Wednesday, December 20, 2017

CIÊNCIA E SOCIEDADE DO ANTROPOCENO: TRANSIÇÃO A PARTIR DO HOLOCENO*

CIÊNCIA E SOCIEDADE DO ANTROPOCENO: TRANSIÇÃO A PARTIR DO HOLOCENO*

Por Jan Zalasiewicz
É fácil pensar que somos especiais e que o momento presente marca um ponto especial no tempo simplesmente por causa de nossa presença. Porém, na escala geológica do tempo, e supondo-se que “nós” significa a espécie humana, a realidade é que podemos estar no limiar de uma nova era – uma idade que os geólogos estão chamando de Antropoceno. Como geólogo, Jan Zalasiewicz, da Universidade de Leicester, explica que se trata de uma era criada por nós mesmos. Tradução de Amin Simaika.
OAntropoceno tornou-se parte de um discurso científico internacional em uma reunião do Programa Internacional de Geosfera-Biosfera (IGBP, do inglês International Geosphere-Biosphere Program) no México, em 2000. Paul Crutzen, químico atmosférico ganhador do prêmio Nobel, irritou-se quando seus colegas cientistas que estavam à mesa falavam das mudanças climáticas contemporâneas no Holoceno, época que marca o tempo desde que a Terra emergiu da última Idade do Gelo. Crutzen não conseguiu mais se conter. Explodiu e afirmou que não estamos mais vivendo no Holoceno, mas sim (e aqui ele fez uma pausa para buscar uma palavra apropriada) no Antropoceno.
Foi uma palavra que ele improvisou naquele momento, mas causou repercussão. Os cientistas presentes naquela reunião começaram a discutir o que poderia significar. O próprio Crutzen prosseguiu com a ideia e checou se mais alguém havia empregado o termo. Encontrou Eugene Stoermer, ecologista norte-americano estudioso de lagos e especialista em diatomáceas (um tipo de alga microscópica que fabrica um esqueleto com sílica). Em conversas, Eugene Stoermer tinha utilizado a mesma palavra durante alguns anos para refletir mudanças generalizadas em lagos, que deduziu terem acontecido durante as últimas décadas.
Crutzen convidou Stoermer para reunir-se a ele e escreverem um breve artigo científico. Stoermer aceitou e em 2000 o trabalho foi publicado no boletim do IGBP, onde atingiu vários milhares de cientistas envolvidos nesse programa.
Em seguida, em 2002, Crutzen reiterou o argumento em um artigo curto e vívido, de uma só página, no periódico Nature, alcançando assim uma audiência muito mais ampla de cientistas no mundo inteiro. Embora os dois nunca tivessem se encontrado, sua breve colaboração teria profundas consequências no que se refere à análise científica da história da Terra.
A premissa básica era que as mudanças causadas pelo homem aconteciam agora em tal escala a ponto de nos desviar das condições de referência do Holoceno, entrando em condições de referência diferentes de uma nova época geológica emergente. Essas mudanças causadas pelo homem e globalmente disseminadas incluem a transformação de grande parte da superfície da Terra em matéria-prima para os seres humanos, a reengenharia da maioria dos principais rios do mundo e o enorme aumento no uso de energia, principalmente a queima de hidrocarbonetos e as consequentes alterações na atmosfera e no clima.
A ideia e o termo se propagaram rapidamente entre a comunidade que trabalha em mudança global contemporânea. A ciência do sistema terrestre, que considera a Terra inteira como um sistema complexo e integrado, era a disciplina central. Participavam químicos atmosféricos como o próprio Crutzen, ecologistas como Stoermer, oceanógrafos, glaciologistas e outros cientistas. O termo começou a ser amplamente usado e publicado. Também começou a se divulgar mais amplamente entre as comunidades das ciências sociais, artes e humanidades, já que a ideia parecia reconfigurar fundamentalmente a conexão entre os seres humanos e a natureza.
Despertando o interesse dos geólogosA resposta da comunidade geológica foi muito mais lenta, o que, de muitas formas, não surpreende. Os geólogos passam suas vidas profissionais mergulhados no passado profundo de milhões, até bilhões de anos, em que as escalas de tempo humanas parecem infinitamente pequenas. Nessas escalas de tempo geológicas, a Terra mudou acentuadamente: na realidade, a Terra não tem sido tanto um planeta, mas sim uma sucessão de diferentes planetas, cada um com seu próprio tipo de atmosfera, clima, geografia e conjunto de organismos vivos. Durante os dois séculos desde que a geologia surgiu como disciplina, ocasionalmente surgiram ideias alegando que os seres humanos tinham afetado a geologia da Terra, mas todas as vezes tais ideias foram recebidas com rejeição e até algum grau de zombaria. Como algo aparentemente breve e efêmero como a cultura humana poderia ser colocado no mesmo plano que, por exemplo, a abertura e destruição de oceanos ou o surgimento e erosão de cordilheiras gigantes?
Havia outro problema: os termos referentes a tempo geológico tais como Jurássico ou Pleistoceno ou Holoceno não perdem nem ganham validade simplesmente pelo nível de seu uso ou falta de uso, diferentemente do que ocorre com as palavras costumeiras de nossa linguagem. Em vez disso, os termos geológicos são construções intensivamente formais. São palavras avaliadas e decididas, geralmente ao longo de décadas de estudo e debate, por não menos que quatro níveis de hierarquia burocrática científica, dentro do ramo da geologia chamado de estratigrafia.
Nessa disciplina, a estratigrafia, a história da Terra pode ser revelada por rochas acessíveis ainda hoje. O que, em uma determinada rocha, pertence a uma parte do passado geológico e o que pertence a uma outra era? Um pedaço de rocha na Terra pode ter sofrido muitos ou poucos eventos geológicos, cada um deles de um estágio diferente da história da Terra, deixando marcas de variados graus de diferenciação na fisicalidade [ou materialidade] da rocha. Em outras palavras, a estratigrafia no campo é um pouco como arqueologia, com a diferença que explora eventos ao longo de uma escala de tempo infinitamente maior e sem foco próximo nas questões de uma única espécie de humanóides.
Tempo profundoO tempo geológico possui estrutura específica e exclusiva. O período Jurássico, abrangendo muitos milhões de anos, tem um sistema jurássico paralelo, composto dos estratos, minerais e fósseis que representam esse período inimaginavelmente longo. Esse tipo de tempo, uma substância física, composto de rochas, é chamado de cronoestratigrafia.
Dessa forma, em geologia, há uma conceitualização dupla de tempo e um procedimento fixo para combinar a fisicalidade dentro de unidades formais de tempo. O Antropoceno surgiu fora desse tipo de compreensão, tanto filosófica como burocrática. Uma vez que seu uso se generalizou em círculos científicos de mudança global, surgiu uma questão central: era um absurdo, geologicamente? Ou poderia possuir significado em termos geológicos – talvez a ponto de um dia ser formalmente acrescentado à Escala de Tempo Geológico? Seria um passo muito grande para os geólogos, para quem a Escala de Tempo Geológico é a estrutura central definidora da ciência, uma estrutura que mantém a união do restante dela? Seria um passo muito grande no que se refere ao significado inerente do Antropoceno, conferindo a ele significância em uma escala de muitos milhões de anos – o que é quase inconcebivelmente maior do que qualquer escala humana, social ou política?
Primeiro passo para uma nova eraO primeiro exame geológico do termo ocorreu oito anos depois do arroubo de improvisação de Paul Crutzen e vários anos depois que a palavra tinha começado a ser empregada na literatura científica. Uma comissão de estratígrafos especialistas da Sociedade Geológica de Londres considerou seu significado. Essa sociedade era apenas uma agência nacional e, portanto, sem poder sobre a Escala de Tempo Geológica (que é decidida por órgãos internacionais). No entanto, podia examinar a questão e emitir seu parecer, o que de fato fez.
Talvez para surpresa da agência, 21 de 22 desses especialistas (selecionados por sua experiência técnica e geralmente não vistos como pessoas de atitude radical) consideraram que o termo Antropoceno “tinha mérito” como potencial termo formal de tempo geológico e deveria ser estudado com mais profundidade. O fraseado era tipicamente cuidadoso. No entanto, o parecer preliminar, quando publicado logo depois pela Sociedade Geológica da América, atraiu bastante atenção. Entre as repercussões, estava um convite para formar um órgão internacional, o Grupo de Trabalho do Antropoceno (AWG, do inglês Anthropocene Working Group), cuja tarefa era – e ainda é – analisar o potencial que o termo teria para passar a fazer parte da Escala de Tempo Geológico, e, no momento oportuno, apresentar evidências relevantes e fazer recomendações apropriadas.
O AWG em si não tem poder de decisão – isso cabe a todos os níveis hierárquicos acima dele: sucessivamente, a Subcomissão de Estratigrafia Quaternária, a Comissão Internacional de Estratigrafia e a União Internacional de Ciências Geológicas. Todos têm que concordar que o termo não somente possui validade geológica, mas que também possui valor para ser estabelecido formalmente. Há uma diferença entre validade e utilidade: há um número de termos de tempo geológico que são amplamente empregados, mas que são informais – o Pré-Cambriano é um deles.
Os construtoresO AWG foi estabelecido e permanece como um órgão exclusivo dentro da extensa burocracia estratigráfica que supervisiona a Escala de Tempo Geológico. Todos os outros grupos de trabalho e subcomissões são totalmente formados por especialistas de unidades particulares de estratos e intervalos de tempo: paleontólogos, geoquímicos e geocronologistas. A Escala de Tempo Geológico é construída por geólogos para geólogos. Outras comunidades simplesmente aceitam os resultados – se ao menos chegam a notá-los – e não têm nada a opinar sobre a questão.
Um novo começoCom o Antropoceno, as coisas são diferentes. Em primeiro lugar, muitas das consequências geológicas em torno desse conceito têm causas ou propulsores humanos de uma forma ou de outra: são consequências (em grande medida não intencionais) de atividades sociais, econômicas, industriais, políticas, militares e outras. Isso leva a geologia para um terreno que é desconhecido para a maioria dos geólogos.
Em segundo lugar, o profundo interesse no conceito de Antropoceno e sua adoção por parte de uma vasta gama de comunidades das ciências e humanidades significavam que essa questão não poderia mais ser um problema geológico interno, a ser discutido e resolvido exclusivamente por geólogos. E, em terceiro lugar, por causa das diferentes perspectivas a partir das quais o Antropoceno está sendo estudado, estão surgindo diferentes Antropocenos. Diferentes comunidades atribuíram significados bem diferentes ao termo, ou o termo foi reinterpretado, recebendo novas denominações como “Capitaloceno”, “Piroceno” e assim por diante.
Aqui havia um problema de natureza multidimensional a ser solucionado. O AWG engloba não só geólogos, mas também cientistas do sistema terrestre, arqueólogos, geógrafos, cientistas do solo, cientistas polares – e até um advogado especialista em direito internacional, mas sua alçada permanece a mesma que para todos os outros intervalos de tempo sendo analisados. O Antropoceno que está sendo considerado pelo AWG é o que alguém poderia chamar de “Antropoceno geológico” ou, mais especificamente, “Antropoceno estratigráfico”. A questão é se o Antropoceno, conforme foi concebido por Crutzen e Stoermer – que ocorreu fora da comunidade geológica e, portanto, não foi formulado conforme as normas e procedimentos daquela comunidade, pode funcionar em termos geológicos clássicos como uma unidade de tempo e de estratos, e, além disso, se pode ser considerado útil (se for assim formalizado) para aquela comunidade.
A questão se a potencial formalização do Antropoceno em geologia precisa levar em conta comunidades mais amplas – ou as implicações sociais e humanas dessa mudança geológica – ainda está para ser debatida; é uma situação nova e complicada para essa ciência.
O primeiro passo para se considerar um Antropoceno formalApós um trabalho de vários anos, o AWG publicou duas constatações preliminares e recomendações no último Congresso Geológico Internacional ocorrido na Cidade do Cabo [África do Sul] em agosto de 2016. Descobriram que o Antropoceno era geologicamente real, tanto em relação ao funcionamento do sistema terrestre como, crucialmente, uma unidade de estratos muito recentes que é bem distinta dos estratos anteriores.
A ciênciaDesde a “grande aceleração” global – aceleração do crescimento populacional, da industrialização e da globalização – de meados do século XX, as camadas de sedimentos no fundo do mar, fundos de lagos e pântanos e em leitos de rios são marcadas por radionuclídeos artificiais originários de testes com bombas atômicas das décadas de 1950 e 1960, por plásticos, alumínio e concreto, por novos pesticidas e outros poluentes orgânicos persistentes, e por cinzas volantes como subprodutos da queima de hidrocarboneto.
Também nessa época, as mudanças nas comunidades animais e vegetais do mundo – que foram modificadas pelos seres humanos desde a Idade da Pedra – se aceleraram notavelmente. As taxas de extinção de espécies e invasões aumentaram à medida que mais habitats naturais eram substituídos por terras para agricultura ou conurbações. Os restos desses organismos modificados são um sinal paleontológico: futuros fósseis, que são ainda mais um sinal de profunda mudança do sistema terrestre.
AceleraçãoA escala e a proporção dessa mudança são extraordinárias. Vejamos o exemplo do aumento no dióxido de carbono na atmosfera. Trata-se de uma mudança no sistema terrestre, o tipo de fato enfatizado por Paul Crutzen e seus colegas cientistas que estudam a mudança global. O ar pode parecer uma coisa insubstancial em comparação com uma rocha, mas é preservado diretamente dentro de um tipo de rocha – camadas anuais de gelo polar, como bolhas encapsuladas – e, indiretamente, dentro de outras, como sinais químicos associados à queima de combustível fóssil.
Ambos os registros mostram que a taxa de aumento desse gás na atmosfera é superior às mudanças típicas entre as fases glaciais e interglaciais das Idades do Gelo recentes, e ocorreu mais de cem vezes mais rápido. Não há precedente conhecido na história da Terra e os efeitos sobre o clima já são evidentes, embora ainda em seus estágios iniciais.
Duas coisas são significativas aqui.
Em primeiro lugar, a enorme liberação de energia a partir da queima de combustíveis fósseis desde meados do século XX potencializou muitas das outras mudanças do Antropoceno, desde a construção de megacidades até a produção de fertilizantes de nitrogênio que mantêm viva aproximadamente metade da população terrestre, mas que consome energia intensamente.
A nova trajetória da TerraEm segundo lugar, essa liberação de energia fóssil, e tudo que se associa a ela, ainda está ocorrendo; portanto o Antropoceno não é um estado novo e estável, como eram essencialmente os 11.700 anos precedentes da era do Holoceno. É um alvo móvel, rumo a algum novo estágio estável que provavelmente surgirá num futuro geológico distante. A Terra está em uma nova trajetória, muito diferente de qualquer uma das mudanças anteriores das Eras do Gelo, o que tem implicações para a definição científica do Antropoceno, mas também tem claramente uma significância mais vasta para as comunidades humanas colhidas nessa mudança planetária em progresso.
Por enquanto, a definição é conservadora. O Antropoceno está sendo considerado como uma época potencial, uma unidade de nível modesto dentro do quadro da escala de tempo geológico – ao mesmo nível do Holoceno – com base nas mudanças que ocorreram até hoje. Caso continue com uma abordagem “de praxe” com respeito a fatos como queima de hidrocarbonetos e perda de habitat, o próximo século ou os dois próximos muito provavelmente testemunharão aquecimento global a níveis não observados há milhões de anos e um evento de extinção em massa comparável ao evento que levou à extinção dos dinossauros. Se for assim, o Antropoceno ocorreria na escala de um período ou de uma era – geologicamente um evento muito maior, do tipo que só acontece a cada dezena ou centena de milhões de anos.
Situando a fronteiraEssa consideração do nível hierárquico formal da Escala de Tempo Geológico é um tipo de ciência que atualmente está sendo realizada em torno do Antropoceno. É uma questão formal, abstrata até certo ponto – assim como a questão associada de quando e onde se deve situar o início do Antropoceno (algum ponto em meados do século XX parece o nível mais pragmático geologicamente, mas determinar exatamente onde ainda é trabalho em andamento).
A resolução dessas questões é um trabalho de base, técnico e detalhado, assim como a determinação do comprimento exato do metro, ou da velocidade do som. Não levará a grandes revoluções conceituais, mas é absolutamente necessária para prover uma base sólida para trabalhos mais ambiciosos. E trata das consequências geológicas do fenômeno, categorizando a natureza dos estratos que estão formando o Antropoceno.
TransiçãoA ciência mais emocionante e de maior alcance trata dos processos que descrevem o modo como o Antropoceno emergiu dos milênios longos e estáveis do Holoceno: inicialmente e devagar durante a Revolução Industrial, e depois mais rápido durante a grande aceleração, uma aceleração que ainda continua. A sociedade humana se desenvolvia e as civilizações cresciam e decaíam, muitas vezes ao longo dos milênios que decorriam no Holoceno, sem alterar o caráter fundamental do sistema terrestre. É a própria agudeza das mudanças recentes que torna funcional o Antropoceno como unidade geológica. Mas o que causou esse extraordinário aumento que está transformando a geologia do planeta – e empurrando o planeta rumo a um tipo diferente de futuro?
A resposta está claramente em algum ponto na intersecção de política, economia, desenvolvimento tecnológico, mudança social e outros fatores, tendo como fator primordial a evolução cada vez mais rápida da tecnologia até o ponto que se sugeriu que essa resposta reside no coração da “tecnosfera”, um novo sistema terrestre, com sua própria dinâmica (e com os seres humanos mais como componentes do que como propulsores), que brotou – e que agora se pode dizer que é parasita – da biosfera. Determinar essa infinidade de forças e descobrir como e por que elas são agora as principais causadoras da mudança geológica na Terra, é nisso que as comunidades de humanidades, de ciências sociais e de artes precisam trabalhar em conjunto com as comunidades de ciências físicas.
Entender o processo é uma coisa. Levando-se em conta que as condições de um Antropoceno imprevisível e em evolução afetarão todas as nossas vidas por muitas gerações no futuro, é preciso encontrar um meio de modificar seu curso (ou seja, evitar as possibilidades mais extremas e letais das condições do sistema terrestre) e viver, na medida do possível, dentro dos parâmetros que surgirão. Provavelmente não será fácil viver durante a travessia de uma fronteira estratigráfica ativa.
Jan Zalasiewicz é professor de paleobiologia da Universidade de Leicester (Reino Unido). É autor, entre outros, de The planet in a pebble:  A journey through earth history e The Earth after us: The legacy that humans will leave in the rocks (ambos publicados pela Oxford University Press).



* Este artigo foi traduzido para o português por Amin Simaika. A versão original da língua inglesa está em depósito legal na British Library. A citação para o artigo original é:

Zalasiewicz J (2016). "Science and society of the Anthropocene: Transition from the Holocene". Science, people & politics, pp. 9-16, Edição 2 Abr. - Jul. V VIII. Publicado em 26 de maio.

http://www.sciencepeopleandpolitics.com/mag.html
http://www.comciencia.br/ciencia-e-sociedade-do-antropoceno-transicao-partir-do-holoceno/

As universidades federais são mais eficientes que o Banco Mundial, por Emmanuel Zagury Tourinho

As universidades federais são mais eficientes que o Banco Mundial, por Emmanuel Zagury Tourinho

Fotos aéreas da UFPA editadas Foto Alexandre Moraes 85
do Portal da UFPA
por Emmanuel Zagury Tourinho
Uma instituição financeira internacional, o Banco Mundial, publicou um relatório criticando, entre outras políticas públicas no Brasil, o Ensino Superior público e gratuito. O documento contém inúmeros erros na apresentação do Sistema de Universidades Públicas Federais, que merecem reparo. Além disso, parte da justificativa afirma que as políticas públicas têm favorecido os mais ricos, mas não refere a acentuada injustiça tributária no País, muito menos recomenda a tributação de grandes fortunas ou a revogação de desonerações fiscais que favorecem grandes grupos econômicos, medidas que poderiam financiar iniciativas de combate à desigualdade, problema maior da nação. Limitado a indicadores financeiros, o documento ignora dados da realidade social brasileira e o papel das universidades públicas no desenvolvimento econômico e social do País.
A Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, Andifes, informa que estão incorretos, naquele relatório, entre outros, os dados sobre o perfil dos discentes das universidades federais e sobre os investimentos públicos realizados nas instituições.
Entre outros fatos que o Banco ignora, estão os processos seletivos massivos, como o ENEM, a criação de mais de 300 campi no vasto interior do País e a própria Lei de Cotas, que contribuem para que apenas 10% dos alunos matriculados nas universidades federais venham de famílias com renda bruta familiar de dez ou mais salários mínimos. Na outra ponta, 51% dos alunos das universidades federais pertencem a famílias com renda bruta abaixo de três salários mínimos. Se considerada a renda média per capita, 78% dos alunos são de famílias com renda per capita de até dois salários mínimos. Não há, portanto, fundamento para a afirmação de que os alunos das universidades federais pertencem aos estratos de renda mais altos da sociedade, muito menos que possuem capacidade financeira para pagar mensalidades.
Por outro lado, é verdade que os mais ricos deveriam pagar pela educação pública, mas não apenas os mais ricos que têm filhos nas universidades públicas. Uma política distributiva séria tributaria todos os ricos (com ou sem filhos nas universidades públicas) taxando fortunas, heranças e propriedades, a fim de possibilitar a parcelas maiores da população o acesso à educação pública de qualidade. Acrescente-se a isso o olhar simplista daqueles que reduzem a formação e a atuação dos egressos das universidades públicas a uma apropriação exclusivamente pessoal, sem considerar a contribuição estrutural às demandas de uma sociedade complexa por parte desses profissionais altamente qualificados.
O investimento em educação no Brasil é dos mais baixos entre todos os países da OCDE. Considerados todos os níveis educacionais, o Brasil só investe mais que o México. Fica atrás de todas as outras nações, inclusive do Chile, da Coreia do Sul, da Estônia, da Hungria e da Polônia. Considerada apenas a Educação Superior, o investimento do Brasil por aluno (US$/PPP 13.540,00) está abaixo da média da OCDE (US$/PPP 15.772,00), isso em um cálculo que inclui, para o Brasil, os gastos com os aposentados das universidades (gasto previdenciário), o que corresponde a cerca de 25% de todo o valor contabilizado.
Por fim, a afirmação de que o investimento por aluno em universidades públicas é maior do que o financiamento por aluno em instituições privadas é uma obviedade. As primeiras são responsáveis por quase toda a pesquisa científica e tecnológica realizada no País, gerando resultados econômicos extraordinários, como na produção de alimentos, na exploração de petróleo e no desenvolvimento de novas fontes de energia. São as universidades federais, também, as responsáveis por mais da metade do Sistema Nacional de Pós-Graduação, que forma mestres e doutores em todas as áreas de conhecimento, base da inclusão do Brasil na sociedade do conhecimento, inclusive com a elevação do País à condição de 13ª nação com maior participação em toda a produção científica mundial.
Além das inúmeras incorreções, o documento do Banco Mundial ignora aspectos fundamentais da atuação das universidades federais no Brasil. Inseridas em um ambiente social marcado pela desigualdade e pela exclusão, as universidades federais, públicas e gratuitas, acolhem alunos de todas as origens sociais, raças e etnias, oferecem-lhes oportunidades e incluem em suas agendas de pesquisa e extensão questões que dizem respeito à promoção da cidadania. Mantêm uma rede de hospitais públicos de alta complexidade, além de clínicas, laboratórios e serviços diversos de atendimento gratuito à comunidade, sendo, muitas vezes, as únicas opções de acesso ao atendimento de saúde. Atuam em todas as mesorregiões do País, inclusive nas mais distantes e inacessíveis, e desenvolvem projetos inovadores para a geração de riqueza e renda, para o desenvolvimento sustentável e para a formação cultural.
A rigor, o que surpreende é que as universidades federais consigam resultados acadêmicos, científicos e sociais tão expressivos, apesar de se desenvolverem em um ambiente de políticas de financiamento instáveis e de ataques recorrentes dos grandes grupos econômicos, interessados em transformar a educação do País em fonte cada vez mais atrativa de ganhos financeiros. A questão que se coloca é: em qual país as recomendações do Banco Mundial, repetidas há décadas, levaram ao desenvolvimento e à soberania?
Emmanuel Zagury Tourinho, reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

Saturday, December 16, 2017

Juízes, segurem os beleguins!

Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Juízes, segurem os beleguins!

   
Foto: ReproduçãoSenhores magistrados brasileiros. Dirijo a presente mensagem ao seu coletivo sabendo que muitos togados não precisam ler ou ouvir o que segue abaixo. Mas noto, com indignação cada vez maior, um comportamento anômalo em alguns de seus pares. Tal prática tem as marcas da tirania, impossíveis de serena acolhida em regime democrático. Aprisionamentos e conduções coercitivas a presumir culpa e não inocência de pessoas mostram um vezo perigoso. Em semelhante matéria chegamos à banalidade dos faits divers que geram uma opinião pública colonizada pela propaganda, oficial ou particular. O uso da humilhação é técnica eficaz para aterrorizar a cidadania. O povo brasileiro já foi garroteado por duas ditaduras ferozes que usaram à exaustão o monopólio estatal da força física, pisoteando a dignidade das pessoas.  Muitas famílias guardam memórias de membros seus presos, torturados, exilados, censurados, expulsos dos cargos ou empregos por agentes que aplicavam aquele monopólio.
Nos últimos dias um poderio bruto se volta contra os campi nacionais e, neles, ressurge o arbítrio arrogante de quem imagina tutelar a existência coletiva.  Lembro fatos pretéritos, figuras que anteciparam o que hoje ocorre na esfera estatal. A ditadura instaurada em 1964, por intermédio de soldados, humilhou a veneranda figura do professor João Cruz Costa, na USP, dele exigindo entoar o hino nacional como “prova de brasilidade”. Na prática daquela selvageria, não tivemos nenhum traço novo, visto que o nacional-socialismo obrigava os contrários a Hitler a cantar estrofes nauseantes da Horst-Wessel Lied. Todos os que depreciam o Brasil e parolam sobre proezas educacionais na Coréia do Sul, sequer lembram: aquele país usou métodos e ideias de um grande professor brasileiro, Anísio Teixeira, perseguido e humilhado por beleguins.  Ainda hoje sua morte está envolta em espessas sombras, tal o clima de segredo repressivo imperante na época. Com a ditadura brasileira a caçada à intelligenzia ergueu um pensador que apoiara o regime de 1964, mas se assustou com a truculência dos que diziam ter cometido o crime de lesa ordem constitucional para “combater a subversão e a corrupção”. Seu nome era Tristão de Athayde. Ele define a campanha contra universitários como “terrorismo cultural”. As suas denúncias narram as infâmias cometidas em nome de supostos valores morais, usados como desculpa para o assassinato da liberdade. O terrorismo cultural retorna no Brasil do século XXI, por mãos de quem deveria zelar pelos direitos, sobretudo o de pensar.
Foto: Reprodução
O educador Anísio Teixeira: perseguido e humilhado pela ditadura militar
Ocorrem naquela mesma data as cassações de professores e cientistas, o estupro dos campi pela força policial armada. A resistência a tais procedimentos foi erguida por outra figura venerável, o reitor Pedro Calmon Muniz de Bittencourt, nome essencial para o exame da história pátria. Quando esbirros ameaçaram faculdades e institutos por ele dirigidos, com base no monopólio usurpado da força, o líder acadêmico pronunciou frases que ontem, hoje e sempre devem iluminar as decisões judiciais e as práticas de sua polícia. Disse o Magnífico Reitor: "aqui, esses beleguins de tropa militar não entram, porque entrar na Universidade só através de vestibular". Calmon não era apenas mestre do saber histórico. Ele dominou a língua de Camões. Com o termo “beleguins” para indicar policiais truculentos a serviço de juízes submissos ao poder ilegítimo, o Reitor sintetiza a história nada democrática da nossa instituição estatal, incluindo os tribunais, as algemas e os revolveres que os servem.
“Beleguim”, embora de origem incerta, tem forte nexo semântico com o espanhol “belleguín”, “agente de justicia” segundo a Real Academia Española em seu Dicionário. O termo de uso anticuado se refiere a un funcionario público o un ministro inferior que es el encargado de aprisionar y a su vez de ejecutar a los reos y los presos, que se dice corchete o alguacil de la misma acepción. Completa razão teve Calmon ao chamar os que invadiram os campi de beleguins. Eles agiam em nome de juízes, muitos deles comprometidos com a ditadura instaurada no país desde o primeiro Ato Institucional. E recordemos a pergunta de Pedro Aleixo: o presidente talvez não abuse do Ato número 5, “mas e o guarda da esquina?”. A culpa dos atentados aos direitos civis, hoje, não pertence sobretudo aos beleguins, mas aos que acima deles decidem nos tribunais.
Nem todos os magistrados brasileiros, na época, dobraram a cerviz. Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e outros resistiram e foram perseguidos, cassados, exilados. Quando ocorreu a proibição do habeas corpus, poucas togas se levantaram em defesa do direito e da justiça. Em se tratando de beleguins e juízes, sempre é bom lembrar, com o Padre Vieira, que mesmo eles podem ser resgatados para o bem comum. Escutemos o nosso oráculo ético: “Uma das profissões mais arriscadas a não ser justo é a dos ministros da justiça, ou sejam os que a sentenciam, ou os que a defendem, ou os que a escrevem, ou os que a executam; mas todos, se o fizerem com pureza de coração, podem ser santos. Santo Ereberto e Santo Tomás de Cantuária foram chanceleres; S. Hieroteu e S. Dionísio Areopagita, desembargadores; S. Pudente e Santo Apolônio, senadores; S. Fulgêncio, procurador da fazenda real; Santo Ambrósio, S. Crisóstomo e S. Cipriano, advogados; S. Marciano, S. Genési o e S. Cláudio, escrivães; Santo Anastásio e S. Ferréolo, juízes do crime; Santo Aproniano e S. Basilides, esbirros ou beleguins; e até no vilíssimo exercício de algozes foram santos S. Ciríaco, Santo Estratonico, e outros” (Sermão de Todos os Santos). Não desesperemos, pois. Mesmo juízes que marcham apenas atrás dos exércitos mais fortes podem seguir o caminho da atrição e da contrição. Quantos? Mistério.
Ocorreu com os jesuítas, defendidos pelo Padre Vieira, o que hoje acontece com os reitores ameaçados e postos à beira do suicídio. “Quem havia de crer que houvessem de arrancar violentamente de seus claustros os religiosos e levá-los presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem?”. (Sermão da Epifania).  Quem haveria de crer que magistrados e seus auxiliares entrariam nos campi à caça de reitores levando-os presos sob ferrolhos, e com guardas, até os desterrarem? Os juízes que não enxergam limites ao seu poder e dele abusam profanam o habitáculo onde se faz ciência e se busca o verdadeiro, o bom, o belo. Pelo que fazem hoje no campus, é possível visualizar sua prática estudantil. Brilhante não era, com certeza, dado o desprezo que exibem diante do saber e dos que o cultivam.
Os espetáculos por eles gerados, de caráter sádico e sem peias, testemunha a inutilidade do chamado sistema de ensino e justiça no país. E novamente recorro, senhores magistrados, ao bom Padre Vieira. Os homens imprudentes “inventaram e formaram Leis, levantaram tribunais, constituíram magistrados, deram varas às chamadas Justiças, com tanta multidão de ministros maiores, e menores, e foi com efeito tão contrário que em vez de desterrarem os ladrões, os meteram das portas adentro, e em vez de os extinguirem, os multiplicaram e os que furtavam com medo, e com rebuço, furtavam debaixo de provisões, e com imunidade. O Solicitador com a diligência, o Escrivão com a pena, a Testemunha com o juramento, o Advogado com a alegação, o Julgador com a sentença, e até o Beleguim com a chuça, todos foram ordenados para conservarem a cada um no seu, e todos por diferentes modos vivem do vosso”. (Sermão da Segunda Dominga da Quaresma). Perseguições cruéis de cientistas e professores não abolem o fato corrupto mas o pioram, pois distraem o público das façanhas conduzidas pelos verdadeiros larápios dos cofres nacionais. 
Senhores juízes: beleguins e suas chuças, prisões e conduções sob vara,  não dobram o intelecto que nos campi busca a verdade. Conforme ensina Spinoza na monumental Ética demonstrada geometricamente, “um pensamento é limitado por outro pensamento. Mas um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo”. É tarefa inútil e ignara usar corpos de repressores para impedir o pensamento. A massa de soldados pode prender, suicidar, exilar, censurar. Mas sua ação só ocorre no plano dos corpos. O pensamento, essência da busca universitária livre, não é  por eles impedida. Nem pelos senhores.
Os magistrados que movem a força em vez da razão, muito provavelmente passaram rápido pelas aulas de filosofia ética e doutrina. Talvez as consideravam meras “perfumarias” acadêmicas. Não meditaram com Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e outros luminares do pensamento. Se tivessem compulsado devagar e atentamente os escritos que edificaram a justiça e o direito, teriam lido a seguinte advertência nas Leis, escritas por Platão:              
“Se um magistrado pronuncia uma sentença injusta ao avaliar certo dano sofrido, sua responsabilidade para com a vítima do prejuízo deve ser o dobro do valor em causa. Quem assim o quiser pode processar nas cortes comuns os juízes que decidiram injustamente nos casos a eles trazidos”. (*)
(Leis, 846b).
Em nosso Brasil, quanto devem pagar os juízes que autorizam humilhações e abuso da força? Que falem os familiares do Reitor Cancellier, de outros reitores e docentes tratados como se criminosos fossem, antes mesmo de um julgamento e, menos ainda, de um veredicto.  Muitos juízes brasileiros não leram as Leisplatônicas e não foram advertidos sobre os danos que podem sofrer, caso só operem de acordo com a vontade de potência, sem passar pela epikéia, a justiça em sentido próprio. Cabe ao povo pressionar os legisladores para que abusos de muitas togas sejam punidos. E também sejam sancionados negativamente os truculentos beleguins. Até lá, a cidadania, que paga impostos para obter sentenças prudentes, diz em uníssimo: basta!  Magistrados surdos à voz da justiça podem integrar, cedo ou tarde, a lista biográfica dos Atrocious Judges: Lives of Judges Infamous as Tools of Tyrants and Instruments of Oppression (Richard Hildreth, 1856) Quem viver, verá.
(*) Comentário lúcido feito por um intérprete das leis gregas: “One can hardly imagine a more dramatic remedy against judicial injustice than a suit for damages against the judge”(Glenn R. Morrow, “Plato and the rule of Law”in Vlastos, G. (ed.) Plato 2, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosophy of art and religion).

Universidades públicas ameaçadas em outros lugares

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Universidades públicas ameaçadas em outros lugares

   

Foto: ReproduçãoA coluna de Jorge Coli no último domingo“Falsa cultura”, que recebeu a chamadaPoema português é atribuído a Mário de Andrade até em vestibular público”, coloca uma questão assustadora nesses tempos em que debatemos fake news [I], que poderia ser cunhada como fake knowledge. Na abertura da coluna, o prof. Coli relembra a resposta de um estudante: “Professor, eu pertenço à geração do ouvi dizer”. Essa essência da fofoca é péssima, quando se trata de notícias e conhecimento. É pior ainda quando ouvimos dizer de alguém com autoridade incorporada. Volto então ao último sábado, mais precisamente à matéria do Jornal Nacional sobre as proposta do Banco Mundial em relação ao fim da gratuidade no ensino superior público no Brasil [II]. A matéria menciona que a inspiração veio de um modelo adotado há 20 anos na Inglaterra, com o fim gradual da gratuidade (quanto às taxas escolares) com um sistema de bolsas e financiamento e que, segundo declaração de um coordenador do Banco Mundial, estudos mostram que “tiveram resultados muitos bons, não só na qualidade do ensino, mas também na equidade do acesso”. Dada a importância do tema, buscar o que se diz sobre isso na Inglaterra torna-se imprescindível, bem como sobre o que se passa nos Estados Unidos, onde o ensino superior público também é pago e, portanto, frequentemente usado como referência para nossos passos futuros.
O objetivo aqui não é de dissertar sobre o tema e chegar a uma tese acabada contrária ao proposto. O objetivo é mais singelo, apenas fornecer informações absolutamente necessárias para uma discussão intelectualmente honesta sobre o assunto: se aqui se diz que um modelo é bem-sucedido em tal lugar, afinal o que é dito por lá sobre esse modelo?
A internet, rastilho de fake news, também é fonte rápida de informações importantes e a busca nesses dias anuncia uma constatação que eu antecipo: ensino superior público não é consenso, muito pelo contrário, nem na Inglaterra, nem nos Estados Unidos, para solução dos problemas anunciados.
Primeiro uma matéria do The Guardian, de 2014: “Alemanha está descartando mensalidades, por que a Inglaterra não pode?” [III]. A linha fina traz: “Na Alemanha taxas foram um breve experimento derrubado por protestos populares. Estudantes britânicos deveriam começar uma campanha de massa pela educação gratuita.” O contexto era a tentativa logo abandonada de introduzir o ensino público pago na Alemanha, onde ele continua gratuito. A volta da gratuidade acabou fazendo parte da plataforma do Partido Trabalhista nas últimas eleições gerais do Reino Unido em junho deste ano. A vencedora dessas eleições, Theresa May, do Partido Conservador, anunciou em outubro que haverá uma revisão da política de taxas.  As opiniões de dividem contra e a favor da manutenção das taxas [IV]. Esta matéria do Independent traz algumas imprecisões sobre a Alemanha (onde o ensino e gratuito em geral), mas com a informação interessante de que ali do lado da Inglaterra, na Escócia, por exemplo, o ensino é gratuito.
Bem, o ensino superior público pago na Inglaterra foi introduzido em 1998, aliás, durante um governo do Partido Trabalhista, mas qual o sucesso dessa política? Uma análise pode ser apreciada numa outra fonte [V], que quem quiser pode ler, pois é longa para ser discutida neste espaço. A conclusão da análise é positiva no geral, mas adverte que, em vinte anos, a equidade no acesso não melhorou. Fica a dica de leitura. A publicação dessa análise teve o propósito de chamar a atenção dos estadunidenses ao modelo britânico no contexto do anúncio no começo deste ano de que o ensino superior público passará a ser gratuito em larga escala no Estado de Nova Iorque. Este é um dos 10 estados onde políticas de gratuidade estão mais avançadas, segundo mapa do sítio “Campaign for free college tuition”.
Pergunta: o ensino público superior nos EUA sempre foi pago? Lá existe uma separação clara entre taxas escolares (mensalidades ou anuidades) e custos de permanência. É importante, portanto, deixar reafirmar que o debate que se coloca é sobre a gratuidade quanto às taxas. Pois bem, nos Estados Unidos o ensino público superior foi gratuito até o final dos anos 1960 e em algumas situações até meados da década seguinte, como no caso da City University of New York, livre de taxas até 1976. É o que se pode ler no artigo “O declínio (ou seria naufrágio?) do Ensino Superior Público e a tragédia dos comuns” de Noreen Ohlrich[VI], publicado no começo deste ano.
Uma linha do tempo sobre esse assunto pode ser encontrado em http://factmyth.com/factoids/us-universities-have-always-charged-tuition/. Entre outros dados, uma das origens de um dos alertas dados por Noreen Ohlrich: o valor das taxas subiu em média 1.120% entre 1976 e 2012. A inflação no período foi de 304%. 
Como escrito acima, um debate para ser correto precisa de fontes de informação diversas, que nesse caso sugerem que nos lugares onde o ensino superior público é pago as coisas não funcionam tão bem como anunciado em alguns documentos por aqui. O tema é no mínimo controverso e as políticas são contestadas, ou seja, não há respostas simples para problemas complexos. Nem aqui, nem lá.
Por último, deixo ao leitor interessado outra dica, a leitura de uma resenha de 8 livros sobre o problema das universidades nos Estados Unidos: “Nossas universidades: por que elas estão fracassando?” de Anthony Grafton. Deu no The New York Times em 2011 [VII]. Entre os livros resenhados, destaco o de Christopher Newfield, editado pela Harvard University Press: Unmaking the Public University: the Forty-Year Assault on the Middle ClassDeixo a transcrição da apresentação do livro no sítio da editora de Harvard[VIII] para quem teve paciência de chegar até aqui.
“Um sonho americano essencial – acesso igual ao ensino superior – estava tornando-se realidade com a ‘GI Bill’ e os movimentos pelos direitos civis após a Segunda Guerra Mundial. Mas essa vital promessa americana foi quebrada. Christopher Newfield argumenta que as crises política e financeira das universidades não são resultado de retrações econômicas ou de reestruturações fundamentalmente valiosas, mas de uma campanha conservadora para terminar a influência democratizante da educação pública nos Estados Unidos. Desfazendo a Universidade Pública: um ataque de quarenta anos à classe média é a história de como conservadores têm difamado e reestruturado universidades públicas, iludindo o público para servir a seus próprios interesses. É uma análise profunda e reveladora necessária há tempos.”
E continua no sítio de Harvard, ou pelo Google Books. Boa leitura, bom debate.


Militares, ciências, Educação Popular.

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