Tuesday, June 28, 2016

A normalização do caos e a estranha sensação de volta aos anos 1980

A normalização do caos e a estranha sensação de volta aos anos 1980

"Do ponto de vista do sistema político, o afastamento de Dilma Rousseff só se explica porque seu governo já não conseguia funcionar nos termos em que funcionaram todos os governos nas últimas duas décadas", escreve Marcos Nobreprofessor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 26-06-2016.
Neste texto o autor considera que a crise atual, com a queda do do governo de Dilma Rousseff, expõe o esgotamento do modelo político-institucional que se constituiu na redemocratização. A expectativa de uma saída rápida, como sugere o governo Temer, é ilusória: a reorganização levará tempo e exigirá grande esforço.
Eis o texto

impeachment foi o sintoma mais grave de que as instituições entraram em colapso. Progressivamente, passaram a funcionar de maneira disfuncional, descoordenada e mesmo arbitrária. Para ficar apenas no dia a dia dos três Poderes: oExecutivo perdeu capacidade de liderar o governo; o Legislativo instalou uma pauta própria, independente do governo; o Judiciário estabeleceu um regime cotidiano de decisões que se afastou de qualquer padrão conhecido de jurisprudência. Há poder de fato, mas não há poder legítimo.
O funcionamento disfuncional das instituições veio com sua incapacidade de elaborar seis ondas de choque sucessivas nos últimos cinco anos. Entre 2011 e 2012, o governo Dilma adotou uma série de medidas que pretendiam reorganizar de chofre, de alto a baixo, de cima para baixo, a economia do país. Em junho de 2013, explodiram revoltas sociais de grande amplitude, expressão de insatisfações de toda ordem.
Em 2014, Dilma Rousseff venceu por pequena margem uma eleição acirrada e, na sequência, anunciou a adoção de um programa econômico que tinha combatido durante toda a campanha. Ao longo de 2015, a Operação Lava Jato revelou e fez ruir as bases ilícitas de funcionamento do sistema político das últimas duas décadas.
No mesmo ano, uma recessão de raro poder destrutivo se instalou por um período bastante longo. Em 2016, um processo de prensagem a frio da democracia levou ao afastamento de Dilma Rousseff da Presidência e à apresentação pelo governo interino de um programa econômico que representa uma radical guinada liberal, sem qualquer discussão ou aprovação em eleições gerais.
É uma série que impressiona. São choques não apenas cumulativos mas, sobretudo, de intensidade atordoante. Será uma tarefa de muitos anos entender esse processo em suas muitas dimensões. Mas a magnitude dos impactos não impede de concluir que os arranjos institucionais existentes se mostraram inadequados para elaborar as tensões em um sentido positivo qualquer.
Sobretudo, mostraram-se incapazes de produzir as transformações fundamentais que o país terá de fazer para não entrar em uma espécie de colapso crônico, em que os choques continuarão a se suceder, com uma capacidade de amortecimento institucional cada vez menor. É sinal de miopia grave avaliar que as instituições estejam "funcionando" no momento atual. O que se tem é simplesmente o tipo de "normalização do caos" que já se viu tantas vezes na história do país. 
Daí que o colapso atual venha acompanhado de certa sensação de volta no tempo, de volta aos anos 1980, exemplo mais recente de "normalização do caos". Essa sensação tem certo fundamento, assim como um tanto de ilusão.
É real porque as instituições não funcionam mais segundo os parâmetros que as próprias instituições se dão, e todo mundo se acostuma e se adapta a essa situação de descompasso permanente entre intenção e gesto institucionais. Do outro lado da moeda, a sensação também parece real porque é impressionante a multiplicação e a vitalidade de organizações na base da sociedade, orientadas pelos temas e problemas mais diversos, como se estivéssemos em umperíodo pré-Constituinte.
Ao mesmo tempo, a sensação de que o momento atual tem algo de inaugural, de novo começo, tem seu lado ilusório, já que não se trata de fato de uma regressão aos anos 1980. A redemocratização terminou. Não se trata mais da construção de instituições democráticas após uma ditadura nem da superação de um modelo de desenvolvimento que pertenceu ao século 20. Muito menos a situação é de descontrole total da inflação e das contas públicas. Trata-se agora de democratização, de decidir o que fazer com as instituições criadas e como rearranjá-las para que possam efetivamente funcionar segundo as necessidades de um momento pós-redemocratização.
A sensação de volta ao passado faz com que o plano de transformações estruturais do primeiro mandato de Dilma Rousseff ganhe certa cara de 1986, uma cara de Plano Cruzado. Da mesma forma, o plano Temer-Meirelles parece ter cara de 1990, uma cara de Plano Collor. São guinadas de direção que parecem radicais, mas que não fazem realmente avançar, pelo contrário. Daí também essa estranha expectativa de que o Plano Real esteja à porta, de que um novo ajustamento ao cenário global esteja à vista e que um novo ciclo de desenvolvimento vá se iniciar em breve.
A expectativa é estranha não apenas porque não se está de fato nos anos 1980. É estranha principalmente porque, a cada 20 anos, o país parece achar que voltou para o ponto em que estava antes. Mas a estranheza vem agora com a novidade de, pela primeira vez, o país ter de enfrentar a necessidade de produzir um novo e efetivo pacto depois de definitivamente concluída a redemocratização.
Pela primeira vez, terá de produzir novas imagens de concretização de sua Constituição dentro dos marcos da mesma ordem constitucional, da Carta de 1988. É a novidade de uma encruzilhada democrática. 
Constituição
O arranjo institucional que prevaleceu desde o Plano Real procurou evitar o confronto aberto de posições conflitantes e mesmo inconciliáveis em torno do modelo de concretização da Constituição que deveria democraticamente prevalecer como resultado de eleições gerais.
Dito de maneira crua, o que se produziu nas duas últimas décadas foi uma concretização parcial do programa constitucional mediante um grande acordo para aumentar carga tributária sem colocar em questão a própria lógica da tributação. Foi assim que, de FHC a Dilma, firmou-se a cláusula social pétrea de que só poderia haver ganho para uma classe se todo mundo também ganhasse. Ou, pelo menos, se ninguém perdesse.
eleição presidencial de 2014 e o que aconteceu depois mostraram claramente que essa maneira de evitar o confronto aberto e democrático de posições tinha chegado a seu limite. Toda a campanha girou em torno da questão da viabilidade ou não da continuidade das políticas distributivas e das tensões que provocaram em termos de reconhecimento e prestígio social.
Que o impasse revelado em 2014 tenha sido depois engolido pela recessão, pelo estelionato eleitoral do ajuste fiscal e pela Lava Jato apenas reforça a ideia de que o arranjo institucional estabelecido no Plano Real já não serve mais para lidar com a situação atual.
Desde 1994, com a exceção do período inicial do governo Lula e durante o abreviado segundo mandato de Dilma, o que se viu foi a formação de megablocos de apoio ao governo e a limitação da oposição a uma franja parlamentar. Um arranjo como esse parece permitir que o partido líder que venceu a eleição presidencial aplique seu programa, seu projeto de concretização da Constituição de 1988.
O que de fato aconteceu foi o contrário. Uma base "inchada" de apoio ao governo coloca entraves e obstáculos à concretização do programa apresentado pelo partido vencedor da eleição. Para introduzir as transformações propostas em seu programa, mesmo aquelas de ordem marginal, o líder da coalizão está obrigado quase permanentemente a contornar vetos de importância dentro de sua própria base de apoio, vetos que não consegue simplesmente afastar para impor sua posição. 
O partido líder perdedor da eleição presidencial pode apenas torcer para que o governo vá mal, abrindo espaço para que o poder federal lhe caia no colo. Perde-se assim, igualmente, um dos importantes papéis desempenhados por uma oposição relevante, que é o de obrigar a coalizão de governo a encontrar a aglutinação e a coesão necessárias ao enfrentamento político efetivo.
Em um modelo em que a base no Congresso chega a porcentagens que superam os 70% de apoio, a oposição efetiva migra para dentro da própria coalizão de governo, torna-se "oposição interna", impedindo que se alcance coesão e dificultando crescentemente, portanto, o que se costuma chamar de articulação política.
Como a maneira de operar desse grande e mesmo bloco de sustentação replica o modo de operar característico doPMDB, ao invés de chamá-lo pelo nome pomposo de "presidencialismo de coalizão", preferi dar-lhe o nome de "pemedebismo". Mas, se fosse para continuar na mesma lógica pomposa, seria possível chamar esse modelo de "presidencialismo de megacoalizões". Trata-se de uma maneira de operar que procura amortecer e suspender os conflitos, em lugar de elaborá-los abertamente em uma disputa democrática que envolva toda a sociedade. Ao jogar os problemas para debaixo do tapete das grandes coalizões, o encaminhamento dos problemas também se dá embaixo do tapete.
Isso não significa que conflitos abertos não ocorram e não tenham ocorrido. Significa que se procurou evitá-los ao máximo, que eles só eclodiram quando não foi possível equacioná-los sob o tapete da megacoalizão. Além disso, comojunho de 2013 demonstrou, os conflitos se agudizaram na base da sociedade sem a devida correspondência no sistema político. A polarização social não encontrou correspondência efetiva no sistema político. O que se costumou chamar de polarização entre PT e PSDB não foi nada mais do que a disputa pelo cargo de síndico de um mesmo enorme condomínio de apoio parlamentar, cuja função primeira foi tentar impedir ao máximo que perdas definitivas fossem impostas nesse processo.
Descontrole
Do ponto de vista do sistema político, o afastamento de Dilma Rousseff só se explica porque seu governo já não conseguia funcionar nos termos em que funcionaram todos os governos nas últimas duas décadas.
Em seu segundo mandato, o governo Dilma já não oferecia duas garantias fundamentais do modelo: acesso efetivo aos fundos públicos e proteção contra investidas da Justiça. Não interessa aos partidos e grupos que fazem parte da megacoalizão de governo (seja qual for o governo) dispor de ministérios, cargos e verbas e não poder efetivamente lançar mão dos recursos, mesmo que sejam escassos.
Não bastasse isso, o governo Dilma era visto como incapaz de oferecer proteção contra a ameaça da Operação Lava Jato e suas subsidiárias. Esse é um sinal de descontrole grave para o esquema de megacoalizões. O alerta soou para o sistema político com a prisão de Delcídio do Amaral. A prisão de um senador no exercício do mandato e líder do governo no Senado foi o ponto de virada para que o sistema político abandonasse de vez Dilma Rousseff. Que o governo interino de Temer tenha, no fim das contas, ficado ainda mais fragilizado pela Lava Jato nada muda nas motivações da política oficial para produzir o impeachment. Trata-se de um governo de restauração. Só que tenta restaurar um modelo de funcionamento do sistema político que caducou.
A base partidária de apoio ao novo governo não se distingue daquela de Dilma senão pela ausência de PTPDT e PC do B e pela entrada de PSDBDEM e PPS, tudo o mais na mesma.
Exceto, claro, pelo branqueamento e pela masculinização do conjunto da equipe, coerentemente com a posição subordinada ocupada por pastas como Cultura, Direitos Humanos, Igualdade Racial e Políticas para Mulheres. Exceto também pelo inusitado da ausência da liderança de um dos dois síndicos até aqui do condomínio dos últimos 20 anos, de um condomínio pemedebista sob direção formal do PMDB –ou seja, com ausência de liderança efetiva. Uma vez mais, o novo governo interino se inicia com uma base formal que supera os 70% do Congresso.
Na situação atual de funcionamento disfuncional das instituições, a demanda por soluções rápidas, definitivas e ilusórias se multiplica. Foi assim que uma grande parte da sociedade acreditou que o impeachment de Dilma Rousseffproduziria a estabilidade política que faltava. É assim que propostas de plebiscito, eleições gerais, ou Constituinte para areforma política surgem agora como panaceias para todos os males.
Se há algo que a década de 1980 ensinou é que saídas como essas têm fôlego curto. A crise é estrutural, e a saída dela vai exigir tempo e muito esforço para rearranjar as instituições em um sentido novo e positivo. Vai ser preciso lidar com o colapso sem apelar para pretensas soluções mágicas e sem deixar que ele se instale de maneira duradoura. Para isso, pode ser que olhar para trás ajude a ver quais são as possibilidades adiante.
1989
A eleição de 1989 teve a peculiaridade de ser uma eleição solteira; votou-se apenas para presidente. Não foi pequena a influência desse fator sobre o resultado do governo de Fernando Collor, que terminou em impeachment. Nesse sentido, 2018 não se parece com 1989. Mas, por duas outras razões, há algo de 1989 no ar.
Em primeiro lugar, um quadro até agora de grande dispersão das forças eleitorais. Collor alcançou 28% dos votos no primeiro turno da eleição, Lula chegou ao segundo turno em 1989 com 16% dos votos. Se o quadro atual se mantiver (mesmo que sejam outros os nomes na urna), não é improvável que algo semelhante se repita.
As eleições de 2018 deverão guardar outra semelhança ainda com a de 1989 porque, novamente, é alta a probabilidade de que o presidente pertença ao PMDB e que chegue ao final de seu mandato com grandes dificuldades e popularidade em níveis precários. Com isso, como em 1989, um candidato governista teria poucas chances. Sem o ímã da Presidência da República para aglutinar um dos polos da eleição, todas as candidaturas seriam, no limite, de oposição, tornando a disputa ainda mais incerta.
Fernanda Brenner 

Mesmo tendo vencido a eleição em 1989, Fernando Collor foi incapaz de se colocar como polo aglutinador efetivo do campo político da direita. Ao chegar ao segundo turno, Lula terminou por aglutinar as forças de esquerda em torno de uma nova candidatura presidencial na eleição seguinte. Foi a formação desse polo de esquerda e, sobretudo, o favoritismo da candidatura Lula até o primeiro semestre de 1994, o fator decisivo para que FHC conseguisse aglutinar as forças do campo da direita.
Tendo como esteio concreto o Plano Real, de um lado, e a ameaça de uma vitória de Lula, de outro, FHC conseguiu impor ao pemedebismo do sistema uma magnitude de transformação maior do que seria normalmente aceitável. E, assim, o que poderia ter acontecido em 1989 acabou acontecendo somente em 1994: as duas candidaturas mais votadas se tornaram os dois polos a aglutinar a maioria das forças políticas em torno de si pelas cinco eleições seguintes.
É razoável supor que as eleições de 2018 terão algo semelhante a essa projeção no futuro observada em 1994. Só não parece provável que os polos funcionem da mesma maneira. Os partidos líderes dos últimos 20 anos têm nomes fortes, pelo menos em tese, para a eleição presidencial, mas, por razões diferentes, estão em processo de desagregação. Isso não significa que as duas candidaturas que chegarem ao segundo turno da próxima eleição presidencial não possam pertencer ou ter pertencido a um desses dois partidos, PT e PSDB. Também não significa que, como em 1994, a formação de um polo não possa acabar levando à produção do polo adversário. Significa apenas que a aglutinação de forças em torno dos polos deve se dar de maneira diferente.
Porque o caminho até 2018 vai ser construído sobre duas tendências contraditórias. Assim como aconteceu após oimpeachment de Collor, o afastamento de Dilma tende a reforçar o pemedebismo, na medida em que reforça a característica de seguro anti-impeachment que adquiriu desde 1992.
Essa tendência é reforçada pela Lava Jato, que vai continuar a provocar uma desesperada busca por autoproteção por parte do sistema político e estimular a criação de um pemedebismo 2.0. De outro lado, a tolerância social para uma continuidade do pemedebismo se esgotou, e boa parte do ativismo social na base da sociedade se dá de costas para a própria lógica institucional, e não apenas para o seu arranjo atual. A organização em coletivos e grupos na base da sociedade se multiplica na mesma velocidade em que parece se distanciar da política institucional. 
Reorganização
Para ser efetiva, uma reorganização radical em vista das eleições de 2018 tem de começar imediatamente. Os dois anos que precedem as próximas eleições gerais serão um momento de debate e de disputa aberta de posições como talvez apenas a década de 1980 tenha produzido. Para que seja efetiva, tem de começar a partir da base da sociedade, tem antes de tudo de se desarmar das couraças dos partidos, dos sindicatos e dos movimentos sociais tradicionais.
Do ponto de vista da lógica institucional, é evidente que ajudaria muito estabelecer a proibição de coligações em eleições proporcionais e cláusulas de desempenho eleitoral minimamente exigentes. São medidas básicas para tentar impor freios à fragmentação inerente ao pemedebismo. Mas a Lava Jato revelou uma estrutura a tal ponto corrompida que a imaginação institucional vai ter de ser acionada para além de medidas pontuais como essas a fim de dificultar a volta do modelo de megacoalizões sob nova roupagem.
Mais que isso ainda, evitar o quadro de altíssima fragmentação que se desenha para 2018 significa começar desde já a organizar frentes políticas plurais, sem estabelecimento prévio de liderança e direção por parte de nenhum grupo.
No caso da frente de esquerda, a reunião de forças é fundamental para tentar evitar um cenário como o da recenteeleição presidencial no Peru, quando duas candidaturas de direita foram ao segundo turno. A negociação de um futuro governo tem de começar por um debate público amplo sobre seus limites e possibilidades. Sobretudo, a formação de frentes não pode se limitar a uma associação de movimentos sociais, partidos e sindicatos no formato que têm hoje essas organizações. Os coletivos que se formaram e que continuam a se formar na base da sociedade se recusam a ter suas lutas e pautas instrumentalizadas por essas formas tradicionais de organização.
Em lugar de delegar a um partido ou a uma liderança a tarefa de, após a eleição, negociar um governo nos limites do que considera possível, é preciso iniciar essa negociação desde já, de maneira transparente e sem escamotear dificuldades. Antecipar a negociação da futura coalizão de governo no âmbito de frentes políticas pode se mostrar um poderoso antídoto contra a fragmentação e contra o modelo de megacoalizões. Uma frente nesses moldes nada tem que ver com as coligações eleitorais que se teve até hoje.
As condições para uma mudança dessa envergadura na cultura política parecem próximas e distantes ao mesmo tempo. O esgotamento do modelo das últimas décadas é visível a olho nu. A longa blindagem do sistema político contra a sociedade que prevaleceu na redemocratização é universalmente rejeitada.
E, no entanto, essa rejeição se manifesta não poucas vezes como rejeição às instituições elas mesmas, e não apenas ao seu modo de funcionamento atual. Mesmo quando existe a intenção de participar das disputas na arena institucional, é altíssimo o grau de fragmentação das novas formas de organização na base da sociedade.
As formas tradicionais de organização podem simplesmente apostar em que não haja alternativa à institucionalidade e que todo o impulso vital da base da sociedade esteja condenado a se conformar às opções que elas, como controladoras dos portões institucionais, lhe oferecerem. Podem uma vez mais apostar em uma candidatura isolada que possa chegar ao segundo turno e se tornar dessa forma polo aglutinador do sistema político para o futuro, assim como aconteceu entre as eleições de 1989 e 1994. Mas essa aposta é a maneira mais segura de produzir uma nova figura do pemedebismo, um novo tipo de presidencialismo de megacoalizões.
O resultado será o mesmo se apostarem pura e simplesmente nas máquinas partidárias existentes. Com a rejeição generalizada a essa cultura política, o resultado vai ser apenas um aprofundamento do já preocupante divórcio entre sociedade e sistema político que precisa ser elaborado e superado.
Sem isso, o país continuará a adiar as inadiáveis decisões estratégicas que tem de tomar até 2018 para evitar o "caos normal" que veio com o colapso de seus atuais arranjos institucionais.
Nota
Uma versão ampliada deste ensaio será publicada no nº 105 da revista "Novos Estudos", que sai no mês que vem.

Governo estuda desacelerar tramitação no Congresso de medidas de anticorrupção

Governo estuda desacelerar tramitação no Congresso de medidas de anticorrupção

Da coluna “Painel”, publicada por Folha de S. Paulo, 28-06-2016:
Apesar das juras de amor à Lava Jato, o Planalto estuda retirar a urgência de parte das medidas anticorrupçãopropostas pelo Ministério Público. Motivo: elas trancarão a pauta da Câmara a partir desta terça-feira e, segundo ministros, ainda não estariam maduras para apreciação. O status de urgência garante a prioridade na votação, travando, assim, tramitações importantes para o governo, como a da lei que definirá novas regras para nomeação em fundos de pensão.
Michel Temer quer votar logo o projeto que dá mais transparência à governança das agências reguladoras — um dos itens da Agenda Brasil. O pedido foi feito ao autor da medida, senador Eunício Oliveira.

Temer recebeu Cunha no Jaburu no domingo

Temer recebeu Cunha no Jaburu no domingo

presidente afastado da Câmara, entretanto, nega o encontro, confirmado por interlocutores do presidente em exercício.
A reportagem é de Carla Araújo e Erich Decat, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 27-06-2016.
O presidente em exercício Michel Temer recebeu na noite deste domingo, 26, o presidente afastado da Câmara,Eduardo Cunha (PMDB-RJ), em sua residência oficial, o Palácio do Jaburu. Segundo interlocutores de Temer, que confirmaram o encontro, os dois fizeram uma avaliação do quadro político atual. A reunião teria sido uma iniciativa deCunha. Procurado, Cunha negou o encontro. "Não estive com ele ontem (domingo). Eu não confirmo".
Além das implicações de Cunha no âmbito da Operação Lava Jato e suas possíveis consequências para o governo deTemer, o Planalto também se preocupa com a sucessão na presidência da Câmara dos Deputados. O governo teme que um racha entre os aliados para a disputa prejudique a governabilidade na Casa e votações de seu interesse. Nos dois casos, entretanto, até agora o esforço de Temer era implantar o discurso de que o assunto do Legislativo não pode sofrer interferência do executivo.
Em entrevista na sexta-feira, 24, Temer disse que Cunha não o atrapalha em "absolutamente nada" e que era "claro" que os dois conversavam. "Aqui no Brasil há esse preconceito. Acha que não se pode falar com ninguém. Me lembro que no governo (passado), quando eu falava com a oposição, ficavam irritados, achando que eu estava traindo o governo. O que revela uma ignorância em matéria política. Ou que não pode falar com uma pessoa que está sendo investigada. Eu falo com todo mundo. Tenho 33 anos de vida pública e falo com todo mundo. Há umas três semanas ele esteve comigo. Fizemos uma análise deste quadro dramático".

A desigualdade matará até 69 milhões de crianças em 15 anos

A desigualdade matará até 69 milhões de crianças em 15 anos

Disparidades entre ricos e pobres são flagrantes e crescentes nas crianças, assinala Relatório da UNICEF 2016publicado nesta terça-feira. 
Os avanços conseguidos para se alcançarem os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) em 2015 permitem olhar para a pobreza e níveis de desenvolvimento numa perspectiva mais positiva nalgumas partes do planeta. Globalmente, as taxas de mortalidade de crianças até aos cinco anos baixaram para menos de metade do que em 1990 e o total das pessoas a viver na pobreza extrema é quase metade do que era nessa década.
A informação foi publicada por Público e El País, 28-06-2016.
Mas isso apenas nalguns países e regiões do globo, escreve o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) no seu relatório Uma oportunidade justa para todas as crianças publicado hoje. Angola continua a ser o país do mundo onde morrem mais crianças: 157 em mil com menos de cinco anos. Este país produtor de petróleo tem assim a maiortaxa de mortalidade infantil, seguido do Chade e da Somália. Também a Guiné Equatorial, outro Estado petrolífero e membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) desde 2014, apresenta uma taxa elevada, posicionando-se em 11º, logo a seguir à República Democrática do Congo e do Níger, com 93 mortes em cada mil crianças com menos de cinco anos.
Guiné-Bissau e Moçambique também estão na lista dos 25 países onde essa taxa é mais elevada, com 93 mortes por mil e 79 mortes por mil respectivamente, sendo os dois únicos países lusófonos onde a UNICEF encontrou uma carência extrema de médicos, enfermeiros e parteiras – com números abaixo dos 10 profissionais do sector por 10 mil pessoas, sendo o nível considerado mínimo para a Organização Mundial de Saúde de 23 profissionais de saúde por cada 10 mil habitantes.
O relatório identifica causas para retrocessos e exemplos de sucesso e coloca o enfoque na igualdade, ao admitir que “os progressos alcançados não foram uniformes nem justos”. As expectativas negativas traduzem-se em números avassaladores no relatório e o prefácio do diretor-executivo Anthony Lake, alerta para isso mesmo, se nada for feito para inverter a tendência.
“O tempo de agir é agora”, escreve o responsável da UNICEF. É urgente esbater as desigualdades “que colocam milhões de crianças em perigo e ameaçam o futuro” num mundo onde é dez vezes mais provável uma criança da África Subsariana morrer antes dos cinco anos, do que uma criança num país rico, defende.
Os Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio não foram atingidos entre 2000 e 2015. E 2030 passou a ser a nova meta para se alcançarem idênticos indicadores – os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – que introduzem, entre outras coisas, a redução das desigualdades dentro dos países mas também entre eles.
Em média, e tendo em consideração a dimensão da população, a desigualdade aumentou 11% entre 1990 e 2010 nos países em desenvolvimento. E uma grande maioria de famílias, mais de 75% segundo as Nações Unidas, vive em sociedades onde o rendimento é menos bem repartido do que na década de 1990.
Avanços e diferenças
No mundo inteiro, as crianças que nascem hoje têm 40% mais hipótese de sobreviver antes de completarem cinco anos e de irem à escola do que as crianças nascidas no início da década de 2000, conclui o documento de mais de 180 páginas. Porém, ao mesmo tempo que assinalam avanços, as médias nacionais escondem disparidades flagrantes – e por vezes crescentes – entre crianças de famílias mais pobres e crianças de famílias mais ricas. “Não podemos deixar que a história se repita”, assume o documento que quantifica claramente custos e consequências do fracasso e qualifica-os de “enormes”.
O fracasso é previsível, se as tendências dos últimos 15 anos se mantiverem nos próximos 15 anos. Se assim for, 167 milhões de crianças poderão estar a viver na pobreza extrema, a maioria das quais na África Subsariana. Estima-se igualmente que 3,6 milhões de crianças por ano poderão morrer antes dos cinco anos, ainda e na maior parte dos casos por doenças ou causas que poderiam ter sido evitadas se tivessem sido prestados cuidados de saúde.
Síria e refugiados entre as principais preocupações
A África Subsariana, a Síria devido ao prolongamento e à violência da guerra, e os milhões de refugiados que fugiram deste e de outros países são os três focos de maior preocupação da UNICEF relativamente à pobreza infantil. A população pobre da Síria mais do que triplicou, ao passar de 12,3% do total em 2007 para 43% do total em 2013. Estima-se que entre os milhões de refugiados, sobretudo sírios, mais de dois terços sejam pobres. E neste conjunto, as crianças representam mais de metade. Nalguns casos, só há dados estatísticos disponíveis até 2013.
UNICEF constata por outro lado que depois de vários anos em que a pobreza baixou nos países do Norte de África e Médio Oriente, voltou a estagnar ou mesmo a aumentar nalguns países. Nos países da África Subsariana, vive não apenas a maioria da população pobre mas aquela que continua a aumentar. Lê-se no relatório que, partindo das tendências atuais, e se nada se alterar, nove em cada 10 crianças a viver com menos de 1,9 dólares por dia (1,7 euros) serão em 2030 de países da África Subsariana.

Monday, June 27, 2016

Combater a cultura do ódio com novas narrativas!

Combater a cultura do ódio com novas narrativas!

Matar LGBTs não é um desvio dentro de uma cultura de ódio, mas sim a norma. E essa norma precisa ser identificada como tal e combatida politicamente!

pulse boitempo
Por Leonardo Fabri.*
Quando soube da notícia de que cinquenta pessoas foram brutalmente assassinadas, outras cinquenta e três feridas, dentro de uma boate em Orlando – e que a responsabilidade repousava nas mãos de um único indivíduo – fiquei imediatamente enfurecido. Obviamente farei o devido recorte sobre a sexualidade das vítimas (motivo pelo qual elas se tornaram vítimas em primeiro lugar), mas inicialmente gostaria de tratá-las como pessoas: essa categoria analítica tão essencial para que qualquer possibilidade de alteridade ocorra, categoria essa negada constantemente pela cultura homofobica tão enraizada em nossa sociedade.
A homolesbotransfobia apresenta-se estruturalmente e reveste-se como um elemento de normalidade, uma coisa que reflete e refrata o tecido social. Todo imaginário é criado dentro dessa perspectiva, que alimenta a construção de todas as estruturas sociais (família, religiosidade, educação, cultura, entretenimento), dando ossatura para os símbolos partilhados coletivamente. Dessa forma somos socializados para identificar com precisão e de forma  binária,  as chaves de oposição “certo” e “errado”, “normal” e “anormal”. Quer dizer, é quase impensável que uma pessoa heterossexual tenha algum tipo de preocupação de como será lida pela comunidade em que está inserida que na hora de expressar sua heterossexualidade. Heterossexuais não “se assumem” como tais, porque o “normal” não precisa ser assumido. Mais do que isso: a heterossexualidade cria os critérios para que outros pressupostos sejam definidos. Se a marca da homossexualidade funciona como categoria é porque é a heterossexualidade que é lida como regra universal.
Coincidentemente, as características normais e certas, geralmente são as partilhadas pelo grupo que detém materialmente o poder, leia-se o capital. Logo, esse grupo social universaliza suas epistemologias, num processo de dominação simbólica de toda a sociedade. Para nós é inconcebível enxergar a heterossexualidade como mais uma categoria . Ao contrário, partirmos dela enquanto fator de normalidade e catalogamos seus “desvios”. O mesmo se dá com o masculino, com a branquitude, com o ocidental e com os países do norte global. Essas categorias são tratadas como pressupostos universais, a medida pela qual tudo é medido, o fator por si só de relação a qualquer coisa. E isso, levado à sua radicalização, fomenta e justifica episódios como o ocorrido no último dia 12 de junho.
As narrativas hegemônicas na mídia
Devido à própria impossibilidade de se negar o horror desse fato, ocorrido no seio do “país da liberdade”, a cobertura da grande imprensa foi exaustiva e intensa. Dessa cobertura, no entanto, duas narrativas se sobressaíram e infelizmente não dão conta da problemática como um todo, em suas possibilidades de resolução e entendimento. Por um lado, temos uma mídia conservadora, racista, homolesbotransfóbica e principalmente xenófoba, que rapidamente ignorou o crime de ódio, e o catalogou como uma ação terrorista, com todo o peso e significado que a palavraterrorismo tem desde o ano 2001. Essa perspectiva tem por objetivo claro a invisibilização da discussão sobre o controle de armas em território estadunidense e a afirmação da posição imperialista do país frente a sua política externa, legitimando um discurso de combate ao radicalismo islâmico, normalizando uma ideia de violência inerente a esse grupo étnico-religioso. Não mencionar o ódio a LGBT’s equivale a compactuar com a violência sistêmica e estrutural que esse grupo sofre.
Por outro lado, uma contra narrativa surgiu, não em oposição direta à levantada pela ala conservadora, mas paralela a ela. Esse discurso explorou a imagem do assassino como um “homossexual enrustido”, embora eu prefira a expressão “heterossexual forçado”, uma pessoa que teria reprimido a própria sexualidade e por isso despertado a violência contra outros LGBT’s que viveriam plenamente a sua essência. Por mais que isso seja uma possibilidade, a sua veracidade pouco importa, pois a constatação a esse fato surgiu antes do mesmo ser comprovado. Ou seja, é como se para uma parcela significativa da população somente uma pessoa “enrustida” sexualmente fosse capaz de cometer tal atitude. Aqui reside minha crítica: transferir para o campo do indivíduo um problema social é pouco eficaz, uma vez que esse método não abrange as especificidades da cultura de ódio. Mais uma vez estamos transferindo o problema do campo político, econômico, sociológico, para a seara da instabilidade, do transtorno e do desvio individual. Matar LGBTs não é um desvio dentro de uma cultura de ódio, mas sim a norma. E essa norma precisa ser identificada como tal e combatida politicamente! Se não somos sequer capazes de repensar os repertórios lúdicos e culturais desde a infância  no que diz respeito aos papéis de gênero, de raça, de sexualidade e de classe, será que deveríamos nos espantar com a materialização dessa combinação num ato dessa proporção? Esse homicídio em massa também é fruto de cada piada, de cada olhar de reprovação, de cada riso maldoso ou ofensa direta proferida contra a população LGBT, porque sua origem vem do mesmo lugar: do ódio ao “anormal”.
Uma questão de imaginário político
Ilustração do livro infantil Monstro rosa, de Olga de Díos. Próxima autora do selo infantil da Boitempo, o Boitatá!
Precisamos ressignificar as nossas percepções de normalidade, disputar as narrativas que legitimam as ações e criar um novo repertório simbólico e cultural para balizar nossos referenciais.
Sou um grande defensor da ludicidade e da capacidade da literatura de causar empatia. De todas as modalidades de arte, a literatura e em especial a literatura infantil é uma das mais eficazes em transportar uma pessoa para dentro do corpo e da mente de outra. O livro infantil tem duas vantagens em seu dispositivo: ele é pensado para ser lido tanto por sua narrativa oral, quanto pela sua narrativa visual e pede uma leitura compartilhada, unindo duas ou mais pessoas dentro de seu universo e criando um laço entre elas (não existe sensação mais acolhedora do que encontrar alguém que ama o mesmo livro que você).
É com vista nessa concepção do papel da literatura infantil hoje que a Boitempo, casa editorial da qual me orgulho de fazer parte, lançará em breve duas obras que integrarão o selo infantil Boitatá – Pássaro amarelo e Monstro rosaDa autora e ilustradora madrilena Olga de Díos, os livros apresentam personagens que não se encaixam dentro dos padrões de seus colegas, apresentando o sentimento de não pertencimento e de exclusão. Pelo menos nos livros os personagens tomam as rédeas de suas vidas e encontram soluções criativas e divertidas para lidar com a adversidade: o pássaro amarelo que não pode voar como seus amigos por possuir asas curtas em demasia (numa clara alusão às deficiências motoras), vale-se de sua engenhosidade e talento para criar uma máquina que o permita voar (e compartilhar esse saber com outros animais); já o monstro rosa, que nasce rosa, grande, gordo e sem muito equilíbrio, precisa lidar com a monocromia normativa de seus amigos brancos, magros e lidos como elegantes, até perceber que o mundo é muito maior do que imaginara, e que vale a pena, buscar por si só, lugares que o aceitem como realmente é.
Compreender a existência das disputas políticas presentes nos mais variados discursos é tarefa de qualquer pessoa que esteja comprometida com uma real democracia. Diante de um episódio tão desumano e aterrador como este de junho de 2016 em Orlando, cada um elegerá as suas produções de sentido e respectivas justificativas, que fazem ver o mundo como o veem. Formar uma geração de leitores empática, crítica e consciente das contradições da sociedade é uma excelente estratégia contra hegemônica, frente ao crescente conservadorismo e do pensamento fascista.
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Leonardo Fabri é formado em arte dramática com especialização em produção cultural, atuando como dramaturgo, ator e produtor em projetos de teatro e literatura infantil há 10 anos. Atualmente cursa ciências sociais, dedicando suas pesquisas na sociologia da infância e políticas públicas para educação. Como pesquisador literário integrou a equipe de resenhadores da Biblioteca Infantojuvenil Monteiro Lobato entre 2012-2014, tendo passagem pela editora Oxford University Press do Brasil e Livraria Cultura. Na Boitempo é responsável pelo departamento de relacionamento e divulgação educativa.

Sunday, June 26, 2016

Escola sem Partido e a falsa ideia de neutralidade


EDUCAÇÃO
Escola sem Partido e a falsa ideia de neutralidade
Para uns, é preciso se falar sobre cidadania, gênero, raça, orientação sexual, identidade de gênero e discriminação em sala de aula. Para outros, tais assuntos devem ser debatidos apenas no seio familiar sem qualquer interferência do Estado.
por Ivanilda Figueiredo


Brasileiras e brasileiros querem um país melhor, onde possam viver em segurança, terem uma vida produtiva, divertida, saudável, exercer suas crenças e viver de acordo com suas convicções. Esses sentimentos em si unem grande parte da nação. No entanto, o debate sobre como conquistar tais objetivos divide a sociedade. Para uns, é preciso maiores garantias de direitos. Para outros, maior rigor penal. Para uns, é preciso se falar sobre cidadania, gênero, raça, orientação sexual, identidade de gênero e discriminação em sala de aula. Para outros, tais assuntos devem ser debatidos apenas no seio familiar sem qualquer interferência do Estado. Para uns, retomar o respeito a valores religiosos em todas as esferas da vida seria a solução para a pacificação social. Para outros, o respeito à Constituição é o único modo de viver numa sociedade plural, com inúmeras crenças e convicções diferentes, todas elas igualmente válidas.
Tais embates têm por característica estarem sendo travados em um período no qual as informações estão disponíveis de modo viral na internet e nos aplicativos de celular. As informações voam a velocidades impressionantes e se reproduzem de modo dinâmico. Muitas vezes, pelo formato no qual são divulgadas, é difícil até para pessoas com maior experiência na identificação de boatos notarem a falsidade. As noticias falsas, no entanto, são lançadas com um propósito: o de acirrar ainda mais os ânimos entre os dois polos. Há quem hoje finalize qualquer conversa ao ouvir palavras ou expressões como “direitos humanos”, “respeito à diversidade”, “ideologia de gênero”, “valores cristãos”. As duas primeiras expressões representam o grupo dos defensores de direitos humanos e as duas últimas as pessoas vinculadas à defesa de valores familiares e religiosos mais conservadores. A cada dia parece que se torna mais difícil os partidários de uma das correntes não se sentir ameaçado pelos filiados da outra.
Dia desses um aluno me disse que era contra o kit anti-homofobia (para ele, kit gay) porque não concordava que cenas de sexo explícito fossem expostas para crianças de tenra idade. Expliquei-lhe que isso nunca existiu, nenhum material didático seria produzido ou fornecido pelo Ministério da Educação e por órgãos das Nações Unidas com este tipo de conteúdo, garanti-lhe que havia tido todo o material em mãos e lá o que existia eram apenas histórias apropriadas para a idade nas quais se abordava o respeito às pessoas independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Não foi fácil convencê-lo, pois ele repetia a todo tempo ter visto o material na internet. Impressiona que um conteúdo produzido há mais de quatro anos e que nunca chegou sequer a ser distribuído ainda povoe o imaginário de pessoas como ele, hoje no auge dos seus 18 anos.
Trata-se, no entanto, de expressão dessa batalha de comunicação que vem sendo travada nos últimos anos. Nessa guerra o campo progressista defensor de direitos humanos tem se visto acuado pela ascensão de forças conservadoras que têm jogado com a linguagem de forma primorosa e tornado tudo que é defesa de direitos “ideologia” e tudo que é negação a estes direitos “neutralidade”.
Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil e mais de 13 são mortas por dia. O país é campeão de mortes violentas de travestis e convive com grave violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Lidar com essa realidade é tentar eliminar as mais graves violações de direitos que devem ser inaceitáveis em qualquer estado democrático. No entanto, tais temas recebem hoje a alcunha de serem propagações de uma “ideologia de gênero” e por isso foram retirados do Plano Nacional de Educação e de vários dos seus congêneres estaduais e municipais. Mas mais que isso há inúmeros projetos de lei nos três âmbitos federativos proibindo qualquer discussão sobre esses temas em sala de aula.
A mais nova expressão dessa realidade são os projetos impulsionados por um movimento chamado “Escola sem Partido”. Para eles, o conteúdo das disciplinas em sala de aula deve ser neutro e não apresentar qualquer conteúdo político, religioso ou ideológico. De acordo com os autores do projeto, o intuito é proteger as crianças de professores que estariam propagando em salas de aulas suas próprias visões de mundo. Defende-se que os pais e mães têm direito a assegurar a seus filhos uma educação condizente com suas convicções. Dito desta forma, o movimento consegue persuadir muitas pessoas com seus argumentos, pois a neutralidade e os respeito aos valores familiares parece para muitos desejável. No entanto, olhando de forma mais detida para a proposta – na Câmara dos Deputados, PL 867/2015 – é possível se questionar com muita seriedade algumas de suas premissas:
I – quem definirá quais conteúdos são ideológicos e quais não são? Quem serão os censores do Século XXI responsáveis por ler os livros didáticos, fiscalizar os cadernos de anotações dos alunos? Escutar sorrateiramente as aulas dos professores?
II – quais conteúdos podem ser considerados ideológicos? Tratar de racismo, machismo, homofobia, democracia e respeito aos direitos é ideológico? E se calar diante as injustiças, perpetuar uma cultura de desigualdade e violência não é?
III – será construído um país melhor quando crianças, adolescentes e adultos forem obrigados a se submeter a um pensamento único e qualquer divergência seja punida? As salas de aulas precisarão ser completamente homogêneas para que os professores nunca expressem nenhuma opinião ou passem qualquer informação incompatível com as crenças e convicções dos pais e mães dos alunos?
IV – Ora, ninguém jamais contestou o direito de pais e mães conversarem com seus filhos e ensinarem e perpetuarem seus valores morais e religiosos, mas como obrigar que em qualquer nível de ensino os professores sejam tolhidos no seu direito a liberdade de cátedra para se garantir que não exista incompatibilidade entre o ensinado em sala de aula e o ensinado no lar?
Tais perguntas merecem uma reflexão social profunda: quem, quando e como estabeleceu que perpetuar injustiças, se calar diante de violências e opressões é ser neutro? E falar sobre elas é ser ideológico? Neutralidade não existe. Há visões de mundo diversas num país plural e para uma melhor convivência social não é melhor que todos sejam capazes de respeitar a pluralidade e a diversidade mesmo que em seu íntimo vivam de acordo com valores morais e religiosos diversos de seus vizinhos ou colegas de classe?
Mais que isso, é preciso ter em conta de que apesar de projetos como esse alegarem defender um Estado Laico, eles não tocam nos debates sobre ensino religioso confessional em sala de aula, por exemplo. Esse sim um debate essencial para quem pretende eliminar conteúdos sem rigor científico das salas de aula. A Constituição prevê a possibilidade do ensino religioso em escolas públicas, mas, para ele ser compatível com a laicidade do estado, seria necessário que se trata de explicar a respeito das diversas religiões e seus pressupostos, favorecendo assim o respeito constitucional a liberdade de crença. Precisariam, ainda, ser tratados apenas em uma disciplina específica e ser assegurado naquele período outro tipo de atividade aos alunos que não se interessassem pela disciplina. Nada disso ocorre nas salas de aula hoje. Inúmeros estados, como o Rio de Janeiro, por exemplo, tratam o ensino religioso como confessional e em grande parte do país a disciplina é tratada como de presença obrigatória.
Se há um princípio que merece a atenção de pais, mães e responsáveis hoje nos bancos das salas de aula é o do respeito à laicidade. Não se trata se impingir-lhe a alcunha de neutro, mas tão somente reconhecer que o Estado não pode tomar partido quando o assunto é religião. Para o Estado brasileiro qualquer crença é igualmente válida, incluindo o direito de não se filiar a nenhuma religião específica. Todos os brasileiros e brasileiras são iguais em direitos e obrigações e merecem a mesma consideração pelo Estado. Não há outro modo de se assegurar isso que não sejam promovendo em salas de aulas, nas ruas, nas praças, nos noticiários e na internet uma cultura de respeito à pluralidade e à diversidade que é incompatível com qualquer tipo de censura.
É hora, portanto, da sociedade perceber que nenhum desses dois polos de pensamento é neutro. É necessário mais do que nunca que o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil se unam em torno do respeito à Constituição e na defesa, por uso dos meios jurídicos possíveis em cada caso, do respeito à pluralidade de pensamento, a liberdade de cátedra e a construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos e a cidadania. É preciso ressaltar para todas as pessoas: não se está erguendo um país mais justo nem melhor quando uma política de inclusão educacional é desmontada.
Todos esses temas têm merecido a atenção da Relatoria de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma Dhesca Brasil que irá realizar Missão In Loco em junho com o intuito de debater o tema com parceiros e interessados em Brasília. Para participar basta acompanhar nossas atividades em www.plataformadh.org.br ewww.facebook.com/dhescabrasil/?fref=ts.

Ivanilda Figueiredo
Ivanilda Figueiredo é doutora em Direito pela PUC-Rio e Relatora de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil

Militares, ciências, Educação Popular.

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