Friday, June 30, 2017

Contra a crise, o possível pós-capitalismo local

Contra a crise, o possível pós-capitalismo local

 
 
 
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Maio de 2014: mais de mil voluntários plantam mudas de carvalho, numa área antes degradada do leste da cidade
Moedas alternativas. Feiras de trocas. Bancos de horas. Economia da doação. Detroit, que revive depois de falir como “capital do automóvel”, mostra a enorme potência das redes de trabalho e consumo solidário
Por Valerie Vande Panne, no In These Times | Tradução: Inês Castilho
Você deve ter ouvido falar da volta por cima de Detroit, [antiga capital da indústria automobilística dos EUA]. É hoje uma narrativa popular nos centros da mídia, uma lenda de investimento e revitalização. Jovens olham romanticamente para a cidade como uma “tela em branco” – os imóveis são baratos, eles abundam, e a cidade está de volta.
O problema é que essa narrativa é um mito. A taxa de pobreza é próxima de 40%, e a despeito da chegada de jovens brancos seduzidos pelas promessas de um renascimento de Detroit, a população continua a declinar, de um pico de 1,8 milhão em 1950 para 670 mil hoje. Aproximadamente 70 mil residências tiveram a água cortada por falta de pagamento desde 2014, e cerca de 17 mil casas ocupadas correm o risco de sofrer despejo este ano.
O chamado renascimento da cidade atingiu apenas pequeno nichos de seus 360 quilômetros quadrados, deixando a maioria da população – composta por mais de 80% de afro-americanos – para trás.
Mas depois de décadas de pobreza, os habitantes de Detroit aprenderam a viver sem acesso ao dinheiro ou crédito tradicionais. Há uma resiliente economia informal enraizada nos bairros e comunidades: escambo, presentes, troca de tempo e empresas informais estão em toda parte.
Veja, por exemplo, a vibrante rede de empresas informais tais como salões de beleza em porões, oficinas mecânicas em fundos de quintal ou garagens, e, como no caso de Luis Bustos, restaurantes na casa das pessoas.
Bustos, 21 anos, caiu de uma escada em 2016, ficando em cadeira de rodas por três meses. Com o pagamento das prestações da casa mais um seguro de carro de 270 dólares por mês, ele precisava ganhar dinheiro. Mas depois do acidente não quis voltar aos empregos de cobrir telhados, que tinha antes. Começou a vender tortillas(sanduíches mexicanos) como as que sua mãe costumava fazer, com pão fresco, molho, milanesa, salsicha e frango.
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Hoje, dirige um restaurante em sua própria cozinha, entregando comida pela vizinhança ou servindo-a em sua sala. Embora queira conseguir um alvará, quando tiver dinheiro para isso, ele é franco. “Não tinha dinheiro para tirar uma licença, nem tempo para esperar meses pela liberação”, diz. Ninguém ia me dar um emprego, tive que me empregar eu mesmo. Do contrário, teria perdido a casa.”
Embora faça publicidade nas mídias sociais, ele também tornou-se famoso no boca-a-boca por sua comida, o que é importante numa área onde smartphones e acesso à internet podem ser relativamenteesparsos. Com isso, é capaz de ganhar algum dinheiro, mas também tem consicência da importância de ajudar os outros. “Como algumas pessoas às vezes não têm nada para comer, digo a elas que venham. Tem comida aqui.”
Em grande parte da cidade, há um entendimento de que, sem empregos, os vizinhos também estão lutando. É uma necessidade, então, participar de uma rede de moeda local.
Tradicionalmente, os economistas viam o escambo (troca direta de mercadorias) como um precursor primitivo dos modernos sistemas monetários. Mas o antropólogo David Graeber argumenta, em seu livro Dívida: Os primeiros 5.000 anos, (2011), que é justamente o oposto: o escambo pode surgir quando o dinheiro e a economia fracassam.
E a economia de Detroit fracassou espetacularmente. Não é surpresa, então, que escambo, doação, troca e empresas informais tenham se tornado tão essenciais quanto são, em outros lugares, o dinheiro vivo e o crédito tradicional. Como não há registro formal ou maneiras de rastrear trocas privadas, é difícil medir quanto avançou essa economia de sobrevivência. Mas, por tudo o que se vê, é generalizada.
O estilo de troca difere conforme o relacionamento. O escambo, disse Graeber numa entrevista, é geralmente usado quando as pessoas não se conhecem bem. “Mas pessoas que têm relacionamento há bastante tempo compartilham bens e serviços de acordo com sua capacidade e necessidade”. Ao contrário do escambo, as doações não são feitas à base do um-por-um. “São muito próximas do comunismo”, diz Graeber. “Você sabe que, no final, será bom para todos. É possível manter esta relação com pessoas que permanecerão próximas por muito tempo.”
Até certo ponto, as economias de doação existem dentro de todo grupo fechado. “É como os pequenos círculos comunitários são reconhecidos – pelo que compartilham”, diz Graeber. Mas “nas situações em que falta dinheiro, isso se expande e torna-se muito mais importante”.
Talvez a incorporação física da ideia seja um pequeno espaço, chamado Detroiters Helping Heach Other  (Moradores de Detroit ajudando-se uns aos outros), no sudoeste da cidade. O espaço lembra uma loja , com exceção de que – por causa de falta de dinheiro para eletricidade – a única luz entra pela porta aberta da frente.
Eletrodomésticos, móveis, utilidades de cozinha, roupas – há um pouco de tudo, disponível gratuitamente para quem necessita. As pessoas dão o que podem, quando podem (e muitos doadores também pegam da loja, quando necessitam). Alguns itens são gente de cidades vizinhas, que deseja ajudar diretamente a população de Detroit. As pessoas sabem não pegar o que não precisam, e dar tudo e sempre que podem. É uma rede de apoio comunitário crucial para quem está em crise – e nos últimos quatro anos tornou-se profundamente integrada à vida de muitos moradores de Detroit.
Os residentes na cidade não apenas dão ou permutam bens e serviços. Como muitas comunidades em todo o mundo, eles também trocam tempo. O banco de horas do sudoeste de Detroit é particularmente ativo, e inclui tanto indivíduos como empresas locais, tais como uma unidade de atendimento a idosos e uma loja de material de jardinagem. Para cada hora gasta fazendo um serviço, os participantes ganham uma hora recebendo outro serviço. Por exemplo, Mary Clare Duran, 65 anos, oferece frequentemente costura e reforma de roupa por meio do banco de horas do sudoeste de Detroit. Em contrpartida, ela solicita jardinagem dos outros membros. A pessoa que faz o trabalho no jardim pode gastar suas horas em, por exemplo, serviço de mecânica ou de cuidado com crianças. É um modo, diz Duran, de superar o dinheiro.
Um dos maiores desafios de banco de horas – que funciona principalmente online – é a desigualdade digital. Mas os moradores de Detroit encontraram soluções criativas em outros setores da economia informal. Descobriram, por exemplo, modos de articular caronas sem usar aplicativos. Nyasia Valdez, 22, recebeu sua carta de motorista em 2015, e começou a compartilhar seu carro com vizinhos e colegas de trabalho. Juntos, formaram sua própria rede de caronas, falando uns com os outros, compartilhando carros e chaves. Valdez diz que as circunstâncias estimulam a confiança. Há um entendimento, diz ela, de que “quando também estou na luta, a gente pode ajudar uns aos outros”.
Essas economias baseadas em relacionamentos, não-monetárias são fáceis de fetichizar. Mas em Detroit, esse método de viver nasceu do instinto humano em tempo de necessidade. “Venderam-nos a ideia de que o dinheiro é a chave para a felicidade e o sucesso, mas as pessoas não estão felizes”, diz Halima Cassells, fundadora do Mercado Livre de Detroit, um espaço de trocas onde todo mundo traz ao menos um item para dar e todos podem pegar tudo. “As pessoas gostam de que confiem nelas, de estar em ambientes onde são dignas de confiança. É algo que não se compra.

Hora de enfrentar Facebook e Google?

Hora de enfrentar Facebook e Google?

 
 
 
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Em fevereiro de 2015, participantes do carnaval de Dusseldorf (Alemanha) ironizam, em carro alegórico, o vigilantismo dos gigantes da internet
Punição da União Europeia e estudo independente reconhecem: os dois gigantes querem cercar a internet e eliminar sua diversidade. Mas como frear seu poder?
Por Rafael A. F. Zanatta
Essa semana, Google e Facebook – dois dos maiores gigantes do capitalismo de vigilância contemporâneo – sofreram duros golpes em suas reputações corporativas, abrindo um debate mundial sobre a ética de suas ações e as vulnerabilidades de nossa dependência a esses monopólios da era digital.
Na terça-feira (27/06), a Comissão Europeia impôs uma multa de quase 9 bilhões de reais ao Google por “abuso de posição dominante como motor de busca” e “por dar vantagem ilegal a seu próprio serviço de compras comparativas”. Trata-se da maior punição antitruste a uma única empresa já realizada na Europa.
As investigações foram conduzidas por Margrethe Vestagercomissária da União Europeia para defesa da concorrência (e forte liderança do Partido Social-Liberal da Dinamarca). Ela revelou que o Google situava sistematicamente em lugar destacado seus próprios serviços de compras comparativas, “colocando em lugar pior os serviços de comparação rivais nos resultados de busca”. Para a comissária, o Google “ocupa uma posição dominante nos mercados de busca de internet no Espaço Econômico Europeu” e, com suas práticas de manipulação, “abusou da posição dominante dando a seus próprios serviços uma vantagem ilegal”.
Em um processo de investigação sigiloso, realizado desde 2014, Vestager reuniu um amplo conjunto de provas, incluindo 5,2 terabytes de resultados de busca (1.700 milhões de consultas), experimentos e estudos que demonstravam a visibilidade e o comportamento de consumidores em número de cliques, dados financeiros da Google e seus competidores e o declínio de acessos em websites europeus.
Para analistas do Financial Times, a decisão é um divisor de águas na regulação antitruste aplicada à “nova geração de empresas de tecnologia dominantes dos Estados Unidos”. Um terço da receita do Google com publicidade em buscas na Europa vem dos anúncios de compras que foram analisadas pela União Europeia. A decisão, enfim, “abre o coração do mecanismo de busca do Google” e possibilita o debate sobre como outros poderão utilizar seu mecanismo para conseguir uma melhor exposição.
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Para quem se recorda do chamado de Richard Sennett de 2013 para “quebrar o poder de mercado do Google”, a decisão reabre um debate sobre monopólios na era digital. “A dominação é real e deve ser combatida”, dizia Sennett, por mais que essas empresas nos pareçam boazinhas.
Na quarta-feira (28/06), o centro independente de investigação ProPublica divulgou documentos internos do Facebook sobre o modo como seus 2 bilhões de usuários têm seus discursos avaliados, passando por filtros de censura sobre o que poderia configurar “discurso de ódio”.
De acordo com a denúncia do ProPublica, os algoritmos – fórmulas matemáticas que executam ações e comandos – do Facebook geram resultados socialmente questionáveis, assegurando os direitos de grupos com posições sociais asseguradas (como homens brancos) e desprotegendo grupos minoritários (crianças negras, por exemplo). Documentos internos vazados da empresa mostram que revisores de conteúdo eram orientados a trabalhar com uma fórmula simples (protected category + attack = hate speech). “Sexo” e “identidade de gênero”, por exemplo, são consideradas categorias protegidas, ao passo que “idade” e “ocupação” não. Como a fórmula exige uma dupla combinação de categorias protegidas (PC + PC = PC), discursos voltados a mulheres motoristas não são considerados de ódio, pois há uma categoria não protegida, que é ocupação (PC + NPC = NPC).
O simplismo de fórmula matemática do Facebook e a tentativa de “proteger todas as raças e gêneros de forma igual” despertou a crítica de acadêmicos. Denielle Citron, da Universidade de Maryland, argumentou que as regras do Facebook ignoram o espírito do direito e a análise contextual da proteção. O Facebook saiu em defesa própria, alegando que as políticas não possuem resultados perfeitos e que é “difícil regular uma comunidade global”.
Em ensaio para revista Wired, Emily Dreyfuss analisou a denúncia da ProPublica e argumentou que o problema é maior é que o Facebook é “muito grande para ser deletado”. Ao conectar um quatro da humanidade, as pessoas que precisam de uma plataforma para expressão não são capazes de sair – mesmo se forem alvos de censuras arbitrárias ou desproteções, como o caso dos algoritmos de “discurso de ódio”.
Isso leva a uma situação paradoxal. Ativistas em defesa da privacidade e lideranças do movimento negro – que atacam práticas realizadas pelo Facebook, como coleta maciça de dados e tratamento tecnológico desigual para brancos e negros – dependem do Facebook para compartilhar informação, pois as perdas são muito grandes ao deletar sua conta e isolar-se da rede de Zuckerberg. “São poucos os que podem se dar ao luxo de abandonar o Facebook e utilizar outras redes”, afirma Dreyfuss.
Renata Mielli, ativista integrante da Coalizão Direitos na Redeem ensaio para o Mídia Ninja nesta quinta-feira (29/06), foi perspicaz no diagnóstico: “O Facebook está sugando a internet para dentro de sua timeline”. Ele é o “maior monopólio privado de comunicação do mundo”, colocando em cheque as bases de nossa democracia.
Retomamos, assim, à grande provocação de Richard Sennett: se sabemos que esses gigantes devem ser quebrados e se estamos cientes dos aspectos prejudiciais desses monopólios sociais, o que podemos fazer?
The Economistem matéria de capa no mês de maio1, surpreendeu os progressistas ao oferecer uma crítica ao poder do Google e Facebook. A revista inglesa argumentou que é necessário “repensar radicalmente” os instrumentos antitrustes para os gigantes de coleta de dados (Google e Facebook), pois os reguladores ainda estão presos a conceitos de era industrial, ao passo que os instrumentos de análise devem ser voltados a empresas de tecnologia focadas em dados.
Economist também propôs duas ideias embrionárias: aumentar a transparência sobre como os dados pessoais são coletados e monetizados (aumentando poder de barganha dos “fornecedores” – ou seja, nós mesmos) e redefinir conceitos jurídicos aplicáveis a essa nova indústria, tratando os data vaults (bancos de dados modelados para fornecer armazenamento histórico de longo prazo) como “infraestrutura pública”, forçando o compartilhamento de dados para estimular a competição.
Seriam ideias viáveis? Talvez. O mais importante, nesse momento, é mobilizarmos essas perguntas e forçarmos uma discussão sobre alternativas políticas e institucionais.
1Regulating the internet giants: the world’s most valuable resource is no longer oil, but data

“Liberais” — até a página dois…

“Liberais” — até a página dois…

 
 
 
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Em seu livro mais recente, Christian Laval e Pierre Dardot dissecam a ordem neoliberal parecem sugerira Favela do Moinho precisa ser arrasadapara que Wall Street sobreviva…
Por Eleutério Prado | Imagem: George Grosz, Panorama (1919), detalhe

Texto publicado originalmente na revista
O Olho da Históriadirigida por Jorge NovoaParceira de Outras Palavras
Foi publicado no primeiro semestre de 2016, na França, pela editora La Découverte, o mais recente livro de Pierre Dardot e Christian Laval que, segundo os próprios autores, foi escrito sob um agudo sentimento de urgência. Eis o seu título em tradução direta: Este pesadelo que não termina – como o neoliberalismo derrota a democracia (em francês: Ce cauchemar qui n’en finit pas – comment le néolibéralisme défait la democracie). Trata-se um texto de intervenção na conjuntura social e política francesa, mas que traz um alerta pungente que ecoa no presente momento histórico do evolver do mundo como um todo. Como obra singular, esse escrito se apresenta como síntese confluente das teses que desenvolveram em outros três livros antecedentes: La nouvelle raison du monde. Essai sur la société neoliberale (2009), Marx, prénon Karl (2012) e Commun. Essai sur la révolution au XXe siècle (2014). Como se sabe, o primeiro deles foi recentemente traduzido para o português, tendo sido publicado no Brasil pela editora Boitempo, com o título A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal (2015).
Segundo Dardot e Laval, estamos na presença de uma mudança crucial no curso do desenvolvimento da sociedade moderna, a qual está afetando o modo de reprodução das relações sociais em todas as esferas da vida social, isto é, nas orbitas econômica, política, cultural, etc. E essa mudança, dizem eles, tem também gerado efeitos perversos no regime político dentro do qual se dão as relações entre a esfera da vida civil e o Estado.
“Vivemos” – dizem eles – “uma aceleração decisiva dos processos econômicos e de segurança que estão transformando profundamente a nossa sociedade, assim como as relações entre governantes e governados. Tal mudança de ritmo, que se alimenta da crise financeira, da crise das dívidas na Europa, da chegada dos refugiados sírios, dos atentados terroristas, tem um rumo certo. Eis que estamos na presença de uma aceleração da fuga da democracia. E essa evasão tem dois aspectos complementares: de um lado, a força renovada da ofensiva oligárquica dirigida contra os direitos sociais e econômicos dos cidadãos; de outro, a multiplicação dos dispositivos de segurança dirigidos contra os direitos civis e políticos desses mesmos cidadãos.
Ora, essa transformação está sendo produzida pelo avanço do neoliberalismo. Enquanto tal é bem abrangente, mas tem sido imposta na prática por meio da ação simultânea dos braços de um tenaz, uma política de liberalização econômica e uma política cada vez mais rígida de segurança pública. Pois, essa forma de racionalidade política, na busca de levar adiante o capitalismo a qualquer custo ambiental e humano, na mesma medida em que propugna pela vigência irrestrita das normas de concorrência e de competição em todas as esferas da vida social, tem também, necessariamente, de passar a exigir um reforço da segurança que procura repor a ordem no sistema social realmente existente. Tem-se assim, portanto, uma complementariedade institucional que precisa ser melhor compreendida.
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Para tanto, veja-se que essa elevação da segurança pública se constrói contra a própria segurança dos cidadãos que pelejam diuturnamente para continuar vivendo no interior dos estados nacionais. Pois, a vigência destravada das regras que privilegiam os mais competentes, os mais fortes, acirra a conflitualidade entre as pessoas, produz um estilhaçamento da sociedade e, assim, exige como complemento necessário um reforço dos procedimentos que regulam, controlam e reprimem os comportamentos desviantes possíveis dessas mesmas pessoas. Segundo Dardot e Laval, autores que se alarmam com a emergência dessa dura e inóspita realidade social, “a razão política neoliberal, concentrando a realidade do poder nas mãos dos atores econômicos mais fortes em detrimento da massa dos cidadãos, leva insegurança à população, desativa a democracia e fragmenta a sociedade”.
Por neoliberalismo, eles não compreendem meramente nem um conjunto de doutrinas que se esmeram em defender o capitalismo contra as concepções rivais, liberais clássicas, social democráticas ou socialistas, nem um conjunto de políticas econômicas que favorecem a produção mercantil em detrimento da atuação do Estado, mas uma racionalidade que procura domar a sociedade como um todo, que busca remodelar as suas instituições mais tradicionais, para impor a matriz da relação de capital à reprodução de todas as relações sociais de um modo homogêneo.
A lógica do neoliberalismo é, pois, totalizante. Em consequência dessa característica marcante, ela tende a anular, sem destruí-las formalmente, todas as opções políticas alternativas. Assim, por exemplo, mesmo se não impede a ascensão ao poder de um partido socialdemocrata, ele torna inviável as políticas que propugnam verdadeiramente por uma acomodação dos interesses das classes antagônicas formadas por trabalhadores e por capitalistas. Não prescreve que deve existir um regime de partido único, mas, como acentuam esses dois autores, elege que os governos atuem segundo uma “razão política única”.
Uma das consequências mais terríveis da governança neoliberal é que ela nutre e espalha o ressentimento e a frustração na sociedade na mesma medida mesmo em que magnifica o individualismo possessivo característico da sociedade moderna. Ela se empenha em fracionar a sociedade e em criar indivíduos bem adequados à prosperidade da relação de capital, à totalidade posta pelo capital, mas, nesse ímpeto, não deixa de criar uma monstruosidade política que pode acabar minando e corrompendo a própria sociedade. É bem evidente que o neoliberalismo cria as condições para a emergência da xenofobia, do nacionalismo e do fascismo.
Mesmo se não o sabem – e mesmo quando se sentem confortáveis nessa figura –, as pessoas, sob a égide do neoliberalismo, são estruturalmente instadas e constrangidas a se comportarem e a se sentirem como homo œconomicus, como aquele átomo social que existe de fato, como tal, apenas na teoria econômica vulgar. Respondendo aos estímulos – prêmios e punições – postos por meio de instituições que privilegiam a concorrência em todas as esferas da vida social, conforme as pessoas se tornam mais competitivas e mais aguerridas na luta por espaço e por ganhos, tornam-se ao mesmo tempo mais isoladas, mais ansiosas, mais tensas, mais inseguras, mais frágeis. Tomadas pelo estranhamento em relação as outras pessoas, pelo sentimento de impotência diante das instabilidades do sistema econômico, elas se experimentam como gravetos diante de circunstâncias que não controlam e que não podem controlar. É, pois, com base nesse tipo de sentimento que buscam identidades coletivas compensatórias, comunidades imaginadas que não possuem um comum verdadeiro, tais como uma pátria exacerbada, uma religião fervorosa, uma raça superior, uma organização política de direita, um grupo de inspiração nazista. Tais comunidades, entre as quais não deixam de estar as torcidas organizadas, demarcam-se radicalmente do resto da sociedade, escolhem inimigos preferenciais e se nutrem de um ódio furioso contra aqueles em relação aos quais pensam se diferenciar.
Como o neoliberalismo trava uma batalha decisiva pela manutenção e pela continuidade do capitalismo, ele não se detém diante das barreiras que enfrenta, nem diante daquelas que advém de ocorrências externas nem diante daquelas que provém de fontes endógenas ao sistema ou mesmo diante dos próprios fracassos; ao contrário, ele as aproveita para se desenvolver mais profundamente no meio social. Como racionalidade perversa, ele atua sempre para retomar e reforçar mais e mais as políticas de liberalização e de segurança pública que privilegia. Segundo Dardot e Laval, as crises que surgem no curso de seu desenvolvimento, longe de serem um freio, tornam-se um meio para que venha impor mais fortemente o seu modo de governar. Em consequência, dizem, “o neoliberalismo não cessa, por meio da insegurança e destruição que engendra, de se auto alimentar e se auto reforçar”. Ora, é justamente esse enigma que eles querem desvendar por meio de livro que aqui se resenha.
Além da introdução que está aqui resumida nos parágrafos acima, o livro desenvolve-se em seis capítulos. No primeiro deles, Dardot e Laval procuram revelar, primeiro, o caráter oligárquico da governança neoliberal e sua oposição disfarçada e cínica à democracia entendida como soberania do povo. Ele se esconde sempre sob a capa ideológica de uma imprescindível governança tecnoburocrática que se ampara na atuação de agentes bem treinados, os quais se julgam sempre muito competentes. Em segundo lugar, ainda nesse capítulo, eles buscam mostrar como o neoliberalismo se vale das crises para “ganhar” as pessoas, para avançar sobre as práticas sociais, com o intuído de governar sobranceiro, desprezando as contestações.
No segundo capítulo, Dardot e Laval mostram como o neoliberalismo nasceu de um projeto político elaborado já na década dos anos 30, mas que veio comandar os rumos da sociedade apenas após as crises dos anos 1970. Apontam, então, que esse projeto nunca foi uno, que tinha diversas tendências, mas que todas elas confluíam na proposição de que era preciso limitar a democracia em face de certos imperativos econômicos. Sem suprimi-la completamente, ele tem como estratégia se impor à soberania popular criando regras pétreas que não podem ser violadas de modo algum pelos governantes, mesmo se eles foram eleitos de forma majoritária. Um bom exemplo, é o chamado “superávit fiscal” que amordaça o gasto público para obter saldos e, assim, poder pagar juros ao capital financeiro. De modo geral, em sua perspectiva, também os governados são responsáveis pelos atos dos governantes mesmo em relação ao cumprimento de regras que eles não escolheram e que nunca escolheriam.
O terceiro capítulo destina-se a mostrar que o neoliberalismo, ao contrário do que normalmente se pensa, não contradita o intervencionismo. Não se constitui como uma racionalidade política negativa que visa restringir o exercício do poder por parte do Estado. Ao contrário, trata-se de um “modo de poder positivo e original” que tem por objetivo estender e aprofundar o capitalismo como ordem global que prevalece em cada canto do mundo. E que, para tanto, se vale de um certo ativismo que opera tanto nas empresas privadas quanto no Estado. Eis que se trata de uma forma de governança ou mais propriamente de governamentalidade. Assim, sob a égide dessa racionalidade, criam-se não só normas disciplinares que estruturam a vida das pessoas como “capital humano”, mas também se engendram sistemas concorrenciais que regulam os fluxos nacionais e internacionais de mercadorias, dinheiro e capital. O caso específico de como isto se dá no âmbito da União Europeia é tratado no capítulo quarto. Já o papel da dívida pública e do sistema financeiro como instrumentos de coerção sistêmica é examinado no capítulo quinto. O neoliberalismo aparece, então, como a práxis política inerente ao capitalismo que se consolidou globalmente num elevado grau de socialização do capital, constituindo uma estrutura econômica em que o capital funcionante fica bem subordinado ao capital financeiro.
Partindo da tese de que para compreender o neoliberalismo é preciso examinar as forças coletivas e os arranjos oligárquicos que se constituem historicamente para promovê-lo, o capítulo seis examina como um bloco oligárquico neoliberal se formou na França nas últimas décadas.
No último capítulo, após ter apresentado uma visão trágica das tendências sociais e políticas que tendem a espalhar e a dominar no momento presente, tais como o nacionalismo, a xenofobia, o fundamentalismo e o fascismo, Dardot e Laval tratam com crueza aquilo que denominam de “uma crise histórica da esquerda”. Pensando principalmente na Europa, mas não deixando de se referir também ao que ocorre em países como o Brasil, eles apontam o fracasso em geral da esquerda, timorata e conciliatória, que disputa e, às vezes mesmo, ocupa o poder formal, diante do avanço do neoliberalismo.
A esquerda dita governante tem muita responsabilidade pela radicalização neoliberal. Ela não é, como quer fazer crer, uma vítima inocente dos malvados mercados financeiros ou da abominável doutrina ultraliberal anglo-saxônica. Ela produziu a sua própria sabotagem intelectual e política ao invés de resistir ao poder da direita neoliberal. (…) Sem o concurso da “socialdemocracia” europeia, as políticas de austeridade não teriam sido impostas na Europa com tanta facilidade. Ao invés de se constituir como força contrária, aliou-se efetivamente à direita nesse terreno. A esquerda governante deixou assim de ser aquela força em prol da justiça social que luta pela igualdade civil, política e econômica e que tem por alçada a luta de classes. A extrema direita pode assim colher frutos no terreno do operariado esforçando-se por instrumentalizar a cólera social de uma fração do eleitorado popular para dirigi-la contra os imigrantes e contra o “sistema” que supostamente os favorece.
Dardot e Laval creem que a crise da esquerda se deve à sua opção por ações meramente reativas diante do avanço neoliberal. Eis que é justamente isso o que ele sempre espera da agência social: uma atitude meramente adaptativa que, no máximo, contesta apenas parcialmente as injunções das normas e das instituições concorrenciais que engendra e alimenta sem cessar. Ora, para superar essa situação, eles indicam que a esquerda deve passar tomar a iniciativa, contestando diretamente, em bloco, essa racionalidade como forma de vida. A posição política que se orienta pelo devir precisa, assim, lutar para abrir para a sociedade um novo horizonte de “vida boa”, sem tentar reabilitar, no entanto, “o poder público e o prestígio do direito público”. O neoliberalismo não se caracteriza por propugnar por um retraimento do Estado diante do “mercado”, mas por remodelá-lo e reorientá-lo para que passe a favorecer, apoiar e complementar os funcionamentos mercantis.
Mas como encontrar e ativar uma alternativa ao neoliberalismo? Segundo Dardot e Laval, essa alternativa não será proporcionada pelos movimentos e partidos que centralmente disputam os recursos e os poderes estatais. Pois, ela apenas pode ser achada na atividade política que vem de baixo, isto é, que nasce e prospera a partir das iniciativas cidadãs em prol de novas formas de vida comunitárias. A luta a ser travada, portanto, no âmbito da cidadania – e não no âmbito da luta oligárquica pelo comando dos aparelhos de Estado. Trata-se, em suma, de pôr a democracia em todas as esferas de decisão, de realizar o governo popular de uma forma radicalizada, isto é, de experimentar verdadeiramente o que denominam de “comum político”.
Eis que a democracia verdadeira é o contrário do que chamam de “expertocracia”, isto é, do governo dos “experts”. Pois, para impor a sua forma de governança que sempre trabalha em prol do sistema de coerção social realmente existente e que sempre deve ser reforçado, “o neoliberalismo realiza um confisco da experiência comum por meio da expertise”. Assumindo que possui saberes exclusivos e que está possuído por uma racionalidade superior, ele assopra no ouvido dos incautos: “só a experiência que se vale da expertise vale como experiência, pois a experiência comum deve ser rejeitada como incompetência”.
Para enfrentar o neoliberalismo não basta, porém, retomar simplesmente a experiência do comum, exigindo apenas que ele seja posto ou reposto pelos agentes do Estados. Segundo Dardot e Laval, “aquilo que importa não é tanto reabilitar a experiência comum mas abrir o espaço para que ocorra a experiência do comum, isto é, a experiência de efetiva coparticipação nas coisas públicas”. Dito de outro modo, os cidadãos que se esfalfam na base da sociedade devem tomar para si o poder instituinte, em detrimento do poder consolidado, já instituído. Não basta para eles que sejam meramente ouvidos, mas que possam, coletivamente, estabelecer o que se deve fazer.
Na última seção do livro, eles propõem qual deve ser a estratégia política da esquerda em nível nacional e em nível internacional. Segundo dizem, eles não fazem aqui mais do que traduzir as práticas atuais dos movimentos sociais que estão emergindo ou já estão atuado nas várias partes do mundo. Trata-se sempre – convêm – de uma luta difícil, pois se põe como necessário unificar e concentrar forças dispares contra oligarquias muito bem estruturadas e que estão montadas em organizações muito fortes.
No entanto, a meta central já está dada pela própria configuração das lutas em curso. No nível nacional, trata-se de “governar contra o Estado existente, isto é, mais precisamente, contra tudo que está constituído por meio da dominação oligárquica”. No nível das grandes regiões e do mundo como um todo, trata-se para eles de “construir um bloco democrático internacional” que não seria formado por partidos políticos, mas por todas as organizações sociais de base tais como os sindicatos, iniciativas ecológicas, grupos de defesa, sociedade científicas e culturais, etc.
As tarefas variam enormemente, mas em síntese trata-se sempre de instituir ativamente comuns democráticos que passam progressivamente a governar as escolas, os hospitais, os bairros, as empresas, isto é, todas as organizações que se mostram necessárias para uma vida social digna e feliz. Em particular, dizem eles numa frase final, “com a obtenção da vitória sobre a oligarquia, Plutão ficará fora do templo da Cidade”. Pois, como se sabe, Plutão é o velho deus do dinheiro que agora governa como capital.

Militares, ciências, Educação Popular.

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