Tuesday, November 29, 2016

O Brasil não pode ser governado por uma quadrilha

“O governo Temer é o mais degradado e degradante da história da República. Fruto de uma conspiração e de manifestações manipuladas para combater a corrupção, as suas principais figuras têm a face escrachada da própria corrupção. Sim, porque se há um partido que é o campeão da corrupção da Petrobrás, este é o PMDB. A imprensa e os analistas estrangeiros, com espanto, não conseguem compreender como, em nome do combate à corrupção, se entregou o poder a um condomínio de partidos articulados em torno de interesses corrompidos. Dizer que não haviam alternativas é falso, pois se existissem propósitos honestos em todos aqueles que orquestraram o golpe, teriam proposto uma saída negociada ou que implicasse eleições diretas, garantindo a soberania do povo na escolha de um governo de transição”, escreve Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política, em artigo publicado por Jornal GGN, 29-11-2016.
Segundo ele, “já que os poderes da República não funcionam, acumpliciados que estão, a opinião pública e as mobilizações de rua precisam estabelecer um fim a este governo. Se os partidos, sem legitimidade, não são capazes de garantir uma transição até 2018, que seja honesta e que não agrida direitos e a Constituição, que esta transição seja construída pela Sociedade Civil. O Brasil não pode ser deixado a mercê de um governo ruinoso”.
Eis o artigo.
Se durante o breve período do segundo mandato de Dilma não havia governo, com a assunção de Temer ao governo através de um golpe, o Brasil passou a ser governado por uma quadrilha. O golpe foi uma trama inescrupulosa que envolveu muitos lírios perfumados, mas, como escreveu Shakespeare, "os lírios que apodrecem fedem mais do que as ervas daninhas". A remoção de Dilma não obedeceu nenhuma intenção de alta moral, de salvação do destino do país, de construção da grandeza da pátria, da conquista da glória pelos novos governantes através atos de exemplar magnitude em prol do povo. Não. O que moveu o golpe foi a busca da reiterada continuidade do crime, de assalto ao bem público e para salvar pescoços da guilhotina da Lava Jato. Até a grama da Praça dos Três poderes sabe que a parte principal da camarilha que tramou o golpe o fez em nome da paralisação da Lava Jato.
As quadrilhas se orientam por dois princípios: a traição, sempre que for do seu interesse, e a ousadia na persistência do crime. Consumada a traição para alcançar o poder, a quadrilha não titubeia em mobilizar a mais alta esfera do governo - o próprio gabinete presidencial - para viabilizar negócios privados ao arrepio da lei e com ameaças explícitas a órgãos governamentais de controle, o caso o Iphan. A sociedade brasileira viu, perplexa, que diante de um crime de improbidade administrativa, o presidente da República, ao invés de adotar o partido do interesse público e da moralidade, demitindo o agente da delinquência, busca mediações de terceiros para acomodar a prática criminosa com a desmoralização da probidade.
Temer, no mínimo, cometeu dois crimes: foi conivente com uma investida delituosa e prevaricou ao não adotar nenhuma atitude em face dela. Mas não seria de se esperar outra coisa de quem não tem legitimidade, de quem subiu pela via da traição e de quem assumiu o poder com o perverso objetivo de abrigar o interesse de um grupo sedicioso. Se alguém estava procurando um exemplo veemente de Capitalismo de Quadrilha pode parar de procurar, pois esse governo o representa de forma inequívoca. E, pasmem, diante desses fatos da mais alta gravidade, o inimputável Aécio Neves, propôs investigar o denunciante.
A ousadia da quadrilha é de tamanha envergadura que no silêncio sinuoso das noites brasilienses conspirava-se à larga para anistiar centenas de corruptos, não só pelo caixa 2, mas por todos os crimes conexos envolvendo as propinas relativas a desvios de empresas estatais. A conspiração atravessava os corredores do Planalto, da Câmara dos Deputados e do Senado e tinha em Temer um dos principais interessados por ser beneficiário direto. Inviabilizado o indulto pela forte reação da opinião pública, a quadrilha não teve pudor em anunciar, neste domingo, um "pacto" para impedir a anistia natalina daqueles que corromperam as eleições regando suas campanhas com dinheiro sujo. Fraudaram a democracia e a república e enganaram o povo.

Este governo precisa acabar

governo Temer é o mais degradado e degradante da história da República. Fruto de uma conspiração e de manifestações manipuladas para combater a corrupção, as suas principais figuras têm a face escrachada da própria corrupção. Sim, porque se há um partido que é o campeão da corrupção da Petrobrás, este é o PMDB. A imprensa e os analistas estrangeiros, com espanto, não conseguem compreender como, em nome do combate à corrupção, se entregou o poder a um condomínio de partidos articulados em torno de interesses corrompidos. Dizer que não haviam alternativas é falso, pois se existissem propósitos honestos em todos aqueles que orquestraram o golpe, teriam proposto uma saída negociada ou que implicasse eleições diretas, garantindo a soberania do povo na escolha de um governo de transição.
Esse governo corrupto e ilegítimo se bate para sacrificar direitos e degradar políticas sociais em nome de um falso ajuste fiscal. Sua caminhada foi feita sobre um turbilhão de mentiras: prometeu a retomada imediata do crescimento econômico, a criação de empregos e a volta dos investimentos. A economia, o emprego e os investimentos se deprimem todos os dias penalizando os mais pobres.
Ao assumir a presidência, Temer, cercado de corruptos, prometeu combater a corrupção e de não interferir na Lava Jato. Como presidente, abrigou os corruptos em seu ministério, deixou que a corrupção entrasse em seu gabinete através de Geddel Vieira Lima e deu vazão às conspirações para enfraquecer a Lava Jato e outros órgãos de controle. A Lava Jato, que em boa medida coadunou o golpe, agora tem no condomínio governamental, incluindo o PSDB, o seu maior inimigo.
Seguindo-se à posse, esse governo salvacionista, mostrou-se interessado em salvar interesses de grupos, em vilipendiar as empresas e as riquezas nacionais, em praticar a propina, o compadrio, o clientelismo e os abusos através de seus braços legislativos. No Senado, autorizou-se parentes de políticos a repatriarem dinheiro mal-cheiroso, com uma vergonhosa omissão da oposição. O presidente da Câmara é um serviçal do Planalto. Enfim, esse governo não serve ao Estado e ao interesse público, mas se serve do Estado e do bem público.
Esse governo precisa acabar. Que moral tem ele para pedir sacrifícios aos brasileiros? Como pode um governo ilegítimo conspirar contra o sentido manifesto da Constituição de 1988feita por uma Constituinte, que é o de assegurar direitos? Como pode o Supremo Tribunal Federal ser, vergonhosamente, cúmplice desses atos e conivente com o governo que desmoraliza o Brasil? Como pode a lerdeza do STF deixar que criminosos ocupem altos cargos da República, usando-os para agredir direitos conquistados por décadas de luta? A mesma leniência do STF que foi vista diante de toda sorte de abusos de Eduardo Cunha agora é observada em relação a Temer, a ministros denunciados na Lava Jato, ao presidente do Senado e a vários senadores e deputados. O STF, de tabernáculo da Constituição que deveria ser, transformou-se no matadouro da decência e da moralidade pública.
Já que os poderes da República não funcionam, acumpliciados que estão, a opinião pública e as mobilizações de rua precisam estabelecer um fim a este governo. Se os partidos, sem legitimidade, não são capazes de garantir uma transição até 2018, que seja honesta e que não agrida direitos e a Constituição, que esta transição seja construída pela Sociedade Civil. O Brasil não pode ser deixado a mercê de um governo ruinoso. Está mais do que provado que a capacidade de degradar o país e seu povo não tem limites. O único projeto que as elites políticas e econômicas desse país têm é o projeto do seu próprio bolso, dos seus próprios interesses. Para essas elites não importam as dores, as tragédias, os massacres de todos os tipos de violência perpetrados contra os mais fracos. O mais trágico de tudo isso é que boa parte da sociedade valide essas perversidades contra seus próprios interesses.

Sunday, November 27, 2016

Black Friday expõe a lógica do Papai Noel e o minimalismo do consumo

Black Friday expõe a lógica do Papai Noel e o minimalismo do consumo


Ao lado do Halloween, o Black Friday é mais um desses mega eventos importados que, repentinamente, se transformaram em pauta da agenda midiática nacional. Imagens na TV de corredores de lojas congestionadas com gente se acotovelando e consumidores denunciando descontos maquiados. Mas estamos importando mais do que um evento de promoções e descontos: no interior do conceito de Black Friday importamos também o DNA da cultura norte-americana: a mentalidade “minimalista” de um delírio de vitória no vazio e a “lógica do Papai Noel” do consumo onde a estratégia supostamente racional custo/benefício das promoções serve de álibi para o consumidor conviver mais facilmente com a sua má consciência. O que significa para nós importarmos esse DNA desesperançado da cultura norte-americana?

Talvez o grande mérito de Freud e da Psicanálise não tenha sido a descoberta do inconsciente – inacreditavelmente ainda sem credibilidade científica para muitos setores da psicologia por supostamente não ter comprovação “empírica”, ao contrário das noções de comportamento e  cognição. Talvez o principal mérito do psiquiatra vienense tenha sido a descoberta de que o homem não é um ser racional, mas acima de tudo racionalizante. Isto é, o que verdadeiramente nos distinguiria dos animais não seria tanto a razão, mas a capacidade de encontrar álibis e justificativas (racionalizações) para cada ato impulsivo ou irracional que nos pegamos cometendo.

Ao lado do Halloween, o Black Friday é mais uma dessas efemérides importadas e pautadas de um momento para o outro na agenda midiática anual. Termo criado pelo varejo nos EUA para o dia das grandes ações de vendas com descontos e promoções após o feriado de Ação de Graças, vem desde 2010 sendo adotado pelas grandes lojas tanto on line como físicas no Brasil. E todo ano, sob as denúncias de consumidores, o Procon notifica grandes empresas que teriam maquiado os descontos: pouco antes teriam aumentado os preços em dobro para depois cobrar a metade.


A gritaria dos consumidores “conscientes” parece menos querer desmascarar as artimanhas do comércio e muito mais salvaguardar alguma racionalidade ou sentido em tudo isso: buscam na suposta luta pelos direitos do consumidor, encobrir que o Black Friday é, na verdade, mais uma racionalização com o apoio midiático e publicitário para que os consumidores possam exercer seus impulsos e compulsão sem culpa. Em outras palavras, o evento Black Friday (verossímil por trazer a marca da mídia e dos EUA) libertaria as pessoas da má consciência de saberem que estão em um evento que apenas simula ter algum sentido ou racionalidade.

Freud certamente veria em tudo isso um ato falho: querem que as empresas sejam honestas assim como os consumidores tentam ser honestos consigo mesmos, através do álibi da racionalização que tenta fugir da culpa do desejo impulsivo. A chave para a compreensão desse paradoxo do Black Friday talvez seja um conceito básico para a compreensão de como funciona o discurso publicitário e a lógica da sociedade de consumo: a “lógica do Papai Noel”.

A Lógica do Papai Noel


Em um telejornal vemos imagens de multidões se esbarrando nos apertados corredores de uma grande loja de eletrodomésticos no Black Friday. Uma senhora aposentada é sincera com uma repórter, vira para a câmera e dispara: “vim aqui para comprar outra coisa, mas acabei vendo uma TV de 50 polegadas em promoção e acabei comprando!”. Nem dezenas de sessões de psicanálise fariam alguém aflorar tal sinceridade: o ato impulsivo e irracional (de fato, ela precisava da TV?) foi racionalizado por uma palavra mágica: “promoção”. A aparência racional da lógica do custo/benefício contida na palavra /promoção/ serve como um placebo psíquico que nos liberta da má consciência da culpa.

Nos tempos da sua fase semiológica, em 1973 o pensador francês Jean Baudrillard, em seu livro O Sistema dos Objetos, criou um dos conceitos talvez menos compreendidos da sua obra: a “Lógica do Papai Noel”. Ele via na Publicidade muito mais uma lógica da fábula e da adesão, semelhante o que as crianças fazem com seus mitos sem se interrogar sobre a existência deles.

Assim como o Papai Noel, onde crianças e adultos não creem nele e nem na sua relação de causa e efeito com os presentes. 
“A crença no Papai Noel é uma fábula racionalizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais (mais precisamente pela mãe) que caracteriza a relação da primeira infância. (...) se fundamenta no interesse recíproco que as duas partes têm em preservar a relação. O Papai Noel em tudo isso não tem importância e a criança só acredita nele porque no fundo não tem importância.” (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos,São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 176).
Para Baudrillard a operação publicitária seria da mesma ordem: nem slogans, textos publicitários ou informações são decisivos para a compra. As pessoas não acreditam em Publicidade mais do que acreditam em Papai Noel. Então para que serve a Publicidade? Para racionalizar o desejo da compra.

Aqui Baudrillard aproxima-se da noção freudiana da racionalização como um álibi perfeito. O ser humano não é um ser propriamente racional, mas racionalizante: a maior parte do tempo agindo por impulso ou compulsão, sem ser “racional” no sentido de pensar antes de agir. Por isso o indivíduo necessita de um álibi para justificar diante dos outros e de si mesmo a razão dos seus atos. Tal como o criminoso que sabe que cometeu o crime, ele necessita de um álibi. Assim como o criminoso que não acredita no álibi porque sabe que cometeu o crime, da mesma forma o consumidor acha bastante útil o álibi: para fazê-lo esquecer do crime.

Slogans e toda a retórica publicitária nada mais seria do que o Papai Noel oferecido para o consumidor criar uma “desculpa” para si mesmo e aos outros sobre o porquê da aquisição. Um motivo nobre, aqui, uma promoção ali ou uma “relação custo benefício” acolá. Ou um evento midiático como o Black Friday, o Papai Noel dos adultos.

“I Did it!”


O minimalismo da Maratona de Nova York:
milhares de anônimos e solitários
sem espíritode vitória
Mas o Black Friday ainda possui outra dimensão para além do psiquismo, culpas e consumismo. Tem um elemento pós-moderno que pertence propriamente ao DNA cultural norte-americano que importamos em eventos como este: o “sobrevivencialismo” ou “minimalismo”, conceitos criados pelo sociólogo norte-americano Christopher Lasch.

O imaginário do “minimalismo” seria uma espécie de resignação ou sentimento de derrota na cultura após as falhas nas tentativas de transformação do mundo, principalmente após as ondas libertárias dos anos 60 e 70. (veja o livro LASCH, Christopher, "O Mínimo Eu", São Paulo: Brasiliense, 1987). Por “minimalismo” Lasch queria se referir ao momento em que o desejável é substituído pelo possível. Após desistirem das transformações por meio das lutas do campo da Política, resignados, as pessoas passariam a se entregar a pequenas práticas solitárias e socialmente vazias de significado. Demonstrações públicas de autoprivações, de superações de barreiras corporais, psíquicas ou imaginárias, de autocontrole frente a situações limites, superação do medo diante da morte, a frieza diante da dor etc. Tudo amplificado pelas “histórias de superação” relatada de forma sensacionalista pelas mídias.

A filosofia mimimalista criaria um prazer masoquista do indivíduo fazer parte de mega eventos gregários para desempenhar publicamente performances fetichistas, para viver um delírio da vitória no vazio, para apenas dizer “I did it!”, “Eu consegui!” ou a variação atual: “Eu estive lá!”. Os primeiros colocados que ficaram dias na fila do mega lançamento da nova versão de um Ipad; os milhares de corredores solitários e anônimos sem espírito de vitória da maratona de Nova York; os milhares de jovens que ficaram dias circulando em dezenas de palcos em um mega festival musical sem prestar atenção em nada. 

Performances limite da resistência física, privações e paciência, sem nenhum resultado, conquista ou aquisição reais. Apenas para dizer “Eu consegui!”, “Eu estive lá!”... ou “Black Friday, eu sobrevivi!”: sobreviveu a multidões se acotovelando, congestionamentos, filas imensas de pessoas na aprovação do crédito, grandes caixas carregadas sob o sol a pino...

E o que significa para nós importarmos esse DNA desesperançado da cultura norte-americana? Certamente a inoculação do veneno do vazio e do niilismo inerente à sociedade de consumo: o abandono da ação pública e coletiva substituída pela impulsividade das demonstrações solitárias e vazias de estoicismo ou pelos protestos de consumidores supostamente conscientes de seus direitos, reclamando da má consciência dos comerciantes que, na verdade, reflete a dos próprios consumidores.
Fonte: https://cinegnose.blogspot.com.br/2013/11/black-friday-expoe-logica-do-papai-noel.html

Por que Wall Street investe na deficitária indústria de Hollywood?

Por que Wall Street investe na deficitária indústria de Hollywood?



Franquias hollywoodianas como “Jurassic World”, “Star Wars” e “Velozes e Furiosos” são celebradas pela grande mídia como responsáveis por supostos recordes históricos na indústria do cinema dos EUA. Porém, essa é a superfície de uma auto-imagem que Hollywood faz questão de criar, girando em torno do glamour do Red Carpet e mansões de atores-celebridades nas colinas de Beverly Hills. Porém, a realidade é outra: apenas 5% dos filmes a cada ano são rentáveis. O restantes fica entre pesadas perdas e a falência. Mas desde os anos 1980 cresce o investimento dos fundos de Wall Street nos grandes estúdios e independentes, apesar do negócio ser incerto e com lucros decrescentes diante de filmes com orçamentos e retorno imprevisíveis. Por que os ricos fundos de investimento de Wall Street continuam a financiar produções do cinema, quando poderiam investir em negócios mais seguros? É a pergunta que faz o artigo “The Hollywood Economics” de Sophie Leech, do site “The Market Mogul”. Afinal, qual é o tipo de lucro procurado por Wall Street? Financeiro ou ideológico e político?

Hollywood criou em torno de si, principalmente na sua fase de ouro no pós-guerra, a aura de um negócio que supostamente seria uma verdadeira mina de ouro: superproduções, recordes sucessivos de bilheterias, atores milionários morando em mansões nas colinas de Beverly Hills, o glamour do “Red Carpet” nas premiações do Oscar com atores, diretores e técnicos vestindo caríssimas grifes, merchandising e “product placement” em filmes recheados de caríssimos efeitos especiais etc.

Mas tudo isso parece ser apenas a imagem mercadológica do negócio. Observando os números frios e pouco divulgados sobre a indústria do cinema dos EUA, podemos ficar surpresos. Apenas 5% dos filmes produzidos a cada ano são rentáveis. Entre 15 a 20% quebrará e 65 a 75% terão pesadas perdas financeiras.

O público nos cinema tem diminuído desde 1948, principalmente agora com o crescimento da oferta de streaming como o Netflix, Amazon e Time Warner – destaca-se ainda o recente crescimento dos negócios de aquisições com a compra da AT&T pela Time Warner.

Os números da economia hollywoodiana transformam o negócio do cinema nos EUA como uma das indústrias menos bem sucedidas do mundo. No entanto, muitas grandes e pequenas empresas continuam investindo nesse ambiente de negócios implacável.


Por que os ricos fundos de investimento de Wall Street continuam a financiar produções do cinema de Los Angeles, quando poderiam investir em negócios mais seguros como, por exemplo, startups do Vale do Silício? Por que continuam a comprar direitos de um pedaço de propriedade intelectual de um roteiro, pagam um salário exorbitante para um ator-celebridade e, em troca, recebem uma quantidade de lucros cada vez mais decrescente?

Wall Street investe contra si mesma?


Essas são questões levantadas por Sophie Leech no artigo “The Hollywood Economics – Is Tinsel Town Losing Its Sparkle?” no The Market Mogul, site dedicado a análises de economia global – clique aqui.

Leech mostra como Hollywood  evita apresentar detalhes sobre os termos dos negócios de distribuição, financiamento e subsídios. Qualquer tentativa em buscar a fundo essas informações, é barrada pela resistência e pouca transparência nos negócios dos maiores players do mercado desde a década de 1950: Columbia, Disney, Paramount, Warner Brothers e 20th Century Fox.

E para tornar ainda mais aparentemente irracional esse interesse de Wall Street por Hollywood, desde a crise financeira global de 2008 a série de filmes sobre o episódio produzido desde então (Margin Call, A Grande Aposta, O Lobo de Wall Streetetc.), filmes críticos que denunciam a ambição, fraudes e mentiras dos mercados financeiros, são eles próprios financiados por fundos hedge de Nova York. 

"Margin Call", "A Grande Aposta" e "O Lobo de Wall Street": Wall street faz autocrítica?

Participação que só aumenta desde 1980, inclusive nas produções de estúdios independentes  como a Catch 22 Entertainment, Lionsgate e a própria Regency Enterprises, produtora do Oscar de Melhor Filme A Grande Aposta (2015) – sobre isso clique aqui.

Wall Street investe em filmes que revelam seus próprios podres à opinião pública? E o que é pior, com lucros decrescentes?

Hollywood: um negócio deficitário


Antes de um novo produto ser lançado ao mercado, as empresas realizam pesquisa de mercado para estabelecer a probabilidade de um novo modelo ter sucesso. Isso é impossível para Hollywood. Nenhum modelo analítico consegue prever os gostos dos espectadores, sempre em constante mudança. 

O orçamento médio de um filme de grande estúdio chega a 40 milhões de dólares, enquanto nos independentes é de 25 milhões em média. Mas essa imprevisibilidade do negócio pode elevar o orçamento total para 100 milhões de dólares. 

Com o número decrescente de espectadores nos cinemas, as vendas externas são uma fonte crítica de receita, principalmente para filmes independentes. Porém, dependem de grandes nomes muito bem remunerados como Jennifer Lopez e Tom Cruise, atores-celebridade com forte penetração na França e na China.

Porém, sofre a crescente concorrência de Bollywood (a indústria do cinema da Índia) e Nollywood (a Hollywood nigeriana) que não dependem de vendas externas. Ao contrário dos EUA, seu forte é o mercado interno explorando a cultura cotidiana local. 


Enquanto os EUA produziram 476 filmes em 2012, Bollywood  lançou 1.602 filmes e Nollywood 1.844 filmes. Por isso, mídia inovadoras como Netflix procuram cada vez mais criar conteúdos locais em séries e filmes como, por exemplo, Narcos ou a produção de minissérie sobre a Operação Lava Jato no Brasil – clique aqui.

Enquanto isso, estratégias mercadológicas como o “product placement” (colocação de produtos em filmes) e o merchandising cobrem muito pouco os custos da produção. Por exemplo, a Heineken pagou US$ 45 milhões para apresentar sua cerveja ao invés do típico Martini de James Bond em Skyfall. Uma contribuição de apenas 4,5% em relação ao custo total.

Por que Wall Street investe em Hollywood?


Voltamos à questão inicial: por que, contrariando a racionalidade econômica, fundos de investimento de Wall Street investem cada vez mais em um negócio tão deficitário e arriscado como a indústria cinematográfica de Hollywood?

Sophie Leech sugere coisas como “realização de sonhos” de financiar diretores ou roteiristas famosos ou “envolver-se com o glamour de Hollywood”. Acredito que há algo mais do que o interesse conspícuo de algum yuppie das finanças investir em filmes assim como investiria em uma cara e dispendiosa coleção de vinhos numa adega climatizada. 

Principalmente porque os investimentos em Hollywood hoje são discretos e sem publicidade, ao contrário dos tempos dourados do passado no qual empresários investidores tentavam participações em pontas de filmes.


Por décadas Hollywood foi  vitrine dos EUA. Cria a imagem de um país pacífico e feliz onde o sonho americano é prazeroso, os soldados são heroicos e os maus, encarnados sob a forma de RAVs (Russos, Árabes e vilões em geral, de comunistas a marcianos) são sempre derrotados. A indústria do cinema é uma ferramenta ativa de “Soft Power” pelo Governo, além de instrumento para moldar a opinião pública pelos lobbies corporativos.

Essas conexões ficam evidentes, por exemplo, quando em 2013 o Oscar de Melhor Filme foi anunciado por Michelle Obama em link ao vivo direto da Casa Branca. Premiação do filme Argo cujo tema foi uma bem sucedida ação da inteligência dos EUA durante a crise diplomática dos reféns norte-americanos no Irã em 1979, em uma operação de resgate que envolvia a criação de uma falsa produção cinematográfica que supostamente seria rodado naquele país.

Engenharia de opinião pública


Mas talvez a melhor explicação dessa aparente irracionalidade econômica possa ser encontrada no filme Promised Land (2012), de Gus Van Sant: uma empresa especializada na prospecção de gás natural envia um negociador (Matt Damon) para persuadir os proprietários de terra em uma cidadezinha a assinar contratos de arrendamento dos direitos de perfuração para extração do gás. Mas surge um ativista ecológico que denuncia a empresa de envolvimento em desastres ambientais em todo o país.


Desculpe, cara leitor, pelo spoiler mas Matt Damon descobre no final que tanto ele como o ativista eram empregados da própria empresa. Tudo foi uma estratégia de engenharia de opinião pública para criar uma aparente liberdade de informação e debate para direcionar um projeto já decidido por antecipação. Apenas precisava de uma aparência “democrática” para a iniciativa. Ou seja, a própria empresa bancava as denúncias contra si mesma!

Parece ser esse o lucro não financeiro, mas ideológico para investir em um negócio tão deficitário e arriscado como Hollywood. Todo o glamour e aparência mercadológica dos recordes de bilheteria e os supostos lucros astronômicos dos estúdios escondem investimentos financeiramente a fundo perdido ou, no máximo, com retornos muito abaixo dos divulgados. 

Aparência necessária para encobrir a verdadeira função de Hollywood: moldar a opinião pública ao provar uma suposta democracia no qual filmes independentes e críticos ao sistema (e muitas vezes ideologicamente contrários aos próprios investidores) convivem confortavelmente com os blockbusters dos grandes estúdios.

Farra nas isenções, irresponsabilidade administrativa e corrupção: a receita da crise no Rio

Farra nas isenções, irresponsabilidade administrativa e corrupção: a receita da crise no Rio

Economistas analisam o quadro dramático do estado. "Cabral é o grande responsável"

Jornal do BrasilRebeca Letieri *
A dramática situação econômica do Rio de Janeiro revela um histórico catastróficos na administração do estado. A farra com dinheiro público foi feita, entre isenções, gastos da máquina pública, benefícios e privilégios políticos e, é claro, a cereja do bolo: a corrupção. Apesar de a Justiça e a Polícia Federal estarem agindo com investigações e prisões, economistas afirmam que a crise no estado está ainda longe de chegar ao fim. 
"Há muitos fatores que explicam a situação do Estado. É a crise do petróleo, vendido a um valor um terço menor do que valia anteriormente, uma queda de arrecadação brutal, com a desaceleração da economia, e a contratação maciça de pessoal no governo do estado, o que aumenta o déficit e faz disparar a folha de pagamento", disse o professor de economia da FGV Istvan Karoly Kasznar. 
"A culpa é do [ex-governador Sérgio] Cabral. Ele era o grande responsável pelas contas do estado, e permitiu o crescimento das despesas de forma irresponsável, comprometendo uma receita volátil, que é o caso dos royalties, porque dependem da cotação do barril de petróleo, com gastos correntes, que são fixos", acrescentou Mauro Rocha, que também é professor de economia na FGV. 
Sérgio Cabral está preso em Bangu 8
Sérgio Cabral está preso em Bangu 8
O governador Luiz Fernando Pezão mal retornou para o seu cargo após licença para tratamento de um câncer, e anunciou o pacote de medidas para frear a crise econômica. Se aprovada, a proposta põe fim a programas sociais como Vida Melhor, Aluguel Social e Restaurante Popular, além de promover cortes nos salários dos servidores.
"Acho que Pezão está com uma bomba na mão. E ele opta pelos gastos sociais, porque a dificuldade política dele emplacar algo assim é menor. Os poderosos sofrerão menos, como sempre", destacou Antonio Porto Gonçalves, também da FGV. 
Já Mauro Rocha destaca que para o pacote dar certo, é imprescindível que todos os segmentos sociais deem sua parcela de contribuição, e não apenas os mais pobres. "Vai ser inevitável que todos contribuam", afirma.
Mauro acrescenta ainda que as medidas propostas por Pezão foram "muito iguais, afetando desiguais". "Ou seja, ele não penalizou mais aqueles que têm maior capacidade contributiva. Ele não propôs um corte drástico em benefícios e privilégios", completou Mauro Rocha.
Antonio Porto Gonçalves complementa: "A população entende que esses políticos meteram a mão no dinheiro do estado de modo selvagem. A corrupção acaba aumentando os gastos, mas o problema mesmo foi a má administração. Pezão pode arrumar um dinheiro do governo federal para tapar um buraco, mas não vai resolver o problema da arrecadação. O estado não pode viver gastando mais que arrecada."
Diante do quadro de grave crise financeira e de dificuldade de implementar medidas que possam mostrar no horizonte um cenário mais alentador, economistas acreditam que os sinais de recuperação vão demorar a aparecer. 
"A recuperação do estado vai ser muito lenta, porque a recuperação do país vai ser lenta, e um não vai conseguir sem o outro. Agora, o Rio poderia promover um ajuste que, aliás, é necessário, nas contas do estado, independentemente da economia do país. Poderia começar a se rever as isenções fiscais, do lado da receita, e do lado das despesas, selecionar aquelas que não são essenciais, cortar benefícios e privilégios, que deve ser de primeira hora", destacou Mauro. 
Para o professor da FGV Istvan Karoly, o governo do Rio segue uma linha de representação política pouco, ou nada transparente, que aproveita os anos de mandato para se beneficiar
"O que mais chama a atenção é a incapacidade de escolhermos lideranças éticas, sérias e credíveis em longos períodos. O que caracterizou o Cabral foi o isolamento do poder, a ausência de interlocução com as representações de massa da sociedade, uma vez eleito. O que precisa ser visualizada é essa escolha entre opções limitadas e que levam a infelizes governadorias, que de uma forma ou de outra quebram o estado – porque não é a primeira vez", completou.
* do projeto de estágio do JB

Revista diz que "santo" que aparece em lista de propina da Odebrecht é Alckmin

País

Revista diz que "santo" que aparece em lista de propina da Odebrecht é Alckmin

Jornal do Brasil
Segundo a revista Veja, o personagem que aparece em planilhas da Odebrecht que listam pagamento de propina, tratado pelo codinome “santo”, é o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP). A publicação da revista que circula neste sábado (26) diz ter confirmado essa informação com três fontes que participam do acordo de delação da empreiteira. 
Em março deste ano, a Folha de S. Paulo revelou que o apelido aparecia associado a uma obra de duplicação da rodovia Mogi-Dutra, do governo Alckmin de 2002.
Anotações que apareciam em papéis apreendidos com o executivo da empreiteira Benedito Barbosa da Silva Jr. diziam: "valor da obra = 68.730.000 (95% do preço DER)". Logo a seguir aparecia: "custos c/ santo = 3.436.500". 
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin
Segundo a Folha, neste sábado, “Santo” também é citado em um email de 2004, enviado pelo executivo, Marcio Pelegrino, da Odebrecht que gerenciou a linha 4 – Amarela do Metrô. Na mensagem, ele diz que era preciso fazer um repasse de R$ 500 mil para a chamada "com vistas a nossos interesses locais", e acrescenta que o beneficiário do suposto suborno era o "santo".
Ainda segundo a revista, nenhum dos delatores da Odebrecht contou ter discutido repasse de propina diretamente com Alckmin. A assessoria do governador afirmou à Veja que todas as contribuições recebidas por ele foram declaradas à Justiça. A nota diz que Alckmin nunca participou de negociações ilícitas e é um defensor das delações premiadas. 

O Comum: um ensaio sobre a revolução no século 21

O Comum: um ensaio sobre a revolução no século 21

Por Pierre Dardot Christian Laval | Trad. Renan Porto
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Nosso ponto de partida é que o comum é um princípio de atividade política constituído pela atividade específica da deliberação, julgamento, decisão e a aplicação de decisões. Contudo, essa, que é a mais completa definição que nós apresentamos no início do nosso livro¹, não pretende ser universal, trans-histórica e independente das condições temporais e geográficas. Em termos etimológicos (cum-munus, literalmente ‘co-obrigação’ e ‘co-atividade’), a intenção não é certamente sugerir que hoje o comum sempre carregue o mesmo significado. Em Aristóteles, o comum (koinōn) é o que resulta da atividade de agregação, que é o que constitui a cidadania, uma atividade que implica a rotação de deveres ou a alternância entre os que governam e os que são governados. Hoje, com um novo e singular tipo de energia, o movimento das praças (15M, Gezi, etc) tem enriquecido esse conceito com novas demandas.
 O comum como um princípio das lutas
 Essas demandas envolveram um questionamento radical da democracia ‘representativa’, que autoriza um número limitado de pessoas a agir e falar em nome da grande maioria. Ao mesmo tempo, esses movimentos têm desenvolvido demandas em torno da preservação dos ‘comuns’ (commons) (especialmente espaços urbanos). O comum nos parece ser o princípio que literalmente emergiu de todos esses movimentos. Portanto, não é algo que nós inventamos; isto surgiu das lutas correntes como seu princípio interno. O termo adquiriu assim um significado completamente novo, aquele da ‘democracia real’, para o qual a única obrigação política legítima não decorre da adesão a uma determinada comunidade, por mais amplo que isso possa ser, mas da participação nessa mesma atividade ou nas tarefas que a constituem. Não deve haver equívoco sobre a nossa proposta: embora o capítulo preliminar do nosso livro ofereça uma ‘arqueologia do comum’, nós não tivemos intenção de interpretar toda a história humana através dessa arqueologia, no estilo das ‘grandes narrativas’ que caracterizam a nossa modernidade. Nosso objetivo foi muito diferente; foi mostrar que desde o início o comum assumiu um significado que não poderia ser reduzido a ‘estatal’, até ser sequestrado e adulterado tanto pelo Estado quanto pela teologia. Mas isso não significa que a sua ‘redescoberta’ hoje seja um retorno a suas origens grega e romana. Trata-se de outra coisa: definir uma alternativa política positiva à razão neoliberal orientada pela competitividade.
Tal alternativa nos permitiu sair da dualidade entre propriedade pública/estatal versus propriedade privada. Por muito tempo, a esquerda tem vivido sob a ideia de uma oposição entre o Estado e o mercado que fez do Estado a melhor defesa contra a ofensiva das forças do mercado. Essa oposição, junto com a estratégia que cria, é totalmente uma coisa do passado. Há trinta anos, o Estado tem sofrido uma profunda transformação, que fez dele um verdadeiro protagonista neoliberal. Está, ele próprio, sujeito à lógica empresarial, e, enquanto Estado-empreendedor, ou “Estado corporativo/empresarial”, age como um parceiro das grandes multinacionais na coprodução de novas formas internacionais. A famosa fórmula de Marx de que o governo não é mais do que um comitê executivo para gerir os negócios da burguesia está largamente ultrapassada agora, não porque seja uma definição ultrajante; ao contrário, porque fica aquém da realidade de hoje, em meio à crescente hibridização entre Estado e mercado. O paradigma estatista precisa ser impiedosamente desconstruído se quisermos trabalhar na reconstrução da esquerda. O Estado é inclusive menos do que um instrumento que poderia ser usado por ‘projetos políticos’, como se fosse o caso de direcioná-lo para outros fins. Pelo contrário, o Estado é impõe a sua própria lógica sobre aqueles que nutrem a ilusão de sua transformação possível, quando se está imerso num ambiente de luta contra o capitalismo neoliberal.
Aqui vemos tudo que separa o comum, entendido nesse sentido, do Estado e do Público. O Estado/Público repousa sobre dois requisitos completamente contraditórios: por um lado, garantir o acesso universal aos serviços públicos; por outro, dar à administração estatal o monopólio da gestão desses serviços e reduzir seus usuários a consumidores, enquanto são excluídos de qualquer forma de participação na gestão. É justamente essa divisão entre ‘funcionários’ e ‘usuários’ que o comum tem de abolir. Em outras palavras, o comum pode ser definido como o público não-estatal, que garanta o acesso universal através da participação direta dos usuários na administração dos serviços. Uma de nossas ‘propostas políticas’, na terceira parte do livro, é a transformação dos serviços públicos em instituições do comum. Isso significa que esses serviços não pertencem ao estado no sentido de o Estado ser proprietário ou mesmo o único gestor. Para realizar esse tipo de transformação, é necessário quebrar com o monopólio da administração estatal de modo a garantir verdadeiro acesso universal a esses serviços. Portanto, os usuários não devem ser considerados como ‘consumidores’, mas como cidadãos participando lado a lado dos funcionários nas deliberações e decisões concernentes a eles próprios.
O comum e os comuns
Como podemos ver, nós estamos entendendo o comum no sentido de um princípio político e não no sentido de um atributo naturalmente intrínseco a certos tipos de ‘bens’. Entender a expressão ‘bens comuns’ num sentido literal leva, primeiro, a estabelecer uma classificação de bens (bens privados, bens públicos, bens comuns) de acordo os critérios relacionados à sua natureza inerente. Essa abordagem, que pode apenas acabar reificando o comum, foi sistematizada por uma específica política econômica, antes de ser retomada por juristas. No entanto, nesse propósito, se precisaram introduzir critérios externos à mera natureza das coisas, a fim de distinguir bens comuns de bens públicos. Por exemplo, a Comissão de Rodotà definiu bens comuns de acordo com a sua relação com direitos fundamentais e o desenvolvimento humano. Porém, começar com a classificação de bens conduz igualmente a um desmembramento do comum, que vai distinguir os bens comuns entre naturais, do conhecimento, genéticos ou biológicos etc. O comum (como um princípio) é então confundido com aquilo que é comum (como um atributo ou característica de certas coisas).
Nossa abordagem, similarmente, rejeita as teses de uma ‘produção espontânea do comum’ que é ao mesmo tempo a condição e resultado do processo de produção (análogo à dinâmica expansiva das forças de produção encontrada numa certa vertente do marxismo). Idealizando a autonomia do trabalho imaterial na era do ‘capitalismo cognitivo’, essas teses não reconhecem os atuais mecanismos operativos de subordinação do trabalho ao capital. Além disso, e isso é sem dúvida o seu maior defeito, não reconhece a diferença irredutível entre produção e instituição: a produção deve ser espontânea, enquanto a instituição é necessariamente uma atividade consciente.
É por isso que nos esforçamos para distinguir entre o comum como um princípio político – que não deve ser instituído, mas aplicado, – e os comuns que sempre são instituídos dentro e através dessa aplicação. O ponto essencial é que os comuns não são ‘produzidos’ ou ‘instituídos’. É por isso que somos muito relutantes em aceitar a noção de ‘bens comuns’. Parece-nos que o raciocínio deveria ser o inverso: todo comum que é instituído é um bem, mas nenhum bem é por si comum. É preciso cuidar para não confundirmos um bem no sentido ético e político (agathon) e um bem no sentido de uma aquisição que pode ser trocada e vendida (ktesis). Todo comum é um bem no sentido ético e político, mas apenas na medida em que não é uma aquisição. Uma vez instituído, um comum não é alienável; a partir de então ele se instala na esfera de coisas que não podem ser apropriadas. Isto significa que ele escapa da lógica proprietária em qualquer de suas formas (privada ou estatal).
Nós sustentamos que um comum é instituído através de uma práxis específica que chamamos ‘práxis instituinte’, que não se refere a um método geral para instituir um tipo de comum. Precisamos estar atentos aqui para a noção controversa de ‘instituição’. Uma tradição sociológica inteira tentou reduzir a instituição ao que é instituído sem realmente levar em conta a dimensão da atividade instituinte. Além disso, uma crítica política muito difundida na esquerda nos anos 1960 e 1970 identificou a instituição com um aparato de poder que coage os indivíduos que ‘entravam’ a pertencer-lhe. Essa crítica não problematizou a dimensão originária do que institui, que parece tão fundamental para nós. Na verdade, instituir nem é institucionalizar no sentido de tornar oficial, consagrar ou reconhecer após o fato que existiu bem antes (por exemplo, no nível de um hábito ou costume) nem criar do nada. É precisamente recriar com, ou com base em, o que já existe, portanto dadas as condições independentemente de nossa atividade. Nesse sentido, não há modelo de uma instituição nem pode haver capaz de servir como um padrão para uma práxis instituinte. Cada práxis tem de ser entendida e executada in situ ou in loco. Por isso, pode-se, e até deve-se falar de ‘práxis instituintes’; no plural. Para reestabelecer um serviço terminado previamente num hospital psiquiátrico após uma discussão com os cuidadores e pacientes, se cai na categoria de uma práxis instituinte, mesmo que seja na de ‘micropolítica’ em Foucault. Mas instituir um banco de sementes para fazendeiros ou designar um sítio cultural para uso comum enquadra-se na mesma categoria. Essas são práticas que preparam e constroem a revolução como uma ‘auto-instituição da sociedade’.
O direito do comum como um novo tipo de direito de uso
Nós podemos tirar conclusões nos tempos do Direito. De fato, nós pensamos que a instituição dos comuns envolve um conflito opondo o direito do comum ao antigo direito de propriedade e que esse conflito entre dois direitos é o conflito fundamental de nosso dia. O direito do comum é um direito do que difere do antigo direito de uso coletivo fundado em costumes antigos. Quer consideremos o uso como um simples uso fora da lei (comer, beber, viver em uma casa etc), quer como um direito coletivo surgido do costume (o direito de colheita ou de usufruto), o uso é sempre entendido por ser a ação de usar uma coisa externa com o objetivo de satisfazer necessidades vitais; usar como ação implica certo tipo de relação com as coisas externas que frequentemente inclui consumo, que é a destruição das coisas em questão (abuso, em latim, quer dizer uma consumação completa). Mas, pode-se igualmente dizer em inglês ‘usar com’, com outra pessoa, com uma pessoa particular, etc. Nesse caso, se trata de agir ou conduzir-se de certo modo com os outros, na medida em que haja uma relação ativa com os outros que é significativa, longe de qualquer relação com coisas externas que teria como meta a destruição completa, isto é, a consumação. Nesse novo sentido, o uso toma o significado de supervisão, manutenção e preservação. Podemos então sublinhar a diferença entre o antigo e o novo direito de uso.
A primeira diferença apreciável com o velho direito envolve a natureza do objeto que é usado. No direito do comum, o uso não está relacionado a uma coisa material externa, mas ao que nós chamamos de comuns (no plural). Os comuns não são ‘coisas em comum’ (res communes). Certamente, coisas em comum não são nada (o adágio res nullius primo occupant² não se aplica a elas). Mas a limitação dessa categoria inerente ao direito romano é que corta as coisas da atividade. O conceito de comuns enfatiza as construções institucionais através das quais a conexão entre as coisas e a atividade do coletivo que se encarrega delas vem à tona. Assim, há comuns de diversos tipos a depender do tipo de atividade dos protagonistas que instituem eles e os mantenham vivos (rios comuns, florestas comuns, produções comuns, sementes comuns, conhecimentos comuns, etc). Um rio comum não é um rio; é a conexão entre esse rio e o coletivo que cuida dele. Consequentemente, inapropriável não é apenas o rio entendido como coisa física, mas também o rio na medida em que se realiza por certa atividade, e assim também a própria atividade em si. Nesse sentido, o conceito de ‘comuns’ quebra com a polaridade sujeito/objeto, a polaridade de um objeto oferecido por ser tomada em exclusividade pela primeira pessoa (como na relação entre o dominus e o res), uma polaridade que é tão recorrente em uma tradição jurídica e filosófica.
Nesse sentido, o uso cujo eixo é o direito do comum pressupõe como sua condição de possibilidade um ato consciente de instituição, exatamente o que nós chamamos de ‘práxis instituinte’. Por isso, não pode ser confundido com o direito consuetudinário, que reduz as práticas à perpetuação inconsciente e à transmissão de costumes. Os comuns estão acima de todos esses problemas de instituição e governo. Ao contrário da teoria da propriedade como um ‘pacote de direitos’ que faz do direito consuetudinário um direito dentre outros, dissociado do direito de administração e decisões, o uso dos comuns é inseparável do direito de decidir e governar. A práxis que institui os comuns é a prática que os mantém e lhes dá vida e assume total responsabilidade pela sua conflitualidade através da coprodução de normas. De fato, a lógica de agrupamento não deve ser confundida com a busca por unanimidade, harmonia e consenso como algo absoluto. Ao invés disso, ela procura superar os conflitos através da coprodução de normas e não através da abolição imaginária de conflitos que são necessariamente uma parte de toda vida coletiva. Esse ponto precisa ser enfatizado: conflito não é ruim por si; ele não é de modo algum a semente da guerra civil; pelo contrário, ele é seu antídoto desde que tenha uma expressão institucional.
Sob essas condições faz sentido falar do uso de um comum, isto é, falar sempre do uso de um comum particular? A noção de ‘uso administrativo’ emprestada de Paolo Napoli permite um entendimento melhor da diferença entre uso como uma ação de fazer uso de uma coisa externa e uso como a supervisão e preservação de um comum (deve ser lembrado que ministrare, do que é derivada a administração, significa antes de tudo ‘servir’ e não ‘aproveitar-se de’). Na verdade, não se usa um comum como se faz uma coisa, porque um comum não é uma coisa, mas uma relação de um coletivo com uma ou diversas coisas. O uso administrativo contrasta com a relação de um proprietário com sua coisa. A noção de ‘apropriação’ deve ser clarificada para evitar alguma confusão. Há pertencimento-apropriação quando alguém se apropria de uma coisa para si mesmo e exclui qualquer outra relação de pertencimento que envolva a mesma coisa, e destinação-apropriação, em que uma coisa é particular para certo objetivo. Aqui também há um risco de equívoco: o que está em questão não é a apropriação do comum para o que ele se destina, mas apropriar-se da conduta dos membros do coletivo. O objetivo é garantir, através de normas de uso coletivo, que o comportamento de apropriação predatória não desvie do objetivo de uma específica destinação social em comum. Em outras palavras, o objetivo é regular o uso do comum sem precisar fazer-se seu proprietário, isto é, sem conceder a si o poder de dispor dele como seu dono supremo.
A pluralidade dos comuns coloca a questão de sua coordenação através da construção de instituições em comum, daí a ideia de uma federação de comuns sócio-profissionais a depender do tipo de objeto pelo qual os diferentes comuns são responsáveis. Não há comuns que sejam puramente profissionais, apenas comuns sócio-profissionais que devem absorver neles mesmos sua própria relação com o resto da sociedade. O exemplo da Itália é unicamente instrutivo nesse ponto. Nápoles é um laboratório político do comum, não só por causa da sua experiência na gestão participativa da água, mas também por causa da importância assumida por várias ‘ocupações’ (dentre elas, a ocupação do Asilo Filangieri, que tem sido convertido em um espaço voltado a atividades culturais). Contudo, essas experiências podem ser vividas apenas se elas promovem a demanda de autogestão em todos os níveis, inclusive na coordenação dentre os comuns.
Revolução e a instituição de democracia política
Essa demanda por autogestão não é outra coisa senão a demanda por democracia política, que tem prevalecido em todas as esferas da vida social. Ela impede qualquer tecnocracia ou “expertocracia” (grifo nosso: governo dos especialistas) na medida em que tem de tornar a participação de todos como regra.
‘Democracia Real’ é uma questão de instituir. Esta é a essência do que nós gostaríamos de dizer. O que não devemos subestimar é a dificuldade de inventar novas instituições que funcionem explicitamente no sentido de impedir a apropriação por uma minoria, de proibir a deturpação de suas propostas e também de prevenir a ‘ossificação’ de suas normas. A experiência em andamento do Barcelona em Comú, na Catalunha, é exemplar. A vitória eleitoral não deve ser deixada de fora do que a precedeu e a tornou possível – muito trabalho nos bairros por quatro anos, especialmente na área de moradia, que tornou possível acumular as condições que permitiam o estabelecimento de uma lista eleitoral independente. Um movimento de massa, uma sequência de mobilizações, e confrontos múltiplos e contínuos transformados em formas políticas inventivas que convertera a democracia interna num princípio operativo, evitando qualquer tentativa, mesmo tentativas internas, de restabelecer uma hierarquia vertical com o pretexto da maior eficiência (uma tentação a que alguns líderes do Podemostêm se rendido). Através de todos esses experimentos, a questão prática tem sido colocada numa ligação entre a construção ‘aqui e agora’, começando com as condições existentes, de novas formas de relação e atividades, e a transformação geral da sociedade. Seu ponto em comum é a ruptura que eles têm introduzido com todo um sistema político oligárquico, completamente interligado com os interesses econômicos de um grupo social dominante. Contudo, o seu valor insubstituível é ter demonstrado que é impossível combater o ‘sistema’ sem ao mesmo tempo inventar, no nível prático, novas formas de sociedade e política.
É essa dimensão inventiva do movimento que consiste hoje no fenômeno mais surpreendente – a definição de uma sociedade desejável não está escrita em lugar algum, em nenhum programa, que não é a propriedade de um partido nem o monopólio de uma vanguarda. Nesse sentido é que esses movimentos podem ser considerados profundamente ‘autônomos’, isto é, no sentido etimológico do termo; através dos seus atos, eles demonstram a necessidade de reinstituir toda a sociedade de acordo com  a lógica do comum. É por isso que nós dizemos que esses movimentos são revolucionários, por repor ao termo ‘revolução’ o sentido mais preciso de ‘reinstituição da sociedade’. Em nossa opinião, isso não indica que uma manifestação violenta ou uma insurreição sejam equivalentes à revolução. Revolução envolve outra coisa. O sentido revolucionário dos movimentos contemporâneos não está baseado no modo de ação que eles adotam, eleitoralmente ou de outra forma, e nem mesmo na pura consciência do objetivo final buscado. Em vez disso, tem a ver com transformar a resistência persistente e corajosa de amplos setores da sociedade às políticas de austeridade em vontade e capacidade de transformar as próprias relações políticas, em ir da representação à participação. Isso é o que significa unir a demanda do comum ao seu maior ponto de expressão.



Tradução de Renan Porto, ensaísta, poeta e bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba, pesquisador associado à rede Universidade Nômade.
NOTAS
[1] – Pierre Dardot, Christian Laval, Commun, Essai sur la revolution au 21eme siecle, Paris: Éditions La Découverte, 2014.
[2] – ‘Coisas que não pertencem a ninguém vão à primeira pessoa que se ocupar delas’.

Militares, ciências, Educação Popular.

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