Friday, March 31, 2017

A Lava Jato é um fato, mas o judiciário por si só não faz história e os novos protagonismos estão embaraçados. Entrevista especial com Carlos Lessa

O panorama nacional não se modificou nos últimos meses e tampouco é possível perceber uma “mudança de comportamento estrutural no país”, porque a “economia continua com as características que sempre teve: é a industrialização periférica mais bem-sucedida do planeta”, diz o economista Carlos Lessa à IHU On-Line, ao comentar a atual conjuntura brasileira.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Lessa defende uma transformação na estrutura produtiva do país, que hoje é fundamentalmente centralizada nas indústrias metalomecânica e automobilística. “Essa característica estrutural tem que ser levada em consideração, porque ela representa os maiores coágulos de capital que existem no país e a vanguarda da força operária. Então, a sociedade brasileira tem uma estrutura produtiva que se reflete na sua estrutura social e que se reflete na sua estrutura política. Para sair dessa dança, é necessária uma mudança estrutural significativa”, reitera. Uma reestruturação produtiva, argumenta, depende do desenvolvimento de um setor “que tenha a mesma centralidade que hoje tem a indústria automobilística. Eu só consigo pensar em um: a construção civil”.
Lessa também comenta a crise política e as consequências das Operações Carne Fraca e Lava Jato. Acerca da primeira, avalia que se trata de um “golpe pesado na indústria das carnes brasileiras”, e sobre a segunda, garante: “a novíssima geração não vai esquecer dela, não vai mesmo, porque vão chegar à conclusão de que o Brasil é deles”. E explica: “O meu problema não é de criticar ou não criticar a Lava Jato, o meu problema é diferente, e a pergunta que me coloco é: por onde ela se desdobra? Porque ela já é, ela faz parte da realidade, ela colocou o Poder Judiciário em enorme evidência, porém o Poder Judiciário, por si só, não faz história. Portanto, os protagonismos históricos ainda estão extremamente embaçados no Brasil. Se olharmos as lideranças, não perceberemos um discurso forte e afirmativo em nenhuma delas, e a Lava Jato não é, em si, uma liderança. Logo, estamos vivendo um período de crescente desarticulação política”.

Carlos Lessa | Foto: Blog da Floresta
Carlos Lessa é formado em Ciências Econômicas pela antiga Universidade do Brasil e doutor em Ciências Humanas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas - Unicamp. Em 2002, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e presidente do BNDES.

Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como está avaliando a conjuntura nacional neste momento? O que mais tem lhe chamado atenção no cenário atual?
Superamos, de maneira significativa, a Índia, e somos mais sólidos, do ponto de vista de estrutura produtiva, do que qualquer outra economia periférica. Porém, ao mesmo tempo, por causa dessa solidez, para nós é muito difícil mudar o padrão estrutural
Carlos Lessa – Não acredito que o panorama nacional tenha se modificado muito em relação às tendências identificadas; nós continuamos caminhando na crise e não saímos dela. As oscilações em uma trajetória de crise são normais, fazem parte do processo. Necessariamente a acumulação de pequenos sinais pode indicar uma luz no fim do túnel, mas não estou vendo ainda sinais de luz.
Não percebo nenhuma mudança de comportamento estrutural no país, na verdade a economia brasileira continua com as características que sempre teve: é a industrialização periférica mais bem-sucedida do planeta. Porém, como toda a atuação periférica, tem suas limitações, e a principal – por demais conhecida – é que o país depende, de maneira muito essencial, da conjuntura internacional, que não é nada favorável agora.
No âmbito nacional, o que consigo perceber com nitidez – eu e a torcida do Flamengo – é que o presidente Temer faz uma ginástica impressionante para manter-se sentado na cadeira; é realmente muito impressionante o processo pelo qual ele busca “aderência” ao cargo. Não acredito que será candidato à reeleição em 2018 ou que tenha algo parecido na cabeça. Acredito que ele quer completar o mandato, e faz tudo para isso. E, de certa maneira, muitas das suas atitudes políticas são explicadas por esse objetivo; diria que praticamente todas.
Há uma atitude muito curiosa em relação ao atual presidente, porque ele faz a política mais neoliberal possível e, ao mesmo tempo, vai sendo acusado ou vai se tornando vulnerável por padrões de comportamento que, em tese, estão sendo repudiados progressiva e paulatinamente pela população. É curioso que a imprensa conservadora tenha uma postura de não se alinhar com o atual presidente, a não ser no que diz respeito às reformas econômicas que ele pretende fazer. Ao mesmo tempo, o presidente acha que são essas reformas que darão a ele a credencial para passar pela história brasileira. É um jogo de empurra-empurra, que não sei bem qual será o resultado. Apenas numa coisa quero crer: esse jogo faz parte da crise; disso eu estou convencido.
IHU On-Line - Como o atual presidente está conduzindo a economia? A PEC do teto é justificável ou não?
Nós temos uma sociedade de grande porte econômico, porém, periférica; talvez sejamos, na periferia mundial, a mais importante economia
Carlos Lessa – Eu, pessoalmente, não acredito na visão neoliberal. Não creio que ela seja absolutamente capaz de tirar o país do buraco, porque o buraco em que estamos não é propriamente um buraco, mas uma configuração estrutural muito difícil de ser modificada. Nós temos uma sociedade de grande porte econômico, porém, periférica; talvez sejamos, na periferia mundial, a mais importante economia. Acredito que superamos, de maneira significativa, a Índia, e somos mais sólidos, do ponto de vista de estrutura produtiva, do que qualquer outra economia periférica. Porém, ao mesmo tempo, por causa dessa solidez, para nós é muito difícil mudar o padrão estrutural.
Como se abre mão, em um país como o Brasil, da centralidade da indústria metalomecânica e da centralidade da indústria automobilística? Como se faz isso? Não dá para ser feito da noite para o dia, não é um resultado neoliberal. O neoliberalismo, na verdade, nada significa em relação a essa característica estrutural, e essa característica estrutural tem que ser levada em consideração, porque ela representa os maiores coágulos de capital que existem no país e a vanguarda da força operária. Então, a sociedade brasileira tem uma estrutura produtiva que se reflete na sua estrutura social e na sua estrutura política. Para sair dessa dança, é necessária uma mudança estrutural significativa; eu não vejo essa mudança.
IHU On-Line - Essa mudança depende do quê?
Carlos Lessa – Para mim, depende fundamentalmente de passar por dentro da economia brasileira, no sentido de se desenvolver um setor que tenha a mesma centralidade que hoje tem aindústria automobilística. Eu só consigo pensar em um: a construção civil em seus diversos domínios. A construção civil tem alguns domínios extremamente importantes. O primeiro é o empresarial, propriamente dito, que são as empresas que tocam o setor, que dependem profundamente da dinâmica urbana e das decisões de aquisição de imóveis por parte da população urbana. Ela faz isso, em grande parte, endividando-se, só que a população urbana já está muito endividada. Então, a capacidade que a população urbana tem, hoje, de escorar uma atividade mercantil de construção civil, é menor em termos relativos do que foi no passado.
O segundo componente da construção civil é a autoconstrução, a construção dita “formiguinha”, aquela que é feita em fins de semana, em cooperação entre diversos moradores, ou seja, é a “engenharia popular”. Essa “engenharia popular” é responsável, hoje, por aproximadamente 30% ou 35% do que se constrói no país; ela tem de ser robustecida.
Os automóveis ficam muito mais tempo na rua, consumindo mais energia e mais combustível por conta dos congestionamentos, mais isso não é debitado ao país, isso é creditado à economia, porque é o PIB brasileiro funcionando sobre rodas empacadas nos congestionamentos
Finalmente, é claro e óbvio que a estrutura urbana e metropolitana brasileira apresenta problemas muito sérios que, curiosamente, não são vistos como problema. Tem coisas que são curiosas, por exemplo, os automóveis ficam muito mais tempo na rua, consumindo mais energia e mais combustível por conta dos congestionamentos, mas isso não é debitado ao país, isso é creditado à economia, porque é o PIB brasileiro funcionando sobre rodas empacadas nos congestionamentos. A qualidade de vida cai, enquanto o padrão de vida, em tese, sobe sem parar. É uma contradição violenta de uma sociedade que se urbanizou sem ter integrado socialmente a sua população.
Tenho a impressão, pode ser que esteja equivocado, de que há em curso um processo importante, que aponta para o futuro, que é dado pelo comportamento da juventude. Eu quero crer que esta garotada que está aí, está descobrindo algo que me parece fundamental: não há espaço para ela no mundo, e se não há espaço para ela no mundo, o espaço para ela é o Brasil. Tendo o Brasil, necessariamente vão se perguntar: o que é o Brasil? A juventude ainda não se colocou essa pergunta, mas vai colocar. Isso dará início a um processo político muito diferente.
IHU On-Line – Mas por quais razões não se conseguiu sair da crise? Por conta da situação econômica?
A indústria automobilística está, toda ela, em estado de torpor e não há como tirá-la desse estado, endividando novamente as pessoas
Carlos Lessa – Só se sai da crise se a atividade da economia subir, e só se consegue isso se for ampliado, significativamente, o comportamento da indústria automobilística. A indústria automobilística está, toda ela, em estado de torpor e não há como tirá-la desse estado, endividando novamente as pessoas; as pessoas não podem mais se endividar. Aliás, isso ficou visível com o comportamento das pessoas em relação a esses fundos do FGTS que foram liberados. Ontem li a manchete de um jornal dizendo que 90% das cotas do FGTS estão sendo utilizadas para quitar dívidas, porque o sonho da população brasileira é reduzir seu atual endividamento – é assim que eu leio esse indicador.
Se o sonho é reduzir o endividamento, como vai aumentar o endividamento para segurar a indústria automobilística? Essa é a pergunta central. Por outro lado, insistir na ideia de uma economia que se move a partir de um automóvel, do ponto de vista microeconômico, ou seja, que a atividade econômica interna gravita em função da indústria metalomecânica e do segmento automobilístico, é a visão pela qual o Brasil não sai da crise. É necessário estimular outra atividade para ocupar o espaço, e só há uma possível: a construção civil.
IHU On-Line – Então, com a resolução da crise econômica se resolverá a crise política?
A pergunta relevante é: onde estão os sinais para a saída? Na juventude. A juventude está tendo um comportamento surpreendente, porque ela quebra regras e, ao mesmo tempo, as vitaliza
Carlos Lessa – Eu tenho a impressão, pode ser que esteja equivocado, de que a chamada crise política é apenas uma dimensão da crise. A crise não é especializada em uma dimensão; ela acontece em variadas dimensões. Se a economia estivesse indo bem, os atuais governantes estariam tranquilos e sendo festejados, não é isso? Veja bem: a crise política depende da econômica, porém a crise dita econômica se realimenta pelas características da crise política. Esse é o jogo da crise. A pergunta relevante é: onde estão os sinais para a saída?
IHU On-Line - O senhor vê esses sinais?
Carlos Lessa – Vejo no comportamento da juventude. A juventude está tendo um comportamento surpreendente, porque ela quebra regras e, ao mesmo tempo, as vitaliza. Isto é, quando ela ocupa escolas, ela não está fazendo nenhuma baderna, está sinalizando, de maneira absolutamente clara, que o sistema educacional está quebrado e que é necessário dar prioridade a ele. Ela sinaliza sua prioridade com seu comportamento; isso é extremamente positivo. É o que estou querendo dizer: eu acredito que a juventude está descobrindo que o Brasil, tal como está, não vai para frente e que o Brasil é deles, porque essa é a única alternativa que eles têm de futuro.
IHU On-Line - Além da ocupação das escolas, que outros exemplos percebe de atuação da juventude no país?
Carlos Lessa – A principal que vejo é essa. Secundariamente, eles estão começando a perceber coisas mais relevantes, como a de que politicamente há a necessidade de encontrar uma saída. Penso que haverá uma renovação de quadros impressionante nas próximas eleições no país.
IHU On-Line - O senhor tem algum nome em mente?
Carlos Lessa – Não, não tenho ninguém em mente, mas acredito que isso vai acontecer, inexoravelmente. Do ponto de vista de Presidência da República, se a crise continuar, a candidatura de Lula é, obviamente, a candidatura vitoriosa. Porém, não penso que o PT seja o partido vitorioso. Com isso se criará uma situação muito curiosa: teremos uma renovação enorme na base do Congresso, e as pessoas que vão se eleger são aquelas que se dizem não políticas. Com isso teremos uma espécie de renovação de currículos. Qual será o resultado, não sei; não tenho bola de cristal.
IHU On-Line - Qual seria a implicação de uma possível eleição de Lula em 2018? Ele repetiria o mesmo modelo do governo anterior?
Acredito que a juventude está descobrindo que o Brasil, tal como está, não vai para frente e que o Brasil é deles, porque essa é a única alternativa que eles têm de futuro
Carlos Lessa – Acho que não. Se Lula vier a se eleger, ele vai olhar no entorno e se perguntar: “Cadê o partido, cadê a coalizão partidária?”. Ele não vai encontrá-los, porque o PT acabou.
As propostas econômicas do Lula serão, provavelmente, extremamente conservadoras, como geralmente são. Ele fará um discurso que, por um lado, sinaliza ao povo e, por outro, sinaliza aos conservadores, dizendo que não vai quebrar nada; vai fazer o discurso que ele sempre fez.
IHU On-Line – Como aquele da Carta ao Povo Brasileiro?
Carlos Lessa – Isso, como aquele da Carta ao povo brasileiro, mas vai repeti-lo de maneira atualizada, pois a história nunca se repete de maneira monótona.
IHU On-Line – Além do nome do ex-presidente Lula, hoje cogitam-se alguns possíveis candidatos para a eleição de 2018, como Ciro Gomes e João Doria. Como vê essas possibilidades políticas para o Brasil?
Carlos Lessa – Ciro Gomes não tem condições de ir muito em frente. O nome dele já está disponível, mas ele não gera, em relação à crise, nenhum sinal, nem positivo nem negativo, para a opinião pública. Para mim, gera, porque eu sei que ele não concorda com as orientações gerais neoliberais, mas e daí? A minha opinião não tem a menor importância. Acho que o Ciro vai se manter candidato, terá uma reconfirmação da presença dele no processo político e irá ajudar um determinado conjunto de candidatos que estarão renovando seus assentos no Congresso.
Quanto ao prefeito de São Paulo, vejo a imprensa conservadora fazendo um imenso esforço para fazê-lo candidato. De certa maneira, eu diria que o candidato provável não é o prefeito, mas sim o [GeraldoAlckmin. Se bem que deve ter muita aposta em relação ao Doria. Ele terá vantagens também, caso se apresente com tendo um comportamento não político, no sentido clássico da palavra - é isso um pouco do que a imprensa está tentando construir como a imagem dele.
IHU On-Line - Como vê esse discurso de candidatos que se definem como “não políticos”?
A autoconstrução, a construção dita 'formiguinha', aquela que é feita em fins de semana, em cooperação entre diversos moradores, essa 'engenharia popular', é responsável, hoje, por, aproximadamente, 30% ou 35% do que se constrói no país; ela tem de ser robustecida
Carlos Lessa – Doria é visivelmente um dos bem-sucedidos, tanto que ele fez uma trajetória exitosa no principal colégio eleitoral brasileiro. O discurso dele é uma espécie de avant première, um discurso que vai, provavelmente, se generalizar daqui para a frente.
IHU On-Line - Isso é positivo para a política?
Carlos Lessa – A política não tem algo positivo ou negativo, a política se desdobra a partir do presente, pelas linhas de menor resistência ou pelas linhas possíveis. O povo brasileiro, visivelmente, vai procurar quem não tenha atestado político. Lula vai fazer a campanha dizendo que foi removido para fazerem a crise, vai atribuir a crise a seus inimigos, por isso a campanha eleitoral dele é fácil.
IHU On-Line – Que leitura o senhor fez da Operação Carne Fraca?
Carlos Lessa – A Carne Fraca, objetivamente, é um golpe pesado na indústria das carnes brasileiras. A grande pergunta é: ela será de longa duração? Acredito que no mercado interno rapidamente a situação será superada, daqui algumas semanas, dez dias mais ou menos. A população continuará consumindo o que consumia, porque não pode mudar sua alimentação; internamente será reconstruído o padrão de comportamento.
Externamente pagaremos um preço alto, que é reduzir nosso peso negocial, mas é importante ter presente que o Brasil é hoje a maior oferta de proteínas no mercado mundial; o mercado mundial não pode desconhecer isso. Claro que a negociação brasileira lá fora vai ficar muito mais difícil. Creio que a tendência são os preços internacionais estancarem ou caírem, porém é uma tendência que também não é extremamente demorada, porque não existem alternativas.
No caso do frango, ao que eu saiba, o frango norte-americano não pode substituir o frango brasileiro, porque tem uma crise aviária nos Estados Unidos. A carne de boi depende de forrageiras ou do capim, e, no caso do capim, o Brasil certamente é e continuará sendo campeão. Então, acredito que os esforços brasileiros serão, razoavelmente, bem-sucedidos para desarmar oficialmente os argumentos contra a carne brasileira. Agora, na opinião pública ficará sempre uma suspeita.
IHU On-Line – Mas por que entende essa operação como um golpe à indústria brasileira?
O Poder Judiciário, por si só, não faz história. Portanto, os protagonismos históricos ainda estão extremamente embaçados no Brasil. Se olharmos as lideranças, não perceberemos um discurso forte e afirmativo em nenhuma delas, e a Lava jato não é, em si, uma liderança. Logo, estamos vivendo um período de crescente desarticulação política
Carlos Lessa – Por uma razão muito simples: a atividade econômica no país depende de componentes e um dos componentes é gerado pelas exportações. Se as exportações vão mal, isso reflete internamente.
IHU On-Line – O senhor está mencionando o aspecto econômico, mas e do ponto de vista político e da corrupção?
Carlos Lessa – Do ponto de vista político eu não sei desdobrar a operação Carne Fraca em todas suas implicações. Na verdade, tenho até dificuldade de identificar as implicações. Acredito que o que vai acontecer - pode ser que esteja errado - é que internamente as pessoas vão, com rapidez, esquecer o problema, e a questão da carne continuará sendo tratada da forma como vem sendo tratada hoje.
Agora, o que não vai ser eterno, nem permanente são os padrões comportamentais da população brasileira no futuro, esses é que estão começando a se modificar. Provavelmente, na novíssima geração, vai aumentar o perfil dos que não comem proteína, algo desse tipo.
IHU On-Line - À época do governo Lula se incentivou a política de investimento a grandes gigantes nacionais via aportes do BNDES, como os grupos da indústria alimentícia. Como o senhor avalia essa política hoje e quais foram seus resultados?
Carlos Lessa – Pode ser que eu me engane, mas o chamado capitalismo em escala mundial passa por grandes organizações. Não acredito que a política explícita do governo Lula tenha sido a de criar grandes organizações. Para mim, elas já estavam em formação e o jogo, virado para elas. Obviamente que Lula jogou o jogo, então ele não é um transformador, mas um hábil “cavaleiro das tendências”, isto é, ele “sabe montar” nelas. Assim, uma das tendências em que ele montou foi o crescimento desses grupos.
IHU On-Line - Como está compreendendo a Operação Lava Jato? Vê relação entre ela e a Operação Carne Fraca?
Lava Jato: a novíssima geração não vai esquecer dela, não vai mesmo, porque vão chegar à conclusão de que o Brasil é deles
Carlos Lessa – Faço uma força enorme para não cair em nenhuma visão conspiratória, mas são demasiados golpes no país, e todos eles debilitam extremamente a imagem externa brasileira. Esse negócio da carne, por exemplo, debilita o poder negocial do Brasil lá fora; esse negócio da Lava Jato está dando um espaço de modificação comportamental muito grande; não sei avaliar todas as implicações. Apenas uma coisa vejo dessa Lava Jato: a novíssima geração não vai esquecer dela, não vai mesmo, porque vão chegar à conclusão de que o Brasil é deles.
O meu problema não é de criticar ou não criticar a Lava Jato, o meu problema é diferente e a pergunta que me coloco é: por onde ela se desdobra? Porque ela já é, ela faz parte da realidade, ela colocou o Poder Judiciário em enorme evidência, porém o Poder Judiciário, por si só, não faz história. Portanto, os protagonismos históricos ainda estão extremamente embaçados no Brasil. Se olharmos as lideranças, não perceberemos um discurso forte e afirmativo em nenhuma delas, e a Lava jato não é, em si, uma liderança. Logo, estamos vivendo um período de crescente desarticulação política.
judicialização da política leva o Brasil para uma coleta de novos nomes. Quem são? Eu não sei, mas uma coisa posso dizer: vão se eleger muito com a afirmação, comprovada ou não, de que não são políticos. Entrará em moda essa afirmativa, que será muito atravessadora da vida política brasileira e será extremamente importante na próxima eleição.
IHU On-Line - Que reorganizações geopolíticas percebe com a eleição de Trump?
Carlos Lessa – Essa pergunta é tão relevante que você precisa montar um debate próprio sobre ela.Trump é um dado que modifica as regras do jogo mundial. Para nós, brasileiros, tem uma característica extremamente interessante: abre a possibilidade de o Brasil exercitar uma liderança maior na periferia mundial. Isso porque vejo a operação Trump como uma operação que desmantela a presença mexicana, porém, ao mesmo tempo, é uma operação que gera, necessariamente, na América do Sul, uma relação de solidariedade. O Brasil pode estar no centro de um processo de reestruturação periférica e tirar vantagens disso. Vai se reforçar, necessariamente, um eixo que passa pelo Brasil, pela Índia e pela China; esses eixos serão reforçados e se tornarão mais poderosos.
Não sei se os Estados Unidos e a Europa se fortalecerão, mas tem uma coisa da qual estou absolutamente convencido: a ligação dos Estados Unidos e da Europa com a Rússia se tornará mais forte, bem mais forte. Creio que a política de Trump vai apostar nisso também, não será contrária a esse movimento.
O cenário mundial abre possibilidades para um país chamado Brasil, não porque tenha qualquer desejo do Trump nessa direção, mas porque os desdobramentos da presença dele podem abrir possibilidades para o país
Vejo o cenário mundial como um cenário que abre possibilidades para um país chamado Brasil, não porque tenha qualquer desejo do Trump nessa direção, mas porque os desdobramentos da presença dele podem abrir possibilidades para o país. Não sei se a diplomacia brasileira está inteiramente alerta, mas tem competência suficiente para interpretar as potencialidades que estão se abrindo a partir da presença de Trump.
IHU On-Line - Como o senhor avalia o Brexit? O que mudou na União Europeia - UE depois desse fato?
Carlos Lessa – Pode ser que eu me engane, mas acho que os Estados Unidos e a Europa vão se robustecer e vão se colar mais com a Rússia; a tendência é inexorável nessa direção. Não vejo nenhum desmantelamento dos Estados Unidos e da Europa; vejo uma evolução. Essa evolução se dará por um aumento significativo da sua presença como parceiro mundial e se fará uma política de convergência com a Rússia.
IHU On-Line - Como se houvesse um projeto comum envolvendo UE, Rússia e EUA?
Carlos Lessa – Sim, é isso. Aliás, aparentemente, existem dois trajetos curiosos que ligam a China e a Europa: um deles passa pela Rússia, o outro contorna a Rússia. Essa será a grande aposta geopolítica dos estados europeus: vão tentar via Rússia e em troca terão de fazer algumas concessões. Tentarão também desenvolver uma alternativa, que existe, que é uma ligação entre China, EUA e Europa.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Carlos Lessa - Vocês deveriam fazer uma discussão em absoluta profundidade sobre a presença do Trump, do que ela contém dentro de si como ameaça, como possibilidade, como potencialidade e como realidade. É fundamental fazer essa discussão.

Thursday, March 30, 2017

O PRIMEIRO DE ABRIL E O “PAÍS DA MENTIRA”

ESFILESCRACHO CORDÃO DA MENTIRA

O PRIMEIRO DE ABRIL E O “PAÍS DA MENTIRA”

O Cordão da Mentira se apresenta como um bloco carnavalesco de intervenção estética que, de modo bem humorado e radical, versa e canta sobre temas cruciais para uma real transformação da sociedade brasileira.
30 de março de 2017
Nó próximo sábado, primeiro de abril, o  Cordão da Mentira desfilará pelas ruas de São Paulo pelo sexto ano seguido . Com o tema, “O País da Mentira” os organizadores prometem  carnavalizar “as farsas de nosso cotidiano como a mentira da democracia, a mentira do país de todos, a mentira do Estado de direito, a mentira da meritocracia, a mentira da democracia racial, a mentira do pensamento livre, a mentira do país do futuro” . O evento terá início às 16 horas partindo do MASP
O que é?
O Cordão da Mentira se apresenta como um bloco carnavalesco de intervenção estética que, de modo bem humorado e radical, versa e canta sobre temas cruciais para uma real transformação da sociedade brasileira. Formado por sambistas, grupos de teatro, coletivos culturais e artísticos, militantes e movimentos sociais, o Cordão desfilou pela primeira vez em 2012 discutindo as heranças da ditadura em nosso cotidiano. Desde então vai para as ruas anualmente discutindo a violência de Estado e a opressão contra as classes populares no Brasil, sempre no dia 1 de abril, dia da Mentira, dia do golpe de 1964.
EVENTO: DESFILESCRACHO DO CORDÃO DA MENTIRA com o tema “O País da Mentira”
Data: 1/4/2017 – Horário: 16h

VIETNÃ, O POLO INDUSTRIAL DA VEZ

jOVENS E INSTRUÍDOS PROJETADOS NA GLOBALIZAÇÃO

VIETNÃ, O POLO INDUSTRIAL DA VEZ

Em menos de quarenta anos, o Vietnã impulsionou um crescimento dinâmico que permitiu uma vida melhor para o conjunto da população. A fome desapareceu; os jovens se conectaram às redes sociais; as famílias assistem a séries sul-coreanas e japonesas na TV… Contudo, as condições de trabalho permanecem muito duras e a economia está cada vez mais dependente
por: Martine Bulard
29 de março de 2017
Crédito da Imagem: Odyr
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Com os cabelos negros sobre a testa, 50 anos joviais e olhos atentos, Nguyen Van Thien conta que o Partido Comunista Vietnamita (PCV) recruta “soldados do tio Ho para a frente de economia” – em referência a Ho Chi Minh, herói da independência e fundador da República Democrática do Vietnã. Thien, orgulhoso de sua tarefa, lidera a frente das roupas, com multinacionais como a norte-americana Gap, a japonesa Uniqlo e a espanhola Zara – clientes mundialmente conhecidos.
Encontramos o vietnamita em uma de suas fábricas na periferia de Bac Giang, a uma hora e meia de carro da capital, Hanói. Nas quatro alamedas com enormes galpões, amontoam-se máquinas e trabalhadores – em sua maioria mulheres. Um edifício ligeiramente centralizado abriga alguns escritórios modestos. Também se vê um altar do gênio da fortuna, garantia de prosperidade segundo as crenças ancestrais, em todas as empresas visitadas – das mais às menos imponentes, na parte de fora ou no hall de entrada. Às vezes, um incenso queima no ambiente.
Nguyen Van Thien é o diretor-geral da Bac Giang Garment Corporation (BGGC), desconhecida do grande público vietnamita. Ali são fabricadas jaquetas, vestidos e calças destinados à exportação. Thien não pode vender as peças no mercado local para não banalizar as marcas e, portanto, desvalorizá-las: está nos contratos. Como se os assalariados, que ganham entre 3 milhões e 5 milhões de dongs (entre R$ 420 e R$ 700 por mês) por seis dias de trabalho na semana, pudessem pagar essas roupas.
Há dez anos, a BGGC contava com apenas uma fábrica, empregava 350 pessoas e seu diretor-geral era um simples chefe de controle técnico. Isso foi antes da privatização, palavra jamais pronunciada. Nem aqui nem em nenhum outro lugar. Fala-se, às vezes, em “socialização” ou “acionarização”, ou ainda em “nacionalização”. Sagrado desvio de linguagem para designar que as ações não pertencem mais ao Estado, e sim aos assalariados, que são preferenciais (se eles puderem comprá-las), e a todos aqueles que “quiserem”. A empresa se torna, assim, o “bem comum de todos os vietnamitas”, segundo a terminologia oficial. Se, no início, a divisão pode ser equitativa, aqueles que dispõem de capital social e recursos financeiros abocanham a maior parte. Na BGGC, Nguyen Huu Phay,1 ex-assalariado e membro do PCV, cuja fotografia decora a sala onde os visitantes são recebidos, detém 40% do capital, graças à revenda de ações e aumentos de capital. Pelo menos a empresa prosperou: agora são cinco fábricas, 14 mil assalariados e comandas de pedidos cheias.
Antes, em tempos de estatização generalizada, as ordens emanavam do comitê popular e do Departamento de Comércio, dirigidos pelo Partido. Desde 1987, com a “economia de mercado com orientação socialista”, segundo a denominação consagrada, são as grandes marcas ocidentais que controlam tudo, do desenho aos botões, passando pelos fios utilizados. Elas também impõem seu preço. Feliz de ter escapado do “espartilho estatal e sua burocracia”, Nguyen Van Thien afirma a moral da história: “ganhamos dinheiro”.
Nem todas as experiências que escaparam do sistema anterior, porém, foram exitosas. “A maior parte dos grandes grupos públicos, ‘acionarizada’ ou não, perde dinheiro”, assegura um advogado renomado que preferiu permanecer no anonimato. Hoje, esse ex-alto funcionário do Estado dirige um grande escritório especializado em direito empresarial – trajetória que coincide perfeitamente com a evolução do Vietnã. Não há dúvida de que, desde o lançamento da política dita de “renovação” (Doi Moi), em 1986, algumas empresas se destacaram, como a Vingroup – cujo CEO, Pham Nhat Vuong, é o único vietnamita a figurar na longa lista de bilionários da revista Forbes –, a número um da telefonia, VietTel, ou ainda o grupo lácteo Vinamilk. Mas essa projeção se deve a circunstâncias particulares. A primeira se beneficia de subsídios nos mercados públicos e concessões imobiliárias, que lhe permitiram obter enormes lucros. A segunda dispõe de acesso privilegiado a satélites e frequências; e a terceira faz parte de um grupo de empresas estrangeiras, entre elas um fundo de Cingapura.

Investidores jogam Pequim contra Hanói
As outras companhias abriram timidamente seus capitais apenas para escapar ao controle do Estado e amargam perdas gigantescas – “uma mistura de incompetência e corrupção”, assegura o advogado. O exemplo mais contundente é a PetroVietnam, na qual a maioria dos dirigentes renunciou após perdas abissais e contratos fraudulentos. Esse processo também é fruto do poder do secretário-geral do partido, Nguyen Phu Trong, que visivelmente decidiu partir em cruzada contra a corrupção entranhada na vida cotidiana dos vietnamitas e termina por fragilizar uma economia cada vez mais aberta aos movimentos globais de capital. “Os empreendedores vietnamitas sempre nadaram em maré baixa”, explica nosso advogado francófilo. “Contudo, é o oceano que os espera”, completa. O oceano tempestuoso do livre-comércio e da concorrência implacável.
A têxtil BGGC sabe disso: “Para pressionar os preços, alguns grandes clientes jogam o Vietnã contra a China, e vice-versa”, conta o diretor-geral da empresa. Assim, segundo ele, são obrigados a “cortar custos em tudo”, sem definir o que esse “tudo” significa. A Uniqlo, por exemplo, congelou seus fornecedores do Império do Meio e migrou para os do Vietnã. A Leverstyle, outra fornecedora da marca japonesa, reduziu seus efetivos chineses e fabricará desse lado da fronteira 40% dos seus produtos até 2020 – de onde estava ausente há cinco anos.2 Desde o início da década, as grandes marcas e seus fornecedores estão progressivamente abandonando o território chinês, como a taiwanesa PouChen (Nike, Adidas, Puma, Lacoste), que investiu mais de US$ 2 bilhões nos parques industriais ao redor da cidade de Ho Chi Minh, no sul do Vietnã.
De acordo com Truong Van Cam, vice-presidente da Associação de Empresas do Setor Têxtil para Vestimentas (organização patronal conhecida como Vitas), “65% das exportações vietnamitas do setor têxtil são realizadas por empresas de capital ou donos estrangeiros”. É um fato positivo, segundo o dirigente, que parece mais um burocrata soviético dos anos 1970 que um jovem empresário americanizado como se vê pelo Vietnã. Van Cam ressalta que as primeiras reivindicações de mudança vieram da Vitas para responder às diversas necessidades de uma população jovem que rejeita a uniformização do sistema e “a quem devemos oferecer oportunidades de trabalho, pois é nossa única riqueza”. Sua organização, portanto, foi pioneira nesse processo.
Para ele, “a economia mundial caminha por ondas que se deslocam: partiram da Europa em direção ao Japão e Coreia do Sul, depois em direção à China. Agora, com o aumento dos salários chineses, deslocaram-se para o Vietnã, Bangladesh e Birmânia. É a lei natural; o objetivo das empresas é lucrar. São ciclos de dez a quinze anos, o que nos dá tempo para qualificar os trabalhadores e melhorar suas performances”, analisa. Parece que estamos escutando Pascal Lamy, “socialista” francês e ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Como a maior parte dos dirigentes econômicos, Truong Van Cam contava entusiasmado com o Acordo de Parceria Transpacífica (conhecido em inglês como Trans-Pacific Partnership, TPP, e cancelado pelo presidente Donald Trump menos de uma semana após assumir a Casa Branca) entre os Estados Unidos e onze países, que traria mundos e fundos. Lírico, Barack Obama chamava-a de o “acordo comercial mais progressista da história”.3 Pelos cálculos do Banco Mundial, os patrões do setor têxtil esperavam um crescimento vertiginoso de sua fatia no mercado mundial – dos atuais 4% para 11% em 2025. Os do setor eletrônico, uma guinada nas exportações na ordem de 18%, enquanto os dirigentes vietnamitas contavam com um crescimento de 0,8% a 2% por ano na próxima década.4
Essa promessa sedutora contribuiu muito para a fulgurante ascensão de instalações estrangeiras na região nos últimos anos. Sem dúvida, a lógica do dumping salarial motivou mais de um investidor, como explicam em palavras cifradas Shimizu Tatsuji e La Van Tranh, dupla nipo-vietnamita à frente da empresa japonesa Foster Electric que nos recebe em sua fábrica de microfones (para iPhones da Apple) e alto-falantes (para automóveis estrangeiros). “Os trabalhadores vietnamitas são muito competitivos. Podem ser mais mal formados, mas aprendem rápido. Aqui, empregamos 30 mil pessoas, e o salário-base gira em torno de US$ 150 a US$ 200 por mês, contra US$ 650 médios na China. Economizamos muito dinheiro”, explicam. De fato, economizam uma pequena fortuna. Não apenas para a Foster, que reduziu suas instalações chinesas, mas também para a Samsung, que investiu US$ 15 bilhões e emprega 46 mil pessoas. Ou ainda Foxconn, Apple, Canon.
No entanto, essa não é a única motivação. O boom dos últimos anos se deve amplamente à queda das taxas e impostos alfandegários nos Estados Unidos e em onze países do Pacífico,5 e que caminhariam para o desaparecimento completo no horizonte de 2025, no âmbito do TPP. Os negociadores norte-americanos ditaram uma regra restritiva “de origem”, impondo que os produtos exportados sejam inteiramente fabricados no Vietnã ou com elementos oriundos dos países-membros da parceria, da qual a China está excluída. Não é preciso se preocupar mais em montar aqui elementos fabricados lá, esforço constatado no início da década.

Trunfo para o capital externo
Com o auxílio de Washington e do TPP, o Vietnã já se vê como o segundo polo industrial do mundo, pronto para abocanhar o lugar da privilegiada e também detestada China: seu principal fornecedor e cliente, mas também adversário no Mar da China (chamado de “Mar do Leste” no Vietnã). Esse tratado de livre-comércio tinha um aspecto tanto político quanto econômico,6 mas a hostilidade de Donald Trump compromete sua aplicação. Certo dia de novembro de 2016, um painel azul invadiu a tela da televisão interrompendo o jornal do canal americano CNN “por conteúdo inapropriado”. Mais tarde, soube-se que o presidente eleito havia se declarado contra os “produtos vietnamitas a baixo custo”, que ameaçavam invadir os Estados Unidos. Era preciso poupar os ouvidos castos dos vietnamitas, supondo que eles assistem à CNN.
No momento, os dirigentes do país esperam que Walmart, Nike, Apple, Microsoft e outras grandes transnacionais possam restituir a razão do excêntrico presidente. Enquanto isso, o primeiro-ministro, Nguyen Xuan Phuc, declarou, na Assembleia Nacional, no dia 18 de novembro, que o Vietnã “já assinou doze acordos de livre-comércio” e pretende “perseguir a integração econômica, com o TPP ou não”. Atualmente, os investimentos estrangeiros provêm principalmente da Ásia (na seguinte ordem: Japão, Taiwan, Cingapura, Coreia do Sul, China). O chefe do governo mencionou também o acordo firmado com a União Europeia e ratificado – sem grandes debates – pelo Parlamento francês em junho de 2016.
Hanói deposita sua esperança de crescimento nas exportações e na atração de capital estrangeiro, ao qual oferece um trunfo: exoneração total de taxas e impostos durante quatro anos, e de 50% durante os nove anos seguintes, além de facilitar acesso à terra (em detrimento da agricultura local) e a benefícios suplementares com governos locais, bem como simplificações administrativas. Tudo isso faz a máquina girar – 6,5% de crescimento em 2016 (com um ritmo de 5,5% a 7,6% desde 2000) – e enche a região de expectativas.
A estratégia, contudo, tem um preço: a dependência. As empresas estrangeiras são responsáveis por mais de dois terços das exportações do país. A Samsung, por exemplo, concentra 60% das vendas de eletrônicos ao exterior. Se a gigante sul-coreana sofrer qualquer revés (como o caso de seu Galaxy Note 7, cujas baterias explodiam), quem sofre as consequências é o Vietnã.

Aumento das preocupações ecológicas
Em encontro no Instituto Central para a Gestão (Ciem), centro de pesquisa vinculado ao poderoso Ministério do Planejamento, Nguyen Anh Duong não negou os perigos. Se por um lado critica a “nova camada de ricos e empreendedores vietnamitas que querem apenas garantir seus privilégios”, por outro esse jovem diretor adjunto do Departamento de Política Econômica explica sem rodeios: “As empresas estrangeiras têm capital, e nós não. Mais vale que invistam na produção do que no setor imobiliário. Além disso, isso gera concorrência com as empresas locais, o que as estimula a melhorar sua gestão”. E resume o pensamento dominante: “Esses investimentos estrangeiros diretos constituem de fato uma aposta no futuro. Com eles, temos uma chance de que as coisas funcionem. Sem eles, certamente não poderemos nos desenvolver”.
Como, efetivamente, sair do subdesenvolvimento sem capital ou tecnologia, porém com uma população jovem e numerosa (metade tem menos de 30 anos, 53,8 milhões está em idade produtiva e 98% sabe ler e escrever)? As autoridades vietnamitas se valem do dogma arriscado que empoderou Cingapura, Taiwan e a China: o baixo custo da mão de obra. Mas há uma diferença, nota Erwin Schweisshelm, diretor da Fundação Friedrich Ebert no Vietnã: “Esses países protegeram seus mercados e impuseram normas regulatórias. Ainda hoje, é impossível ser 100% proprietário de uma empresa chinesa, e certos investimentos devem comportar transferências de tecnologia. O Vietnã, por outro lado, está totalmente aberto. Não há nenhuma exigência em relação à instalação ou utilização de recursos naturais, nenhuma recomendação”. E, visivelmente, o país também controla pouco as infrações aos direitos trabalhistas, que suscitaram inúmeros conflitos dentro das empresas (ver boxe).
A fiscalização não é maior em relação a normas ambientais, como mostra o caso Formosa, nome da empresa taiwanesa instalada na província de Ha Tinh, no centro do país, e que despejou produtos tóxicos de sua siderúrgica no mar: 200 quilômetros de costa poluídos, toneladas de peixes mortos, mais de 40 mil pescadores sem trabalho, turismo ameaçado. Em um primeiro momento, o representante da Formosa em Hanói, Chou Chun Fan, sentiu-se suficientemente protegido para poder declarar: “Não se pode ter tudo. É preciso escolher entre os peixes, os camarões e uma siderúrgica”.7 Isso sem levar em conta os pescadores, que sobrevivem desses cursos – e entraram com um processo. Ou ainda sem considerar as camadas médias urbanas preocupadas com a qualidade da alimentação, que se manifestaram em massa em Ho Chi Minh. O governo prendeu um ou dois supostos líderes do movimento e deteve dezenas de manifestantes durante algumas horas; por outro lado, investigou o ocorrido e indenizou os pescadores, e Chou Chun Fan teve de deixar o cargo.
Alguns anos antes, em 2009, a exploração de uma mina de bauxita pela empresa chinesa Chinalco mobilizou multidões, que pressionaram até o general Vo Nguyen Giap, herói da guerra, tomar alguma providência em relação aos “riscos sérios de danos ecológicos”.8 Em vão. O apetite de crescimento primou sobre qualquer outra premissa.
A sede de consumo satura as cidades de carros e motos em um vaivém sem precedentes, tornando o ato de atravessar a rua incerto e o ar totalmente irrespirável. Entretanto, associações ou organizações que lutam contra a poluição e pela segurança alimentar começam a aparecer. Em 2016, os habitantes de Hanói se mobilizaram para impedir o corte de dezenas de árvores centenárias – e tiveram sucesso. Luong Ngoc Khue, jovem empreendedor especialista em softwares, nascido no delta do Rio Mekong, espera reunir “citadinos e camponeses” contra a possível chegada de milho ou arroz dos norte-americanos por meio dos acordos de livre-comércio, “certamente geneticamente modificados, certamente da Monsanto” – empresa com uma história sinistra no Vietnã. Por enquanto, seu grupo nas redes sociais reúne apenas algumas dezenas de seguidores. “Sabemos nos reunir por questões pontuais, como o caso da Formosa”, observa o documentarista Dao Thanh Huyen, coautor de um livro sobre a batalha de Dien Bien Phu.9 “Mas ainda somos pouco capazes de refletir sobre algumas questões: como buscar o desenvolvimento e fazer parte da globalização e ainda assim preservar nossa cultura milenar, nossos valores de solidariedade, respeito aos mais velhos, laços entre as gerações, ética?”, questiona.
O Partido Comunista escolheu adiar as respostas a esse tipo de questionamento. Há, porém, muitas divergências de opinião, como mostrou o XII Congresso, que em janeiro de 2016 viu o primeiro-ministro promotor de privatizações ser deposto, enquanto o secretário-geral ganhou autoridade. Mas o debate não acontece no mesmo ritmo das reformas, pelo menos não no conteúdo: alguns defendem utilizar os acordos de livre-comércio para pressionar e acelerar as mudanças nas normas e práticas (com o TPP, sessenta leis sobre questões econômicas e sociais já foram modificadas); outros acreditam que é preciso diminuir o ritmo para manter o controle das mudanças. A escolha se resume a uma economia de mercado descomplicada ou a uma economia de mercado moderada. E sob orientação socialista…
GREVES SEM SINDICATO
Depois dos 30 anos não é possível seguir com esse trabalho, o corpo não aguenta”, assegura Phan Duyen. Aos 32 anos, funcionária de uma fábrica japonesa de álcool de arroz, ela está feliz de ter deixado seu posto de trabalho no chão da fábrica e ter sido promovida ao controle de qualidade. Encontramo-nos com ela e o marido, além de sete colegas de trabalho, em uma pequena casa charmosa nos fundos de uma ruela, em uma área bem popular do 7º distrito da cidade de Ho Chi Minh (ex-Saigon). Todos confirmam a penúria do trabalho para manter a fábrica funcionando 24 horas (três turnos de oito horas), com apenas uma folga por semana – pouco tempo para voltar ao interior (de onde eles vêm) para visitar a família. É pouco tempo até para recobrar as energias.
Contudo, ninguém reclama. Sob a imagem de uma sociedade que mantém seu dinamismo a qualquer preço, esses jovens olham para o futuro. Eles querem “guardar dinheiro” e um dia voltar ao povoado onde nasceram para “abrir um comércio”, “construir uma casa e alugá-la” ou ainda “ampliar o sítio ou a fazenda da família”. Apenas duas jovens não pretendem voltar ao local de origem. A primeira faz aulas de inglês à noite, em um centro de idiomas a cerca de uma hora de moto da pensão onde vive, com a esperança de um dia conseguir um emprego em um escritório da cidade. A segunda pagou 90 milhões de dongs (um ano e meio de salário), graças a economias e empréstimos da família, para se formar em um instituto que lhe garantiu um emprego no Japão durante três anos. O Vietnã assinou convenções com diversos países a fim de se lançar em uma curiosa experiência: exportação de mão de obra (115 mil pessoas em 2016).1
Esperando que seus sonhos se realizassem, todos esses jovens, que recebem baixos salários (menos de 2 milhões de dongs, ou R$ 280 euros por mês), trabalham horas extras, pagas a 150%. Impossível saber quantas, mas não podem ultrapassar 200 horas anuais, 300 horas em casos excepcionais; ou seja, de quatro a seis horas por semana além das 48 horas legais por semana. Ao que parece, esses jovens trabalham para além das horas regulares mais as suplementares, porém não ganham para isso. Mais adiante na conversa, saberemos que apenas algumas horas extras são pagas, as outras são transformadas em “horas de recuperação”, um tipo de banco de horas, que podem ser usadas apenas quando a direção decidir. “Gostaríamos de guardá-las para a festa de ano-novo [em que, de forma geral, todos se juntam com a família no início do ano], mas não é possível”, explica um dos jovens. “A direção nos obriga a gastá-las em meias jornadas, durante as quais não podemos fazer muita coisa”. A jovem Phan Duye completa: “Com esse sistema, não nos beneficiamos trabalhando horas extras. Perdemos, e a empresa ganha”. E o sindicato? A pergunta parece incongruente. Ele existe, sem dúvida, mas não para apoiar reivindicações.
Mesmo assim, 5.722 greves aconteceram entre 1995 e 2015, segundo Do Quynh Chi, que dirige o Centro de Pesquisa sobre as Relações de Trabalho, uma espécie de escritório de consultoria com sede no centro da cidade. Mas nenhuma delas foi convocada pela Confederação Geral do Trabalho do Vietnã (CGTV) – o que gera prejuízo aos trabalhadores, porque, apesar de o direito à greve figurar na Constituição, ele só pode ser exercido sob responsabilidade do sindicato único, e, se não é ele que convoca, esses movimentos são considerados “paralisações de trabalho”. Seja qual for o nome adotado, os assalariados fazem cada vez mais greves: uma centena em 2000; cerca de quinhentas em 2016. Em 70% dos casos, ocorrem em empresas estrangeiras, onde a concentração de trabalhadores é maior (três quartos das empresas vietnamitas são pequenas ou médias). Principais motivos: salários, condições de trabalho e qualidade da alimentação nas lanchonetes das fábricas. “O mais frequente é que um grupo de trabalhadores leve as reivindicações à direção ou às vezes a um sindicato oficial, mas não obtém respostas. E então desencadeia a greve”, conta Do Quynh Chi. Essas ocasiões tornam-se quedas de braço. A CGTV se mobiliza e faz a intermediação entre trabalhadores e direção.
Na maior parte do tempo, observa Do Quynh Chi, as demandas são atendidas e as greves acabam. Raramente duram muito tempo. Quando se trata de aumento de salário, as greves atingem em geral todas as empresas do parque industrial onde está instalado o grupo e todos os que possuem a mesma nacionalidade – os funcionários se organizam por origem geográfica.
Em alguns casos, as “paralisações de trabalho” têm como objetivo questionar o próprio governo. Em março de 2015, 90 mil trabalhadores da fábrica Yue Yuen (do grupo taiwanês Pou Chen), no parque industrial de Binh Tan, em Ho Chi Minh, desligaram as máquinas e bloquearam a estrada para protestar contra uma lei que reduzia seus direitos à aposentadoria. O governo precisou fazer uma emenda no projeto, algo jamais visto.
Tanto nesse caso como em outros, a CGTV não tem nenhuma participação. É necessário mencionar que os dirigentes sindicais são pagos pelas próprias empresas. A eleição de representantes dos assalariados permanece puramente formal. “A vontade de reforma existe. Os dirigentes têm consciência de que, com uma ‘economia de mercado de orientação socialista’, o sistema não pode ser o mesmo que na época do socialismo”, assegura Erwin Schweisshelm, diretor da Fundação Friedrich Ebert. Mas o processo é árduo. (M.B.)
1          “L’exportation de main-d’œuvre augmente au fil des années” [A exportação de mão de obra aumenta ao longo dos anos], Le Courrier du Vietnam, 14 dez. 2016.
*Martine Bulard é jornalista do Le Monde Diplomatique.


1          Não há nenhum laço de parentesco com o secretário-geral: o sobrenome “Nguyen” aparece em pelo menos metade dos vietnamitas, e é mais frequente designar as pessoas pelo nome, sem que isso implique intimidade.
2          “China manufacturers survive by moving to Asian neighbors” [Fábricas chinesas sobrevivem mudando-se para os vizinhos asiáticos], The Wall Street Journal, Nova York, 1º maio 2013.
3          Jennifer Wells, “Will the TPP transform the garment manufacture in Vietnam” [O TPP vai transformar a manufatura de roupas no Vietnã?], The Toronto Star, 6 out. 2015.
4          “Potential macroeconomic implications of the Trans-Pacific Partnership” [Potenciais implicações macroeconômicas do Acordo de Parceria Transpacífica], Global Economic Prospects, Banco Mundial, Washington, jan. 2016.
5          Vietnã, Canadá, México, Chile, Peru, Austrália, Nova Zelândia, Cingapura, Japão, Brunei e Malásia.
6          Ler Xavier Monthéard, “Retrouvailles des États-Unis et du Vietnam” [Reencontros dos Estados Unidos e do Vietnã], Le Monde Diplomatique, jun. 2011.
7          “Hécatombe de poissons: Formosa s’excuse, l’enquête continue” [Hecatombe de peixes: Formosa se retrata, a investigação continua], Le Courrier du Vietnam, 27 abr. 2016.
8          Ler Jean-Claude Pomonti, “Le Vietnam, la Chine et la bauxite” [O Vietnã, a China e a bauxita], Planète Asie, 3 jul. 2009. Disponível em: http://blog.mondediplo.net


9          Coletivo, Dien Bien Phu vu d’en face. Paroles de bô dôi [Dien Bien Phu visto de frente. Palavras de bô dôi], Nouveau Monde Éditions, Paris, 2010.

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