Friday, January 27, 2017

Urbanista conta como juízes, sob influência do capital imobiliário, fazem vistas grossas a abusos, descumprem as leis e zombam da garantia constitucional a moradia digna

Ermínia: “Judiciário bloqueia Direito à Cidade”

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Urbanista conta como juízes, sob influência do capital imobiliário, fazem vistas grossas a abusos, descumprem as leis e zombam da garantia constitucional a moradia digna
Ermínia Maricato, entrevistada por Manuela Azenha, na Brasileiros
A crise habitacional no Brasil é ao mesmo tempo irônica e trágica, define a urbanista Erminia Maricato. Isso porque o avançado arcabouço legal existente no País voltado para as questões urbanas é tão reconhecido e prestigiado no mundo quanto ignorado em território nacional.
“Toda essa legislação se aplica a uma parte da cidade, que é a visível, a da elite. Há 2 milhões de pessoas nas áreas de proteção dos mananciais, só na metrópole paulistana, morando ilegalmente e pondo em risco nossas reservas de água. Como o Judiciário, o Executivo e o Legislativo trabalham com essa realidade? Fechando os olhos”, afirma a especialista.
Maricato é professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da ex-prefeita de São Paulo Luiza Erundina e Secretária Executiva do Ministério das Cidades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Não há apetite das prefeituras para aplicar a legislação porque o poder local, as câmaras municipais e os prefeitos são muito comprometidos com o capital imobiliário.”

Revista Brasileiros – Qual o tamanho da crise habitacional no Brasil?
Ermínia Maricato – A nossa situação é irônica e trágica ao mesmo tempo. Temos um arcabouço legal no Brasil dos mais avançados no mundo se considerarmos a questão urbana. A partir da Constituição de 1988, nós tivemos uma série de leis que foram aprovadas, das quais uma das mais importantes é o Estatuto da Cidade, de 2001.
Depois vêm a Lei do Fundo Nacional de Habitação do Interesse Social, de 2005, e a Lei de Consórcios Públicos, muito importante porque tem problemas que não estão dentro de apenas um município, são intermunicipais. Serve para resolver problema de bacia hidrográfica, questões ambientais, captação de água.
Em 2007 tem a Lei Federal do Saneamento, que institui um novo marco regulatório. Depois temos a Lei da Mobilidade Urbana, que é um problema seríssimo no Brasil. E também tem a Lei dos Resíduos Sólidos. Aparece mais recentemente o Estatuto da Metrópole, outra lei fundamental.
As nossas metrópoles são a fotografia do desgoverno. Em São Paulo, são 39 municípios. Mas, em geral, a mídia trabalha como se a metrópole fosse o que há entre os rios Tietê e Pinheiros. O resto não existe. Nessa área você tem 70% do emprego. Só que a metrópole é gigantesca, uma das maiores do mundo. Justamente por morar distante e mal, o tempo médio de viagem das pessoas na metrópole é de mais de 2 horas e 40 minutos. As pessoas não têm ideia do que é o trabalhador se deslocar nessa metrópole.
O mundo inteiro admira o arcabouço legal brasileiro. Nós tivemos honrarias na ONU por causa disso, já fui fazer consultoria em vários países do mundo. Mas no Brasil isso não se aplica. O Judiciário desconhece esse quadro. A produção da cidade é absolutamente atrasada, edifícios, ruas, infraestrutura. Temos raízes nessa produção da cidade que vem lá do país escravista, oligárquico e toda essa legislação se aplica a uma parte da cidade, que é a visível, a da elite. A Lei de Zoneamento, por exemplo.
Apesar disso tudo, temos 2 milhões de pessoas nas áreas de proteção dos mananciais, só na metrópole paulistana, morando ilegalmente. Como o Judiciário, o Executivo e o Legislativo trabalham com essa realidade? Fechando os olhos.
Por que fecham os olhos?
Eu já estive em governos duas vezes, na gestão da Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo, e depois na transição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para Lula, para criar o Ministério das Cidades. Você encontra barreiras na correlação de forças, de uma elite que não quer perder os privilégios, um mercado imobiliário altamente exclusivo, especulativo e restrito a uma minoria. Mas você tem também uma universidade, um Ministério Público e um Judiciário que trabalham com uma ficção, não com a cidade real. Quando você tenta aplicar a lei, há uma resistência na sociedade como um todo, na mídia, no mercado. Então você tem uma interpretação da realidade que é profundamente ideológica.
Se há uma ocupação de um prédio no centro da cidade, vazio há 10 anos, juntando barata e rato, de acordo com a Constituição, com o Estatuto da Cidade e com os Planos Diretores, esse prédio não cumpre a função social. Em volta dele tem asfalto, oferta de emprego, universidade, transporte, ele se beneficia de um investimento feito por todo mundo. Ele vai subindo de valor, mas fica lá vazio.
O Estatuto da Cidade regulamentou a função social. Dois municípios no Brasil aplicaram a função social da propriedade. Não lembro dos dados do último censo, mas há uns 20 anos, eram 400 mil imóveis vazios na cidade de São Paulo. Desses, grande parte fica na região mais central. Onde a cidade mais cresce? Nas áreas de proteção a mananciais ao sul e na franja da Cantareira ao norte. Ou seja, onde é inadequado a cidade crescer, ela está crescendo. Onde é adequado ela se adensar, você tem imóveis vazios esperando oportunidades de investimento.
A quem cabe aplicar a função social da propriedade?
De acordo com a Constituição brasileira, esse poder estaria nos municípios.
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Remoção de 600 famílias na ocupação do Jardim Colonial (Fotos: Mídia Ninja)
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Houve algum avança com relação a isso?
O Estatuto da Cidade determina que a propriedade privada tem de cumprir a função social. Mas quem vai dizer o que é isso? É um buraco na lei, mas é o Plano Diretor. Todo Plano Diretor no Brasil fala o que é isso.
Outra coisa é apontar as propriedades que não estão cumprindo a função social. Aí começamos a mexer no interesse dos proprietários. Fernando Haddad começou a mapear e informar os proprietários. O Estatuto da Cidade exige que os proprietários sejam informados porque dá a eles a oportunidade de ocupar os imóveis vazios. O imóvel que não cumprir a função social será submetido a três condições.
Primeiro, a urbanização e a ocupação compulsória. O proprietário terá tantos anos para botar isso na roda, lotear, fazer um empreendimento habitacional ou outro tipo de empreendimento. Aí, se não fizer, será submetido ao IPTU progressivo, será penalizado com o aumento do IPTU. Se a pessoa mesmo assim não fizer nada, ela pode ser desapropriada com título da dívida pública. Dois municípios do Brasil fizeram esse percurso. Não há apetite das prefeituras para aplicar a legislação porque o poder local, as câmaras municipais e os prefeitos são muito comprometidos com o capital imobiliário.
Tivemos um momento em que parecia que íamos a algum lugar, em meados dos anos 90. Era o começo do PT, a luta contra a ditadura, Brizola, o PT gerou uma série de prefeitos… O programa mais festejado desse ciclo virtuoso foi o orçamento participativo, democracia direta na discussão do orçamento. Se a gente tivesse continuado com isso, a gente tinha mudado o País! O assalto ao orçamento público, nos três níveis, é bárbaro. Por que a PEC 55 foi aprovada? Porque não conseguimos diminuir o assalto dos interesses financeiros em cima do orçamento federal.
Quando Lula entrou, a gente criou o Ministério das Cidades e houve um declínio da condição de vida urbana. A minha tese é a de que, com o Lula, voltou o investimento federal nas cidades. E na hora em que o dinheiro apareceu, os movimentos sociais perderam espaço. O dinheiro apareceu e os capitais tomaram comando sobre a cidade. Enquanto não tinha dinheiro, a gente tinha democracia urbana e experiências avançadas, como urbanização de favelas, os CEUs. Imagina o que significa pegar um edifício de alta qualidade e botar num lugar extremamente pobre, irregular, sem infraestrutura. Essas periferias ilegais são uma verdadeira fonte da violência, não têm lei.
Todo o orçamento foi feito drenado para algumas políticas orientadas pelo interesse de capitais. Isso foi muito notável nos megaeventos, nas obras urbanas do PAC 2. O PAC 1 ainda conservava uma virtuosidade desse ciclo que eu estou falando.
O Minha Casa Minha Vida desandou mesmo. Não que não seja importante você pegar um recurso e investir para a construção massiva de moradia. Mas essa produção, com exceção de 2% orçamento, foi orientada pelo mercado. E ela não enfrentou o que é o nó do problema habitacional, que é a função social da propriedade. O Minha Casa Minha Vida jogou o conjunto dos pobres para fora da cidade. A mesma coisa que a ditadura fazia. Então 2% do orçamento foi aplicado em um projeto chamado Minha Casa Minha Vida Entidades, com movimentos de moradia e assistência técnica de engenheiros, arquitetos, advogados e assistentes sociais. Chegaram a projetos magníficos.
A Dilma Rousseff tem uma cabeça muito desenvolvimentista. Esse pessoal dificilmente enxerga uma cidade. Os metrôs em construção no País, por exemplo. Todos eles seguem uma lógica ditada pelo mercado imobiliário. Quase todos vão para aeroportos. Tem mulher que deixa criança sozinha e passa 4 horas por dia nos transportes. Foi por aí que se traçou o desenho desses metrôs? Não. Foi pelos interesses do mercado imobiliário.
A cabeça dos desenvolvimentistas é assim: precisamos investir para o País crescer e criar emprego. É menos pior que o ultraliberalismo do governo Temer, porque pelo menos se investe. Mas eles não percebem que o desenho da linha que essa grande obra vai criar marca a cidade, as relações sociais na cidade, acrescenta renda e valorização às terras que ela está atravessando. Aqui em São Paulo conseguimos barrar uma obra absurda: a Operação Urbana Água Espraiada.
Na época do Kassab, o pessoal deitou e rolou. As empreiteiras inventaram obras, criaram. O projeto do túnel começou com 500 metros e terminou com 3 quilometros. O orçamento era 50% do orçamento de saúde. O túnel supostamente seria pago pela arrecadação da operação urbana, mas o pessoal tomou cuidado quando fez a lei: se não houvesse recursos suficientes, o túnel seria pago com recursos do município. O dinheiro para esse túnel ia sair da saúde, educação, manutenção urbana. É jogo pesado. E tem um detalhe: só passa automóvel pelo túnel, não podia passar transporte coletivo. Aí reunimos doutores e mestres da USP que ainda têm algum prestígio e fizemos um abaixo-assinado dizendo que era ilegal, porque a prioridade segundo nosso Plano Diretor é o transporte coletivo. Como gastar mais de um 1 bilhão de reais para fazer um túnel que não serve ao transporte coletivo? Barramos no início do governo Haddad. O Kassab deixou esse túnel licitado.
A principal questão para resolver a crise é aplicar a função social da propriedade?
Exato. Mas tem um problema, que é esclarecer o que é a função social da propriedade na lei. Tem juízes definindo a função social pró-interesse do proprietário privado. Não é função social, aí é individual. Mas eu não acredito mais em lei. Acho uma besteira definir as coisas em lei. Elas são aplicadas de acordo com as circunstâncias do Brasil.
E qual o caminho, então?
A luta social. Não estou falando de guerra, violência, mas de luta social. Por exemplo, para informar a sociedade a realidade das cidades. Por que você tem 2 milhões de pessoas em área de proteção a mananciais, pondo em risco a reserva de água que nós temos? Que ironia, veja. O Estado e a sociedade admitem que os pobres ocupem a área de proteção a mananciais. Os pobres não evaporam, se eles não ocuparem aquilo, precisam de outro lugar. Admite-se porque aquele lugar não interessa ao mercado. Aquela área é proibida de ser ocupada com densidade. Por ser proibida ao mercado, ela sobra para os pobres.
O que esperar do governo Temer com relação às políticas habitacionais?
Aí é barbárie, né. O FHC fez algumas políticas compensatórias, mas realmente não tinha investimento. Lula voltou a investir. Assumiu um pouco do welfare state, o Estado que faz políticas sociais, para crescimento, assumiu o desenvolvimentismo. Qual o principal erro do desenvolvimentismo, principalmente a partir da crise de 2008? Na cabeça da Dilma é pensar que não podemos aceitar a recessão. Lançou o Minha Casa Minha Vida, liberou desonerações para vários setores da indústria, como a de automóveis, e um programa fortíssimo de construção na área de habitação. Sem enfrentar o problema fundiário. Isso não existe para os desenvolvimentistas, não enxergam que quando você joga dinheiro na produção de moradia, você aumenta o preço da terra. As nossas cidades acabam aumentando o círculo da periferia por causa do aumento do preço da terra. Não enfrentou a questão imobiliária. O  maior erro foi apostar muito na indústria automobilística. Durante o lulismo, de 2003 a 2012, as cidades dobraram o numero de automóveis. Onde os municípios mais gastam dinheiro? Na circulação de automóvel.
E quais mudanças devem vir com o governo Temer?
Agora não tem dinheiro para nada. E agora é privatização. Eu tenho uma certa idade, estudo as cidades desde 1971, acompanhei o desenvolvimentismo da ditadura, década de 70, o impacto do choque do petróleo e a queda do crescimento econômico na virada dos anos 80. Eu fazia trabalho de base com a Igreja Católica, vi o que foi a violência aumentar na periferia a um ponto que, depois de 8 anos, eu não trabalhava mais à noite. Comecei a ver o que é a mortandade de jovens na periferia. O que vamos ver daqui para frente, nas periferias das cidades, é esse ovo da serpente que está aí, que já está gerando serpente: o crime organizado cresce e domina as periferias. A violência, a falta de perspectiva, ela está chegando.
A gestão Haddad trouxe avanços na questão habitacional?
Durante a gestão Fernando Haddad houve avanços em várias áreas, significativos, inovadores. Na questão da mobilidade ele foi de uma coragem imensa. Na agroecologia urbana, segurança alimentar, agricultura urbana, e é um negócio no qual precisamos apostar, o único jeito de salvar os mananciais. Isso foi maravilhoso. Com a Habitação aconteceu o seguinte: durante três anos ficou uma indicação do Paulo Maluf na Secretaria. Era um professor da Poli, digno e honesto, mas não foi a política do ciclo virtuoso que eu apontei. Com a potencialidade dos movimentos sociais, fazer casas de boa qualidade, de construção, de arquitetura e baixo preço. Isso só aconteceu no último ano, quando entrou João Whitaker, da FAU-USP. Ele conhece muito do assunto e em um ano ele fez dois. Tudo o que era necessário de terra para novos empreendimentos foi desapropriado, alguns conjuntos iniciados, e outros estão em andamento. Se tivesse ficado quatro anos, teríamos outro resultado. Mas habitação é mobilidade também. Ninguém mora na casa, mora na cidade, algo que o Minha Casa Minha Vida ignorou.
E de João Dória, o que podemos esperar?
Eu acho que o Dória representa uma elite que não tem a menor ideia do que é a cidade de São Paulo, que vive numa ilha. E não é uma coisa muito escandalosa porque a mídia toda e organismos públicos trabalham com essa ilha da fantasia também. Temos uma abundância de leis detalhistas e uma ilegalidade abundante também. É muito dialético trabalhar com essas coisas. O código de obras e edificações diz como se ergue uma casa, a lei de parcelamento do solo, a lei de zoneamento diz como ocupar e com que uso, qual o afastamento lateral, frontal, de fundo, e nada disso vale para uma parte da cidade. Uma parte significativa. No município de São Paulo estamos falando de um quarto da população. A impressão que eu tenho é de que essa elite trabalha com uma ficção. E eu acho que vai depender da correlação de forças. Se as coisas estão calmas, você pode trabalhar com essa ficção. A gente passa quatro anos no faz de conta. Veste a fantasia de gari, pode vestir de outras coisas e a coisa não explode. Mas como vamos entrar num aprofundamento do desemprego, não vai ser fácil.
A senhora soube da prisão do Guilherme Boulos, do MTST, na reintegração de posse de uma ocupação em São Mateus?
Esse tipo de coisa vai se ampliar. Não tenha a menor dúvida, por causa do desemprego… Quando a Erundina assumiu, a gente estava vivendo uma super depressão e o povo ocupando onde podia. O povo não evapora, gente! O pessoal precisa morar em algum lugar. Aí vai para beira de córrego, Serra do Mar, desmata, área de proteção de mananciais. Isso não mexe com o interesse do mercado.
As reintegrações de posse ocorrem da maneira como deveriam?
Claro que não! Existe juiz com sensibilidade, mas é raro. Eu já falei isso em aula para magistrados. Por que o Judiciário desconhece a legislação urbanística? Um dia um pessoal me respondeu: nas faculdades de Direito, direito urbanístico não é obrigatório, é facultativo. A tendência, com o desemprego, é aumentarem as ocupações. Se for de fato para tirar todo mundo que está ilegal, eu desafio a tirarem 2 milhões de pessoas que moram nos mananciais, que não fere nenhum interesse privado. As leis se aplicam de acordo com as circunstâncias. O povo só ocupa quando o terreno não cumpre a função social da propriedade. O direito à moradia é absoluto na Constituição, o da propriedade não, é relativizado pela função social

Em tese de doutorado, pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência Social no Brasil forjada pelo governo com apoio da imprensa

Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.
O superávit da Seguridade Social - que abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência - foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira - condena a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado "A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 - 2005" (leia a tese na íntegra).
Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.
A entrevista é de Coryntho Baldez, publicada por Jornal da UFRJ, 11-01-2016.
Eis a entrevista.
A idéia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?
A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state (Estado de Bem Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo.
O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.
No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.
Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.
A que números você chegou em sua pesquisa?
Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).
Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.
Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.
Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.
Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?
Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.
Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias.
E são recursos que retornam para a economia?
É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.
De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?
A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficou conhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo para as de menor.
Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?
É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.
O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar outras despesas?
A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamandoo de "Orçamento Fiscal e da Seguridade Social", no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o "rombo" da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?
Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?
Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente consolidados.
Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?
Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.
A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?
Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínima para a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.
Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada através de certos indicadores.
Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?
A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre "crise" da Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.

Acorda população brasileira das mentiras da Globo - a rede globo reproduz a "doutrina do choque" e do medo. Democratização dos meios de comunicação por uma prestação de serviço público descente e transparente nas informações.

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Sobre o assunto de tantas mentiras, recordamos alguns artigos:

A Previdência social não tem déficit, constata economista


"Em suma, à luz da Constituição da República, não se pode considerar a Previdência Social apartada da Seguridade Social. Mais especificamente, não se pode excluir o financiamento da Previdência Social (Rural e Urbana) do conjunto de fontes que integram o Orçamento da Seguridade Social que sempre foi superavitário. Portanto, não há como se falar em “déficit” na Previdência Social", escreve Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp), em artigo publicado por Plataforma Política Social. Caminhos para o Desenvolvimento, 21-02-2016.
Eis o artigo.
As conquistas do movimento social das décadas de 1970 e 1980 contrariaram os interesses dos detentores da riqueza. Em grande medida, isso se devia ao fato de que mais de 10% do gasto público federal em relação ao PIB passou a ser vinculado constitucionalmente à Seguridade Social. Desde a Assembleia Nacional Constituinte até os dias atuais, esses setores desenvolvem ativa campanha difamatória e ideológica orientada para “demonizar” a Seguridade Social e, especialmente, o seu segmento da Previdência Social, cujo gasto equivale a 8% do PIB.
Nesta campanha prepondera o vale-tudo para recapturar esses recursos. Em flagrante confronto com a Constituição da República, especialistas esforçam-se para “comprovar” a inviabilidade financeira da Previdência, para justificar nova etapa de retrocesso nesses direitos.
O objetivo deste artigo é assinalar que não existe déficit na previdência, caso seja considerado o que a Constituição da República Federativa do Brasil manda fazer e o modo como determina que sejam executados os procedimentos.
O modelo tripartite de financiamento da Seguridade
Seguridade Social é ao mesmo tempo o mais importante mecanismo de proteção social do País e um poderoso instrumento do desenvolvimento. Além de transferências monetárias para a Previdência Social (Rural e Urbana), contempla a oferta de serviços universais proporcionados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), pelo Sistema Único de Segurança Alimentar e Nutricional (Susan) e pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), com destaque para o programa seguro-desemprego.
Para financiar a Seguridade Social (artigo 194 da Constituição Federal), os constituintes de 1988 criaram o Orçamento da Seguridade Social (artigo 195) um conjunto de fontes próprias, exclusivas e dotadas de uma pluralidade de incidência. As contribuições sociais pagas pelas empresas sobre a folha de salários, o faturamento e lucro, e as contribuições pagas pelos trabalhadores sobre seus rendimentos do trabalho integram esse rol exclusivo de fontes do Orçamento da Seguridade Social, com destaque para:
* Receitas da Contribuição previdenciária para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) pagas pelos empregados e pelas empresas;
* Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL);
* Contribuição Social Para o Financiamento da Seguridade Social, cobrada sobre o faturamento das empresas (Cofins);
* Contribuição para o PIS/Pasep para financiar o Programa do Seguro-Desemprego e para financiar os programas de desenvolvimento do BNDES, igualmente cobrada sobre o faturamento das empresas;
* Receitas das contribuições sobre concurso de prognósticos e as receitas próprias de todos os órgãos e entidades que participam desse Orçamento.
Destaque-se que a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL) e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social, cobrada sobre o faturamento das empresas (Cofins) foram criadas pelos constituintes em 1988 para financiar os benefícios típicos da Seguridade Social (Previdência RuralBenefício de Prestação Continuada e SUS, público, gratuito e universal). Essas contribuições estavam previstas no documento “Esperança e mudança: uma proposta de governo para o Brasil” (PMDB, 1982).
Com o Orçamento da Seguridade Social, os constituintes estabeleceram o mecanismo de financiamento tripartite clássico (trabalhador, empresa e governo, através de impostos) dos regimes de Welfare State.
Estudos realizados pelo IPEA (2006) demonstram que para um conjunto de quinze países da OCDE, em média, os gastos com a Seguridade Social representam 27,3% do PIB e são financiados por 38% da contribuição dos empregadores; 22% pela contribuição dos empregados; e 36% da contribuição do governo (através de impostos gerais pagos por toda a sociedade). Em cinco países (Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo, Reino Unido e Suécia), a participação do governo é relativamente mais elevada.
No Brasil, a contribuição estatal que deve integrar essas contas é muito pequena. Em 2012, de um total de R$ 317 bilhões utilizados para pagar benefícios previdenciários, as contribuições exclusivamente previdenciárias (empresas e trabalhadores) somaram R$ 279 bilhões (88% do total). A parcela estatal propriamente dita seria de apenas 12%, um montante muito inferior à terça parte (33%) que caberia numa conta tripartite.
Se nessa conta fossem consideradas as renúncias fiscais, outros R$ 22 bilhões comporiam as receitas previdenciárias, cabendo ao Tesouro tão somente complementar 5% do total das despesas previdenciárias. Uma conta insignificante, de R$ 16 bilhões, 0,33% do PIB (ANFIP, 2013).
Portanto, os constituintes de 1988 seguiram a experiência internacional clássica e ratificaram o sistema tripartite introduzido por Getúlio Vargas na década de 1930 e seguido desde então, inclusive pela ditadura civil e militar.
Os reformadores de 1988 vincularam constitucionalmente recursos do Orçamento da Seguridade Social, para evitar uma prática corrente na Ditadura Militar: a captura, pela área econômica, de fontes de financiamento do gasto social. Naquela época, em vez de a política econômica financiar a política social, a política social financiava a política econômica. Aquela lógica invertida assim continuou (invertida) pelos governos democráticos a partir de 1990.
“Déficit” e Contribuição do Governo
Desde 1989 nunca se cumpriu rigorosamente o que reza a Constituição da República, no que diz respeito aos princípios da Organização, Financiamento e Controle Social da Seguridade Social (consultar FAGNANI E TONELLI VAZ, 2013). Como mencionado, o artigo 194 da Constituição Federal declara que a Previdência Social é parte integrante da Seguridade Social e conta com recursos do Orçamento da Seguridade Social (artigo 195).
Contrariamente ao que determina a Constituição os Poderes Executivo (MPAS, MPOG, MF e BC) e Legislativo não consideram a Previdência como parte da Seguridade Social. Desde 1989, o MPAS adota critério contábil segundo o qual a sustentação financeira da Previdência depende exclusivamente das receitas próprias do setor (empregados e empregadores). A parcela que cabe ao governo do governo no sistema tripartite não é considerada. Essa lacuna leva, inexoravelmente ao “déficit” do Regime Geral de Previdência Social (Urbano e Rural).
Essa prática contábil só serve, unicamente, para criar, alardear um falso déficit e justificar mais ‘reformas’ com corte de direitos. São invencionices, pois desconsideram os artigos 165, 194, 195 e 239 da Constituição da República.
A Seguridade Social é Superavitária
O governo jamais organizou a Seguridade Social e apresentou o Orçamento da Seguridade como ordenam os dispositivos constitucionais mencionados. Alguns especialistas (GENTIL, 2007) e instituições têm desenvolvido esforço metodológico nesse sentido. Esses estudos revelam que o Orçamento da Seguridade Social sempre foi superavitário. Em 2012, por exemplo, apresentou saldo positivo de R$ 78,1 bilhões (as receitas totalizaram R$ 590,6 bilhões e as despesas atingiram R$ 512,4 bilhões) (ANFIP, 2013)


Portanto, à luz da Constituição da República, não há como se falar em “déficit” na Previdência Social. Na verdade, sobram recursos que são utilizados em finalidades não previstas na lei. Assim, como ocorria na ditadura, a Seguridade Social continua a financiar a política econômica.
Captura de Recursos da Seguridade Social
Orçamento da Seguridade Social tem-se mantido superavitário, mesmo com a instituição da atual Desvinculação das Receitas da União (DRU), em 1994, que captura 20% dessas receitas para serem aplicadas livremente pela área econômica. Com subtração de recursos e com muitas manobras que inflavam artificialmente as despesas, fizeram da Seguridade uma importante fonte para o ajuste fiscal do período. Só em 2012, a DRU retirou da Seguridade Social R$ 52,6 bilhões. O acumulado, só para o período 2005-2012, totaliza mais de R$ 286 bilhões (ANFIP, 2013).
Da mesma forma, o Orçamento da Seguridade Social tem-se mantido superavitário mesmo com o aprofundamento da política de concessão de isenções fiscais para setores econômicos selecionados iniciado nos anos de 1990, quando, por exemplo, o setor do agronegócio foi isentado de contribuir para a Previdência Rural. Essa política foi aprofundada a partir de meados da década passada. Em 2012, as isenções tributárias concedidas sobre as fontes da Seguridade Social (CSLL, PIS/Pasep, Cofins e Folha de Pagamento) totalizaram R$ 77 bilhões (1,7% do PIB). Em 2013 a ANFIP previa que elas atingiriam 2,7% do PIB no ano seguinte (ANFIP, 2013).
Assim como a DRU, esse processo também deprime o superávit da Seguridade Social e poderá comprometer sua sustentação financeira no futuro.
A Previdência é parte da Seguridade Social.
Em 1988, a sociedade concordou em assegurar proteção à velhice para milhões de trabalhadores rurais que começaram a trabalhar nas décadas de 1940, sem registro na carteira e em condições de semiescravidão. Houve naquele momento um pacto social para resgatar uma injustiça histórica cometida contra esse segmento.
Por outro lado, a Carta de 1988 fixou uma contribuição com base muito limitada para financiar o estoque de trabalhadores rurais e o fluxo de novos beneficiários. Essa base de contribuição é ainda mais restringida pelas isenções fiscais dadas ao agronegócio exportador (Emenda Constitucional 33/1997). Entretanto a COFINS e a CSLL, criadas em 1988, suprem o financiamento deste benefício típico da seguridade. Essas contribuições foram instituídas para que o estado cumpra sua parte no sistema tripartite.
Em suma, à luz da Constituição da República, não se pode considerar a Previdência Social apartada da Seguridade Social. Mais especificamente, não se pode excluir o financiamento da Previdência Social (Rural e Urbana) do conjunto de fontes que integram o Orçamento da Seguridade Social que sempre foi superavitário. Portanto, não há como se falar em “déficit” na Previdência Social.
Nas contas dos resultados financeiros do RGPS apresentados pelo MPAS, além da devida e pronta compensação das renúncias, é necessário acrescer a contribuição do Estado, para complementar a base de financiamento tripartite do modelo. Se as contas da previdência social fossem assim apresentadas, o mito do déficit estaria desmascarado.
Notas:
1. Artigo escrito para o projeto “ Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil” (Região e Redes – Caminho para a Universalização da Saúde no Brasil). Baseado em Fagnani e Tonelli Vaz (2013).
Referencias:
ANFIP (2013). Análise da Seguridade Social 2012. Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil e Fundação ANFIP de Estudos da Seguridade Social – Brasília: ANFIP, 2013, 131 p.
FAGNANI, E. e TONELLI VAZ, F. (2013). Seguridade social, direitos constitucionais e desenvolvimento. In: FAGNANI. E. & FONSECA, A (ORG). (2013 – B). Políticas sociais, universalização da cidadania e desenvolvimento: educação, seguridade social, infraestrutura urbana, pobreza e transição demográfica. São Paulo, Fundação Perseu Abramo (ISBN, 978-85-7643-178-7).
GENTIL, Denise, L. (2007) Política econômica e Seguridade Social no período pós-1994. Carta Social e do Trabalho, n.7. Campinas: Instituto de Econômica da Unicamp: Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho. Publicação eletrônica (www.eco.unicamp.br)
IPEA (2006). Brasil – o estado de uma nação – mercado de trabalho, emprego e informalidade. Tafner, P (editor). Brasília: Ipea.
PMDB (1982). Esperança e mudança: uma proposta de governo para o Brasil. Revista do PMDB, ano II, n. 4. Rio de Janeiro: Fundação Pedroso Horta.

Especialistas desmentem números que anunciam rombo na previdência

“As pessoas não vão aceitar. Se elas tiverem acesso a essas informações, não podem aceitar isso”. A frase é da economista Denise Gentil, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A indignação que ela aposta que mobilizará a maioria da população brasileira é com a proposta de uma nova reforma da previdência, que o governo interino promete apresentar e aprovar no Congresso Nacional ainda este ano. As informações que alimentariam essa recusa são simplesmente a negação de tudo que você lê e ouve diariamente nos jornais: na pesquisa feita para sua tese de doutorado, Denise mostra, com dados oficiais, que o Brasil não tem nenhum rombo na previdência social. Mais do que isso: anualmente, sobra (muito) dinheiro no sistema público que hoje garante aposentadorias e pensões a 32 milhões de trabalhadores. Até agora, o ‘otimismo’ da pesquisadora em relação a uma ‘grita’ da população tem razão de ser: segundo a pesquisa ‘Pulso Brasil’, realizada pelo Instituto Ipso em junho deste ano, nos 70% de desaprovação do governo Temer, a forma como o interino vem atuando em relação à reforma da previdência é o que tem a maior taxa de rejeição — 44%.
A reportagem é de Cátia Guimarães, publicada por EPSJV/Fiocruz, 22-07-2016.
O fato é que, como resposta à crise econômica, uma nova reforma da previdência vem sendo desenhada desde o ano passado. Ainda no governo da presidente Dilma Rousseff, foi criado o Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social, que produziu um relatório de diagnóstico mas não chegou a apresentar ou apreciar propostas. Após o afastamento temporário da presidente, o governo interino teve pressa: montou um novo Grupo de Trabalho, com a participação de quatro centrais sindicais — Força Sindical, União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB) e Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST) —, além da Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) para encaminhar o tema. Na primeira reunião, o governo interino apresentou o seu diagnóstico. Na segunda, as centrais entregaram propostas para aumentar as receitas da previdência. No dia 28 de junho, aconteceu o terceiro e último encontro. Nele, os ministros interinos encaminharam a substituição desse grupo por outro mais reduzido, agora com a presença de um representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que até então não vinha participando das negociações, um integrante do governo interino e um porta-voz dos trabalhadores (Dieese). Antecipando medidas de ‘economia’ que atingem diretamente a previdência, o governo interino emitiu, no dia 7 de julho, um Medida Provisória (nº 739/2016) que dificulta ainda mais o acesso ao auxílio-doença e à aposentadoria por invalidez. Entre as mudanças implementadas, está a interrupção automática do benefício no prazo de 120 dias, obrigando o segurado a requerer a prorrogação junto ao INSS, e a criação do Bônus Especial de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por Incapacidade, que significará um “incentivo” no valor de R$ 60 pago pelo governo aos médicos por cada perícia realizada além da “capacidade operacional ordinária”. Antecipando o resultado das perícias que ainda serão feitas, o governo já calcula que essas medidas gerarão uma economia de R$ 6,3 bilhões anuais, às custas da diminuição de benefícios dos trabalhadores.
A proposta oficial de reforma da previdência, no entanto, não tinha sido apresentada até o fechamento desta matéria. Mas isso é apenas um detalhe. Desde o seu programa antecipado de governo até as muitas declarações de Henrique Meirelles, ministro interino da fazenda, e do próprio Temer, não é segredo para ninguém que, entre outras coisas, o governo provisório quer instituir (e aumentar) a idade mínima para a aposentadoria e restringir as regras da previdência rural. O argumento é que, em nome do ajuste fiscal, são necessárias medidas estruturais que reduzam os gastos do Estado. E a previdência aparece destacada como o maior deles, responsável por um rombo que, segundo previsões do governo interino, deve chegar a R$ 136 bilhões este ano. Esses números, no entanto, são desmentidos por pesquisadores e entidades que se dedicam ao tema.
Contas que não batem
Por mais que a matemática seja considerada uma ciência exata, quando o assunto é a situação da previdência no Brasil, há muito tempo que dois mais dois não têm dado quatro. Lidando com os mesmos dados primários, governos (o interino e o da presidente Dilma) e estudiosos chegam a resultados diametralmente opostos. Para se ter uma ideia, enquanto os economistas do governo provisório apontam em 2015 um déficit de R$ 85 bilhões, no mesmo ano as planilhas da Anfip anunciam um superávit de R$ 24 bilhões. E a comparação com os anos anteriores mostra que, em função do aumento do desemprego, que diminui a arrecadação, esse saldo positivo foi bem menor do que os R$ 53,9 bilhões que sobraram em 2014 e os R$ 76,2 bilhões de 2013, anos em que, do lado do Planalto, já se falava em déficit. “O governo faz um cálculo muito simplório. De um lado, ele pega uma das receitas, que é a contribuição ao INSS, dos trabalhadores, empregadores, autônomos, trabalhadores domésticos, que é o que a gente chama de contribuição previdenciária. Do outro, pega o total do gasto com os benefícios: pensão, aposentadoria, todos os auxílios — inclusive auxílio doença, auxílio-maternidade, auxílio-acidente — e diminui. Então, isso dá um déficit”, explica Denise Gentil.
A primeira vista, pode parecer um erro matemático. Isso porque a Constituição Federal estabelece, no artigo 194, que, junto com a saúde e a assistência social, a previdência é parte de um sistema de seguridade social que conta com um orçamento próprio. Esse orçamento, por sua vez, é alimentado por tributos criados especificamente para esse fim. Assim, diferente do que os governos fazem, na parcela de cima da conta da previdência — a receita — devem ser incluídas não apenas as contribuições previdenciárias mas também recursos provenientes da Contribuição Social Sobre Lucro Líquido (CSLL), Contribuição sobre o Financiamento da Seguridade Social (CSLL) e do PIS-Pasep. Para se ter uma ideia da diferença que esse ‘detalhe’ faz, contadas apenas as contribuições previdenciárias, a receita bruta da previdência em 2014 foi de R$ 349 bilhões para pagar um total de R$ 394 bilhões de benefícios. Essa conta, que Denise caracteriza como “simplista”, mostra um déficit de R$ 45 bilhões — ainda assim muito menor do que o anunciado pelo governo. Quando, no entanto, se considera a receita total, incluindo os mais de R$ 310 bilhões arrecadados da CSLLCofins e PIS-Pasep, esse orçamento pula para R$ 686 bilhões.
Talvez você esteja supondo que o dinheiro que sobrou no orçamento da seguridade social mas faltou no da previdência tenha sido usado nas outras duas áreas a que, constitucionalmente, ele se destina: saúde e assistência. Mas essa é uma meia verdade. A soma dos gastos federais com saúde, assistência e previdência totalizou, em 2014, R$ 632 bilhões. Como o orçamento da seguridade foi de R$ 686 bi, no final de todas as receitas e todas as despesas, ainda sobram R$ 54 bilhões. E como esse saldo se transforma em déficit? Com uma operação simples: antes de destinar o dinheiro para essas áreas, o governo desvia desse orçamento 20% do total arrecadado com as contribuições sociais, o que, em 2014, significou um ralo de R$ 60 bilhões.
Na prática, isso significa que o orçamento que a Constituição vinculou, governos e parlamentos vêm desvinculando todos os anos, desde 1994. Trata-se da Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo aprovado e renovado no Congresso a cada quatro anos que autoriza os governos a usarem livremente parte da arrecadação de impostos e contribuições, sempre sob o argumento de que é preciso desengessar o orçamento para melhor administrar o pagamento da dívida pública. Ela acaba de ser mais uma vez prorrogada no Congresso, agora por um período mais longo (oito anos e não quatro) e com uma alíquota maior, de 30%. Segundo cálculos da Anfip, em 12 meses isso significará o desvio de cerca de R$ 120 bilhões arrecadados por meio de contribuições sociais, que deveriam alimentar o caixa da seguridade social. “Se a previdência é deficitária, o governo vai retirar 30% da onde? Como um sistema que está à beira de quebrar pode ceder 30% para outros fins que nem se precisa justificar?”, provoca Sara Graneman, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e pesquisadora do tema.
Por mais contraditório que seja, a DRU fornece o amparo legal para o cálculo dos governos, que contraria a garantia prevista na Constituição. Mas aqui é necessário cautela. Primeiro porque nem com a DRU o “rombo” chega perto do que os governos e jornais alardeiam. Segundo porque, mesmo com a DRU, o orçamento continuaria positivo se os governos não retirassem outra bolada do caixa da previdência e da seguridade por meio de isenções fiscais, ou seja, tributos que deixam de ser cobrados das empresas, como forma de ‘incentivo’. Agora mesmo em 2016, ano em que a reforma da previdência vem sendo debatida como prioridade tanto pelo governo eleito afastado quanto pelo governo interino, a Lei Orçamentária Anual, enviada pelo Executivo e aprovada pelo Congresso, prevê R$ 69 bilhões de renúncia apenas dos recursos da previdência, sem contar o conjunto das contribuições que financiam toda a seguridade social. A simples decisão de não abrir mão desses recursos faria com que a previdência fechasse as contas no azul. “Você diz que a previdência tem um déficit de R$ 85 bilhões mas renuncia ao equivalente a 3% do PIB de receita? E depois quer que a sociedade aceite uma reforma da previdência?”, questiona Denise Gentil. Isso sem contar a sonegação fiscal que, segundo cálculos do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, impediu que R$ 453 bilhões chegassem aos cofres públicos no ano passado. Em outras palavras: o déficit é produzido, não por fórmulas matemáticas, mas por opções políticas. “Ninguém discute neste país os mais de R$ 501 bilhões que foram bastos no ano passado com os juros da dívida. Ninguém discute os mais de R$ 200 bilhões que foram gastos só para segurar a taxa de câmbio. Mas discute-se o fato de que 70% dos benefícios da previdência são de até dois salários mínimos. É uma loucura!”, diz DeniseSara completa: “Não é a estrutura de financiamento nem a pirâmide etária que têm problemas. O problema é a retirada de recursos. Essa é a maior pedalada que o Brasil tem”.
Concepções que não batem
Denise é enfática em afirmar que “não faz sentido falar em déficit da previdência”. E, ao dizer isso, ela não está apenas repetindo que as contas do governo estão erradas. “Trata-se de um princípio filosófico”, explica, defendendo a concepção que orientou o capítulo de seguridade social da Constituição. “A ideia é nós termos um sistema de proteção social que abrange as pessoas na velhice, na adolescência, na infância…”, exemplifica, para justificar por que essas áreas, que atendem a necessidades sociais, têm que ser geridas pela demanda e não pela oferta de recursos disponíveis.
O grande salto da Constituição foi compreender que, como sistema voltado a garantir direitos, a seguridade deveria ser “financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta”. O envelhecimento da população e a mudança na pirâmide etária brasileira, por exemplo, que têm sido usados como um dos principais argumentos em defesa de uma nova reforma, já estavam previstos no princípio que regeu esse capítulo da Constituição. Essa é uma das razões para que se tenha um orçamento composto não só por contribuições dos próprios trabalhadores e seus empregadores, mas também por tributos pagos pelas empresas em geral. A idéia era exatamente garantir sustentabilidade mesmo quando a população de idosos, que usufrui da aposentadoria, superasse a população economicamente ativa, que contribui para ela. “A Constituição de 1988 foi um raio em céu azul. Porque a partir dali o que houve foi uma dilapidação dos princípios constitucionais, foi a ilegalidade sendo patrocinada pelo Estado para restringir direitos sociais”, lamenta Denise, que completa: “É uma disputa antiga e será eterna porque é uma disputa de classe”.
Problemas do envelhecimento?
De fato, embora não tenha apresentado uma proposta oficial, a medida mais alardeada na reforma da previdência prometida pelo governo interino é o estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria. O argumento: a população brasileira está envelhecendo e, em 2040, essa mudança da pirâmide vai tornar o sistema insustentável. “Acho um certo excesso de zelo. Os governos não conseguem prever a próxima crise e querem nos convencer do que vai acontecer em 2040?”, ironiza Sara Granemann.
O argumento da pressão demográfica também não é novo. O relatório elaborado pelo grupo técnico instituído pelo governo Dilma, que discutiu o tema até pouco antes do afastamento da presidente, informa que, em 2015, a expectativa de vida do brasileiro era de 75,4 anos e que, em 2042, esse tempo médio de vida subirá para 80,07 anos. “O aumento da longevidade da população demanda ações específicas para a sustentabilidade da seguridade social”, conclui o relatório. Sara ressalta que essa mudança etária deveria ser comemorada e não servir de pretexto para se retirar direitos da população. “O aumento da expectativa de vida é um feito da humanidade no século 20. Se elevar para todo mundo a aposentadoria para 65 anos, por exemplo, você terá pessoas se aposentando a menos de dez anos da morte”, alerta. Declarações mais recentes do Palácio do Planalto, no entanto, dão conta de um cenário ainda pior: matéria publicada no jornal O Globo no último dia 27 de junho afirma que o “governo Temer quer permitir aposentadoria só a partir dos 70 anos”. A notícia é que o projeto que está sendo elaborado proporia idade mínima de 65 anos para agora, ampliando para 70 daqui a 20 anos. “O cálculo é o quanto mais perto da morte o direito da aposentadoria deve chegar”, denuncia Sara.
Vilson Romero, presidente da Anfip, explica que a primeira desmistificação que precisa ser feita é exatamente em relação a essa expectativa de vida. E aqui o pulo do gato do discurso governamental está em divulgar apenas o cálculo da “média”. “Como estabelecer uma idade mínima para aposentadoria num país como o Brasil, onde no campo se morre aos 55 anos e no Rio Grande do Sul há quem viva até os 85, 90 anos?”, questiona, destacando a maioria dos brasileiros que vivem sob condições precárias de trabalho morre antes de fazer jus à aposentadoria.
Mas os especialistas ouvidos pela Poli alertam ainda para uma segunda desmistificação necessária nessa discussão. “Já existe idade mínima”, diz Sara. Além dos auxílios (doença, maternidade, entre outros), pensão por morte e benefícios acidentários e assistenciais, o Regime Geral da Previdência Social engloba três modalidades de aposentadoria: por invalidez, idade e tempo de contribuição. Por definição, não cabe restrição de idade para as aposentadorias concedidas a pessoas que, vitimadas por doenças ou acidente, tenham ficado impedidas de trabalhar. A aposentadoria por idade já estabelece o mínimo de 60 anos para mulheres e 65 para homens – nesse caso, o objetivo de uma nova reforma seria jogar a aposentadoria mais para frente. A modalidade por tempo de contribuição permite que o trabalhador se aposente em qualquer idade, desde que contribua durante 30 anos, se for mulher, ou 35 anos no caso dos homens. É nessa modalidade que poderia estar concentrado o contingente de trabalhadores que conseguem o benefício aos 55 anos – média que tem sido alardeada pelos governos como a idade em que os brasileiros se aposentam. A partir de uma medida aprovada no ano passado, o trabalhador tem a alternativa de se aposentar quando a soma do seu tempo de contribuição (30 ou 35) com a idade resultar em 85 ou 90 para mulheres e homens, respectivamente. A cada dois anos, acrescenta-se um ponto nesse resultado final, de modo que, em 2026, a soma tenha que dar 90 e 100.
Além disso, mais uma vez, os números desmentem o argumento: dos 32 milhões de benefícios garantidos pela previdência brasileira, apenas 5,4 milhões ou 16,6% estão nessa modalidade. O número é baixo por uma razão muito simples: com o alto grau de informalidade e instabilidade do mercado de trabalho brasileiro, são poucas as pessoas que conseguem ter vínculo empregatício que gere contribuição por 30 ou 35 anos seguidos. Isso significa que a maioria da população brasileira se aposenta com uma idade muito maior do que aquela que é divulgada pelos defensores da reforma previdenciária. Trata-se, mais uma vez, de uma ‘matemática’ particular: segundo Romero, mesmo não fazendo o menor sentido estabelecer idade para aposentadoria por invalidez ou pensão por morte, por exemplo, esses benefícios são contabilizados pelo governo no cálculo que produz a média de 55 anos.
Velhice e desenvolvimento
Mas de pouco vale a desmistificação desses números diante da afirmação repetida de que, com a mudança da pirâmide etária, o sistema da previdência vai entrar em colapso em algumas décadas. “Não vai acontecer nada disso”, garante Denise Gentil, completando: “O discurso demográfico do envelhecimento populacional é um discurso do mercado financeiro”. Como economista, seu argumento é que não se pode fazer previsões para o futuro sem levar em conta uma variável que as análises “catastrofistas” dos governos sempre ignoram: a produtividade. “Quando você vê as planilhas do ministério da previdência, todas as variáveis estão projetadas para o futuro: massa salarial, massa de benefícios, inflação, taxa de crescimento do PIB… Só não tem a produtividade”, descreve. E explica: “Se tivesse esse cálculo, ficaria claro que, no futuro, embora existindo em menor número, cada trabalhador vai produzir muito mais do que se produz hoje. E que, portanto, essa capacidade produtiva maior vai gerar produto e renda no montante suficiente para pagar os salários dos ativos e os benefícios dos inativos”.
Diante de “uma produção gigantesca”, diz, a preocupação deve ser garantir um mercado consumidor à altura. E é aqui que entram os aposentados. “O envelhecimento da população brasileira não vai ser problema, mas solução”. Desde que eles tenham a aposentadoria garantida, claro.
Aposentadoria no campo e salário mínimo
Outro ponto que tem sido apontado pelos ‘especialistas’ governamentais é a necessidade de se mudarem as regras da aposentadoria dos trabalhadores rurais. Hoje, a Constituição permite aos trabalhadores do campo se aposentarem cinco anos antes dos urbanos, sem exigência do tempo mínimo de contribuição, recebendo um salário mínimo. Segundo Denise Gentil, as discussões da reforma vinham cogitando não só igualar a idade de aposentadoria como condicioná-la à contribuição, ou seja, equiparar com os critérios da previdência urbana. “Como se você tivesse condições de comparar essas duas realidades, do trabalhador rural e urbano, neste país”, contesta.
De fato, considerado apenas o fluxo de caixa entre a receita e a despesa previdenciária, sem levar em conta os recursos da seguridade social como um todo, o subsistema de previdência rural apresenta um déficit que, em 2015, foi de R$ 90,0 bilhões. Romero explica que, de um lado, esse desequilíbrio expressa o impacto de uma medida muito positiva para os trabalhadores: a valorização do salário mínimo na última década que, “obviamente deu uma valorizada muito grande no benefício rural”. Mas o problema, na sua avaliação, está na falta de contribuição de um setor central da economia no campo: o agronegócio. Hoje, as empresas desse ramo são isentas de contribuição previdenciária sobre o que é exportado e pagam uma alíquota de 2,6% sobre a receita bruta da comercialização interna. Como regra geral, os outros setores pagam 20% sobre a folha de pagamento. “Isso tem sido contestado pela CNA [Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil], pelo ministério da agricultura, mas eu acho que é chegada a hora de o agronegócio, que tem sido tão incentivado, ser incentivado também a contribuir um pouco mais para o equilíbrio das contas da previdência rural”, analisa Romero. Essa foi uma das dez propostas formalmente entregues pelas centrais sindicais que compuseram o GT ao governo interino.
Mas já há reação. Matéria do jornal O Estado de São Paulo no dia 23 de junho informa que uma das “alternativas” consideradas pelo governo interino na proposta de nova reforma da previdência é cobrar a contribuição do INSS das empresas do agronegócio. Na reportagem, no entanto, Roberto Brant, ex-ministro do governo Fernando Henrique, atual consultor da CNA e coordenador do programa de Michel Temer para a área — tendo sido o principal cotado para o ministério da previdência, caso ele não tivesse sido extinto — classificou essa medida como “nonsense”, argumentando que a reforma precisa priorizar a redução das despesas e não o aumento de receita.
E não foi só sobre a previdência rural que a valorização do salário mínimo destacada por Romero teve impacto. Por isso mesmo, uma das medidas que vem sendo anunciada desde o programa antecipado do governo interino é impedir que os benefícios previdenciários e assistenciais continuem tendo reajustes que acompanhem o salário mínimo. Num texto que, entre outras coisas, ignora o sistema de financiamento da seguridade social, que garante um caixa próprio, o programa do PMDB defende: “É indispensável que se elimine a indexação de qualquer benefício do valor do salário mínimo. (…) Os benefícios previdenciários dependem das finanças públicas e não devem ter ganhos reais atrelados ao crescimento do PIB”. Para Sara Granemann, inclusive, essa é a diferença substancial que se pode destacar entre as propostas que circulavam no governo Dilma e as que se cogitam agora, durante o governo interino. “Para Temer, há uma fúria de desvincular e criar um outro índice, sem dizer qual. Se Dilma voltar, talvez não faça isso”, arrisca, ressaltando, no entanto, que, embora nunca tenha aparecido como proposta, no governo petista o impacto dessa indexação sempre era apresentado como problema.
Para que tudo isso?
Para os especialistas ouvidos pela Poli, tudo isso aponta um claro processo de privatização e financeirização da previdência brasileira, que traz muitos riscos para os trabalhadores. Denise explica que o que se chama de previdência privada é, na verdade, o investimento num fundo que aplica no mercado financeiro o dinheiro pago pelos trabalhadores. “Não é previdência, é investimento, com custo alto e retorno baixíssimo”, denuncia Denise. Diferente da garantia que a previdência social oferece, aqui pode-se ganhar ou perder. O caso do Postalis, fundo de pensão dos funcionários dos Correios, é exemplar. Neste exato momento, o fundo acumula um rombo de quase R$ 7 bilhões que, segundo análises publicadas na grande imprensa, se devem principalmente a perdas em investimentos de risco, por exemplo, em títulos de outros países e nas empresas de Eike Batista. Uma solução proposta foi aumentar em 23 anos a contribuição de todos, inclusive aqueles que já teriam direito ao benefício. Segundo matéria do jornal O Globo de março deste ano, isso significaria inclusive uma redução de 18% no contracheque dos já ‘aposentados’.
Segundo dados da Anfip, em fevereiro de 1997, o Brasil tinha 255 fundos de pensão que movimentavam R$ 72 bilhões; em dezembro de 2015, são 308 fundos com uma reserva de R$ 685 bilhões. Isso talvez explique por que, na avaliação de Denise, a proposta de reforma da previdência nada tenha a ver com fluxo de caixa: trata-se, na verdade, de um amplo acordo entre Estado e mercado financeiro, que envolve o pagamento dos juros da dívida pública e o fortalecimento dos fundos de pensão, que se tornaram um verdadeiro nicho de mercado para o grande capital. “Os governos começam a divulgar que a previdência está quebrada porque as pessoas vão se sentir inseguras em usar o serviço público e vão correr para o banco fechar um plano privado. Com esse discurso, o governo tem empurrado a população para o colo dos bancos”, explica Denise, que alerta: “Você tem que se perguntar a quem serve essa reforma”.

Militares, ciências, Educação Popular.

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