cara – Exato! O Ministério da Educação regula um pouquinho as áreas que considera mais sensíveis, como a doDireito, da Medicina, mas, por exemplo, nos cursos de licenciaturas e Pedagogia, se vê que essa regulamentação não ocorre. Como resultado, percebemos que tem aumentado muito a quantidade de professores que não têm condição de dar aula.
IHU On-Line - O problema da educação brasileira não é financeiro, está relacionado à qualidade do ensino desde a formação dos professores nessas novas universidades como depois, na formação dos alunos?
Daniel Cara – O problema não é financeiro em partes. Ele não é financeiro na medida em que considera que se investe muito em educação superior, o que não é verdade. Deveria se investir mais em educação básica e em educação superior em números absolutos. Por que tem de se investir mais em educação superior? Porque tem de expandir a educação pública superior que é de qualidade. A qualidade da educação básica pública é o desafio. Agora, esse desafio precisa ser cumprido porque os estabelecimentos privados, em sua grande maioria, salvo raríssimas exceções, como universidades confessionais — e não são todas as confessionais — são ruins. Existem algumas universidades privadas que são muito boas, como a FACAMP, mas são poucas. Claro que em relação aos cursos de Pedagogia é bem fácil identificar esse problema, porque em geral são de baixíssima qualidade nas universidades privadas.
IHU On-Line - O PNE diz algo em relação ao método de ensino? Nas discussões sobre educação, como tratam a questão relacionada ao método de ensino?
Daniel Cara – O PNE não trata sobre isso, porque a liberdade sobre o método de ensino está alicerçada naConstituição Federal, no artigo 206. O debate sobre qual método é mais adequado é restrito a cada escola, porque é um debate contextualizado. Não dá para achar, em um país tão diverso como o Brasil, que um método de ensino seria capaz de garantir educação para todas as pessoas.
O que o PNE sugere é a criação de uma base comum nacional dos currículos. Por que é importante criar essa base comum? Para ter algumas referências. Agora, essas referências não podem nem coibir a autonomia do professor em contextualizar a sua aula, nem diminuir a margem de ensino relativo às culturas e às peculiaridades regionais. É preciso uma base, uma referência, mas não uma “receita de bolo”.

“O principal desafio do plano é a valorização do magistério”

IHU On-Line - Muito se fala na destinação dos recursos do petróleo para a educação, mas esses recursos sequer existem atualmente. Em termos de recursos, o que é possível fazer hoje para melhorar a educação brasileira?
Daniel Cara – O recurso do pré-sal vai começar a chegar, e é uma fonte promissora de recursos, mas não é suficiente. Vamos precisar ter outras fontes de recursos, entre elas o imposto sobre grandes fortunas, que está determinado na Constituição. Além disso, tem de ser feito um remanejamento orçamentário; não adianta acreditar que o PNE será desenvolvido sem nenhum sacrifício. A população brasileira se sacrificou pela implementação do Plano Real, e graças a esse sacrifício conseguiu controlar a inflação. A inflação está pressionando novamente a economia, mas hoje há mais controle no Brasil do que existia no passado.
IHU On-Line - Como o PNE trata da educação escolar indígena?
Daniel Cara – O plano não se propõe a resolver todas as questões e em alguns casos tangencia a resolução real do problema. A população indígena aponta para uma necessidade própria, tese com a qual praticamente todo o resto da área de educação discorda, porque o sistema de educação indígena, contextualizado no sistema brasileiro, deixaria de ter a comunicação necessária para que todos os cidadãos brasileiros tivessem apropriação da cultura indígena e, por outro lado, a cultura indígena também tivesse um processo de intercâmbio com a cultura das populações de regiões urbanas, da própria região do campo.
Nesse sentido, o PNE traz o desafio de tentar criar certa unidade na gestão da política de educação, mas uma unidade que não oprima as peculiaridades, quer dizer, uma unidade pautada inclusive pela diversidade.
IHU On-Line - Quais os avanços e retrocessos em relação à educação no país nos últimos anos?
Daniel Cara – Os principais avanços do Brasil na área da educação são frutos do trabalho da sociedade civil, embora haja tentativas do governo de se apropriar dessas conquistas. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - Fundeb, que superou o Fundec — que inicialmente era um projeto do presidente Lula, mas, assim como o PNE, era muito tímido e não contemplava a participação financeira do governo federal e não incluía as creches —, hoje conta com a participação do governo federal, assim como inclui as creches. Então, foi a sociedade civil que conquistou esses dois pontos.

“O ensino fundamental, especialmente os anos finais, que é exatamente a etapa anterior ao ensino médio, tem um forte déficit de qualidade”

Posteriormente, conquistou-se a Lei do Piso, a qual, segundo o projeto inicial do governo federal, era muito tímida e foi aperfeiçoada. O mesmo aconteceu com a lei de cotas, já que o governo federal não apostava na aprovação dessa lei, embora alguns setores do governo apoiassem muito, especialmente a secretaria que trata diretamente do tema, mas não o Ministério da Educação. De todo modo, a sociedade civil fez a lei ser aprovada no Congresso.
Outra conquista foi a Lei do Fundo Social do Pré-sal para a educação, porque a presidente Dilma queria destinar metade dos rendimentos à educação, que dariam alguns milhões de reais por ano ao setor, e nós conseguimos a metade do fundo, que dá alguns bilhões de reais. A previsão é de que o dinheiro do pré-sal já esteja contribuindo com a área de educação em cerca de dois bilhões de reais, embora o fundo ainda não exista.
Então, os avanços na área da educação são frutos da sociedade civil, e isso não deve constranger o governo, porque em um governo democrático as vitórias da sociedade civil são as vitórias de todo o país, apenas não têm como efeito a incorporação delas por um partido, porque isso não é justo. Tanto é que a presidente Dilma não se vangloria sobre os resultados do PNE, embora se vanglorie sobre o resultado da lei de royalties, o que não deveria fazer.
Em relação àquilo que não avançamos, são os problemas históricos essencialmente relacionados à questão da valorização dos profissionais da educação. O grande recado do Plano Nacional de Educação é que a agenda da valorização dos profissionais da educação é a agenda central para obtenção da qualidade do ensino, que é a grande questão nunca solucionada. Agora, é preciso que o Plano Nacional de Educação seja implementado para que isso seja resolvido. O principal desafio do plano é a valorização do magistério.
(Por Patricia Fachin)

Militares, ciências, Educação Popular.

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