Thursday, February 26, 2015

POBRES E RICOS Concentração de renda no Brasil: Educação e desigualdade


POBRES E RICOS
Concentração de renda no Brasil: Educação e desigualdade
O sistema educacional reproduz as desigualdades atuais e projeta-as para o futuro. Filhos de pobres serão pouco e mal escolarizados, ocuparão funções mal remuneradas e terão filhos mal escolarizados; filhos de ricos serão bem escolarizados, terão rendas mais altas e filhos melhor escolarizados
por Otaviano Helene
O Brasil chegou a ser, por volta de 1990, o país com a pior distribuição de renda de todo o mundo. Isso ocorreu possivelmente como consequência das políticas impostas durante o período ditatorial, combinada com a crise econômica que se iniciou no final da década de 1970 – crise essa também consequência das políticas adotadas durante aquele período. Por volta de 1990, os 10% mais ricos ficavam com mais da metade da renda nacional enquanto os 10% mais pobres recebiam 0,6% dela. Essas proporções significam que o que um representante médio daqueles mais ricos recebia e gastava em quatro dias era igual ao valor que, em média, um representante dos 10% mais pobres levava todo um ano para ganhar.[1]
A melhora havida na distribuição de renda brasileira, em especial neste início de século,[2]nos tirou do último lugar. Entretanto, ainda estamos em uma das piores posições. Atualmente, o que um típico representante dos 10% mais ricos ganha em pouco mais de uma semana equivale àquilo que um dos representes dos mais pobres leva um ano para ganhar. Ou, em outras palavras, a renda somada de quase meia centena de famílias entre as mais pobres equivale à renda de uma única família do contingente formado pelos 10% mais ricos.
Para fins de comparação, nos países com boa distribuição de renda, os 10% mais ricos ficam com não mais do que um quarto da renda nacional (perto da metade daquilo que os 10% mais ricos abocanham no Brasil). Nesses países, no outro extremo, os 10% mais pobres ficam com cerca de 4% da renda ou mais.

Figura 1 – Participação na renda nacional (%) dos 10% mais ricos (barras à esquerda) e dos 10% mais pobres (barras da direita) no Brasil e em países com boa distribuição de renda




A Figura 1 ilustra a participação dos 10% mais pobres e dos 10% mais ricos no Brasil e em países onde a renda é bem distribuída. É necessário observar que a distribuição de renda conta apenas parte da história. O acesso igualitário a serviços públicos de qualidade, como saúde e educação, coisa comum em muitos países e praticamente inexistente no Brasil, atenua as consequências práticas das desigualdades de renda monetária.
Muitos dos países europeus, os antigos países socialistas, alguns países asiáticos (Paquistão, Vietnã e Índia,[3] por exemplo), entre outros, são exemplos de países com distribuições de renda boas ou razoáveis. Juntos com o Brasil estão muitos dos países latino-americanos – a má distribuição de renda é uma característica típica dos países dessa região – e africanos. A Tabela 1 mostra os doze países mais desiguais do mundo pelo critério do índice de Gini, todos eles na América Latina ou na África.

Tabela 1 – Os doze países mais desiguais do mundo, de um conjunto de 95 países para os quais há dados posteriores a 2000 disponibilizados pelo Banco Mundial. Índice de Gini, participação na renda nacional dos 10% mais ricos e dos 10% mais pobres e quantas vezes os 10% mais ricos são mais ricos do que os 10% mais pobres em média.


Concentração de renda é algo que se deve combater não apenas pelo sofrimento que causa aos mais desfavorecidos e pelo desperdício dos recursos nacionais que provoca entre os mais ricos, mas também pelas muitas, danosas e graves consequências que tem na vida nacional. Programas de renda mínima, como é o caso do Bolsa Família, e de renda para idosos (que não são dependentes de outras pessoas) ou para pessoas incapacitadas para o trabalho (deficientes ou doentes crônicos) são alguns exemplos de como combater a desigualdade na distribuição de renda. Entretanto, esses instrumentos, que tanto ódio têm provocado nas classes mais privilegiadas – apesar de não tocar nos seus privilégios –, entre aqueles que desconhecem a realidade de outros países e entre os que mimetizam o comportamento das elites, podem ter colaborado para nos tirar do último lugar no quesito concentração de renda, mas ainda nos deixaram entre os países mais desiguais e injustos do mundo. Precisamos de processos de desconcentração de renda mais intensos e mais duradores e entre eles estariam os programas educacionais.
O mecanismo pelo qual a educação e a concentração de renda se relacionam e retroalimentam é o seguinte: quanto maior a renda familiar de uma criança ou um jovem, maior é o número de anos de estudo que terá e melhor a qualidade da educação que receberá; de outro lado, quanto melhor a escolarização, maior será sua renda futura. A combinação desses dois efeitos forma um círculo vicioso que contribui para perenizar a atual desigualdade de renda no país.
A interdependência entre renda e escolarização de uma pessoa no Brasil é mostrada na Figura 2. Pessoas com menos do que cinco anos de escolaridade, contingente que perfaz perto da terça parte da população, ganham, em média, um salário mínimo ao mês. No outro extremo, pessoas com nível superior completo ganham, também em média, seis vezes mais. (É necessário lembrar que, qualquer que seja o número médio de anos de estudo, há pessoas com maiores ou menores rendas, dependendo da profissão que exercem, do setor no qual trabalham, do tempo de experiência na profissão, da região do país em que vivem, de características individuais etc.)

Figura 2 – Renda mensal média em função do número de anos de estudo (linha escura). Qualquer que seja a escolaridade, há uma dispersão da renda; cerca da metade das pessoas tem renda entre as duas linhas mais fracas.



Vejamos agora com que intensidade a escolarização de uma criança ou um jovem depende das condições econômicas familiares. Entre os jovens provenientes da terça parte mais pobre da população, completar o ensino fundamental é exceção, ou mesmo, rara exceção. Consequentemente, ocuparão, no futuro, funções com baixa remuneração e seus filhos e dependentes terão baixos níveis educacionais. No outro extremo, boa parte daqueles jovens provenientes da terça parte mais favorecida economicamente conclui o ensino superior. Em comparação com seus colegas mais desfavorecidos, por estudarem por um número maior de anos e por terem frequentado escolas de melhor qualidade,[4] exercerão atividades mais bem remuneradas.
Portanto, filhos de pobres serão pouco e mal escolarizados, ocuparão funções mal remuneradas e seus filhos serão mal escolarizados; filhos de ricos são bem escolarizados, terão rendas mais altas no futuro e terão filhos melhor escolarizados. Assim, o sistema educacional brasileiro reproduz as desigualdades atuais e projeta-as para o futuro. Mantida essa situação não pode haver qualquer dúvida de como será o futuro do país no que diz respeito à concentração de renda e às desigualdades regionais.
Romper esse círculo vicioso é fundamental. Entretanto, fazer isso implica em melhorar – e muito – as escolas públicas, o que exige recursos financeiros muito maiores do que os atuais, e acabar com subsídios que favorecem a educação dos mais ricos na mesma proporção que prejudica a dos mais desfavorecidos. Mas isso se contrapõeaos interesses das elites econômicas, que não abrirão mão, por bem, de nenhum de seus privilégios, aos quais chamam de direito.









Otaviano Helene
Otaviano Helene é Professor associado do Instituto de Física, presidiu a Adusp (Associação de Docentes da Universidade de São Paulo) de julho de 2007 a junho de 2009. Foi presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais)


[1]Os dados citados têm como base informações disponibilizadas pelo IBGE e pelo Banco Mundial em suas páginas eletrônicas, respectivamente http://www.ibge.gov.br e http://data.worldbank.org/indicator, consultadas em janeiro de 2015.

[2]Veja, por exemplo, o artigo “Fitting Lorenz curves”, Otaviano Helene, Economics Letters 108, p.153, dez. 2010.

[3]Como a Índia sofreu uma piora em sua distribuição de renda desde o final do século XX (e, talvez, também por ser pobre), muitos pensam que sua distribuição de renda é ruim. Entretanto, na Índia a renda se distribui de forma equivalente à de muitos países europeu, bem melhor do que nos Estados Unidos e muitíssimo melhor do que no Brasil.

[4]Além da diferença no número de anos de estudo e da qualidade das escolas frequentadas, é necessário lembrar que complementos educacionais, tais como aulas particulares, cursos de línguas, acompanhamento psicológico, materiais culturais etc. são muito comuns nos segmentos mais favorecidos e inexistentes entre os mais pobres.



20 de Fevereiro de 2015
Palavras chave: educaçãodesigualdadeBrasilpobresricosBrasilclasseescolaridadetabela



http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3098

De Paris a Atenas, é preciso escolher os combates

ARTIGO
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A ESQUERDA GREGA PODE MUDAR A EUROPA?
De Paris a Atenas, é preciso escolher os combates
Na Grécia e na Espanha, o avanço de uma esquerda crítica das políticas de austeridade encoraja os defensores de uma mudança profunda na União Europeia. Cada vez mais formal, o debate democrático avança. E o confronto cultural e religioso, o “choque das civilizações” que os autores dos atentados em Paris
por Serge Halimi


Agosto de 1914: a união sagrada. Tanto na França como na Alemanha, o movimento operário se enfraquece; os dirigentes da esquerda política e sindical se unem à “defesa nacional”; os combates progressistas foram colocados entre parênteses. Difícil agir de outra forma, já que, desde os primeiros dias da disputa sangrenta, os mortos eram contados em dezenas de milhares. Quem teria ouvido um discurso de paz no meio do barulho das armas e das exaltações nacionalistas? Em junho, em julho talvez, teria sido possível evitar o golpe.
Um século depois, o “choque de civilizações” ainda é apenas uma hipótese entre outras. A batalha que poderia começar na Europa, na Grécia e depois na Espanha talvez permita que ela seja conjurada. Os atentados jihadistas, porém, favorecem o roteiro do desastre; uma estratégia de “guerra contra o terrorismo” e de restrição das liberdades públicas também. Levam ao risco de eliminar todos os outros combates e exacerbar todas as crises que devem ser resolvidas. Essa é a ameaça. Responder a isso é o objetivo dos próximos meses.
Um desenhista é livre para fazer uma caricatura de Maomé? Uma muçulmana é livre para usar a burca? E os judeus franceses? Eles vão emigrar em grande quantidade para Israel? Bem-vindos a 2015... A França se debate numa crise social e democrática que as escolhas econômicas de seus governos e a União Europeia agravaram. No entanto, as questões relativas à religião reaparecem em intervalos regulares. Há mais de vinte anos, os temas do “islã das periferias”, das “inseguranças culturais”, do “comunitarismo” povoam tanto as mídias quanto uma parte da opinião pública. Demagogos se deleitam com isso, impacientes para coçar as feridas que vão lhes permitir dominar a cena. Enquanto eles tiverem sucesso, nenhum problema de fundo será debatido seriamente, ainda que quase todo o resto esteja ligado à sua solução.1
O assassinato de doze pessoas, na maioria jornalistas e desenhistas, em 7 de janeiro no prédio do Charlie Hebdo, depois de quatro outras pessoas, todas judias, em uma loja kosher, suscitou um sentimento de temor. Mesmo que esses atos tenham sido cometidos invocando o islã, esses crimes espetaculares não deram origem, até o momento, ao ciclo de ódio e represálias com o qual contavam seus inspiradores. Os assassinos conseguiram: mesquitas foram atacadas; sinagogas foram protegidas pela polícia; jovens muçulmanos – radicalizados, algumas vezes recém-convertidos, com frequência mediocremente instruídos nas regras de sua fé, mas em todo caso pouco representativos de seus correligionários – são tentados pelo jihad, o niilismo, a luta armada. No entanto, os assassinos também fracassaram: garantiram vida eterna ao jornal semanal que queriam eliminar. Suponhamos, todavia, que para eles essa batalha fosse secundária. A resolução das outras vai depender da resiliência da sociedade francesa e do renascimento na Europa de uma esperan
Mas sejamos modestos. Nossas chaves não abrem todas as fechaduras. Não estamos ainda em condições de analisar o acontecimento imediatamente. Também não somos obrigados a responder aos acúmulos incessantes da máquina de comentários. Parar e refletir é arriscar compreender, surpreender, ser surpreendido. O acontecimento nos surpreendeu. A reação que suscitou também. Até agora, a França aguentou o choque, como a Espanha depois dos atentados de Madri em março de 2004, como o Reino Unido depois dos atentados de Londres no ano seguinte. Ao se manifestar em massa, com calma, sem ceder muito aos discursos guerreiros de seu primeiro-ministro, Manuel Valls. Sem também se engajar em uma regressão democrática comparável à que os Estados Unidos viveram após os atentados de 11 de setembro de 2001.
Ninguém pode imaginar, no entanto, as consequências eventuais de um novo abalo de mesma ordem, ou muitos abalos. Será que eles conseguiriam enraizar uma linha de fratura opondo frações da população que se determinariam politicamente em função de sua origem, de sua cultura, de sua religião? É a aposta dos jihadistas e da extrema direita, incluindo a israelense, o perigo imenso do “choque de civilizações”. Reprimir essa perspectiva demanda não apenas imaginar uma sociedade miraculosamente acalmada – como poderia ser com seus guetos, suas fraturas territoriais, suas violências sociais? –, mas também escolher os combates que melhor remediassem as doenças que a destroem. Isso pede, urgentemente, uma nova política europeia. Na Grécia, na Espanha, o combate se engaja...
Decididamente a Europa existe! O primeiro-ministro grego, Antonis Samaras, não esperou muito tempo antes de utilizar com delicadeza o assassinato coletivo no prédio do Charlie Hebdo: “Hoje, em Paris, houve um massacre. E aqui alguns ainda encorajam a imigração ilegal”.
Um dia depois, em Atenas, Nikos Filis, diretor do Avgi, jornal do qual o Syriza – coalizão da esquerda radical que venceu as eleições de 25 de janeiro, levando 36% dos votos e 149 das 300 cadeiras do Parlamento – é o principal acionista,2 lançou diante de nós uma lição bem diferente do crime cometido por dois cidadãos franceses: “O atentado poderia orientar o futuro europeu. Em direção a Le Pen e à extrema direita, ou em direção a uma abordagem mais racional, e por isso mais à esquerda, do problema. Pois a demanda por segurança não pode ser resolvida apenas pela polícia”. No plano eleitoral, esse tipo de análise não tem mais apelo na Grécia do que nos outros Estados europeus. Vassilis Moulopoulos sabe disso, e, no entanto, o conselheiro de comunicação de Alexis Tsipras não se preocupa: “Se o Syriza tivesse sido menos intransigente sobre a questão da imigração, já teríamos obtido 50% dos votos. Mas essa escolha é um dos únicos pontos sobre o qual estamos todos de acordo!”.
Há alguns anos, as políticas econômicas empregadas no Velho Continente fracassaram – na Grécia e na Espanha de forma mais cruel que no resto. No entanto, enquanto nos outros países da União Europeia os partidos do governo parecem se resignar ao crescimento da extrema direita e até mesmo contar com o fato de que este vai assegurar sua permanência no poder, permitindo se unir contra ela, o Syriza, assim como o Podemos, abriu outra perspectiva.3 Ninguém na esquerda progrediu tanto quanto eles na Europa. Inexistentes ou quase há cinco anos, na margem da crise financeira, eles se deram conta desde então de dois pontos a explorar. Por um lado, aparecem agora como candidatos com credibilidade para o exercício do poder. Por outro, eles talvez estejam relegando os partidos socialistas de seus países, corresponsáveis pela derrota geral, ao papel de forças de apoio – como no século passado, quando o Partido Trabalhista britânico suplantou o Partido Liberal, e o Partido Socialista francês, o Partido Radical.4 A mudança se revelou definitiva nos dois casos.

Uma faísca que incendeia a floresta?
Com a questão posta e em parte resolvida – a desclassificação dos partidos social-democratas –, quais são as chances de a vitória de outra esquerda, tanto na Grécia quanto na Espanha, desembocar em uma reorientação geral das políticas europeias? Vistos de Atenas, os obstáculos são imensos. Em seu país, o Syriza está sozinho contra todos; na Europa, nenhum governo o apoiaria. O desafio grego será, portanto, muito mais importante do que aquele no qual a França se encontrou em 2012. Na época, François Hollande, recém-eleito, podia de fato se valer ao mesmo tempo do mandato dos eleitores franceses e dos 19,3% do PIB europeu de seu país (2,3% no caso da Grécia, 12,1% no da Espanha)5 para “renegociar”, como ele tinha se comprometido a fazer, o pacto de estabilidade europeu. E, no entanto, sabemos o que aconteceu.
No Syriza, a situação é analisada com mais otimismo, esperando que, a partir deste ano, a vitória de um partido de esquerda na Grécia e na Espanha poderia se tornar a proverbial faísca que incendeia toda a floresta. “A opinião pública europeia é mais favorável a nós”, estima Filis. “E as elites europeias constatam também o impasse das estratégias empregadas até agora. Em seu próprio interesse, elas imaginam então outras políticas, pois veem que a zona do euro, como está construída, impede que a Europa tenha um papel internacional.”
Um passarinho anuncia frequentemente a primavera para quem por muito tempo sofreu com o inverno. Será por isso que o estado-maior do Syriza percebe uma divergência promissora entre a chanceler alemã e Mario Draghi, o presidente do Banco Central Europeu (BCE)? A compra das dívidas soberanas que este acaba de determinar (“flexibilização quantitativa”) demonstraria inclusive que ele finalmente compreendeu que a austeridade levaria a um impasse.
Em Atenas, essa evidência salta aos olhos. Mas a crueldade de uma política cujas consequências sociais e sanitárias incluem a falta de aquecimento no inverno, o aumento das doenças infecciosas e o crescimento do número de suicídios ainda não constitui um fator de mudança de rumo.6 Em todo caso, não para seus arquitetos, bem pagos para ter nervos de aço. Infelizmente, os indicadores macroeconômicos são pouco reluzentes. Depois de cinco anos de tratamento de choque, a Grécia conta com três vezes mais desempregados que antes (25,7% da população ativa); seu crescimento é ínfimo (0,6% em 2014), depois de uma perda acumulada de 26% entre 2009 e 2013; e, por fim, melhor que tudo para um programa que tinha fixado como objetivo prioritário reduzir uma dívida que então era igual a 113% do PIB, esta hoje se estabelece em 174%... Previsível, já que seu nível é calculado em proporção de uma riqueza nacional que está naufragando. Entendemos que Mariano Rajoy, cujas performances na Espanha são quase tão mirabolantes, tenha ido a Atenas levar seu apoio a Samaras: “Os países precisam de estabilidade”, pregou, “não de guinadas ou incertezas”. Isso é realmente brilhante e razoável.
Traduzido em bom grego, “incertezas” seria quase sinônimo de esperança, pois continuar a política de Samaras significaria ao mesmo tempo mais diminuição de impostos para os salários médios e altos, assim como para as empresas, mais privatizações, mais “reformas” do mercado de trabalho. Sem esquecer mais excedentes orçamentários para reembolsar a dívida, mesmo quando isso obriga a amputações de créditos públicos em todas as áreas.
Universitário e responsável pelo setor econômico do Syriza, Yannis Milios acredita que Samaras (apoiado pelos socialistas) fixou como objetivo um superávit orçamentário superior a 3% do PIB por ano, por tempo indeterminado (3,5% em 2015, 4,5% em 2017, 4,2% em seguida). “É completamente irracional”, estima, “a menos que se tenha optado por uma política de austeridade perpétua.” A verdade nos obriga a dizer que Samaras não decide muita coisa: ele aplica os termos do acordo que a Troika (Fundo Monetário Internacional, União Europeia e BCE) impôs a seu governo.
O que o Syriza prevê para sair disso? Primeiro, um programa “destinado a enfrentar a crise humanitária”, que recolocaria as despesas e as prioridades dentro de um envelope orçamentário global imutável. Calculada muito precisamente, a gratuidade da eletricidade, dos transportes públicos, de uma alimentação de urgência para os mais pobres, de vacinas para as crianças e os desempregados seria dessa forma financiada por uma luta mais ativa contra a corrupção e a fraude. O governo conservador admite que estas amputam as receitas do Estado em ao menos 10 bilhões de euros por ano.
“As obras públicas custam de quatro a cinco vezes mais caro do que no resto da Europa”, nota Filis, e não apenas porque a Grécia conta com muitas ilhas e dispõe de um relevo mais acidentado. Milios ressalta por sua vez que “50 mil gregos transferiram para o estrangeiro mais de 100 mil euros cada um, sendo o salário declarado de 24 mil entre eles incompatível com uma aplicação desse valor. No entanto, há dois anos, apenas 407 desses fraudadores, denunciados às autoridades gregas pelo FMI, foram controlados pelo fisco”.
O programa de urgência humanitária do Syriza, com um valor estimado em 1,882 bilhão de euros, acumula medidas sociais destinadas a relançar a atividade: criação de 300 mil empregos públicos sob a forma de contratos de um ano renováveis, restabelecimento do salário mínimo a seu nível de 2011 (751 euros, contra 580 euros atualmente), aumento, mas de pouca amplitude (8,3%), das menores aposentadorias. O conjunto desse dispositivo, que inclui também alívios fiscais e abandonos de cobranças para lares e empresas superendividadas, está detalhado no “Programa de Salônica”.7 Seu custo também: 11,382 bilhões de euros, financiados por novas receitas.

Enfrentamento com a Alemanha
Essas medidas, insiste Milios, não serão negociadas. Nem com outros partidos nem com os credores do país: “Elas são uma questão de soberania nacional e não acrescentam nada ao nosso déficit. Nós contamos, por consequência, estabelecer essa política aconteça o que acontecer com relação à renegociação da dívida”.
Quando se trata dos 320 bilhões de euros da dívida grega, o Syriza, por outro lado, está disposto a negociar. Mas ali também apostando que diversos Estados estão apenas esperando para seguir seu exemplo. “O problema da dívida”, insiste Milios, “não é um problema grego, e sim um problema europeu. Neste momento, a França e outros países conseguem pagar seus credores, mas somente porque as taxas de juros são extremamente baixas. Isso não vai durar. Apenas entre 2015 e 2020, metade da dívida soberana espanhola, por exemplo, deverá ser reembolsada.”
Nessas condições, a “Conferência Europeia sobre a Dívida”, reclamada nessa tribuna há dois anos por Tsipras, se tornaria uma hipótese realista.8 A partir de agora apoiada pelo ministro das Finanças irlandês, ela tem como vantagem pedagógica o fato de retomar um precedente, o de 1953, quando a Alemanha se beneficiou da anulação de suas dívidas de guerra, entre as quais as devidas à Grécia. Uma vez efetuada essa lembrança histórica saborosa, o Syriza continua esperando que essa conferência se torne a “solução alternativa que enterrará a austeridade de uma vez por todas”.
Como? Aceitando o abandono de uma parte da dívida dos Estados, recalculando o que resta e transferindo para o BCE, que refinanciaria o valor. A instituição presidida por Draghi já se mostrou muito aberta para socorrer os bancos privados – a ponto, inclusive, de estes se livrarem de suas dívidas gregas, cuja quase totalidade agora é detida pelos Estados-membros da zona do euro...
Eis o que confere a estes últimos um singular poder, em particular à Alemanha e à França. Angela Merkel já sugeriu que o contribuinte alemão seria a principal vítima de uma renegociação da dívida grega, já que seu país detém mais de 20% dela. A posição francesa é mais vaga, como frequentemente acontece, e mistura exigências de que Atenas “mantenha os compromissos firmados” (Hollande) ou “continue realizando as reformas econômicas e políticas necessárias” (Emmanuel Macron, ministro da Economia), com a disposição aparente de vislumbrar uma reestruturação ou um reescalonamento da dívida grega (Michel Sapin, ministro das Finanças).
A direita europeia, porém, já está soando o alarme em outros lugares além da Alemanha. O primeiro-ministro finlandês, Alexander Stubb, opôs um “não retumbante” a qualquer pedido de anulação da dívida, enquanto em Paris o jornal conservador Le Figarose pergunta com elegância: “A Grécia começou de novo a querer envenenar a Europa?”. Dois dias depois, o mesmo jornal fez as contas: “Cada francês pagaria 735 euros para a anulação da dívida grega”.9 O cálculo é menos habitual em suas colunas quando se trata de apreciar o custo dos auxílios fiscais que beneficiam os proprietários do jornal, as subvenções aos industriais do setor bélico que são donos do Le Figaroou... os auxílios à imprensa.
Merkel já ameaçou Atenas de uma expulsão do euro caso seu governo desrespeite as disciplinas orçamentárias e financeiras às quais Berlim é muito apegada. Por sua vez, os gregos desejam ao mesmo tempo afrouxar o controle das políticas de austeridade e conservar a moeda única. É também essa a escolha do Syriza.10 Em parte porque um pequeno país já cansado hesita em se lançar em todas as batalhas ao mesmo tempo. “Fomos as cobaias da Troika, não queremos nos tornar as cobaias da saída do euro”, resume diante de nós uma jornalista próxima do partido de Tsipras. “Que um país maior, como a Espanha ou a França, seja o primeiro.”
“Sem o apoio europeu”, estima Moulopoulos, “não será possível realizar o que quer que seja.” Daí a importância que o Syriza dá àqueles que poderiam lhe trazer outras forças além daquelas da esquerda radical e dos ecologistas. Em particular os socialistas, ainda que os gregos tenham a experiência das capitulações da social-democracia trinta anos depois de o primeiro-ministro Andreas Papandreou ter feito seu partido dar a grande guinada liberal. “Se tivesse permanecido à esquerda, não haveria Syriza”, ressalta Moulopoulos, antes de lembrar que na Alemanha, “quando Oskar Lafontaine se demitiu do governo [em 1999], ele lamentou que a social-democracia tivesse se tornado incapaz de aplicar as reformas mais insignificantes. A globalização e o neoliberalismo de rosto humano a destruíram inteiramente”.
Então não é problemático esperar que sua boa vontade em relação às exigências da esquerda grega poderia ajudar esta última a ir contra a intransigência de Merkel? Um eventual sucesso do Syriza – ou do Podemos – demonstraria que, contrariamente às afirmações repetidas de Hollande ou de Matteo Renzi na Itália, uma política europeia que desse as costas a uma austeridade sem saída é possível. No entanto, tal demonstração não ameaçaria apenas a direita alemã...
Os meses a vir poderiam determinar o futuro da União Europeia. Há três anos, antes da eleição de Hollande, os dois termos da alternativa eram a audácia ou um beco sem saída.11 Agora, a ameaça não é mais a do beco sem saída, mas algo muito pior. “Se não mudarmos a Europa, a extrema direita o fará”, preveniu Tsipras. A audácia se torna ainda mais urgente. A missão das esquerdas grega e espanhola, da qual muita coisa depende, é bastante pesada para que se hesite ainda por cima em aumentar sua carga com uma responsabilidade tão esmagadora quanto a de defender o destino democrático do Velho Continente, de desviá-lo do “choque de civilizações”. Hoje, no entanto, é disso que se trata.
“A Grécia, elo fraco da Europa, poderia se tornar o elo forte da esquerda europeia”, imagina Moulopoulos. E, se não for a Grécia, a Espanha... Os dois países não seriam demais, no entanto, para combater um temor e uma desesperança que alimentam ao mesmo tempo a propaganda da extrema direita e o niilismo dos salafistas jihadistas. “É um sonho modesto e louco”, diria o poeta. É a esperança de que a política europeia não nos condene mais a esse eterno carrossel ao final do qual os mesmos se sucedem no poder para conduzir a mesma política e estampar a mesma impotência. Seu balanço se tornou nossa ameaça. Em Atenas, em Madri, finalmente, a mudança?

Serge Halimi
*Serge Halimié diretor do Le Monde Diplomatique.


Ilustração: Daniel Kondo

1  Ler “Burqa-bla-bla” [Burca-blá-blá], Le Monde Diplomatique, abr. 2010.
2  Avgi, que publica todo mês a edição grega do Le Monde Diplomatique, publicou em 8 de janeiro na capa o slogan “Je suis Charlie” [Eu sou Charlie]. O atentado contra o jornal semanal satírico foi amplamente comentado na Grécia, principalmente pela esquerda, que por sua experiência histórica (ditadura militar entre 1967 e 1974) é muito sensível à questão da liberdade de expressão.
3  Ler Renaud Lambert, “Na Espanha, a hipótese Podemos”, Le Monde Diplomatique Brasil, jan. 2015.
4  Em 1922 no Reino Unido, em 1936 na França.
5  Dados de 2013.
6  Ler Sanjay Basu e David Stuckler, “Quand l’austérité tue” [Quando a austeridade mata], Le Monde Diplomatique, out.2014, e Noëlle Burgi, “Les Grecs sous le scalpel” [Os gregos sob o bisturi], Le Monde Diplomatique, dez.2011.
7  O qual existe numa versão em inglês: http://left.gr/news/syriza-thessaloniki-programme.
8  Ler Alexis Tsipras, “Notre solution pour l’Europe” [Nossa solução para a Europa], Le Monde Diplomatique, fev. 2013.
9  Editorial “Le vent du boulet” [Os ventos do “chato” (boulet é aquela bola de ferro presa aos pés do prisioneiro. Usa-se para definir alguém ou algo que atrapalha, dá trabalho, nos puxa para trás... Pode ser traduzido como “mala”, no sentido de alguém difícil de aguentar. – N.T.)], Le Figaro, Paris, 6 jan. 2015, e Le Figaro, 8 jan. 2015.
10            Para uma crítica dessa posição, ler Frédéric Lordon, “L’alternative de Syriza: passer sous la table ou la renverser”[A alternativa do Syriza: passar por debaixo da mesa ou virá-la], 19 jan. 2015. Disponível em: http://blog.mondediplo.net.
11       Ler “L’audace ou l’enlisement” [A audácia ou o beco sem saída], Le Monde Diplomatique,abr. 2012.


http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1813

CNBB e OAB divulgam manifesto em defesa da Democracia

CNBB e OAB divulgam manifesto em defesa da Democracia

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) lançam nesta quarta-feira, dia 25, o Manifesto em Defesa da Democracia.
A informação é publicada pelo Boletim da CNBB, 24-02-2015.
Na cerimônia, que ocorre às 10h30, na sede da CNBB, em Brasília, os presidentes das respectivas entidades - o arcebispo de Aparecida (SP), cardeal Raymundo Damasceno Assis, e o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho– apresentam o posicionamento em favor do regime democrático.
 
A iniciativa da CNBB e da OAB em divulgar o manifesto foi motivada pelas “graves dificuldades político-sociais” que ocorrem atualmente no Brasil. O texto pretende reafirmar ao país a importância da ordem constitucional e a normalidade democrática.
Os presidentes das entidades também chamarão atenção para os vícios que geram crises nas instituições da democracia, como o financiamento empresarial às campanhas políticas. Neste sentido, o manifesto defende a urgenteReforma Política Democrática para corrigir tais distorções que ameaçam a democracia e cerceiam a participação efetiva do povo nas decisões importantes para o futuro do país.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/540198-cnbb-e-oab-divulgam-manifesto-em-defesa-da-democracia

A DERROTA DO GOVERNO DILMA

ENTREVISTA INTERESSANTE, CONTUDO, NÃO PODEMOS COLOCAR A DILMA COMO VÍTIMA DO CAPITAL FINANCEIRO.

Segundo governo Dilma: A consolidação de uma derrota. Entrevista especial com Pablo Ortellado

“É preocupante ter uma demanda forte e uma insatisfação, e não ter um ator político capaz de organizar essa insatisfação”, pontua o pesquisador.
Foto: Grabois.org
“A volta a políticas liberais ortodoxas não é uma necessidade de equilibrar as contas, mas é uma derrota política, fruto da incapacidade de implementar um modelo econômico alternativo”, pondera Pablo Ortellado em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone. Para ele, “a reversão da política econômica do primeiro mandato”, que tem gerado inúmeras críticas à segunda gestão do governo Dilma, demonstra que o “modelo intervencionista”, proposto pela presidente, “não foi adotado integralmente porque foi derrotado no meio do caminho”.
Na interpretação do professor da Universidade de São Paulo - USP, a segunda gestão do governo Dilma “está sendo refém do sistema financeiro e não tem força para enfrentá-lo e mudá-lo, como havia ensaiado. Por isso ela perdeu a batalha e não conseguiu ir adiante na política de reduzir os juros, na política de aumentar o subsídio das tarifas públicas, que foi o modelo iniciado por ela”.
Para ele, a nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda é um sinal dessa derrota. Contudo, outras nomeações ministeriais polêmicas, como a de Kátia Abreupara o Ministério da Agricultura e de Gilberto Kassab para o Ministério das Cidades, têm outro significado. “A nomeação deKátia Abreu não destoa do pensamento da presidente; ela é uma desenvolvimentista, acha que o agronegócio é uma peça importante, e Kátia Abreu é uma grande representante desse setor. A nomeação do Kassab tem mais a ver com questões políticas para conseguir alianças; ele é um grande articulador político, fundou um partido político que é importante para a governabilidade”, comenta.
Na avaliação dele, apesar das “surpresas” da nova gestão, o modelo neodesenvolvimentista iniciado no governo Lulae levado adiante pela presidente Dilma ainda é sustentável, embora tenha sofrido um “revés justamente na políticaeconômica”.  Para os próximos quatro anos, vislumbra, “vai haver um embate no qual o resultado será uma política mista, predominantemente liberal, mas com alguns elementos desenvolvimentistas. As agendas de proteção ao meio ambiente e de política indigenista vão por água abaixo, porque não têm nenhum espaço dentro do governo”, conclui.
Pablo Ortellado é graduado e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. É professor do curso de Gestão de Políticas Públicas e orientador no Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação - Gpopai.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor está vendo as mudanças anunciadas pela presidente Dilma nos dois primeiros meses do seu segundo mandato? Os anúncios estão surpreendendo?
Foto: iea.usp.br
Pablo Ortellado – Acho que todos estão surpresos porque houve uma reversão da política econômica do primeiro mandato. Isso é ainda mais surpreendente porque contraria toda a escola de pensamento na qual a própria presidente foi formada, na Unicamp. A escolha de um ministro da Fazenda formado pela Escola de Chicago, os cortes de direitos trabalhistas para equilibrar o orçamento e o aumento das tarifas públicas, tudo isso caminhando para um arrocho, inclusive, contraria todo o discurso feito na campanha de reeleição, que foi totalmente baseada em assustar o eleitorado, dizendo que o outro candidato adotaria esse tipo de política. Essas mudanças surpreenderam a todos, ainda mais pelo fato de a presidente as ter feito de maneira tão agressiva.  
IHU On-Line - O que essas mudanças mostram em relação ao primeiro governo da presidente Dilma e aos dois governos do ex-presidente Lula? As políticas adotadas não foram sustentáveis, ou hoje o Brasil enfrenta outras dificuldades?
Pablo Ortellado – Acho que se trata de uma reversão de estratégia de política econômica, caminhando para um modelo mais parecido com o adotado no governo do ex-presidente Lula, em que se tinha uma política econômica mais ortodoxa combinada com políticas de distribuição de renda e aumento do consumo. A presidente Dilma, no primeiro mandato, tinha ensaiado outro caminho, o de enfrentar a política de juro dos bancos, mexer com a política do superávit primário, mas ela perdeu politicamente essa batalha. Foi uma disputa política muito dura e, ao que tudo indica, os primeiros meses do segundo mandato demonstram a consolidação dessa derrota. É uma consolidação que deve ter sido muito difícil, porque tenho certeza de que a presidente não acredita nesta política; ela está sendo contrariada.
IHU On-Line – O senhor sugere que ela está sendo refém de alguma situação?
Pablo Ortellado – Ela está sendo refém do sistema financeiro e não tem força para enfrentá-lo e mudá-lo, como havia ensaiado. Por isso ela perdeu a batalha e não conseguiu ir adiante na política de reduzir os juros, na política de aumentar o subsídio das tarifas públicas, que foi o modelo iniciado por ela, mas que fracassou porque ela não teve força de implementá-lo por conta da influência do sistema financeiro tanto na política quanto na economia.
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"Hoje a presidente já é refém de uma política econômica que não é a dela, na qual ela não acredita e para a qual ela não foi eleita, e ela passa agora a ser refém também de um Congresso que está controlado por um setor do PMDB que é independente"

IHU On-Line – Que outras dificuldades o governo tende a enfrentar com Eduardo Cunha na Câmara dos Deputados?  
Pablo Ortellado – As dificuldades serão enormes, mas de outro tipo. Eduardo Cunha é oposição. Hoje a presidente já é refém de uma política econômica que não é a dela, na qual ela não acredita e para a qual ela não foi eleita, e ela passa agora a ser refém também de um Congresso que está controlado por um setor do PMDB que é independente. Embora o PMDB seja a base do governo, Eduardo Cunha e as forças que ele reúne e articula são independentes do governo. Isso significa que a aprovação de todo tipo de política vai encontrar empecilhos.  
IHU On-Line - Deve haver uma mudança na postura do PMDB em relação ao governo?
Pablo Ortellado – O PMDB não tem unidade e é uma federação de muitas correntes e interesses. E esse grupo capitaneado por Eduardo Cunha é forte política e economicamente, porque Eduardo Cunha é grande intermediador de verbas de campanha, é ligado a setores empresariais muito fortes, como o setor de telecomunicações. Isso significa que nada ligado a telecomunicações vai avançar, ou seja, a regulamentação do Marco Civil pode encontrar problemas, a lei de proteção de dados pessoais e a reforma da lei de direitos autorais vão encontrar problemas, sem falar em toda a agenda ligada a questões morais, porque ele também é ligado ao setor evangélico. Então, questões relacionadas ao aborto, combate à homofobia e toda a agenda ligada aos direitos humanos vão sofrer um revés.
IHU On-Line - O senhor relaciona a atual conjuntura econômica com o fato de a presidente ser refém do sistema financeiro. Como avalia, em contrapartida, as nomeações feitas por ela: Kátia Abreu no Ministério da Agricultura e Gilberto Kassab no Ministério das Cidades? A presidente está sendo refém de outra situação nesses dois casos?
Pablo Ortellado – A nomeação de Kátia Abreu é bem consistente com o que a presidente pensa acerca de modelos de desenvolvimento. Essa nomeação não destoa do pensamento da presidente; ela é uma desenvolvimentista, acha que o agronegócio é uma peça importante e Kátia Abreu é uma grande representante desse setor. A nomeação doKassab tem mais a ver com questões políticas para conseguir alianças; ele é um grande articulador político, fundou um partido político que é importante para a governabilidade, e ele entra nessa chave.
IHU On-Line – O modelo neodesenvolvimentista iniciado no governo Lula e levado adiante no governo Dilma ainda é sustentável?
Pablo Ortellado – Com certeza. Esse modelo sofreu um revés justamente na política econômica, porque Dilma está implementando políticas com o Joaquim Levy que são contrárias ao que ela acredita que seja de fato um modelo dedesenvolvimento econômico. O que vamos ver, provavelmente, é uma mescla entre a política desenvolvimentista com uma agenda, num marco mais geral, profundamente liberalizante. É isso que Joaquim Levy vai fazer: aumentar o superávit primário, aumentar a política de juros, aumentar o preço das tarifas públicas, cortar mais gastos sociais. Essa política está sendo implementada, mas ela é contrária a uma política desenvolvimentista de proteção da indústria nacional, de estímulo a setores industriais, ao agronegócio. Vai haver um embate no qual o resultado será uma política mista, predominantemente liberal, mas com alguns elementos desenvolvimentistas. As agendas de proteção ao meio ambiente e de política indigenista vão por água abaixo, porque não têm nenhum espaço dentro do governo.
IHU On-Line – Em que medida os ajustes feitos neste ano estão relacionados com políticas desenvolvidas nos governos anteriores?
Pablo Ortellado – Depende de como se lê essa questão. Pode-se dizer que esse modelo de política mais intervencionista adotado pela presidente no primeiro mandato fracassou e é preciso voltar para uma política liberalforte para corrigir o rumo desse desvio e, portanto, estamos num momento de ajustes com recessão e baixo crescimento. Outra chave de leitura, contrária à anterior — que deve ser a da presidente —, é de que o modelo intervencionista não foi adotado integralmente, porque ele foi derrotado no meio do caminho e o resultado é este que estamos vendo. A volta a políticas liberais ortodoxas não é uma necessidade de equilibrar as contas, mas é uma derrota política, fruto da incapacidade de implementar um modelo econômico alternativo.
IHU On-Line - A última medida anunciada pelo governo Dilma é uma negociação com sindicatos e centrais sindicais para acabar com o fator previdenciário. Como vê essa proposta?
Pablo Ortellado – O fator previdenciário é uma medida que se mostrou totalmente inócua para o objetivo de retardar as aposentadorias. Só está trazendo prejuízos para os trabalhadores, sem ter nenhum efeito prático no retardamento da solicitação das aposentadorias. Não vejo por que a reversão dessa política teria impacto hoje.   
IHU On-Line - Como deve se dar a relação da presidente Dilma com os movimentos sociais em seu segundo mandato? Vislumbra algo diferente em comparação com a primeira gestão, já que agora inclusive movimentos sociais estão criticando mais pontualmente o governo dela?
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“A presidente vai escutar, mas não vai ouvir”

Pablo Ortellado – No primeiro mandato a relação da presidente com os movimentos foi de escuta, mas com pouca incorporação de demandas. O ministro Miguel Rossetto vai manter sua política de escuta, que está muito ligada à sua trajetória. Mas num cenário em que a presidente tinha maior controle da política econômica, ela não conseguiu incorporar nada. Nesse cenário ela perdeu o controle e a incorporação de demandas será ainda menor. Assim, a presidente vai escutar, mas não vai ouvir. 
IHU On-Line - O senhor disse que ao fim das manifestações de 2013, a sociedade estava mais mobilizada. Vislumbra a ocorrência de mais manifestações diante da atual conjuntura? Quais pautas são potenciais para gerar novas manifestações?
Pablo Ortellado – Este ano vamos ver mobilizações grandes de algumas pautas. Em São Paulo e no Rio de Janeiro a questão da água vai gerar manifestações, porque a situação da água é extremamente crítica, e é impossível não haver. Ainda não sabemos de que tipo serão essas manifestações, mas a falta de água empurra as pessoas para situações extremas e gera desespero. Esse é um tema que vai dominar a agenda dos movimentos sociais neste ano. Por outro lado, o escândalo da Petrobras vai gerar muitas manifestações tentando desmobilizar o governo, pedindo o impeachment da presidente. Vai ser um ano com muita mobilização.
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"A falta de água empurra as pessoas para situações extremas e gera desespero. Esse é um tema que irá dominar a agenda dos movimentos sociais neste ano"

IHU On-Line - Há mais razões para manifestações hoje do que se teve em 2013? O que vislumbra?
Pablo Ortellado – Não basta ter motivo, precisa ter organização e um ator político capaz de ajudar a sociedade a expressar essa insatisfação. O Movimento Passe Livre - MPL ocupou esse papel em 2013 e no começo deste ano, nas manifestações que ocorreram em São Paulo por conta do aumento da tarifa do transporte público. Não consigo ver um ator político com essa capacidade de mobilização para outras agendas, como o aumento da tarifa de energia. Do mesmo modo, a discussão sobre a crise hídrica também não tem um ator político capaz de gerar mobilização, o que é um problema, porque a crise é grande e a água é um recurso fundamental para o dia a dia. É preocupante ter uma demanda forte e uma insatisfação, e não ter um ator político capaz de organizar essa insatisfação. Por isso corre-se o risco, quando a crise se agravar ainda mais, de haver revoltas sem orientação política, como aconteceu em Itu. Essa revolta pode resultar em saques, quebra-quebra desorganizado. Por isso é importante que se tenha um ator que consiga orientar essa insatisfação para um objetivo político, para uma reivindicação factível.
IHU On-Line – A falta desse ator político implica que não surja no Brasil algo como o Podemos e o Syriza?
Pablo Ortellado – Nós estamos muito longe disso. O Podemos e o Syriza são movimentos muito distintos. O Syriza é um grupo de coalizão de partidos tradicionais de esquerda. Ele seria, guardadas todas as diferenças, algo como oPSOL e o PSTU. O Podemos, por outro lado, é uma expressão das mobilizações de rua, algo parecido com o MPL ou novos movimentos que surgem. Contudo, estamos muito distantes da criação de algo parecido no Brasil porque os movimentos que surgem não estão interessados em criar partidos. Por outro lado, PSOL e PSTU estão longe de ganhar essa preeminência que se teve na Grécia, com o Syriza.   
IHU On-Line - Como vê as articulações para a campanha presidencial de 2018, que sugerem o retorno do ex-presidente Lula à Presidência, como uma alternativa política?
Pablo Ortellado – Isso ocorre porque Dilma começou seu mandato de maneira desastrosa. Não só porque o Brasil está numa crise econômica muito clara, como do ponto de vista social ela está aquém de todas as expectativas. O processo eleitoral foi muito polarizado entre a esquerda e a direita, com a esquerda mobilizada, prometendo se não avanços sociais, no mínimo a consolidação dos ganhos e avanços sociais do passado. Contudo, os primeiros atos do governo dela foram cortes de direitos trabalhistas, seguido de aumento das tarifas públicas, da nomeação de Levy. A popularidade dela está muito baixa e não há perspectiva de reversão desse cenário. De novo Lula acaba reaparecendo dentro do campo da esquerda para reorientar essa política ou retomar os ganhos sociais do passado. Esse é o significado e a especulação em torno da volta do ex-presidente.
IHU On-Line - O que se pode esperar para os próximos quatro anos de mandato?
Pablo Ortellado – Tudo é possível, mas o quadro mais provável é de ficar nessa situação de uma política econômica liberal, recessiva, com arrocho e com uma perspectiva ruim em relação às políticas sociais conquistadas. A presidente não tem força no Congresso, perdeu a queda de braço com o sistema financeiro, e não vejo de onde ela tiraria elementos para uma mudança de governo. Vai ser um governo difícil para ela e para nós, que estamos sob a administração dela.
(Por Patricia Fachin)

O Podemos entre hegemonia e multidão: Laclau ou Negri

O Podemos entre hegemonia e multidão: Laclau ou Negri

"Laclau e Negri divergem quanto às coordenadas da luta nas condições atuais. Se Laclau postula uma era pós-ideológica, em que a luta de classe cede à diversidade de identidades que buscam se afirmar; Negri aponta uma mutação no capitalismo determinada por uma nova forma de vida social, baseada na autonomia dos sujeitos, na colaboração transversal (...) não é que a classe tenha se dissolvido numa diversidade de 'novos movimentos', nos termos de Laclau; em realidade, a classe se reorganiza nas condições da organização social do capitalismo hoje, e é sobre esse terreno que a multidão poderá emergir — sempre no antagonismo e na ação criadora". O comentário é deBruno Cavas Rodrigues em artigo publicado no blog Quadrado dos Loucos, 25-02-2015.
Eis o artigo.
Populismos
A diferença do populismo para um discurso liberal clássico está em que, para o primeiro, o povo é algo ainda a construir-se, enquanto para os liberais o povo já está dado. No primeiro caso, a construção do povo implica a construção de uma nova representação. No segundo, cabe à representação apenas contemplar uma sociedade que lhe preexiste, já formada.
No populismo, a história da construção de um povo passa pela divisão entre um “nós” e um “eles”. Denuncia-se a falsa universalidade da ordem representativa existente, que não mais nos representa, para a seguir reclamar uma nova universalidade. Nas revoluções burguesas, foi a luta contra o ancien régime, a partir do que seria possível libertar-se da aristocracia parasitária para formar a nação e a cidadania burguesa, doravante considerada universal. Nas lutas anticoloniais, se lutava contra a metrópole e o imperialismo, em nome da unidade da libertação nacional. Com o filósofo Antonio Gramsci, a construção do povo reúne intelectuais, operários e camponeses numa consciência coletiva nacional-popular, que se liberta dos burgueses.
Já para os tecnocratas, mais ligados ao discurso liberal clássico, não haveria necessidade de construir povo algum: basta escolher as pessoas certas, adotar “ideias que funcionam” e implantar a melhor gestão para cada situação específica.
A construção do nacional-popular
No Brasil, as ideias do nacional-popular estiveram presentes na versão desenvolvimentista, em que a modernização nacional se atrela à emancipação popular mediante ações mobilizadoras, pedagógicas e organizativas. A conquista do poder não poderia ocorrer, simplesmente, com a tomada do estado, devendo passar por um laborioso alastramento cultural e ideológico de formação nacional, desde as bases. O papel dos intelectuais subdesenvolvidos, nesse projeto, consiste em liderar o processo de esclarecimento das massas, segundo um programa emancipador. Evita-se, dessa maneira, cair nalgum determinismo econômico segundo o qual bastaria industrializar o país para formar um proletariado consciente. Sem a tarefa militante de emancipação popular, a modernização invariavelmente produzirá ainda mais dominação de classe.
A teoria política mais próxima dessa promessa nacional-popular, ainda que elaborada no contexto das sociedades industrializadas das economias centrais, é a teoria gramsciana. Para Gramsci, escrevendo na primeira metade do século passado, o exercício do poder no capitalismo não se sustenta somente com coerção e medo. É preciso, sobretudo, fabricar uma legitimidade difusa que, mediante inúmeras instituições coletivas culturais, colha continuamente o consentimento da maioria. A esfera representativa em seu conjunto, formada por governos, partidos e sindicatos pode, assim, operar como se representasse o “interesse geral”, preenchendo fissuras e estancando os desvios.
A ideologia, aí, não aparece como um sistema de engodo sistemático. Como se a ideologia fosse um véu aposto à realidade, um cortinado místico separando as pessoas da verdade sobre as reais relações de poder. Mais do que isso, a ideologia tem um caráter material: determina os comportamentos e se infiltra nos hábitos. O capitalismo, em essência, não engana alguém, e são ingênuas as perspectivas de que poderia perder força diante da denúncia de suas mistificações. As pessoas já sabem que o capitalismo é um complexo de exploração que gera, numa ponta, luxo e desperdício e, na outra, miséria e violência.
Hegemonia e contra-hegemonia
É isto que Gramsci chama de hegemonia: a forma normal de política em sociedades desenvolvidas e complexas, onde vigoram democracias representativas. É uma operação cultural de grande escala, antes que unidade forçada pelo estado, determinando a existência de um grupo hegemônico que se coloca como portador do “interesse geral”. Em termos de hegemonia, o xis da questão não é perguntar como o capitalismo funciona, mas como nós próprios fazemos ele funcionar. O capitalismo tem uma evidência e uma querência, impregnadas, em que estamos implicados ao elaborar o nosso dia a dia, nossos planos e nós mesmos.
O confronto contra-hegemônico, portanto, passa por um enfrentamento igualmente no terreno ideológico e cultural, com a gradual infiltração no sistema e ocupação de posições-chave — o que o teórico marxista chamou guerra de posição. É o esforço de rearticular as identidades políticas para romper a hegemonia e afirmar duas posições antagônicas, nós (o povo) x eles (a burguesia). Quando bem sucedido, isto significa construir o povo noutros termos, segundo uma consciência nacional-popular marcada pela identidade de classe operária e camponesa, a que corresponde a representação socialista.
Laclau e o significante vazio
Ernesto Laclau, o pós-marxista argentino, se distancia de Gramsci ao se afastar da ideia que a contra-hegemonia configura uma luta de classe. Escrevendo no final do século 20, para Laclau vivemos uma realidade pós-ideológica, em que a sociedade não pode mais ser interpretada no esquema dualista das classes. A luta de classe é somente um aspecto, entre outros. A luta de contra-hegemonia se deslocaria, assim, para os novos movimentos que articulam identidades políticas variadas, envolvendo também lutas raciais, étnicas, de gênero, sexualidade, imigrantes.
Em momentos de crise da representação, a estrutura vigente de sentido perde consistência. Como se, devido à instabilidade, se abrisse uma brecha no bloco hegemônico, o que Laclau chama de significante vazio. É um lugar estrutural, em que os sentidos passam a flutuar ao sabor dos múltiplos atritos provocados pela contra-hegemonia. A luta culmina seja com a colmatação das fissuras, numa reforma social e do estado que recupera as demandas, coopta os intelectuais e restaura a ordem existente (em termos gramscianos, a revolução passiva); seja com a ocupação dosignificante vazio por um grupo capaz de afirmar uma nova universalidade, uma nova ordem do discurso atravessada pela totalidade social até então subrepresentada.
Como o leitor vê, Laclau situa o discurso no centro da atividade política. A contra-hegemonia laclauliana envolve uma redefinição discursiva da universalidade. A autonomia do político se dá num embate que, em última instância, se resolve em termos de linguagem. A força só consegue consolidar-se ao rearticular a vontade coletiva num sentido social global. Tal cristalização de identidades políticas até então subrepresentadas determina um novo bloco histórico, numa unidade simultaneamente cultural e política.
Populismo 2.0 do Podemos
Iñigo Errejón, intelectual espanhol do novo partido Podemos, tomou Laclau como referência em sua tese de 650 páginas sobre a chegada ao poder de Evo Morales e do Movimento ao socialismo (MAS) na Bolívia. O autor explica como, depois do ciclo insurgente entre 2000 e 2006, que inclui as contendas da água e do gás, Evo e o MASconseguiram reconstruir uma hegemonia a partir da integração das lutas sindicais/cocaleiras, indigenistas/camponesas e antineoliberais de esquerda. O resultado histórico foi a sutura de uma nova totalidade discursiva que, superando as partes, pôde ocupar o significante vazio aberto pela crise da representação boliviana, no começo do século 21. Contornando tendências movimentistas, mistificações do indigenismo (e do próprio Evo) e sem “pagar mistério” sobre o paradigma do viver bien e o pachamamismo, Errejón conclui que a transformação social implicou, necessariamente, a reforma do estado e a recriação das instituições noutros termos, ao reconhecer outras identidades políticas como sujeitos ativos do processo.
O plano estratégico do Podemos, hoje a maior força eleitoral projetada da Espanha, é inteiramente baseado nessa concepção hegemonista, que vem de Gramsci, Laclau e Errejón. A leitura é que as jornadas do Movimento do 15 de Maio (15-M), a partir de 2011, romperam o horizonte de sentido do regime monarquista de 1978, em sua alternância entre o PSOE e o PP. Abriu-se com o 15-M, assim, um significante vazio, que entrou em disputa. No entanto, até agora, nenhuma força organizada conseguiu ocupá-lo para conferir um novo sentido social global. Tal incapacidade levou o regime antigo a prolongar-se, apesar da crise destituinte, inclusive iniciando ações de restauração aos moldes da revolução passiva.
O surgimento avassalador do Podemos se explica, assim, por estar no lugar certo na hora certa, assumindo a tarefa de tomar para si o significante vazio do 15-M. Isto implica assumir um discurso capaz de reunir uma maioria social, atraindo segmentos da sociedade que se encontram flutuantes, reunindo as forças dispersas (e dispersadas pela repressão) e os múltiplos sentidos políticos. Daí a ideia, tão presente no discurso de Pablo Iglesias, de tomar o “centro do tabuleiro”. Ou seja, de afirmar uma nova universalidade que seja composta pela integralidade da sociedade pós-15M. Isto significa uma síntese ampla e transversal que, à semelhança do MAS na Bolívia, possa consolidar o ciclo insurgente num novo ciclo institucional, levando à reforma do estado e da representação, a partir dos novos movimentos como sujeitos ativos.
A investida contra-hegemônica do Podemos, segundo a concepção de seus líderes, não é nem frentista — que seria mera unificação quantitativa e tática de forças de oposição — nem imposição vanguardista — uma tentativa de tomada do poder descolada das forças sociais não-representadas. Significaria, em vez disso, uma mudança qualitativa e douradoura no horizonte de sentido, integrando as diversas demandas, desejos e sujeitos políticos para uma nova universalidade concreta.
A crítica ao populismo
Uma primeira crítica das teorias da hegemonia, de Gramsci a Iglesias, está no fato que ela confere demasiada importância aos intelectuais. Evidentemente, intelectual, aqui, não se confunde com acadêmico. Em gramscês, intelectual é qualquer um que produza discurso. Em sociedades do capitalismo tardio, isto significa líderes culturais, músicos, celebridades, âncoras de TV, enfim, a produção de mídia em geral. Nas teorias pós-gramscianas, a comunicação assume uma centralidade grande.
No Brasil, tal tendência pode ser constatada com a profusão de análises que sobrevalorizam o papel da “grande mídia” na articulação da vontade coletiva. Não admira que, segundo o diagnóstico dessa linha hegemonista, um dos maiores obstáculos para a contra-hegemonia consista na impermeabilidade de rádio e TV em relação a identidades políticas subalternas. O “significante vazio” restaria bloqueado.
Para Gramsci, os intelectuais alinhados com forças historicamente emergentes devem mergulhar na atividade militante cotidiana, em participação orgânica na vida prática como construtor, organizador, convencedor. Mais do que fundir-se ao povo, ele estaria trabalhando, assim, para a construção da consciência nacional-popular, que aspira a tornar-se povo.
No Brasil, no século 20, multiplicaram-se os intelectuais, geralmente formados nas camadas médias, que se atribuíram a missão histórica de conscientizar (e, pelo menos num primeiro momento, liderar) os proletários. O que vai desde a pedagogia do oprimido de Freire ou o teatro de arena de Boal, dedicados à ativação de classe desde dentro, até as lideranças de movimentos sociais, como Guilherme Boulos, do MTST.
No “populismo 2.0″ de um Podemos, a leitura é outra. Mudou a composição de classe na base dos movimentos, de maneira que não faz mais sentido organizar no esquema dialético cúpulas/bases. A própria ideia de “trabalho de base” se tornou anacrônica, em termos de maioria social. A diversificação dos espaços sociais, a mobilidade das pessoas entre eles e a velocidade comunicativa impõem outra maneira de abrir brechas no bloco hegemônico. Daí a concentração nem tanto na capacidade intelectual propositiva, de sedução e síntese, quanto na vocalização transversal de amplos setores dispersos e autônomos em seu próprio direito. Desaparece a figura do intelectual orgânico junto às massas, de cariz gramsciano: Iglesias se coloca no cenário midiático como intelectual pós-orgânico, ou melhor, inorgânico.
Multidão x hegemonia
A diferença do populismo para a teoria da multidão, de Negri e Hardt, consiste em que, para a última, a potência não está na construção de um povo. O povo falta na multidão, porque ela consiste de forças singulares que não admitem qualquer tipo de unificação. O “significante vazio”, dessa maneira, não passa de uma abstração estruturalista, que perde de vista como o vazio é produto de um êxodo e não de um deslocamento estrutural. O êxodo vai ao deserto porque está prenhe de mundo e não precisa de significantes.
A crise é gerada pela convergência de plenitudes constituídas por singularidades, do que por alguma lacuna entre identidades e a totalidade. Muda a perspectiva. O 15-M, nesse sentido, é antes uma experiência de viver o “sim”, uma experimentação de cooperação, rede e amor à potência comum, do que um mero deslocamento de significados. O trabalho da multidão não está em consolidar uma “universalidade concreta” mediante a sutura dos sentidos, mas multiplicar pontos de atrito numa variedade de táticas, visando ao aprofundamento das conquistas.
Para Negri e Hardt, não é que a construção de um nacional-popular esteja moralmente errada porque tentaria unificar a diversidade de identidades políticas não-representadas, a conformar-se segundo outro projeto de poder (“nacional-popular” ou não). É que, primeiro, tais “identidades” não podem ser representadas, porque são singularidades em permanente transformação. E, segundo, porque a tentativa de unificação subtrai o poder próprio da diferença que elas exprimem. É que a potência está com a multidão. O que condiz com o fundo marxista da teoria, visto que a multidão é um conceito de classe e quem faz a revolução é a luta de classe. A essência da multidão é a sua própria potência, no sentido que suas forças singulares são imediatamente produtivas — de formas de vida, afetos ativos, direitos vivos, capacidades criadoras de cidade.
Laclau e Negri divergem quanto às coordenadas da luta nas condições atuais. Se Laclau postula uma era pós-ideológica, em que a luta de classe cede à diversidade de identidades que buscam se afirmar; Negri aponta uma mutação no capitalismo determinada por uma nova forma de vida social, baseada na autonomia dos sujeitos, na colaboração transversal e, na esteira de Deleuze e Guattari, na amálgama entre humano e não-humano, no plano maquínico. Não é que a classe tenha se dissolvido numa diversidade de “novos movimentos”, nos termos de Laclau; em realidade, a classe se reorganiza nas condições da organização social do capitalismo hoje, e é sobre esse terreno que a multidão poderá emergir — sempre no antagonismo e na ação criadora.
A crítica do populismo 2.0
Com o foco na teoria do discurso, o “populismo 2.0″ (Errejón) perde de vista todo o substrato com que funciona o próprio capitalismo. Com as mutações de que falam Negri e Hardt, desaparece qualquer possível divisão entre o terreno material das lutas em que se constituem os sujeitos, e o terreno cultural e ideológico em que são articuladas as vontades coletivas. Não tanto que cultura e ideologia sejam super-estrutura de relações econômicas, — o que seria marxismo vulgar, — mas sim que estão imediatamente atravessadas pelo plano pré-discursivo ou pré-linguístico, o plano maquínico do desejo.
As experiências de luta dos novos movimentos e de ciclos insurgentes — na Bolívia ou na Espanha — produzem transformações no nível da sensibilidade, uma nova maneira de sentir a democracia e a ação comum. Os afetos gerados pelos bons encontros são cristalizados em hábitos, mesclando-se com os comportamentos mais “naturalizados”. Se o capitalismo tem uma evidência e uma querência, tais construções político-afetivas têm o condão de produzir outras evidências e outras querências.
A mudança real não pode ser totalizada em ideologia abrangente que substitui a velha ordem e não procede desta forma, ficando no plano linguístico. Com prioridade ontológica, a mudança real precisa ser metabolizada pelos próprios movimentos minoritários na construção de novos hábitos, afetos e agenciamentos maquínicos. Isto não é privilegiar alguma micropolítica localista romantizada, mas praticar movimentos expansivos com capacidade propagadora de alta intensidade, atravessando fronteiras, identidades, espaços delimitados. Afinal, as minorias são todo mundo.
Muitas transformações, da segunda metade do século passado em diante, dessa maneira, não passam pela reforma da representação, nem pela ocupação de algum significante vazio, de resto um esquematismo a-histórico igualmente vazio. O leitor veja, por exemplo, a revolução sexual e das drogas dos anos 1960, ou então uma série de mutações de sensibilidade que, por vezes, são entendidas impropriamente como “evolução social”, mas que no fundo significam a produção de práticas concretas, afetos cristalizados, hábitos. O plano da linguagem não capta um mundo de fluxos e reagenciamentos operantes diretamente entre os corpos e a composição dos corpos, inclusive com corpos não-humanos, maquínicos, em sua dimensão molecular.
No fundo, a luta da multidão é mais potente do que a construção discursiva de um povo porque opera no mesmo fundo inconsciente da vida comum que o capitalismo coloniza e explora. Isto vale, inclusive, para a questão da mídia, denotando o vício daqueles tão maceteados pela oposição ao Leviatã da “grande mídia”. Nenhum órgão de comunicação tem o poder de emitir enunciados que, uma vez recebidos, passam a circular pelo tecido social. Esta seria uma análise molar e discursiva do fenômeno. O máximo que podem fazer é conectar-se ou conjugar-se a redes de afetos e fluxos desejantes pré-existentes, que adquirem certa consistência. Basta ver como a força de um telejornal de uma grande emissora está, através dos circuitos do desejo, ligada à maquinaria da telenovela e do futebol.
Obviamente, tal percepção não nos deve levar a subestimar o “poder da mídia”, mas a entendê-lo melhor na medida em que nós fazemos ele funcionar (querendo ver o jogo no Galvão, por exemplo).
O Podemos na berlinda?
Disso tudo, não deveríamos cair num esquematismo precipitado. Como se a descrição do MAS a partir do hegemonismo laclauliano, ou a autoelaboração do Podemos por seus professores-ideólogos, fosse determinante para apreender o sentido histórico e material daqueles. É preciso atentar que existe um lag entre o que falam de uma experiência (mesmo aqueles implicados nela), e o que essa experiência nos interpela.
A busca da maioria social do Podemos já foi criticada como captura dos devires do 15-M, vago sincretismo populista, conchavo elástico demais, personalismo de Iglesias ou, como escreveu o antropólogo argentino Salvador Schavelzon, uma tradução político-cultural deficiente (oportunista?) dos experimentos da América do Sul. O Podemoslevaria à Espanha não o que de melhor teria sido produzido na América do Sul, mas justamente a parte problemática que tem levado governos a fechar-se em termos de poder constituinte. Seria por demais luta hegemonista, socialista e nacional-popular, e por de menos anti-pós-colonialista, plurinacional e cosmopolítica.
O caso é que, por outro lado, assim como na Bolívia, na Espanha quem disse que o Podemos abafará o povo que falta, isto é, a multidão? Na Bolívia, o fechamento progressivo do governo de Evo e do MAS levou à abertura de novos atritos e frontes de disputa, que se somaram aos anteriores irresolvidos, o que o marxista boliviano (e vice-presidente) Alvaro Linera chama de empate catastrófico. A multidão seguiu atuando com Evo, a despeito de Evo, contra Evo — simultaneamente, segundo uma variedade de táticas.
De maneira semelhante, se o “poder do Podemos” consiste no atravessamento pela multidão, não será um governo podemista refém da força dispersa, que agora nele parece apostar enquanto tática eleitoral? Se a potência está com a multidão, por que ter medo de uma alternativa hegemonista cuja força depende dela em primeiro lugar?
O erro não seria, talvez, considerar o Podemos, em moldes gramsciano-laclaulianos, como uma estratégia de construção de povo — em vez de mais uma das táticas da multidão, uma maneira de concatenar poder e potência (potestas e potentia)? Traçar um destino para a experiência organizativa em face de sua ideologia assumida não é, exatamente, confirmar pela via negativa que aquela ideologia descreve e prescreve a própria experiência?
De onde vejo, essa questão está em aberto.
Referências básicas
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-Édipo. 34, 2010.
ERREJÓN, Iñigo. La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Tese de doutorado. Madrid, 2012.
FERNÁNDEZ-SAVATER, Amador. Fuerza y poder; reimaginar la revoluciónEldiario.es, 2013.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, 6 vols. Civilização Brasileira, 1999-.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Record, 2005.
____. Commonwealth. Harvard, 2009.
LACLAU, Ernesto. A razão populista. EdUERJ, 2013.
SÁNCHEZ, Raúl Cedillo. O poder do Podemos. UniNômade, 2014.
SCHAVELZON, Salvador. Podemos, América do Sul e república plurinacional. UniNômade, 2015.
FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/540245-o-podemos-entre-hegemonia-e-multidao-laclau-ou-negri


Militares, ciências, Educação Popular.

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