Thursday, July 28, 2016

A onda por vir

A onda por vir

"Se Dilma voltar, volta a tragédia. Um governo conservador e elitista, onde os ricos é que saem ganhando e os mais pobres seguem morrendo e sendo removidos de suas casas. Se tiver eleições gerais e tivermos a sorte de eleger alguém 'menos pior' entre os possíveis elegíveis (Lula, Ciro, Marina), o máximo que o governo vai poder fazer é segurar a onda de retrocessos e dar uma maquiada na situação. Resta a velha questão de sempre: o que fazer"? Indaga Renan Portoem artigo publicado por UniNômade, 27-07-2016.
Eis o artigo.
Com o afastamento de Dilma da presidência, as esquerdas compartilham um sentimento disperso de oposição contraTemer que não resultou em mobilizações significativas. O dissenso entre os apoiadores pregressos do governo Dilma e aqueles que, a pautar o #ForaDilma, preferem seguir a “via argentina” [1] do Fora Todos e/ou das #EleiçõesGeraisJáaprofundou a dispersão e a desmobilização.
À cada medida antipopular do governo Temer, dilmistas lançam acusações contra aqueles que vinham se opondo ao governo do PT, como se os antagonistas à Dilma se tornassem apoiadores do presidente interino. Simplesmente pela menor intensidade de críticas ao novo governo. Embora não seja unânime, tem sido uma atitude recorrente porém inútil. Pragmaticamente inútil. Por outro lado, agora, não faz mais sentido criticar especialmente o governismo petista, essa prática contraditória de cobrar da esquerda como um todo um apoio ainda que crítico ao governo, ao mesmo tempo em que o blinda das críticas.
Ora, não há muito o que falar sobre Temer. Nenhuma parcela entre as esquerdas o apoiou diretamente, ainda que algumas tenham acatado, sem qualquer pudor, alianças com Temer ao longo da última década. A bem da verdade, nem mesmo a direita parece entusiasmada com ele. O #ForaTemer é óbvio para as esquerdas. Tão óbvio quanto a constatação que a situação trágica em que nos encontramos não começou há dois meses, com a instauração do processo de impeachment.
Mas se hoje é óbvio o #ForaTemer, não era quando o PT ocupava a presidência em exercício. As coisas não pareciam tão claras. O petismo funcionou como um necromante para manter aparentemente vivo um defunto. Isto não significa que o PT seja igual ao PMDB. Pode ser até menos irresponsável quanto à adoção de políticas antipopulares, mas em compensação vinha conseguindo dissimuladamente acender uma esperança em parte das esquerdas. Parte que podia até chorar, com sensação de ter sido traída, quando o PT se metia na lama, mas que logo passava a celebrar qualquer aceno teatral do antigo governo em busca de apoio das esquerdas.
Quanto a Temer, é necessária agora uma nova onda opositora de protestos e mobilizações. Não faz sentido culpar a falta de crítica ou mobilização dos antipetistas quando também não está havendo mobilização de fato por parte dos petistas. Quanto aos que se opõem ao PT, também não é interessante ficar debatendo se convém ou não juntar-se à militância petista nas ruas. A rua é de qualquer um. É só chamar o #ForaTemer e o resto (#VoltaDilma ou #EleiçõesGeraisJá) fica para ser construído a partir da organização dos anseios sociais, que também podem se inclinar para outros rumos, além desse problema.
Se Dilma voltar, volta a tragédia. Um governo conservador e elitista, onde os ricos é que saem ganhando e os mais pobres seguem morrendo e sendo removidos de suas casas. Se tiver eleições gerais e tivermos a sorte de eleger alguém “menos pior” entre os possíveis elegíveis (Lula, Ciro, Marina), o máximo que o governo vai poder fazer é segurar a onda de retrocessos e dar uma maquiada na situação. Resta a velha questão de sempre: o que fazer?
Primeiro, não se desesperar com bobagem, por exemplo, como na proposta estúpida do presidente da Confederação Nacional da Indústria de aumentar a jornada de trabalho para 80 horas semanais. Não se volta ao século XIX numa única medida. Era outra organização social, outro modo de produzir, distribuir, comunicar, trabalhar etc. Não se podem reproduzir as condições de uma jornada de 16 horas hoje. Assim como não se retorna à ditadura militar numa única medida.
Vivemos na era neoliberal, em que é fundamental a gestão contínua dos conflitos e liberdades, e da crise implicada neles. É um governo de controle flexível e administração dos riscos. A liberdade deve ser controlada porque é dela que o neoliberalismo depende para extrair o lucro. Netflix, Hollywood, Facebook, Google, academias, lanchonetes e bares, marcas de bebida e alimentos, empresas de tecnologia de comunicação, tudo isso para lucrar depende de margens de liberdade e da produção das subjetividades. Precisam delas como o vampiro precisa de sangue.
Essas discussões sobre a jornada de trabalho estão fora de perspectiva, servem apenas para fazer espuma (de um lado e de outro). Porque o tempo de vida hoje já está totalmente investido e explorado pelo capitalismo. O capitalismo já funciona (ou dis-funciona) 24 horas por dia, 7 dias por semana, colocando todo o seu exército para trabalhar, sem qualquer reserva. Todo o tempo está a serviço da produção, o lazer, o sono, a sexualidade. Inclusive quando buscamos nos qualificar para trabalhar, já que hoje a formação é permanente e infinita. Nossos próprios sonhos muitas vezes coincidem com os percursos do capital.
Até a produção pré-individual, o nosso inconsciente, as associações semióticas que fazemos sem passar pela consciência, todo esse imaginário está atulhado de aparelhos e dispositivos de que o sistema precisa e suga. Toda a vida se tornou subsumida ao capitalismo e não há mais fora, de maneira que o tempo de trabalho vai muito além da questão da jornada. Como então criar estratégias para enfrentá-lo? É certo que não vai acontecer nenhuma tomada do Palácio de Inverno.
Os processos de lutas e insurreições, principalmente as ocupações, já conquistam terreno quando criam outra percepção e vivência do tempo.
Outras temporalidades que trazem outras formas de vida. Um contra-investimento que também é uma recusa dos aparelhos capitalistas sobre a vida, além de intervenção direta para produzir e organizar-se de maneira diferente.
Vamos aprender com os adolescentes das escolas ocupadas e não se deixar abater pela lamúria da esquerda. Um aprendizado que pode ajudar a fazer renascer um ciclo de lutas, para além das dispersões e desmobilizações. Como disse Toni Negri: “deve haver uma maneira de reconhecer a derrota sem sermos derrotados” [2].
Notas:
[1] – Ref. ao Que se vayan todos, dos protestos na Argentina entre dezembro de 2001 e janeiro de 2002.
[2] – Antonio Negri, Anomalia selvagem, poder e potência em Espinosa. Ed. 34: 1993. p. 230.

Se eu for degolado ou decapitado ou eviscerado por um delirante de "Allah Akbar!", eu lhes peço, por favor, não me matem duas vezes: não confundam o Isis com o Islã. Artigo de Aldo Antonelli

"Se o Isis me matar, não me matem uma segunda vez." Artigo de Aldo Antonelli

Se eu for degolado ou decapitado ou eviscerado por um delirante de "Allah Akbar!", eu lhes peço, por favor, não me matem duas vezes: não confundam o Isis com o Islã.
A opinião é do padre italiano Aldo Antonelli, coordenador regional da associação antimáfia Libera para a província deAquila, na Itália. O artigo foi publicado no sítio TheHuffingtonPost.it, 27-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Isto não vai acontecer, mas, se eu for morto por quem quer que seja, por favor, eu lhes peço, não me matem uma segunda vez.
Se eu for degolado ou decapitado ou eviscerado por um delirante de "Allah Akbar!", eu lhes peço, por favor, não me matem duas vezes: não confundam o Isis com o Islã.
E, se o meu assassino for um negro ou um imigrante, eu lhes peço, por favor, diante do meu caixão, não matem também a minha memória: não confundam o delinquente com o emigrante.
No meu funeral, não quero os mestres do imbróglio, os fabricantes do ódio, aqueles que investem nos medos e aqueles que fazem carreira sobre as desgraças alheias. Eu morreria uma segunda vez. E, desta vez, de verdade!
P. S.: Já ia me esquecendo. Se eu tivesse que morrer nas mãos de um assassino qualquer, gostaria do silêncio da imprensa. Afinal, quem morreria seria somente eu. Eu não quero me prestar, nem mesmo quando morto, a esse jogo obsceno que é transmitido cotidianamente em redes unificadas: o de fazer acreditar que o nosso inimigo é o Islã, e não o terrorismo cotidiano e permanente de umas finanças que provocam fome, de um mercado que desertifica e de uma política que não faz nada. E cujas vítimas são milhões e milhões, sem excluir os próprios terroristas.

Empresas de telecomunicações no Brasil: mais uma prova da farsa desenvolvimentista. Entrevista especial com Gustavo Gindre

Empresas de telecomunicações no Brasil: mais uma prova da farsa desenvolvimentista. Entrevista especial com Gustavo Gindre

“Os partidos políticos no Brasil atuam, quando no poder, como representantes de lobbies privados cujo único objetivo é capturar o Estado para seus interesses”, constata o jornalista.
Imagem: Franquia Virtual
setor de telecomunicações brasileiro “demonstra de forma indiscutível” que o “Estado” tem sido “capturado pelos interesses do grande capital”, diz Gustavo Gindre à IHU On-Line, ao comentar a atual situação do setor e a crise da Oi.
Segundo ele, os projetos de telecomunicações no país têm sido realizados “às expensas de patrimônio e recursos públicos”, porque “não houve nenhum critério republicano para a escolha dos empresários beneficiados e, principalmente, não havia qualquer tipo de contrapartida para o crescimento das empresas”, demonstrando que o projeto desenvolvimentista “não passa de uma farsa”. Em resumo, diz, “não houve contrapartida para a ampliação da banda larga, para a geração de emprego e renda e para o desenvolvimento de ciência e tecnologia nacionais”. E questiona: “Como pode ser desenvolvimentista um projeto que não visa desenvolver o país, mas apenas um seleto grupo de empresários?”
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Gindre analisa a crise da Oi, explica que ela é derivada de “três momentos históricos diferentes” e defende que a empresa “não pode falir”, mas, por outro lado, pontua, “ela tem sócios que se mostraram incapazes de gerir a empresa e que estão, inclusive, envolvidos nas investigações da Operação Lava Jato”.
O jornalista também comenta a tentativa das empresas de telecomunicações de alterarem a prestação de serviço de internet banda larga no país e explicita que, “em síntese, as empresas estão vendendo algo que não podem entregar porque não investiram para atender a demanda inevitavelmente crescente. Então, as operadoras precisam desesperadamente deter o consumo. (...) Na prática, isso significa que a empresa vende uma conexão de, por exemplo, 20 Mbps, mas ela não espera que você use essa conexão o tempo todo. Se você optar por usar de fato aquilo que comprou, terá que pagar a mais para isso. Assim ela constrange o consumo e se desobriga de investir para atender a demanda crescente”.
Gustavo Gindre é graduado em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense - UFF, pós-graduado em Teoria e Práxis do Meio Ambiente, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e doutorando em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia pela mesma universidade. Foi membro eleito do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) por dois mandatos (2004-2007 e 2007-2010) e é integrante do Coletivo Intervozes.
Confira a entrevista.
Foto: Bruno Spada / Agência Brasil
IHU On-Line - Como compreender o caso da “falência” da Oi? Que questões de fundo emergem desse fato, desde perspectivas econômicas a políticas? E que reflexões suscita?
Gustavo Gindre - A crise atual da Oi é fruto de três momentos históricos diferentes. Primeiro, a sabotagem praticada ao modelo anterior, quando aTelebras dava lucros, mas era impedida de investir na sua operação, porque os recursos eram confiscados para pagamento da dívida externa.
Segundo, o modelo de privatização que copiava uma decisão judicial norte-americana de 1982 e posteriormente sepultado por uma lei de 1996, porque fracassara. Ou seja, copiamos o que já tinha dado errado, optando por fracionar o país em pequenas partes, criando empresas fracas e incapazes de competir em um cenário de globalização. O modelo foi adotado no Brasil, às vésperas de uma eleição presidencial, levantando suspeitas de que o fracionamento visava agradar o maior número possível de empresas, aumentando o potencial de contribuições via caixa 2. Vale lembrar que o próprio Mendonça de Barros, então ministro das Comunicações, chamou os compradores de "tele gang" e "rataiada".
Por fim, desde a privatização a Oi foi conduzida de forma extremamente temerária, com vários negócios que foram lesivos ao patrimônio da empresa, mas absolutamente vantajosos para seus acionistas controladores. Tudo isso sob a negligência do poder público.
IHU On-Line - Quais as saídas e qual imagina ser o papel do Estado na recuperação da Oi, a maior concessionária de telecomunicações do país?
Gustavo Gindre - A Oi hoje é a única operadora de telecomunicações em mais de três mil municípios. A empresa simplesmente não pode falir. Por outro lado, ela tem sócios que se mostraram incapazes de gerir a empresa e que estão, inclusive, envolvidos nas investigações da Operação Lava Jato. Possui uma dívida impagável de mais de R$ 60 bilhões. E dispõe de uma infraestrutura ultrapassada que necessita de investimentos bilionários. Os únicos que irão se aproximar da empresa agora são fundos abutres, dispostos a ganhar com a crise, e empresários de péssima reputação.
Portanto, em primeiro lugar, é necessário mudar o marco regulatório para equalizar as obrigações. Da forma como está hoje, a Oi fica com praticamente todas as obrigações, permitindo que as gigantes America Movil (Embratel + Claro + NET), Telefonica de España (Vivo + GVT), Italia Telecom (TIM) e AT&T (Sky) atuem apenas nos mercados mais lucrativos. Sem uma solução desse problema, não há futuro para a Oi.
Por outro lado, há que se evitar a todo custo um calote nas dívidas da Oi com a União (impostos, multas, BNDES, BB, CEF etc.). Uma saída que vem sendo negociada com o governo é a mudança da legislação para permitir que a Oi venda 7.500 imóveis herdados com a privatização. Ocorre que, no modelo atual, esses imóveis devem ser devolvidos à União em 2.025. Para que a Oi possa alienar esse patrimônio será preciso que a União abra mão de tais imóveis. Ou seja, haveria uma simples transferência de recursos públicos para uma empresa privada na forma de patrimônio imobiliário. O risco é que a Oi seja salva através da utilização direta e indireta de recursos públicos, que as distorções atuais sejam mantidas e que lá na frente a empresa volte a se mostrar inviável.
Gráfico elaborado por portal G1, 07-05-2015
IHU On-Line - Como pensa ser um modelo ideal de gestão de telecomunicações no país?
Gustavo Gindre - O primeiro passo é mudar o atual desequilíbrio entre uma empresa com praticamente todas as obrigações de universalização da telefonia fixa (Oi) e gigantes transnacionais que operam apenas nas áreas mais lucrativas do país.
Segundo, é preciso estender as obrigações deuniversalização para a banda larga. Muito mais do que o telefone fixo, é aí que repousam os objetivos estratégicos das telecomunicações no século XXI. Garantir a universalização do acesso à Internet em banda larga deve ser o objetivo número 1 das políticas públicas do setor.
Por fim, garantir obrigações de compartilhamento de rede onde a competição na instalação de redes se mostrar economicamente inviável (caso de boa parte do território brasileiro). Este é um modelo que vem sendo tentado com sucesso em alguns países, notadamente no Reino Unido. Trata-se de garantir que a infraestrutura estará disponível para que outras empresas (especialmente pequenos provedores) possam usá-la a preços competitivos.
IHU On-Line - Em que medida é possível considerar que o Estado brasileiro terceirizou, através das privatizações, todo o sistema de comunicação, desde concessões a veículos de comunicação, TV, Rádio, até empresas de telefonia? Que implicações há nisso? Como imagina que deveria ser o papel do Estado nesses processos?
Gustavo Gindre - Quando da privatização do Sistema Telebras, a sociedade civil e os trabalhadores entregaram ao governo uma proposta que passava por (1) extinção das teles locais (TelerjTelesp etc.) e unificação na holding Telebras; (2) abertura do capital da empresa para sócios estratégicos de capital nacional; (3) manutenção da orientação estratégica do Estado a partir, pelo menos, de uma golden share. Infelizmente optou-se por uma política não apenas de privatização, mas de fragmentação e internacionalização. E esse modelo (acentuado posteriormente) foi a ruína de tudo.
Hoje temos menos de 40% das residências com telefone fixo, mais de 70% das linhas celulares pré-pagas e com pouca utilização, cerca de 50% das casas sem acesso à Internet e mais de 1/3 das casas conectadas dispondo de velocidades inferiores a 2 Mbps. Para piorar, praticamente abandonamos a produção de tecnologias nacionais e passamos a importar tudo o que consumimos no setor. Esse foi o resultado da ausência do Estado como operador e de sua inoperância como formulador de políticas públicas, regulador e fiscalizador.
Portanto, é fundamental recobrar o papel central do Estado na construção de uma política pública que preveja ações complementares entre o Estado e o capital nacional. O Estado hoje já possui papel de legislador, regulador e fiscalizador, mas a crise da Oi demonstra sua total omissão. Ao mesmo tempo, a recriação da Telebras em 2010 representava a esperança de que o Estado pudesse voltar a ter um papel também como operador, especialmente na correção das desigualdades de mercado.
Infelizmente, o governo Dilma acabou inviabilizando esse papel ao garantir recursos insuficientes para as tarefas que aTelebras deveria desempenhar.
É fundamental, portanto, exercer de fato o papel do Estado (inclusive na construção de um novo marco regulatório para o setor), mas também voltarmos a ter o Estado atuando como operador (algo que parece impossível de acontecer numgoverno Temer, que já demonstrou seu alinhamento aos interesses das operadoras transnacionais).
IHU On-Line - Diante do cenário de hoje, como avalia a Lei Geral de Telecomunicações - LGT (Lei nº 9.472/1997)? Quais seus limites e perspectivas para uma “atualização”?
Gustavo Gindre - A LGT nasceu velha por dar uma ênfase equivocada na telefonia fixa, quando já era evidente em 1997 que o futuro era a banda larga. Assim, apenas a telefonia fixa dispõe de regras de universalização, enquanto a banda larga é prestada apenas nas áreas mais lucrativas. Mesmo o conceito de universalização precisa ser revisto, pois se limita a dispor sobre a universalização da infraestrutura e não do acesso de fato. Seria o mesmo que considerar que uma favela dispõe de acesso à saúde porque ao seu lado existe um hospital privado. Ou seja, a infraestrutura paga está disponível e isso seria suficiente.
O modelo inicialmente previsto, e piorado no governo Lula, permitiu que todas as obrigações ficassem com uma única empresa, que acabou se mostrando inviável. Por fim, criou-se uma agência reguladora sem interface com a sociedade civil. Esse insulamento permitiu que a Anatel ficasse refém do lobby e da captura promovidos pelas operadoras privadas. A LGT precisa, portanto, ser totalmente repensada. No contexto atual, contudo, a tendência é que a lei seja revista para aumentar ainda mais o poderio dos grandes grupos privados transnacionais.

"A LGT nasceu velha por dar uma ênfase equivocada na telefonia fixa, quando já era evidente em 1997 que o futuro era a banda larga"

 
IHU On-Line - Privatizações, como é o caso da Oi, passam o controle de estatais à iniciativa privada. Porém, essas – novas – companhias seguem sendo irrigadas por recursos públicos, como, por exemplo, participação do BNDES. Mais tarde, a companhia “quebra” e, de novo, busca apoio estatal. Como o senhor observa esse cenário? É isso mesmo que ocorre? Como compreender essa lógica? A quem a empresa serve e interessa?
Gustavo Gindre - Quando de sua privatização, a Telebras era uma empresa superavitária e com um patrimônio gigantesco. Um estudo da COPPE-UFRJ demonstrou como a empresa foi subavaliada. Logo depois o real sofreu forte desvalorização, diminuindo ainda mais o valor que as empresas estrangeiras tinham que pagar. Para piorar, BNDES e Previ eram os maiores acionistas da Telemar e da Brasil Telecom. Ou seja, a empresa foi privatizada e seus principais compradores eram fundos de pensão de estatais e o banco de fomento público. Mas tanto Previ quanto BNDES se retiraram do bloco de controle, permitindo que os acionistas privados gerissem a empresa a seu critério, mesmo não sendo os maiores acionistas. E tais empresas não cansaram de buscar os cofres dos bancos públicos para obter mais empréstimos em condições vantajosas. Como se não fosse suficiente, só a Oi possui mais de R$ 10 bilhões em multas não pagas à Anatel.
Em resumo, o governo depreciou o preço de venda, usou dinheiro público para completar o capital da compra, forneceu empréstimos subsidiados e fez vista grossa para o não pagamento de multas (em geral pelo não cumprimento de metas de investimento).
IHU On-Line - A Operação Lava Jato escarnou a promíscua relação dos governos, e partidos, do Brasil – ao longo da história - com as empreiteiras, escondida debaixo de um pano chamado “projeto desenvolvimentista”. Em que medida é possível comparar essas relações com as empresas de telecomunicações? O que observa dessas relações na área das “teles” antes e depois dos governos Lula e Dilma?
Gustavo Gindre - A relação começou promíscua e assim continuou. Na Brasil Telecom estava Daniel Dantas, conhecido por suas profundas relações com os governos tucanos. Na Telemar estavam Carlos Jereissati, irmão de um senador tucano, e a Andrade Gutierrez, empreiteira totalmente envolvida nos esquemas revelados pela Operação Lava Jato. Quando da alteração do Plano Geral de Outorgas - PGO, em 2008, através de um Decreto Presidencial que permitiu que a Oi comprasse a Brasil Telecom, a empresa investiu cerca de R$ 5 milhões numa programadora de TV paga chamada Gamecorp, que tem como sócio um dos filhos de Lula.
O fundamental dessa história é entender que os partidos políticos no Brasil atuam, quando no poder, como representantes de lobbies privados cujo único objetivo é capturar o Estado para seus interesses. O Estado brasileiro é profundamente capturado pelos interesses do grande capital e a história do setor de telecomunicações depois de privatizado demonstra isso de forma indiscutível. O dito projeto desenvolvimentista não passa de uma farsa.
No campo das telecomunicações tal projeto foi realizado às expensas de patrimônio e recursos públicos, não houve nenhum critério republicano para a escolha dos empresários beneficiados e, principalmente, não havia qualquer tipo de contrapartida para o crescimento das empresas. Não houve contrapartida para a ampliação da banda larga, para a geração de emprego e renda e para o desenvolvimento de ciência e tecnologia nacionais. Como pode ser desenvolvimentista um projeto que não visa desenvolver o país, mas apenas um seleto grupo de empresários?

"Como pode ser desenvolvimentista um projeto que não visa desenvolver o país, mas apenas um seleto grupo de empresários?"

IHU On-Line - Recentemente as empresas de telecomunicações foram à Anatel reclamar da forma como é cobrado o serviço de Internet banda larga fixa. Para as empresas, ao que parece, o ideal seriam pacotes com limites de dados. Como o senhor tem acompanhado a questão? O que esse episódio revela? Quais os riscos?
Gustavo Gindre - O que ocorre nesse caso é um profundo descompasso entre os departamentos de marketing e vendas e os departamentos de engenharia das operadoras de telecomunicações. Em síntese, as empresas estão vendendo algo que não podem entregar porque não investiram para atender a demanda inevitavelmente crescente. Então, as operadoras precisam desesperadamente deter o consumo.
Com a aprovação do Marco Civil da Internet elas ficaram impedidas de violar a neutralidade de rede. Ou seja, elas não podem segregar conteúdo na rede para criar dificuldades a fim de vender facilidades. O objetivo era, por exemplo, degradar conteúdo em vídeo para obrigar que os provedores de vídeo tenham que pagar a mais (além da banda que já pagam). Mas essa opção foi vetada pela lei. Então, as operadoras passaram a alimentar a esperança de constranger a outra ponta do processo, o consumidor, através da limitação de franquias.
Na prática, isso significa que a empresa vende uma conexão de, por exemplo, 20 Mbps, mas ela não espera que você use essa conexão o tempo todo. Se você optar por usar de fato aquilo que comprou, terá que pagar a mais para isso. Assim ela constrange o consumo e se desobriga de investir para atender a demanda crescente.
IHU On-Line - Na sua página no Facebook, o senhor destacou que “há uma revolução na Internet acontecendo no Brasil, sem que as pessoas percebam e apesar de nenhum apoio do governo”. Que revolução é essa e em que medida inspira discussões de políticas públicas nesse setor?
Gustavo Gindre - Trata-se da expansão da banda larga através de pequenos provedores de acesso, especialmente em cidades pequenas e médias onde as operadoras de telecomunicações não possuem interesse em atuar. Isso ocorre porque não há nenhuma regra que obrigue tais operadoras a proverem acesso fora dos grandes centros urbanos e mesmo em áreas de periferia. Mesmo sem praticamente nenhuma ajuda do Estado, há um conjunto de pequenos provedores que estão se lançando na aventura de cabear pequenas e médias cidades no interior do NordesteCentro-Oeste e Norte. Esses são os verdadeiros empreendedores do setor. E o mais interessante é que muitos estão se valendo da queda do preço da fibra óptica para instalar redes na mais moderna das tecnologias de acesso, algo que, muitas vezes, não está disponível nem nas áreas nobres das maiores cidades.
Mas tais empresas precisam muito da ajuda do Estado de três formas. Primeiro, na concessão de linhas de crédito específicas nos bancos públicos, especialmente no que se refere às garantias bancárias (que, obviamente, não podem ser as mesmas das grandes operadoras). Segundo, na proibição de as grandes operadoras privadas cobrarem preços anticompetitivos quando os pequenos provedores necessitam fazer a interconexão com suas redes. Tais preços são usados para inviabilizar um pequeno provedor, que tem apenas uma rede local e precisa da rede de uma grande operadora para alcançar o restante da Internet. Por fim, utilizar a Telebras como reguladora de fato dos preços de interconexão no atacado. Por isso, é fundamental expandir a infraestrutura da Telebras para que ela possa atuar forçando a queda de preços que visam inviabilizar os pequenos provedores locais.
Por João Vitor Santos | Edição de Patricia Fachin

Thursday, July 14, 2016

Os novos demiurgos do ensino superior e o materialismo histórico

Os novos demiurgos do ensino superior e o materialismo histórico


“Nem parece que estou dando aula”, ouvi certa vez de uma professora entusiasmada com uma nova metodologia de ensino cada vez mais comum em universidades adquiridas por grupos turbinados por fundos internacionais de investimento. Lembra o slogan daquele banco comprado pelo Itaú, “nem parece banco”.  Hoje, a financeirização descobriu o ensino superior e trouxe a racionalidade capitalista para um setor onde o ofício do professor era um entrave na linha de produção moderna por ser ainda um antigo resquício escolástico. Dos antigos donos de faculdades  “boca de metro” pulamos para os “global players”, os novos demiurgos. Repete-se a lógica industrial prevista pelo velho materialismo histórico de Marx: trabalho complexo deve ser convertido em trabalho simples, transformando o professor num profissional destituído do seu ofício. Mas para que isso torne-se uma fatalidade natural da vida é necessário um discurso imaginário:  a ilusão (o fetiche do título e publicações), a ideologia (a meritocracia) e uma retórica - a “metodologia ativa”. Talvez a metáfora daquela professora seja mais literal do que ela imaginava...


Karl Marx insiste em não morrer. Ele e a sua abordagem metodológica de estudar a sociedade, o materialismo histórico. Não porque as esquerdas continuem invocando suas ideias muitas vezes para legitimar ações políticas que talvez Marx, se vivo, certamente discordaria.

Mas porque o Capitalismo, agora na chamada fase “tardia”, criou novas e inusitadas formas de se perpetuar através dos inventivos mecanismos de financeirização – como, por exemplo, fundos globais de investimentos com carteiras diversificadas que podem ir de títulos públicos da dívida de um país até investimentos em empresas de tecnologia, marketing esportivo, saúde ou educação.

Boca de metro e pés-de-chinelo


 Um dos motivos que levou esse ingênuo blogueiro a escolher a carreira acadêmica foi acreditar que por descender do método escolástico medieval, a universidade seria um dos setores mais anticapitalistas. Resistiria estoicamente ao avanço do capital e à mercantilização generalizada da cultura.

Claro que o ensino superior particular cresceu nas mãos de empresários locais (membros de conselhos de clubes de futebol, donos de antigos cursos de admissão ao ginásio ou de escolas técnicas) que acabaram criando as chamadas “fábricas de diplomas”, “faculdades de boca de metrô” ou de “universidades pé-de-chinelo”, como certa vez acusou o filósofo Arthur Giannotti quando membro do Conselho Nacional de Educação do governo FHC.

Porém, ainda eram, por assim dizer, representantes da antiga burguesia da época histórica do renascimento comercial e urbano. Se no renascimento comercial a burguesia criou oficinas formadas por mestres, artesãos e aprendizes, também as faculdades privadas construíram instituições cujos “mestres”, “artesãos” e “aprendizes”, dentro das condições adversas reinantes (salas superlotadas, salários baixos pagos muitas vezes por caixa dois, extensa jornada de trabalho etc.), ainda detinham um “saber-fazer”.


Vivíamos sim nos moldes da exploração capitalista, mas ainda dentro do primitivo regime daquilo que Marx chamava de “mais-valia absoluta”, produção de riqueza pelo aumento do ritmo do trabalho e vigilância sem nenhum tipo de compensação em troca.

Mas ainda dentro desse regime de exploração, o professor, como um artesão que ainda detinha o ofício (conhecimento e metodologia), fechava a porta da sala de aula e tentava manter o espírito da escolástica. Em meio a um regime de produção capitalista em larga escala, a faculdade particular ainda tinha que lidar com um insumo de produção que resistia às formas de quantificação de uma linha de montagem. O professor ainda era um artesão que detinha um conhecimento contínuo, cumulativo, qualitativo e analógico.

Dos arcontes aos novos demiurgos


 Em outras palavras: o professor era explorado, mas não despojado do seu saber. A exploração era do trabalho e a alienação era a do corpo e da mente pela exaustão física.

Os burgueses comerciais do ensino superior eram semelhantes aos arcontes (na mitologia gnóstica seres espirituais que controlam cada um o seu mundo que compõe o cosmos) ou disciplinadores que prepararam o terreno para a chegada dos novos demiurgos – a entrada do ensino universitário no modo de produção especificamente capitalista, o trabalho industrial.

A racionalidade capitalista chega hoje ao ensino superior com a entrada do capital estrangeiro dos fundos de investimentos que estão por trás turbinando grupos educacionais e criando a oligopolização do setor. Os antigos arcontes venderam suas faculdades, negócios originados de empresas familiares, para os novos demiurgos – muitos deles “global players” com redes de universidades particulares pelo mundo.


Na linguagem do materialismo histórico, passamos do regime da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa. O trabalho complexo do artesão na manufatura (conhecimento e metodologia pedagógica do professor) deve se tornartrabalho simples – quantificado, fragmentado.

Em outras palavras: a quantidade de trabalho social presente no atividade do professor (muitas vezes resultado do investimento público em bolsas de mestrado e doutorado) deve ser diminuída por ser uma pedra no sapato para o novo ritmo de trabalho e disciplina que o modo de produção especificamente industrial exige.

Das máquinas às “metodologias ativas”


Se em Marx o trabalho social é substituído pelo maquinário, no ensino universitário será por “metodologias ativas” (“teaching-learning”) de ensino onde cada vez mais o “conteúdo” (a pedra qualitativa no sapato da quantificação) cede lugar a “jogos” ou “dinâmicas” previstos minuto a minuto em planilhas Excel. O ofício do professor-artesão (o trabalho social) é diluído no saber-fazer de gestores e coordenadores que personificam o papel da antiga gerencia responsável em ditar o ritmo da linha de montagem taylorista.

Com um plano de ensino “engessado”, o professor torna-se um “facilitador” que busca “engajar” ou “motivar” alunos para uma dinâmica (ou ritmo) imposto pelos gestores.

Ou como ouvi certa vez um professora dizer, extasiado: “nem parece que estou dando aula!”. Mal sabia ela da literalidade da sua metáfora...

Ilusão, Ideologia e Retórica


Acompanhando a metodologia do materialismo histórico, além da exploração e dominação, para se estabelecer um modo de produção são necessários outros três requisitos. Dessa vez de natureza imaginária: o véu da ilusão, a ideologia e um sistema retórico.

(a) O véu da ilusão


Assim como Marx afirmava em O Capital que o capitalismo era uma gigantesca fantasmagoria pois o fetichismo da mercadoria não nos deixava ver o que havia por trás das relações sociais de produção, da mesma maneira o modo de produção do ensino superior criou sua própria fantasmagoria: titulações e “produção científica”.

“Publish ou perish”, publique ou pereça, virou um mantra no meio acadêmico como um fim em si mesmo – o fetichismo das publicações. Tal como na situação absurda beckettiana onde se espera tanto por Godot que esquecemos o porquê da espera, as publicações perderam qualquer lastro científico e viraram um campo de simulações: autoplágio, textos escritos a inúmeras mãos que pegam carona no artigo, conluios com pareceristas de periódicos “científicos”, artigos onde as notas de rodapé ou referencias finais compete em tamanho com o próprio texto, ghost writers, textos preguiçosos, colcha de retalhos etc.

O fetichismo da produção científica cria um verniz necessário para uma atividade-fim (o ensino) que perdeu o sentido na sala de aula, já que o ofício do professor foi primeiro engessado e depois diluído.


(b) Ideologia


Marx concebia a ideologia como uma falsa consciência para dissimular a dominação. No modo de produção universitário é a ideologia meritocrática, decorrência direta do fetichismo das publicações. Títulação + publicações + cursos de aprimoramento é a fórmula para acumular méritos e até a ascensão salarial na carreira. Aqui temos um maquiavelicamente curioso fenômeno: essa fórmula tem uma função muito mais disciplinadora e auto-referencial do que de produção de conhecimento científico-pedagógico.

De um lado os cursos viram verdadeiras sessões de adestramento das competências exigidas nos planos de ensino engessados. São apenas auto-referenciais, reforço comportamental do novo papel em sala de aula do professor destituído do seu ofício.

Além de ser uma maquiavélica função subliminar presente em todas as seitas: quanto mais o indivíduo se mantiver ocupado com o acúmulo de atividades, muitas vezes simultâneas (ainda mais com a alternativa do ensino à distância), menos pensará sobre o propósito daquilo que está fazendo – sobre isso clique aqui.

O risco para o professor é que de repente ele terá tantos méritos, títulos e publicações que suas expectativas aumentarão perigosamente para uma atividade sem expectativas – já que as aulas engessadas pelas “metodologias ativas” estão totalmente dissociadas dos conteúdos e competências conquistadas na pós-graduação. Poderá ser a hora de demiti-lo, junto com todos os seus méritos.

Pierre Bourdieu e Paulo Freire

(c) Retórica


Depois de tudo isso, aqui está a cereja do bolo, o pulo do gato. Todas essas novas metodologias ativas, supostamente pedagógicas, devem ter uma aparência revolucionária, progressista e intelectualmente estimulante. Tal como o fetichismo em Marx onde as mercadorias “lançam olhares amorosos aos compradores”.

Autores da tradição crítica ao sistema educacional como o francês Pierre Bourdieu ou o brasileiro Paulo Freire são ironicamente utilizados para legitimar coisas como “metodologia ativa”: se Bourdieu denunciava o poder simbólico do professor e Paulo Freire acusava a “educação bancária” (onde o professor deposita conhecimento em um aluno desprovido de seus próprios pensamentos), nada melhor do que cortar o mal pela raiz: retire o ofício do professor para que deixe de ser uma figura autoritária e manipuladora.

A partir de citações desses autores, retirados do contexto, doura-se a pílula da quantificação do ensino com uma retórica “crítica”.

Destituído do seu ofício, o professor transforma-se no insumo de produção ideal da cadeia produtiva presente em todos os outros setores da sociedade. Ele tem o mesmo destino que os antigos artesãos tiveram com a substituição da manufatura pela fábrica: seu ofício foi roubado pela gerência e colocado em planilhas para ser fragmentado e inserido no controle numérico das máquinas.

http://cinegnose.blogspot.com.br/2016/07/os-novos-demiurgos-do-ensino-superior-e.html

As greves escravas, entre silêncios e esquecimentos

As greves escravas, entre silêncios e esquecimentos

160711_escravos de ganho na Bahia
Grupo de escravos “ao ganho”, na Bahia. Eram negros que não moravam com o senhor, nem estavam sujeitos a feitor. Executavam pequenos trabalhos urbanos e ganhavam por isso. Obrigavam-se a pagar féria diária a seus proprietários, sob pena de castigos
No Brasil do século XIX, antes dos imigrantes, negros e trabalhadores livres já faziam “paredes”, paralisações por melhores condições de vida e trabalho
Por Antonio Luigi Negro e Flávio dos Santos Gomes
Dia ensolarado. O italiano Pascoal se aproxima do brasileiro Justino. Apelidado de “missionário”, o italiano usava um desses chapeletes de militante socialista. Com uma pá na mão, o operário — um negro — fez uma pausa no batente para olhar Pascoal nos olhos, ouvindo-o atento. Gesticulando com as mãos, compensando o sotaque carregado, o italiano viera atear fogo: criticou salários, incitou todos a largarem o serviço e a fazer a revolução. “Você, seu Pascoal” — argumentou Justino (também com seu sotaque próprio) — “está perdendo seu tempo. Eu não compreendo a língua estrangeira”.
Tal como na charge de J. Carlos (publicada na revista Careta em 1917), imprensa, novelas e textos didáticos divulgaram para o grande público essa — fictícia — figura do italiano anarquista. Celebravam o mito do imigrante radical, uma fantasia em parte utópica e preconceituosa. Utópica porque os trabalhadores europeus não eram em sua maioria rebeldes nem se sentiam italianos. Ou seja, nem sempre eram anarquistas e tampouco se declaravam italianos. Na verdade, uma grande parte era de origem rural, não era composta de artesãos radicais ou trabalhadores de fábrica. Esses imigrantes não traziam consigo, em segundo lugar, uma maciça experiência de envolvimentos com partidos, greves e sindicatos. Havia, em acréscimo, divisões étnicas entre os imigrantes. Consequentemente, a desconcertante conclusão de Michael Hall é a de o nascente operariado industrial de São Paulo de origem imigrante ter contribuído para manter a classe operária em situação relativamente fraca e desorganizada. Muitos abraçavam identidades étnicas antes de mais nada, pois lhes assegurava um senso imediato de comunidade. Outros eram católicos e conservadores. Também aceitaram serviços cuja remuneração os brasileiros recusavam (1).
160711_charge_grève
O mito do imigrante radical é também um preconceito porque, entre silêncios e esquecimentos, impede que o trabalhador local (a começar pelo escravo) apareça como protagonista das lutas operárias. Figuras como a de Justino, que aparece trabalhando mas é pintado como alheio à pregação inflamada do italiano radical, personificaram o anti-herói conformista. Enquanto que Pascoal desembarca pronto para lutar, o operariado formado em solo brasileiro deve, nessa ótica, ou aceitar a liderança do imigrante ou ficar de fora; quase um fura-greve. Deste modo, as imagens do trabalhador estrangeiro, branco, anarquista e rebelde, assim como a do trabalhador brasileiro longe das lutas, não passam de uma representação caricata do operariado do início do século XX.
Além disso, de acordo com esse mito do imigrante radical, a paralisação coletiva do trabalho seria algo tão inédito no Brasil que sequer haveria um termo disponível na língua portuguesa para nomear o fenômeno. Na falta dessa palavra, éramos obrigados a tomar de empréstimo aos franceses a palavra grève! No entanto, a paralisação do trabalho como forma de protesto e barganha foi sempre uma consequência tão espontânea e lógica da experiência dos trabalhadores que boa parte das línguas europeias possui uma palavra própria para designar o fenômeno. Assim, ingleses fazem strike. Já os espanhóis entram em huelga, enquanto que italianos, quando param o serviço, estão em sciopero. No Brasil do século XIX, as primeiras formas de suspensão coletiva das atividades ficaram conhecidas como paredes. Sem essa, portanto, de um Pascoal rebelde e um Justino que não fala o idioma da luta operária. Para nós, a emergência da classe trabalhadora não pode estar vinculada apenas à imigração.
Quando afinal surgiram as greves no Brasil?
Há quem tenha indicado que a greve dos tipógrafos de 1858 foi a primeira greve do Rio de Janeiro. Será? Sabemos hoje que, um ano antes, os trabalhadores escravizados pertencentes ao Visconde de Mauá pararam o serviço da fábrica da Ponta d’Areia. Esta era um dos maiores estabelecimentos da cidade, com cerca de 10 oficinas e 600 operários, sendo 150 deles escravos. Contudo, apesar de noticiada na imprensa, não existem maiores informações sobre as reivindicações dos escravos.
Era comum haver cativos e livres no mesmo espaço de trabalho. Dos operários registrados nas manufaturas do Rio de Janeiro entre os anos de 1840 a 1850 — em particular nas fábricas de vidro, papel, sabão, couros, chapéus e têxteis —, 45% eram escravos. Além disso, o recenseamento de 1872 apontou que, no Rio de Janeiro, havia mais de 2 mil cativos empregados como trabalhadores em pequenas fábricas.
São várias as evidências de paralisações feitas por escravos. No final da década de 1820, cativos, africanos livres e outros trabalhadores pararam a Fábrica de Pólvora Ipanema, controlada pela monarquia. Reivindicavam melhorias nas condições de trabalho, incluindo diárias e dieta alimentar. No Rio de Janeiro, em abril de 1833, um levante numa caldeiraria trouxe apreensão quando os escravos enfrentaram a força policial, sucedendo tiros e mortes.
Em 1854, Joaquim da Rocha Paiva foi testemunha e vítima da ação coletiva dos seus escravos. Tudo aconteceu na terça-feira, 5 de setembro. Foi na Fábrica de Velas e Sabão, sua propriedade na Gamboa. Um grupo de escravos “armados de achas de lenhas e facas” paralisou as atividades e reivindicou sua imediata venda para outro senhor. A decisão deles — ao que parece — não tinha motivo declarado. Há informações de que Rocha Paiva tentou negociar, propondo discutir o assunto no dia seguinte, enquanto alegava ser tarde da noite. Crioulos e africanos, na sua resposta, dirigiram-se ao proprietário “em tom alto”. Esclareceram “que não queriam esperar por que aquilo era negócio de ser decidido logo”. A decisão final do proprietário apareceu não num acordo, mas sim na rápida repressão policial de quase cem homens, que assustou os moradores da Corte, e chamou a atenção da imprensa. Chegando a força policial à fábrica, os escravos se entregaram às autoridades sem opor resistência. Talvez julgassem que, sendo presos, ficariam todos juntos, afastados daquela fábrica por algum tempo e depois poderiam ser vendidos, como desejavam.
Em 1858, na rua da Saúde, um outro grupo de escravos que trabalhava num armazém de café se insurgiu contra seu proprietário, Manuel Ferreira Guimarães. Igualmente, paralisaram o trabalho e se fizeram ouvir: neste caso, não queriam ser vendidos. Sabedores das dificuldades financeiras de seu senhor com o armazém, os escravos não concordavam em ser vendidos, talvez prevendo que seu destino poderia ser as fazendas de café no interior da província. Experientes no trabalho urbano, rejeitavam a venda para as áreas rurais. Permanecer na cidade poderia significar não simplesmente ficar longe dos cafezais, mas manter arranjos familiares e laços de amizade. Queriam permanecer juntos. Por causa disso o armazém parou. Como resultado, os escravos sofreram represália imediata: foram levados para a Casa de Detenção.
Quando deixamos de lado a grève e mito do imigrante radical e nos dedicamos, em seguida, à pesquisa, encontramos paredes feitas por trabalhadores escravos ou trabalhadores livres nascidos e crescido em solo nativo. Desse modo alargamos nossa visão e percebemos outras formas de protesto dos trabalhadores. Antes da grève, a parede dos escravos conseguia pressionar por melhores condições enquanto suspendia, temporariamente, os serviços; negociando também o retorno ao trabalho. Por isso mesmo, algumas fugas — inclusive as escapulidas curtas e individuais — eram eficazes como forma de negociação entre senhores e escravos. Aqui e ali, sumindo pelas falhas do sistema, mas deixando suas pistas em anúncios de jornal pagos por senhores que reclamavam o seu retorno, os cativos fugiam. Em tais anúncios havia informações, que eram fornecidas pelos senhores, sobre a identidade e os costumes dos escravos em fuga (sinais e marcas específicas, os seus hábitos, possíveis paradeiros). Revela-se, assim, a mútua percepção de poderes, deveres e estratégias, senhoriais e escravas, de controle e protesto. Quando calculavam que era hora de parar de trabalhar, os escravos fugiam.
Eram, às vezes, escapadas que duravam dias, ou um final de semana. Mesmo provisórias, eram cheias de tensões, castigos, concessões e riscos (para senhores e escravos). Era comum proprietários esperarem alguns dias para anunciar fugidos ou contratar capitães do mato. Tempo suficiente para que alguns fujões voltassem apadrinhados por senhores influentes e vizinhos de seus sinhôs. A um padrinho cabia interceder invocando generosidade e tolerância. Se possível, o escravo ganhava o que desejava: uma melhoria nas condições do cativeiro. No mínimo, o escravo que regressava queria evitar castigos ou vinganças. Políticas dos senhores e políticas dos escravos acabam assim redefinidas: uma relação até pouco tempo atrás bem pouco conhecida.
Episódios aparentemente sem maior expressão como fugas temporárias, bebedeiras, desordens, ofensas físicas talvez escondam aspectos decisivos da cultura escrava, guardando expectativas relacionadas ao ritmo do trabalho, ao controle senhorial, à disciplina e ao lazer. Em épocas que antecediam as festas religiosas, aumentava a incidência das fugas. No emaranhado da polêmica definição sobre a criminalidade escrava, podemos ver a gestação de uma identidade grupal coletiva. Numa amostra de cativos recolhidos na Casa de Detenção em 1863, podemos verificar, entre suas motivações, a prisão tanto “a pedido” quanto por “insubordinar-se”, ou mesmo “queixar-se”. Estamos, talvez, diante da formação de uma cultura de classe urbana entre os escravos, haja vista o alto número de cativos domésticos, cozinheiros, lavadeiras etc. Podiam ser cativos que se insurgiam, no âmbito doméstico, contra seus senhores (e assim eram remetidos à Detenção). Mas também podiam ser cativos que procuravam as autoridades policiais para defender o costume de alguma relação de trabalho, que consideravam desrespeitado. A lavadeira crioula Ludovina, por exemplo, procurou as autoridades policiais três vezes no mesmo ano. No registro prisional feito, está marcado seu crime: “queixar-se”.
Reclamar, no caso de Ludovina, poderia ser a tentativa de protestar contra o seu senhor ou seus clientes. Isto era crucial, em particular no caso de escravos urbanos, muitos dos quais “ao ganho”, isto é, aqueles que, por si mesmos, alocavam os seus serviços no mercado. E recebiam por isso, transferindo uma parte de seu ganho ao senhor, que nada fazia. Eram os carregadores, as quitandeiras e os vendedores ambulantes. Depois de trabalhar, tinham de dar ao seu senhor uma parte de seus ganhos. Entre aqueles presos por “queixar-se” (certamente acusados de insolentes), temos um grande número de mulheres lavadeiras.
Incluindo africanos, índios, brasileiros e imigrantes, juntar as experiências de trabalhadores livres e escravos é o melhor caminho para contornar preconceitos. Podemos chamá-las de invenção da liberdade, num mundo marcado pela escravidão.
Greve negra
Com certeza, os motivos das queixas, protesto e negociação dos escravos iam além do ambiente e da lida domésticos. Estudando revoltas e movimentos sociais em Salvador, João Reis revelou uma greve de carregadores em 1857. Em resposta a mudanças legais que interferiram nas relações entre senhor e escravo e na forma de organização do trabalho, o que estava em jogo era uma intensa disputa com o poder público: o controle das práticas e costumes do trabalho urbano de escravos e libertos ao longo do século XIX pela administração municipal. Não por acaso, João Reis a chamou de “greve negra”. Centenas de africanos “ao ganho” — a maior parte africanos ocidentais: os “nagôs” — paralisaram por duas semanas o porto e o setor de abastecimento e transporte. Lutavam não por salários nem pelo fim de castigos.
Opunham-se a uma legislação que visava controlar sua lida, com dispositivos que interferiam na organização de seus espaços de trabalho — os cantos. Os grevistas se opunham à determinação da Câmara Municipal que exigia o uso de chapas de identificação individual. Estas, com certeza, foram vistas como mais uma estratégia de controle sobre seus costumes, seus valores, suas vidas, seu trabalho. Foram duas semanas de tensões e expectativas, com os senhores inclusive divididos. Amplamente acompanhada pela imprensa, a parede foi marcada pelo recuo das autoridades (2).
Protagonistas na luta de trabalhadores
Se havia greves antes da chegada dos imigrantes, também não foram um fenômeno urbano apenas. Na verdade, não só houve paralisações na área rural como também podiam dar continuidade a lutas anteriores, que prosseguiam sob novas formas — e em novas condições — sem para isso depender da militância de imigrantes europeus.
Em Pernambuco (em 1919), mesmo submetidos à mais aguda exploração, os trabalhadores da zona açucareira sustentaram uma greve maciça. Ainda que não existam referências às suas identidades, eram descendentes de escravos e libertos, mestiços e negros. Sobre essa corajosa iniciativa, o jornal Clarté publicou a notícia “O trabalhador agrícola em Pernambuco”. Nesta, afirmou que, embora detratado como indolente e estúpido, o trabalhador rural era “o primeiro fator das fortunas dos usineiros”. A greve mostrou a força desses trabalhadores sofridos e humilhados. Trabalhavam em farrapos, tinham dívidas com o armazém dos engenhos, sua dieta alimentar era pobre e praticamente não recebiam assistência dos poderes públicos. Queriam jornada de oito horas de trabalho, aumento salarial, reconhecimento sindical e fim de punições. Os usineiros fecharam suas associações à mão armada (3).
Fica claro assim que nem só de italianos viveram as primeiras lutas operárias do Brasil. Os negros vieram, antes de mais nada, para trabalhar e podiam possuir ou adquirir ofício. Eram vitais em seu local de trabalho, no campo ou na cidade. Sua rebeldia, igualmente, era crucial para mobilizações e protestos da classe trabalhadora. Além das manifestações culturais pelas quais são conhecidos (como a arte e a religiosidade), os trabalhadores negros e seus descendentes protagonizaram experiências de greve que, felizmente, são cada vez mais reveladas pela pesquisa histórica.
Referências bibliográficas
1. Hall, M. “Immigration and the early São Paulo working class”. In:Jahrbuch für geschichte von staat, wirtschaft und gesellschaft Lateinamerikas, 12, 1975.
2. Reis, J. “A greve negra de 1857 na Bahia”. In: Revista USP, 18, 1993.
3. Arquivo Edgard Leuenroth. “O trabalhador agrícola em Pernambuco”. In: Clarté, 1, 1921, p. 21-23. Esta matéria encontra-se transcrita no livro de Michael Hall e Paulo Sérgio Pinheiro, A classe operária no Brasil. Vol. 2. São Paulo, Brasiliense, 1981.
Bibliografia consultada
Castellucci, A. Industriais e operários baianos numa conjuntura de crise (1914-1921). Salvador, Fieb, 2004.
Gomes, F. dos S. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995.
Mattos, M. B. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro, Bom Texto, 2008.
Negro, A. L.; Gomes, F. dos S. “Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho”. In: Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, 18, 1, 2006.
Negro, A. L. “Rodando a baiana e interrogando um princípio básico do comunismo e da história social: o sentido marxista tradicional de classe operária”. In: Revista Crítica Histórica, 5, 2012.
Hall, M. “Entre a etnicidade e a classe em São Paulo”. In: Carneiro, M. L. T.; Croci, F. (Org.). História do trabalho e histórias da imigração. Trabalhadores italianos e sindicatos no Brasil (séculos XIX e XX). São Paulo, Edusp, 2010.

Militares, ciências, Educação Popular.

A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lóg...