Thursday, September 24, 2015

Dorothy Day e Thomas Merton: os católicos radicais citados por Francisco

Dorothy Day e Thomas Merton: os católicos radicais citados por Francisco

Papa Francisco tocou as almas dos católicos progressistas em todas as partes nesta manhã, ao mencionar no seudiscurso ao Congresso dos Estados Unidos os nomes de três radicais que eles reverenciaram por décadas.
A reportagem é de Thomas C. Fox, publicada no sítio National Catholic Reporter, 24-09-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A maioria dos milhões de pessoas que assistiram o pontífice falar, estão familiarizados com Martin Luther King Jr., o defensor dos direitos civis, pregador da não violência e Prêmio Nobel assassinado em 1968.
Eles estão menos familiarizados com dois outros norte-americanos igualmente dedicados aos princípios não violentos, o monge trapista Thomas Merton e a cofundadora do movimento Catholic WorkerDorothy Day.
Merton e Day foram os dois católicos norte-americanos radicais mais notáveis do século XX. Ambos basearam as suas visões da vida e da sociedade nos Evangelhos cristãos, especialmente as suas rejeições da violência e o compromisso com os pobres.
Ao citar essas duas figuras, Francisco parece estar elaborando a sua própria visão radical do catolicismo, ao colocar essa visão em um contexto mais reconhecível e compreensível aos católicos norte-americanos.
Thomas Merton
Lawrence Cunningham, professor emérito de teologia da Notre Dame University, escrevendo sobre Merton, chamou-o uma vez de "o maior escritor espiritual e mestre espiritual do século XX da América de fala inglesa".
Em 1939, depois de se formar pela Columbia University, durante a leitura de um livro sobre a conversão de Gerard Manley Hopkins ao catolicismo,Merton também quis se converter à fé católica. Foi batizado e, no fim, entrou para a vida monástica como monge trapista, encontrando o seu lar na Abadia de Nossa Senhora de Gethsemani, perto de Bardstown,Kentucky. Ele fez os votos solenes em 1947 e, em 1948, publicou a sua autobiografia, A montanha dos sete patamares.
Ao longo dos anos, ele se tornou um escritor prolífico, publicando reflexões profundamente espirituais e mantendo abundantes correspondências com uma vasta gama de figuras públicas e privadas, e, durante todo o tempo, crescendo como crítico radical do militarismo dosEUA.
Ele se tornou um forte opositor da Guerra do Vietnã e da crescente corrida armamentista. A partir da sua ermida em Gethsemani, ele usou a sua escrita para falar contra as ameaças à alma e à sociedade causadas pelas armas nucleares.
Ele escreveu que a violência estava moldando a própria psique da nação.
"O foco real da violência americana não está em grupos esotéricos, mas na própria própria cultura, na sua mídia de massa, no seu extremo individualismo e competitividade, nos seus mitos inflacionados de virilidade e tenacidade, e na sua preocupação avassaladora com o poder do exagero nuclear, químico, bacteriológico e psicológico", escreveu ele certa vez.
"Se vivemos naquela que é essencialmente uma cultura do exagero, como podemos ficar surpresos ao encontrar violência nela?"
Certa vez, ele escreveu em uma carta ao seu amigo Jim Forest que ele não era um "pacifista puro", dizendo que, "no entanto, hoje, na prática, eu não vejo como é que alguém pode ser qualquer outra coisa, já que as guerras limitadas (embora 'justas') apresentam um perigo quase certo de uma guerra nuclear em escala total. É absolutamente claro para mim que estamos diante da obrigação, tanto como seres humanos quanto como cristãos, de lutar de todas as formas possíveis para abolir a guerra".
Ele escreveu uma vez palavras que parecem ecoar Francisco hoje. Ontem, Francisco disse aos bispos norte-americanos para não travarem lutas culturais, mas sim se engajarem na cultura.
Merton escreveu décadas atrás: "O começo do amor é deixar as pessoas que amamos serem perfeitamente elas mesmas e não distorcê-las para que caibam na nossa própria imagem. Caso contrário, amamos apenas o reflexo de nós mesmos que encontramos nelas".
Ao longo da sua vida adulta, Merton manteve consistentemente uma perspectiva antiguerra.
Certa vez, Merton se referiu ao Vietnã como "uma atrocidade avassaladora".
Merton acreditava e afirmava inequivocamente que "a raiz de toda guerra é o medo", não tanto o medo que as pessoas têm umas das outras, mas "o medo que elas têm de tudo".
Merton é amplamente visto hoje como um dos dois ou três pacificistas mais influentes de toda a tradição católica.
Ele abraçou o diálogo inter-religioso, ainda uma ideia relativamente nova na década de 1960. Ele viajou para a Tailândia para participar de um encontro organizado por monges budistas e morreu em um acidente no dia 10 dezembro de 1968.
Dorothy Day
Day, assim como Merton, animou os católicos progressistas ao longo de décadas e continua a fazê-lo em centenas de casas do movimento Catholic Worker, que pontilham as cidades do interior dos Estados Unidos e além.
Foi nos anos 1930 que ela conheceu o companheiro ativista Peter Maurin, e os dois estabeleceram oCatholic Worker Movement [Movimento Operário Católico], um movimento pacifista que combina hospitalidade aos sem-teto e ação não violenta direta.
Ela atuou como editora do jornal The Catholic Worker, que ela e Maurin fundaram, de 1933 até a sua morte em 1980.
Day nasceu em 1897, no BrooklynNova York, e, inicialmente, viveu uma vida boêmia, envolvendo vários casos amorosos e um aborto. Um biógrafo de Day,Robert Coles, descreveu-a como "uma mulher que tinha sido, nos seus 20 anos, uma jornalista e ensaísta bem conhecida, uma romancista, uma amiga próxima de escritores como Eugene O'NeillMike GoldJohn Dos Passos e Malcolm Cowley".
Em 1932, ela conheceu Maurin, um imigrante francês e um homem de intelecto profundo. Os dois começaram a publicar The Catholic Worker no dia 1º de maio de 1933, ao preço de um centavo e publicado até hoje pelo mesmo preço.
Day tinha uma afinidade para com os anarquistas, e o Catholic Worker, até hoje, muitas vezes vê as suas próprias ações de hospitalidade à luz das tendências anarquistas de Day.
Em junho de 1955, Day uniu-se a um grupo de pacifistas para se recusar a participar de exercícios de defesa civil. Day e outras seis pessoas assumiram a posição de que a sua recusa não era uma disputa legal, mas sim filosófica. Como citado na sua página da Wikipédia, Day disse que ela estava fazendo uma "penitência pública" pela primeira utilização de uma bomba atômica por parte dos Estados Unidos.
À semelhança de outros católicos reformistas da época, Day tornou-se uma entusiasta do Concílio Vaticano II em meados dos anos 1960. Ela esperava que ele endossaria a não violência como princípio fundamental da fé católica, rejeitando a teoria da Igreja da "guerra justa", que ela argumentava que não fazia mais sentido e violava os mandatos dos Evangelhos. Ela afirmou ser imoral não apenas o uso, mas também o armazenamento de armas nucleares, chamando-as de atos de terror.
Ela pressionou os bispos em Roma e se uniu a outras mulheres em um jejum de 10 dias, na tentativa de chamar a atenção para os seus pontos de vista não violentos. Ela escreveu que ficou satisfeita quando o Concílio emitiu um documento dizendo que a guerra nuclear era incompatível com a tradicional teoria católica da guerra justa.
O documento diz: "Toda ação bélica, que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões com os seus habitantes, é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza, sem hesitação" [Gaudium et spes, 80].
A hierarquia católica a via como uma renegada durante a maior parte da sua vida. Aparentemente mais manejável depois da sua morte, os bispos católicos passaram a gostar dela. No ano 2000, o falecido cardeal John O'Connor, de Nova York, abriu a causa de canonização de Day. O Papa Bento XVI, nos últimos dias do seu papado, citou Day como exemplo de conversão.
Até hoje, o espírito de Day se entrelaça com o movimento Catholic Worker, ainda bem fora da corrente principal da vida católica. Seus escritos sobre não violência e responsabilidade pessoal para com os mais pobres continuam animando o movimento.

Papa Francisco: “Perguntam-me se eu sou católico? Se quiserem, posso recitar o Credo...”

“Perguntam-me se eu sou católico? Se quiserem, posso recitar o Credo...” O Papa Francisco falou com os jornalistas durante a viagem de Santiago de Cuba a Washington, para responder às acusações de quem o chama de “comunista” ou, até mesmo de “antipapa”.
A reportagem é de Andrea Tornielli e publicada por Vatican Insider, 22-09-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
O que pensa sobre o embargo de Cuba? Falará sobre ele no Congresso?
O fim do embargo faz parte das negociações entre os Estados Unidos e Cuba. Os dois presidentes conversaram; espero que se chegue a um acordo que satisfaça a ambas as partes. Com respeito à postura da Santa Sé sobre os embargos, os Papas precedentes se manifestaram, e não apenas sobre este caso. Sobre isso fala a Doutrina Social da Igreja. No Congresso não farei alusão a isso de maneira específica, mas falarei em geral sobre os acordos como um sinal de progresso na convivência.
Fala-se de 50 dissidentes cubanos presos. Queria reunir-se com eles?
Não tive notícias sobre prisões. Eu gosto de me encontrar com todos, todos são filhos de Deus, cada encontro enriquece. Estava claro que eu não teria aceitado nenhuma audiência privada, não apenas com os dissidentes, mas também com os outros, inclusive alguns líderes de Estado que tinham pedido uma. Sei que da Nunciatura foram dados alguns telefonemas a alguns dissidentes para dizer-lhes que, na chegada à Catedral de Havana, eu os teria saudado com gosto. Saudei a todos, mas ninguém se identificou como dissidente.
A Igreja católica pode ter um papel para ajudá-los?
A Igreja cubana trabalhou para fazer listas de prisioneiros que seriam favorecidos com o indulto, que foi concedido a mais de 3.000. Há outros casos que estão sendo estudados. Alguém me disse: seria bonito eliminar a prisão perpétua! É quase uma pena de morte oculta, tu estás aí morrendo todos os dias sem a esperança de libertação. Outra hipótese é que se façam indultos gerais a cada ano ou a cada dois anos. A Igreja trabalhou e está trabalhando para pedir indultos, e vai continuar a fazê-lo.
Quando Fidel estava no poder, a Igreja sofreu muito. Pareceu-lhe arrependido?
O arrependimento é algo muito íntimo, de consciência. Durante o encontro falamos sobre os jesuítas que ele conheceu. Levei-lhe como presente um livro e um CD do padre Llorente, seguramente ele os apreciará. Em relação ao passado, falamos apenas sobre o colégio dos jesuítas e sobre como o colocavam para trabalhar. Depois falamos muito sobre a encíclica Laudato si’. Ele está muito interessado no tema da ecologia e está preocupado com o meio ambiente. Foi um encontro informal, espontâneo.
Em poucos anos houve três visitas papais a Cuba. É porque “sofre” de alguma “enfermidade”?
Não. A primeira viagem de João Paulo II foi histórica, mas normal: visitou muitos países agressivos com a Igreja. A segunda visita foi a de Bento XVI, e também essa era normal. A minha foi um pouco casual, porque primeiro tinha pensado em entrar nosEstados Unidos pela fronteira com o México, a primeira ideia, Ciudad Juárez, o limite, não? Mas ir ao México sem visitarNossa Senhora de Guadalupe teria sido uma bofetada. Depois veio o anúncio de 17 de dezembro (o “degelo” entre Cuba eEstados Unidos, ndr.), após um processo de quase um ano. E disse: vamos aos Estados Unidos passando por Cuba. Não porque tenha “males” especiais que outros países não têm. Não interpretaria dessa maneira as três visitas. Eu, por exemplo, visitei o BrasilJoão Paulo II foi três ou quatro vezes, mas não tinha uma “enfermidade” especial. Estou contente por ter visitadoCuba.
Suas denúncias sobre a desigualdade do sistema econômico mundial provocaram reações de todo tipo: setores da sociedade estadunidense chegaram a se perguntar se o papa é católico...
Um amigo cardeal me contou que recebeu a visita de uma senhora, muito preocupada, muito católica, um pouco rígida, mas boa. E ela lhe perguntou se era verdade que na Bíblia se falava de um Anticristo. Depois lhe perguntou se falava de um antipapa. E quando ele lhe perguntou por que lhe fazia estas perguntas, ela respondeu: “Tenho certeza de que Francisco é um antipapa, porque não usa os sapatos vermelhos”. Em relação ao fato de ser comunista: tenho certeza de não ter dito nada além do que ensina a Doutrina Social da Igreja. Eu sigo a Igreja, e sobre isto creio não estar errado. Talvez algo tenha dado uma impressão um pouco mais “à esquerda”, mas seria um erro de interpretação. E se quiserem que recite o Credo, estou disposto a fazê-lo...
Na última viagem à América Latina, você criticou fortemente o sistema capitalista; em Cuba foi mais “soft” com o sistema comunista. Por quê?
Nos discursos em Cuba sempre fiz alusões à Doutrina Social da Igreja. As coisas que é preciso corrigir disse-as claramente, não de maneira “perfumada”. Em relação ao capitalismo selvagem, não disse mais do que escrevi na Evangelii Gaudium e na encíclica Laudato si’. Aqui em Cuba, a viagem era pastoral, minhas intervenções foram homilias. Foi uma linguagem mais pastoral, ao passo que na encíclica era preciso tratar de coisas mais técnicas.

Wednesday, September 23, 2015

NÃO DEVEMOS E NÃO PODEMOS SUSTENTAR UM SISTEMA FINANCEIRO QUE LEVA MILHÕES DE PESSOAS A MORTE

Não podemos concordar com um sistema financeiro que destrói a vida de milhões de pessoas em nome de um pequeno grupo de pessoas que dominam e comandam as relações econômicas mundiais, como escreveu François Morin "devemos destruir os bancos" isto é, não podemos sustentar os bancos que sustentam os seus lucros sobre os corpos e mentes dos cidadãos corroídos pelos dívidas e juros (450% ao ano no rotativo no caso do Brasil) exorbitantes que esmaga os seus sonhos e vidas.   

Os 28 bancos que controlam o dinheiro do mundo:... é necessário destruir estes bancos, que ele compara a uma hidra, e resgatar a moeda para a esfera pública.

Os 28 bancos que controlam o dinheiro do mundo

A transferência, para os Estados, das dívidas privadas tóxicas de 28 grandes bancos “sistêmicos”, durante a última crise financeira, explica as políticas de austeridade praticas na Europa.
Francesas, europeias ou norte-americanas, todas as autoridades bancárias asseguram: se o mundo viver uma nova crise financeira, comparável à de 2007-08, nem os Estados, nem os contribuintes vão pagar as consequências. É possível acreditar?
A entrevista é de François Morin, entrevistado por Vittorio De Filippis, publicado por Outras Palavras, 22-09-2015.
O economista François Morin, professor emérito da Universidade de Toulouse e membro do conselho do Banco Central francês, tem uma resposta categórica: não. Em L’Hydre Mondial [A Hidra mundial], um livro publicado em maio, e no qual ele menciona dados inéditos, Morin mostra como 28 bancos de porte mundial constituem um oligopólio totalmente distanciado do interesse público.
Para colocar os cidadãos a salvo de desastres financeiros futuros, o autor considera que é necessário destruir estes bancos, que ele compara a uma hidra, e resgatar a moeda para a esfera pública.
Eis sua entrevista.
Como um punhado de bancos tomou a forma de uma hidra mundial?
O processo é perfeitamente claro. Depois da liberalização da esfera financeira iniciada nos anos 1970 (taxas de câmbio e de juros definidas pelo mercado e não mais pelos Estados, e liberalização de movimento do capital), os mercados monetários e financeiros tornaram-se globais em meados dos anos 1990.
Os maiores bancos tiveram então de adaptar a sua dimensão a esse novo espaço de intercâmbio, por meio de fusões e reestruturações. Reuniram-se as condições para o surgimento de um oligopólio em escala global. O processo assumiu rapidamente escala internacional e tornou-se gigantesco: o balanço total dos 28 bancos do oligopólio (50,341 trilhões de dólares) é superior, em 2012, à dívida pública global (48,957 trilhões de dólares)!
Desde 2012, descobriu-se também que esses bancos muito grandes se entenderam entre si de forma fraudulenta a partir de meados dos anos 2000. A partir desse momento, esse oligopólio transformou-se numa hidra devastadora para a economia mundial.
 
Em que esses bancos são sistêmicos?
Estes 28 bancos foram declarados, acertadamente, “sistêmicos” pela reunião do G20 de Cannes, em 2011. A análise das causas da crise financeira da crise iniciada em 2007-2008 não podia deixar pairar qualquer dúvida sobre a responsabilidade desses bancos no desencadeamento do processo. Estão em causa os produtos financeiros “derivativos”, que espalharam-se na época e ainda continuam a ser difundidos em todo o mundo.
Lembremo-nos de que estes derivativos são produtos que visam oferecer garantias a seus possuidores, em caso de dificuldades econômicas – e alguns deles têm caráter muito especulativo. Sua conversão em dinheiro pode tornar-se catastrófica, em caso de uma crise. No entanto, apenas 14 bancos com importância sistêmica “fabricam” estes produtos, cujo valor imaginário (o montante dos valores segurados) chega a 710 trilhões de dólares — ou seja, mais de 10 vezes o PIB mundial!
E você afirma que eles praticam acordos fraudulentos?
Múltiplas análises demonstraram que esses bancos ocupam posições dominantes sobre vários grandes mercados (de câmbio, de títulos de dívida e de produtos derivados). É característico de um oligopólio.
Mas desde 2012, as autoridades judiciais dos Estados Unidos, britânicas e a Comissão Europeia aumentaram investigações e multas que demostram que muitos desses bancos – sobretudo onze entre eles (Bank of America, BNP-Paribas, Barclays, Citigroup, Crédit Suisse, Deutsche Bank, Goldman Sachs, HSBC, JP Morgan Chase, Royal Bank of Scotland, UBS) – montaram sistematicamente “acordos organizado em bandas”.
A imposição de multas de muitos bilhões de dólares, contra a manipulação do mercado de câmbio ou da Libor [taxa de referência para juros interbancários, estabelecida em Londres], demonstra que esta prática existe.
O mundo está sentado sobre uma montanha de bombas-relógio financeiras montadas unicamente por este punhado de bancos?
Há várias evidências de muitas bolhas financeiras que podem estourar a qualquer momento. As bolha do mercado de ações só pode ser explicada pelas enormes injeções de liquidez, por parte dos bancos centrais. Mas, acima de tudo, há a bolha da dívida pública que atingiu todas as grandes economias. As dívidas privadas tóxicas do oligopólio bancário foram maciçamente transferidas para os Estados, na última crise financeira. Este superendividamento público, devido exclusivamente à crise e a esses bancos, explica as políticas de “rigor” e “austeridade” praticadas em cada vez mais países. Este superendividamento é a ameaça principal, como se vê na Grécia.
Regulação de derivativos – inclusive de crédito –, luta contra o “sistema bancário da sombra”, reforço dos fundos próprios, separação entre bancos de depósito e de investimento… não se pode dizer que nada foi feito para estabelecer algum controle sobre os bancos.
Vamos olhar mais de perto. O “sistema bancário sombra”, ou seja, o sistema financeiro não regulamentado, não pare de crescer – notadamente através do oligopólio bancário – para escapar das normas de supervisão e, em primeiro lugar, para negociar com derivativos. O reforço de capital próprio dos maiores bancos foi ridiculamente baixo. E em nenhuma legislação em vigor há uma verdadeira separação “patrimonial” das atividades bancárias. Em suma, o lobby bancário, muito organizado em escala internacional, tem sido eficaz, e o oligopólio pode continuar na mesma lógica financeira deletéria que praticava antes da crise.
Como os Estados tornaram-se reféns do oligopólio sistêmico que são os bancos?
Depois dos anos 1970, os Estados perderam toda a soberania monetária. Eles são responsáveis. A moeda agora é criada pelos bancos, na proporção de cerca de 90%, e pelos bancos centrais (em muitos países, independentes dos Estados) para os restantes 10%. Além disso, a gestão da moeda, através de seus dois preços fundamentais (as taxas de câmbio e taxas de juros) está inteiramente nas mãos do oligopólio bancário, que tem todas as condições para manipulá-los. Assim, os grandes bancos têm nas mãos as condições monetárias para o financiamento dos investimentos, mas sobretudo do para o financiamento dos déficits públicos. Os Estados não são apenas disciplinados pelos mercados, mas sobretudo reféns da hidra mundial.
Há portanto uma relação quase destrutiva desses bancos com relação aos Estados.
Essa relação é, de fato, devastadora. Nossas democracias esvaziam-se progressivamente, em razão da redução (ou da ausência) de margem de manobra para a ação pública. Além disso, o oligopólio bancário deseja instrumentalizar os poderes dos Estados, para evitar eventuais regulações financeiras, ou limitar o peso das multas às quais deve fazer face quando é pego com a boca na botija. Quer evitar especialmente processos de repercussão pública.
Mas os bancos não permitem aos Estados financiar os déficits orçamentários?
Não devemos esperar que os bancos privados defendam interesses sociais! Os bancos veem primeiro os seus lucros, que eles podem realizar por meio de suas atividades financeiras particulares, ou de suas atividades especulativas. Seus gestores olham para os Estados como para qualquer outro ator econômico endividado. Medem os riscos e a rentabilidade de um investimento financeiro. As dívidas do Estado são vistas por eles como um ativo financeiro, tal como qualquer outro – que se compra ou se vende, e sobre o qual é igualmente permitido especular.
Na mitologia grega, Hércules é o encarregado deve matar a hidra. E em nosso mundo: onde está o Hércules capaz de matar a hidra bancária mundial?
Sobre isso, não há dúvidas. Nosso Hércules de amanhã será um ator coletivo, uma futura comunidade internacional, de legitimidade democrática incontestável, libertada de seus dogmas neoliberais, e suficientemente consciente de seus interesses de longo prazo para organizar o financiamento da atividade econômica mundial. Dito de outra forma, um ser ainda imaginário! Um primeiro passo seria dado, contudo, se um novo Bretton Woods fosse convocado para criar uma moeda comum em escala internacional, e não apenas no contexto das soberanias monetárias nacionais restauradas.
Você aposta na inteligência política?
Sim, certamente! Mas, sobretudo, aposto na inteligência dos cidadãos do nosso planeta. As redes sociais podem ser instrumentos formidáveis para criar esta inteligência política, de que temos extrema necessidade hoje.
Estariamos caminhando para um desastre de escala sem precedentes?
Ele está diante de nós. Todas as condições estão maduras para um novo terremoto financeiro ocorrer, quando os Estados estão exangues. Ele será ainda mais grave do que o precedente. Ninguém pode desejá-lo, porque seus efeitos econômicos e financeiros serão desastrosos e suas consequências políticas e sociais podem ser dramáticas. Podemos vê-los na Grécia. Urgência democrática e lucidez política tornaram-se indispensáveis e urgentes.
Os bancos estão todos podres? As finanças, necessariamente perversas?
Quando um oligopólio superpoderoso administra o dinheiro como um bem privado, não podemos ser surpreendidos pela lógica financeira que resulta daí. Os bancos buscam metas de lucro, com a tentação recorrente, entre os maiores, de fazer acordos oligopolistas. A hidra bancária nasceu há cerca de dez anos, e já tomou conta de todo o planeta. O confronto de poderes, entre bancos avassaladores e poderes políticos enfraquecidos, parece agora inevitável. Um resultado positivo desta luta – a priori desigual – só pode ocorrer por meio mobilização de cidadãos que estejam plenamente conscientes do que está em jogo.

Tuesday, September 22, 2015

Crise política e a desconstrução do país. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto

Crise política e a desconstrução do país. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto

“No ‘mundo real’ temos um governo que tem no seu ministério os bancos, as oligarquias políticas e os latifundiários, mas no ‘mundo discursivo’ ele supostamente seria o front de resistência atacado por tais sujeitos”, constata o pesquisador.
Foto: mundorama.net
O que se percebe, “para além do conflito político” atual, é que o “Brasil está em desconstrução”, diz Moysés Pinto Neto à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele enfatiza que “há duas maneiras de ler” a crise atual. A primeira, frisa, “mais comum”, tem como chave de leitura a relação entre “o empresariado, a grande mídia e o sistema político”, e a interpretação de que a crise econômica “devida aos altos gastos governamentais” exige “mudanças fiscais e contenção de despesa pública”. A segunda possibilidade de entender a crise, explica, está diretamente relacionada com mudanças que ocorreram a partir de 2013, quando o governo da presidenteDilma começou a ficar desgastado: “2013 marcou um evento traumático, um acontecimento que perturbou a política brasileira e deu início a um processo que cozinha em fogo baixo. Ele aponta para uma nova organização da política que circula entre a rua, as instituições e o mundo digital, que envolve um tipo de ativismo mais potente por parte da população, uma relação significativa entre a hiperconectividade do mundo atual - e o Brasil está em destaque no quesito - e uma hiperpolitização, seja para qual lado for”.
Somado a esse novo cenário, pontua, a crise política também é uma “crise de crédito” em relação ao governo da presidente Dilma. “Uma vez comprovado que a ‘palavra’ de Dilma Rousseff não valia nada, já que ela negou os números negativos durante a campanha e atacou virulentamente seus adversários pelas medidas que mais tarde ela própria implementaria, sua legitimidade foi desaparecendo e, com isso, tornando-se mais patente a crise política”.
Na avaliação de Neto, as análises que propõem uma “virada à esquerda” são ilusão, porque o “próprio PT admitiu a austeridade, sabendo que depende dela para se conservar no poder até o fim do mandato. É desonestidade intelectual continuar afirmando que essa virada vai acontecer, já que não há nenhum - absolutamente nenhum - sinal disso”. Ao invés de esperar uma “mudança” do governo, pontua, “o que os movimentos sociais podem ainda cobrar do governo, e acho que devem o fazer, é a institucionalização das conquistas sociais dos últimos anos”.
Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - Ulbra Canoas.

Confira a entrevista.
Foto: linkedin.com
IHU On-Line - Que análise geral faz da origem da crise política atual?
Moysés Pinto Neto - A crise política atual é resultado do desgaste e enfraquecimento do governo petista, que vem ocorrendo desde 2013. Até aquele momento, apesar da subida de tom que a esquerda mantinha, terminando com a ocupação das ruas, a aprovação era grande e o "centrão" peemedebista não tinha interesse em enfrentar o PT. A estratégia antipolítica deDilma vinha funcionando e o "pacto conservador" inaugurado pelo lulismo prosseguia de vento em popa, focando-se no "gargalo" da infraestrutura. Em 2013, contudo, os atingidos peloprojeto neodesenvolvimentista saem às ruas para mostrar sua indignação contra a precariedade do transporte público, o investimento desenfreado no automóvel, a transformação do modelo de cidade baseada na gentrificação, a violência da polícia e a falta de intensificação da democracia, entre outras pautas. Tudo isso se aprofundará no ano seguinte, com a Copa do Mundo e sua articulação que hoje, mais claramente que nunca, mostra seu caráter de empreendimento mafioso que vampiriza os chamados "mercados emergentes".
Ao mesmo tempo, a universalidade das pautas extrapola o campo tradicional da esquerda, sendo permeável à modulação pelo imaginário mais associado à direita. Fortalece-se o pensamento liberal e a ideia de um Estado inchado, corrupto e ineficiente extorquindo dinheiro "das famílias" ou "dos empreendedores". A incapacidade de decolagem do neodesenvolvimentismo - falarei disso adiante - vai provocar uma lacuna que permite o ressurgimento do imaginário da austeridade, da diminuição do tamanho do Estado e da ideia de que a saída é pela direita. A radicalização de alguns movimentos sociais também produziu a estridência reativa, com o surgimento de focos autoritários e fundamentalismo religioso.
Do voto crítico ao anúncio da austeridade
Finalmente, as eleições de 2014 provocaram uma verdadeira fissura no imaginário político brasileiro, atingindo níveis de virulência não vistos desde pelo menos 1989. A estratégia de marketing da campanha governista perdeu todo pudor e deixou de usar o meio-tom sugestivo para difamar e mentir descaradamente. A ideia de que, uma vez eleita a candidata, vira-se a página e pronto, desconsiderou a politização (para bem e para mal, não importa) da sociedade desde 2013. Assim, a palavra de Dilma e o chavão de "evitar a todo custo a volta da direita" fez emergir o "voto crítico", atitude desesperançada de eleger o "menos pior" que possibilitou a reconexão do PT às suas bases tradicionais, apesar da insatisfação com o governo, fazendo a diferença de votos necessária para garantir a vitória. Esse apoio, no entanto, estava à beira da ruptura. Podemos ler esse "crítico" como se diz "em estado crítico", à beira da morte. Por isso, o anúncio do ministério - com nomes comoJoaquim LevyKatia AbreuEliseu PadilhaGilberto KassabHelder Barbalho e outros - acabou gerando uma aversão imediata em relação àqueles que esperavam (irrealisticamente) a "guinada à esquerda". Em seguida, anuncia-se a adoção da austeridade fiscal comandada por um ministro vinculado aos bancos e os cortes generalizados em setores fundamentais para a qualidade de vida da sociedade brasileira, em especial a educação e a assistência social.

“Há uma virada bem significativa que acontece desde o momento em que a figura de Dilma começa a ter uma preponderância no governo Lula que, meio freyreanamente, 'equilibrava os antagonismos'"

 

Crise de “crédito”
É preciso dizer que é muito grave o que aconteceu. A crise política atual é uma crise de "crédito", noção que não se restringe ao campo econômico e pode ser generalizada como, parafraseando de forma bem livre Jacques Derrida, o "fundamento místico da autoridade". Uma vez comprovado que a "palavra" de Dilma Rousseff não valia nada, já que ela negou os números negativos durante a campanha e atacou virulentamente seus adversários pelas medidas que mais tarde ela própria implementaria, sua legitimidade foi desaparecendo e, com isso, tornando-se mais patente a crise política.
Some-se a isso, para terminar, a incrível capacidade da mandatária de praticar erros políticos em escala praticamente inédita. Sua estratégia - que denominei em um texto "estratégia zumbi" - é atacar aliados e agradar inimigos, tornando aliados cada vez mais impotentes para defender um governo que não dá mais motivo para ser defendido e os inimigos cada vez mais fortes para sempre reclamar que a medida não satisfaz. Ao mesmo tempo, o governismo tem uma estratégia pesada de marketing a partir de uma mídia pelega que faz exatamente o inverso discursivamente: ataca agressivamente os inimigos e reafirma o vínculo do PT com a esquerda, inclusive associando toda oposição à direita, em completa dissonância com o que acontece no "mundo real".
Assim, no "mundo real" temos um governo que tem no seu ministério os bancos, as oligarquias políticas e os latifundiários, mas no "mundo discursivo" ele supostamente seria o front de resistência atacado por tais sujeitos. Isso tudo também serve àoposição como uma luva: ganha tudo na prática e, no discurso, pode continuar denunciando e enfrentando o petismo como um protocomunismo. É um cenário surreal.
IHU On-Line - Você associa a crise política ao “neodesenvolvimentismo”. Como ele deu origem a essa crise política? O que mudou em termos políticos e de articulação política que fez com que no governo Lula e no primeiro governo Dilma não houvesse uma crise dessa proporção, mas faz com que a crise acabe emergindo agora?
Moysés Pinto Neto - Há uma virada bem significativa que acontece desde o momento em que a figura de Dilma começa a ter uma preponderância no governo Lula que, meio freyreanamente, "equilibrava os antagonismos". O lulismo deu certo porque conseguia fazer uma conjunção heterogênea, mantendo uma espécie de composição política cuja sinergia produzia efeitos inesperados. Certamente muitos desses efeitos positivos não foram exatamente planejados, mas o mérito foi exatamente deixar brotar as forças da sociedade que ficavam reprimidas pelo caldo autoritário e injusto da sociedade brasileira. Medidas que tinham um alcance "local" podiam atingir rapidamente o nível geral em um salto qualitativo que indicava que a própria diferença entre micro e macro - cultivada cuidadosamente pela mentalidade economicista de boa parte da intelectualidade da esquerda - se subvertia e dava novos contornos para a situação. Sem mexer radicalmente na estrutura brasileira e aproveitando o ciclo econômico positivo, o lulismo liberou forças políticas imprevisíveis que provocaram, sem ruptura macroeconômica, um terremoto invisível sobre a sociedade brasileira, deslocando estruturas que pareciam impossíveis de se mover.
A partir da hegemonia da figura de Dilma, então na Casa Civil e mais tarde presidente, essa liberação desloca-se para um planejamento vertical, burocrático e tecnocrático da política. Inaugura-se um estatismo indutor do desenvolvimento, baseado no impulso da melhoria da infraestrutura e o fortalecimento de oligopólios econômicos quase confundidos com a força do Estado, deixando-se em segundo plano todos os outros aspectos despertados pelo lulismo. A política indígena, ambiental, os pontos de cultura, a tentativa de renovar a segurança, enfim, todos os focos de criatividade que haviam florescido no lulismo foram abandonados e loteados para que as forças peemedebistas pudessem se acomodar no poder. O projeto torna-se unidimensional: crescer em números, construir, modernizar. O Ministério das Cidades, por exemplo, que seria uma válvula fundamental para pensar esse crescimento, é loteado para o PP, hoje um dos principais focos da Lava-Jato. A política é abandonada em nome de uma combinação de análise que foca em índices econômicos quantitativos combinados ao marketing político, fazendo um kit típico da sociedade do espetáculo que reduz a política a uma casca vazia. Configura-se muito claramente uma espécie de "tecnocracia de esquerda", indiferente aos conflitos políticos e sempre crente que a economia no final justificará tudo.
Com 80% de aprovação, Dilma tinha capital político para cometer os muitos erros que sempre praticou na articulação política sem que fosse abalada sua legitimidade. A partir da ruptura de 2013, com boa parte de esquerda abandonando o barco do governismo e a direita se reorganizando, esse capital foi minguando. A partir das eleições de 2014 e da crise política que se seguiu, ele ruiu. Agora, com o jogo apertado, os erros de articulação custam muito caro e Dilma continua os praticando com uma frequência inacreditável. O impeachment - que sempre achei uma hipótese improvável - tornou-se uma possibilidade concreta.

 

“As ideias que fracassaram foram aquelas que guiaram a 'fase 2' do lulismo”

IHU On-Line - O que significa dizer que “boa parte da crise política está ligada ao fracasso das suas próprias ideias”? Que ideias fracassaram e por quais razões?
Moysés Pinto Neto - As ideias que fracassaram foram aquelas que guiaram a "fase 2" do lulismo. Enquanto a "fase 1" foi guiada pelo pragmatismo político e pela abertura de espaço político para a criatividade social brasileira, a "fase 2" é marcada por um imaginário bem específico: industrialista, fordista e fundado no mundo da segunda metade do século passado. Voltarei ao tema na próxima questão, focando nos intelectuais. Mas o plano de crescimento baseado na indução do Estado, nos megaempreendimentos, na inclusão pelo consumo e na fetichização das estatísticas econômicas não conseguiu os resultados desejados. O investimento, a aposta foi feita, e não funcionou. Mas, assim como Slavoj Zizek gosta de dizer que os neoliberais, sempre reivindicando o título de realistas e pragmáticos, são os mais idealistas, já que a solução dos problemas do modelo sempre passa por aprofundá-lo ainda mais, sempre se alega que "o mercado ainda não é livre o suficiente", o mesmo parece acontecer com o outro lado da nossa polaridade: os "progressistas" sempre acham que foi pouco, que é preciso aprofundar o modelo, que a solução passa exatamente pelo tipo de medida que gerou a crise.
Sucesso do desenvolvimentismo foi seu fracasso
Vou dar um exemplo bem singelo: o governo deu sucessivos estímulos à indústria automobilística, além de dedicar boa parte do PAC para a construção ou reforma das autoestradas e reorganização do tráfego nas metrópoles. Mas o que foi 2013? Um protesto que começou justamente a partir da crítica ao modelo carrocêntrico, ao desenvolvimento baseado no consumismo individualista que gera a violência no trânsito, os congestionamentos, o aquecimento global e a perda de qualidade do transporte coletivo. Ou seja, o "sucesso" do neodesenvolvimentismo foi seu próprio fracasso, no sentido de que a explosão da venda de automóveis significou o colapso urbano.
Claro, acusa-se desonestamente quem diz isso de ser contra a "democratização" do automóvel, a inclusão dos pobres na sociedade de consumo, mas isso é um completo equívoco. O que está em jogo aqui é como um governo de esquerda poderia - e deveria - empenhar-se em construir um modelo socioambiental que não seja fundado no consumismo, na economia abstrata dos índices econômicos que não se refletem em qualidade de vida. O mesmo se aplica ao Programa "Minha casa Minha vida". É óbvio que a moradia é um direito social e que toda iniciativa que vise a generalizá-lo merece ser comemorada, mas a forma como foi realizado foi primária, completamente dissociada do que se recomenda hoje em dia pela arquitetura e pelo urbanismo. Construíram-se obras com baixíssima qualidade, baseadas num urbanismo tóxico e capitaneadas por oligopólios econômicos, sem que todo potencial que já está na sociedade brasileira seja aproveitado. Os investimentos foram malfeitos, usados para finalidades equivocadas. Imagine-se, por exemplo, o que seria metade do investimento feito em desoneração fiscal - algumas centenas de bilhões de reais - aplicada para recuperar a educação pública. Perdemos a chance.
Assim, esse imaginário tecnocrático, quantitativo, unidimensional e ecologicamente irresponsável é que está em crise. Ele não responde mais aos desafios do século XXI. Ao contrário, navega claramente nas águas do século passado e procura realizar no Brasil aquilo que o nosso "atraso" deixou espaço, repetindo a experiência dos países "desenvolvidos". Como eu disse numa entrevista aqui há algum tempo, é como se o nosso "atraso" nos desse a vantagem de esperar que os outros encontrem a solução para os problemas do nosso século enquanto vamos executando por aqui, sem nenhuma imaginação, as medidas do século passado.
IHU On-Line - Em artigo recente você comentou que alguns intelectuais que participaram das gestões petistas fazem a seguinte interpretação: Dilma é uma estadista, e culpa dos problemas econômicos e políticos do país estão relacionados ao sistema financeiro e à mídia. A partir disso, você sugere que o erro está no projeto “neodesenvolvimentista” no qual as ideias desses intelectuais foram a base. Pode explicitar melhor os pressupostos desse pensamento?
Moysés Pinto Neto - Existe uma narrativa muito forte entre os "intelectuais públicos" brasileiros que se baseiam na configuração do capitalismo da segunda metade do século XX. O projeto que não foi implementado nos anos 50, em face da interrupção da Ditadura Militar, é ainda sonhado por boa parte desse imaginário. Ele se funda na divisão entre o "capitalismo bom" e o "capitalismo mau". O bom capitalismo é o industrial, que gera empregos, desenvolve a nação e produz. O mau capitalismo é o financeiro, palco dos rentistas, sanguessugas que não trabalham e exploram os países. A solução desse problema é construir uma aliança entre um Estado nacionalista e sua burguesia industrial, possibilitando que o progresso deslize para os trabalhadores e com isso promova uma melhoria na cidadania brasileira. Por isso, Dilma seria uma estadista que teria sido "encurralada" pelos rentistas quando tomou medidas contra os interesses do capital financeironos últimos anos do primeiro mandato. A crise teria sido gestada artificialmente como mecanismo de pressão sobre o governo, chegando-se ao ponto de dizer, como certa vez disse com muita infelicidade André Singer, que "o rentismo saiu às ruas em 2013".
Bom x Mau capitalismo
As coisas são mais complicadas, porém. Não existe essa diferença entre bom e mau capitalismo. Os empresários, apesar de reivindicarem muitas vezes pelas suas associações a baixa dos juros, preocupam-se com a estabilidade damacroeconomia e não desejam rupturas com o sistema financeiro internacional. Além disso, os grandes empresários que se enquadrariam na "burguesia industrial" são, eles próprios, investidores do sistema financeiro. Não existe essa separação artificial. Assim, a manipulação dos números econômicos que caracterizou o primeiro mandato - apelidada pelo mercado de "contabilidade criativa" - foi minando a confiança e com isso o investimento. Como parte da estratégia zumbi (agora na chave econômica), o governo continuou injetando dinheiro sem que ele fosse reinvestido, já que o mercado perdera a confiança. Com isso, foi produzindo uma crise econômica simétrica à política.
Um exemplo que Idelber Avelar recentemente percebeu e postou em uma rede social: o governo é extremamente simpático ao agronegócio e o estimulou e estimula de forma inédita, inclusive com a parceria com a ministra Katia Abreu que entrou no governo na "cota pessoal" de Dilma. O que acontece quando a presidente vai a Barretos? Uma gigantesca vaia, beirando ao ódio. Enquanto isso, a economia de subsistência que caracterizava as populações indígenas e tradicionais vai definhando. Mais uma vez, a estratégia de destruir os aliados e fortalecer os inimigos é a tônica. Mas se você consultar algum blog governista talvez ali se narre que Dilma está enfrentando os latifundiários e por aí adiante. Como eu disse antes, surrealismo é pouco.

“O que os movimentos sociais pretendem ainda de um governo nestas condições?”

IHU On-Line - Considerados a base do governo Dilma, alguns movimentos sociais já ameaçam abandonar a defesa à gestão da presidente. Como avalia essa possibilidade e quais podem ser os efeitos disso em termos políticos?
Moysés Pinto Neto - O grande problema que eu e alguns outros apresentamos diante do "voto crítico", depois "apoio crítico", é a captura da esquerda pelo governismo. Hoje, por exemplo, a estabilidade política do governo Dilma depende doajuste fiscal. É graças a ele que o governo ainda tem esperança de não ser deposto nos próximos meses. A "Agenda Brasil", proposta que sintetiza as intenções etnocidas, ecologicamente irresponsáveis e contrárias aos direitos dos mais vulneráveis elaboradas pela "classe dominante" brasileira, para citar um excelente texto de Diego Viana escrito recentemente sobre o tema, é o ponto que permite um resto de equilíbrio para até o fim do mandato. Agenda proposta porRenan Calheiros!
Bom, o que os movimentos sociais pretendem ainda de um governo nestas condições? Eu entendo que o PT ainda mobilize afetos. É uma organização social gigantesca, construída até certo momento de baixo para cima, que fez confluir uma série de tendências "progressistas" da sociedade brasileira dos anos 80. Teve um papel importante na renovação da política e implementou propostas interessantes, do Orçamento Participativo em Porto Alegre ao Bolsa-Família em nível nacional. É duro desistir do PT. Mas o primeiro mandato de Dilma, as eleições de 2014 e o primeiro semestre de 2015 aniquilaram as condições políticas de o partido produzir reformas positivas hoje em dia. Trata-se de um governo totalmente encurralado pelas forças reacionárias cuja única preocupação, hoje em dia, é sobreviver até o fim do mandato. Não há mais espaço de manobra. Dilma e seus aliados queimaram todas as chances.
Virada à esquerda
As análises que propõem uma "virada à esquerda" não passam de wishful thinking. O próprio PT admitiu a austeridade, sabendo que depende dela para se conservar no poder até o fim do mandato. É desonestidade intelectual continuar afirmando que essa virada vai acontecer, já que não há nenhum - absolutamente nenhum - sinal disso. O que os movimentos sociais podem ainda cobrar do governo, e acho que devem o fazer, é a institucionalização das conquistas sociais dos últimos anos. Por mais reacionário que seja o Congresso, duvido que, por exemplo, uma emenda constitucional que institucionalizasse o Bolsa-Família fosse rejeitada, porque sabe-se que isso dá - e faz perder - votos. O conservadorismoperde para o pragmatismo político no caso. Acho que essa pressão é bem viável.
Por tudo isso, fica complicado defender um governo que coloca a austeridade e a Agenda Brasil como pauta. E, na disputa contra o golpismo, o governo perde sua base de apoio, processo que vem se desenrolando desde 2013 a partir das trapalhadas de Dilma Rousseff, tornando-se ainda mais frágil.
IHU On-Line - Quais são as principais articulações que estão sendo feitas em torno da crise, envolvendo diversos atores políticos, como o vice-presidente, Michel Temer, Cunha e o PMDB, Aécio e o PSDB, por exemplo?
Moysés Pinto Neto - Não tenho condições de analisar isso porque dependeria de uma familiarização com movimentações a que não se tem acesso, salvo o jornalismo político de bastidores. Acredito que Temer era uma carta que Dilma dispunha e mais uma vez perdeu. Agora ele aguardará "em berço esplêndido" o resultado da crise atual. A menos que a chapa inteira seja impugnada, o pior cenário para ele é tudo permanecer como está. O melhor, levar a presidência, para o desespero daqueles que brincavam com a aliança formal PT-PMDB alguns anos atrás, quando realizada ("imagina alguma coisa ocorre e o Temer assume?"). É claro que o sistema político preferiria Temer à Dilma, mas não é tão simples, já que o impeachmentenvolve ruptura institucional e, goste-se ou não, a acusação de golpismo.
O preço da instabilidade política causada pelos insatisfeitos com a manobra pode ser muito alto, jogando o Brasil em um cenário negativo. Como até agora tudo que aparece contra Dilma ou é mais ou menos casuísmo, ou simplesmente desgaste na legitimidade, a possibilidade jurídica do impeachment não existe. E, exatamente por isso, levar a cabo um processo dessa monta significaria abalar a ideia de que existe um Estado de Direito no Brasil.
Aécio, por sua vez, tenta se cacifar politicamente com o momento radicalizando seu discurso. É normal, uma estratégia de ocupação de espaço vazio. Lembro que Aécio estava quase morto politicamente quando Marina entrou nas eleições de 2014, havendo até o boato da renúncia, e foi ressuscitado pela campanha. É o adversário que o petismo gostaria de enfrentar, preenche todos os requisitos. Pois bem, aí está, ocupando seu espaço. O PSDB, contudo, é mais complexo que isso. Ainda temos Alckmin como um conservador de bom retrospecto e perfil compatível com uma solução pacificadora em 2018 e o resto de "terceira via" (bem analisada por Celso de Barros na Folha recentemente) de Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Curiosamente, FHC, que é uma figura conciliatória quanto ao impeachment e tem resistências na "nova direita", é o ícone do ódio nas redes governistas. Estrategicamente, esse ataque sistemático e rancoroso contra um adversário moderado pode custar caro no futuro.

“O PMDB fisiológico que hoje tem o controle do país é a antítese daquilo contra o que as ruas de 2013 lutaram”

 

IHU On-Line - Que desdobramentos e desfecho vislumbra para a crise política atual? Quais seriam os cenários possíveis, com ou sem impeachment?
Moysés Pinto Neto - Assim como na resposta acima, não tenho como fazer afirmações nesse nível de conjectura. O que se percebe, para além do conflito político da conjuntura, é que o Brasil está em desconstrução. Algo mudou profundamente desde 2013. Podemos ler a crise atual, portanto, de duas maneiras. Pela primeira, mais comum entre o empresariado, a grande mídia e o sistema político, há uma crise econômica devida aos altos gastos governamentais que exigem mudanças fiscais e contenção de despesa pública. É uma crise que se resolve com o velho receituário.
Mas há outra maneira de ler essa crise: 2013 marcou um evento traumático, um acontecimento que perturbou a política brasileira e deu início a um processo que cozinha em fogo baixo. Ele aponta para uma nova organização da política que circula entre a rua, as instituições e o mundo digital, que envolve um tipo de ativismo mais potente por parte da população, uma relação significativa entre a hiperconectividade do mundo atual - e o Brasil está em destaque no quesito - e umahiperpolitização, seja para qual lado for.
A política deixou de ser um tabu no debate cotidiano. Nesse sentido, a atitude de algumas pessoas de continuar acreditando que quem não está alinhado ao PT ou à esquerda em geral ou é desinformado, ou é vítima do bloqueio midiático, é bastante tola, para dizer o mínimo. A informação circula como nunca circulou. Por mais poder que ainda tenha a velha mídia, as pessoas hoje não suportam assistir uma hora de televisão sem olhar para o celular. Elas conhecem a blogosfera governista e as teses que são defendidas pelos petistas para justificar seus atos. Tudo está acessível. Então o debate tem que ser colocado em outros termos. É claro que é insuportável ver uma pessoa pedindo intervenção militar e que na abundância de informação circulam toneladas de lixo - não poderia ser tão diferente o mundo eletrônico de uma sociedade que produz tanto lixo -, mas a postura de superioridade moral e intelectual hoje não se sustenta mais. É preciso inventar novas estratégias. Sabe-se, aliás, que a estratégia de comunicação do atual governo - vazada inclusive em memorandos reservados - é um desastre de cabo a rabo.
O que está acontecendo no Brasil é efeito de uma transformação dos nossos laços sociais. Toda desconstrução, lembrando ainda Derrida, tem uma carga de morte. Algo morreu e está morrendo ainda. Ao vermos figuras como Renan Calheiros e Eduardo Cunha, não podemos deixar de vê-los como zumbis de um tempo que já passou. O PMDB fisiológico que hoje tem o controle do país é a antítese daquilo contra o que as ruas de 2013 lutaram. Eles integram nosso espaço político como zumbis: persistentes, inabaláveis, vorazes e sem futuro. Por outro lado, a violência que explode em linchamentos, chacinas, extermínios que se propagam pelo país é sintoma desse choque recalcado, como o real que aparece para além do teatro do poder de Brasília.
IHU On-Line - Você também chama atenção para o fato de que tanto o Podemos como o Syriza mostram as dificuldades políticas e econômicas dos países europeus e insiste que uma alternativa deveria brotar de “coletivos de ocupação”, por exemplo. Por que esses coletivos seriam uma alternativa? Qual o potencial político deles no sentido de mudar a lógica existente?
Moysés Pinto Neto - Podemos e Syriza são tentativas de enfrentar o ethos da austeridade que tem predominado na Europa comandado pela Alemanha. Mas, mais que nunca, são expressão de um dilema contemporâneo: como sair doneoliberalismo? A resposta mais sincera seria: ainda não sabemos bem. As alternativas apresentadas - a retomada de Estado de bem-estar, o modelo chinês e os progressismos populistas latino-americanos - não apresentaram sua viabilidade. Caíram em crise. O Estado de bem-estar foi construído em outro contexto, no mundo fordista em que os Estados nacionais e a indústria tinham um papel decisivo. O modelo chinês, além do tratamento predatório com o trabalhador, já mostra o colapso ambiental. Finalmente, o populismo latino-americano, como Salvador Schavelzon escreveu recentemente, também está vivendo seus dilemas, bastando olhar para Brasil, Argentina e Venezuela. Ele não conseguiu apresentar uma alternativa consistente que não seja um estatismo burocrático e centralizador fascinado por uma infraestrutura produtivista e industrialista, sem levar em consideração a questão ambiental, as demandas da qualidade de vida e os direitos das populações ameríndias. Mantém-se com base no que Rodrigo Nunes chama de "complexo do Katechon", ou seja, baseando-se sua sustentação não em resultados consistentes, mas na ameaça do retorno do anticristo (neoliberalismo).
Syriza baseou-se na retomada de plataforma clássica da esquerda, no enfrentamento direto do problema da austeridade. Porém, rapidamente deparou-se com o dilema de uma sociedade internacionalizada (que não quer sair da comunidade europeia) e seus constraints, recuando da estratégia agressiva. É cedo para julgar essa ação. Há várias formas de ler o cenário. Já o Podemos aposta em desvincular-se da ideia de esquerda, fazendo a retórica "baixo contra cima", da "gente" contra o "casta", e retoma a liderança vertical na figura de Pablo Iglesias. Sou um pouco cético em relação a tudo isso, mas é preciso acompanhar.
Quando falo dos coletivos de ocupação, estou me referindo a um novo experimento político que tenta ressignificar as noções de trabalho, família, propriedade, educação, alimentação, autonomia, etc., forjando um novo complexo espaço-tempo que foge da normalidade sufocada pelo capitalismo consumista. Não é uma alternativa que se volta para o poder central, mas procura corroê-lo pelas bordas, fazendo com que o micro se espalhe por ondas concêntricas. Evidente que esse experimento tem limites, mas podemos ligá-lo, por exemplo, com a "aposta municipalista" espanhola, a perceber que o espaço da cidade é o tema determinante que entrou na agenda do século XXI. É impressionante o crescimento da discussão no Brasil e - uma vez mais - foi exatamente isso que 2013 colocou na pauta totalmente ignorada tanto pelo governismo quanto pela oposição.
IHU On-Line - Além de articulações com coletivos, quais seriam outras alternativas para sair da crise política?
Moysés Pinto Neto - É difícil falar disso sem parecer que estamos diante de uma fórmula. A única maneira que vejo de reagir contra a crise é reabrir o espaço que foi sufocado pelo "realismo" do jogo de xadrez do poder. Já sabemos que o sistema político quer apenas "gestão", está preocupado unicamente em como governar a vida mantendo tudo como está. A própria transição de Lula para Dilma foi comemorada como uma "gestora no poder", celebrando-se a tecnocracia. Hoje sabemos que - além da má gestão (autoritária, casuísta, equivocada nos investimentos) -, a própria ideia de gestão não esteve à altura dos desafios políticos que os últimos dois anos colocaram. Precisamos retomar a dimensão espectral da política, do sonho, abrindo o horizonte para além do possível.
O nome disso, a meu ver, é utopia. É retomando a utopia de um país menos violento, mais justo, com preocupações ecológicas genuínas, radicalmente voltado para a educação e aberto para desenhar alternativas econômicas à austeridade e ao estatismo, que podemos respirar fora desse mundo sufocante de índices vazios, duelo de mediocridades e repetição do mesmo. Não apenas o Brasil, mas o mundo está desejante dessa utopia.

“A única maneira que vejo de reagir contra a crise é reabriro espaço que foi sufocado pelo 'realismo' do jogo de xadrez do poder”

IHU On-Line – Que tipo de teorias políticas e econômicas deveria servir de base para fundamentar um novo projeto para o Brasil?
Moysés Pinto Neto - Seria uma atitude um pouco arrogante, no mínimo, querer sugerir um roteiro de leituras obrigatórias para fundamentar um novo projeto. Essa postura, além de intelectualista ao excesso, desconsideraria a complexidade do mundo atual e a miríade de questões que exigem um tratamento dedicado e delicado. Vou me dar a liberdade apenas de levantar alguns temas que tenho me dedicado a pesquisar e acredito serem importantes para o debate público brasileiro.
Divido em três grandes áreas: primeiro, a chamada "virada ontológica" e a possibilidade de que os parâmetros filosóficos fixados pelo Ocidente possam mostrar sua contingência – e, portanto, abrir espaço para novos modelos cosmológicos - ou cosmopolíticos. Dentro desse circuito de desconstrução - não foi a outro fenômeno que se referiu Jacques Derrida, ainda em 1967, quando percebia o desabamento dos nossos principais eixos (antropocentrismo, falocentrismo, eurocentrismo, logocentrismo, entre outros) - a virada descolonizadora para as alternativas afro e ameríndias, que envolvem a reconsideração não apenas da zona que chamamos "cultura", mas inclusive aquilo que de direito pertenceria ao Ocidente (com a ciência), chamado "natureza", sobretudo no momento em que o termo Antropoceno passa a desempenhar um papel decisivo no debate. Nesse sentido, o boom recente em torno do nome de Eduardo Viveiros de Castro não é apenas uma moda passageira, mas o reconhecimento de que precisamos de uma nova forma de pensar que Viveiros, traduzindo o pensamento indígena, provoca em nós mesmos.
Segundo, os estudos em torno do que alguns chamam de "decrescimento", consistente no desafio ao modelo atual baseado na ideia de progresso linear e na intoxicação da linguagem do crescimento por todos os âmbitos da vida, produzindo uma subjetividade estressada, uma sociedade do cansaço e um meio ambiente irrespirável. O que se ventila hoje no Brasil em termos políticos - tanto por neodesenvolvimentistas quanto por neoliberais - é simplesmente mais e mais aceleração e produção, mais do mesmo. Por isso, acredito que ambos os programas - ainda que com variações - caberiam na tendência que alguns nomeiam "aceleracionismo". O contraponto a isso seria a retomada do local - que se manifesta nos municipalismos espanhóis, nas zonas autônomas temporárias, ocupações, entre outros -, na desconstrução da hierarquia entre o manual e o intelectual com a revalorização de atos perdidos na vida urbana como plantar e cuidar, preparar a comida, a diminuição da hipnose provocada pelo dinheiro e pelo consumo, e, finalmente, em contraponto à figura do trabalhador e o culto ao trabalho, um desejo de interrupção, de preguiça, a valorização da não produção, do ócio, do sono e do sonho enquanto suspensões da compulsão utilitarista e eficientista da nossa sociedade e seus sujeitos dopados sob efeito de drogas - próteses para suportar esse ciclo insanamente irracional. Sem falar no impacto ambiental de um projeto cujo sucesso e expansão é a porta para o fim de muitos mundos - incluindo o nosso.
Finalmente, o terceiro grupo seria aqueles que dedicam à sinergia entre a revolução da microinformática sobre a sociedade, o apagamento da distinção entre o digital e o real, e o ressurgimento de novas formas de relações econômicas, fundadas no compartilhamento, na contribuição e na dádiva. A simetria na troca combinada à obsolescência programada que caracterizam a sociedade do consumo - infelizmente único projeto do PT para o Brasil atual - dá lugar a uma multiplicidade de arranjos colaborativos que funcionam como ponta da tecnologia, criando um laboratório de práticas que não cabem mais estritamente no modelo capitalista. Aqui, sem dúvida, precisamos estar atentos para a possibilidade de pensar a economia por fora do velho dilema entre Estado e Mercado que caracteriza o debate atual, apostando que é possível furar por dentro tanto a tecnoburocracia vertical quanto a exploração econômica.
São três novos eixos que contribuem para "liberar nossa ideia de espaço-tempo", como diz Viveiros de Castro, e é nada menos que isso que é necessário, enquanto utopia, contrapor ao deserto de ideias que povoa a luta vazia pelo poder do sistema político.
Por Patricia Fachin

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Militares, ciências, Educação Popular.

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