Monday, January 29, 2018

"Maioria dos juízes é conservadora e não gosta de Lula", diz promotor aposentado

A decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região ( TRF4), de manter a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e aumentar sua pena de nove anos e seis meses para 12 anos e um mês de prisão, está sendo repercutida e questionada internacionalmente.
Um dos juristas que têm se posicionado criticamente ao resultado do julgamento, realizado na última quarta-feira é o professor de Direito Processual Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Afrânio Silva Jardim.
Promotor de justiça aposentado do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Jardim tem se posicionado firmemente contra as irregularidades do poder judiciário na Operação Lava Jato.
Em entrevista à Radioagência Brasil de Fato, 27-01-2018, o jurista destacou que nenhuma das preliminares da defesa de Lula foram discutidas no julgamento do TRF4e que para a justiça brasileira, o ex-presidente não é mais reconhecido como um sujeito de direitos.
Eis a entrevista.
Após a decisão do TRF4, há a possibilidade da efetivação da prisão de Lula antes do julgamento dos recursos cabíveis? Isto é constitucional?
O importante é o artigo 283 do Código do Processo Penal, onde é expresso que ninguém pode ser preso em razão de uma condenação enquanto ela transitar em julgado. Só pode ser preso em flagrante, prisão cautelar ou em razão de condenação desde que transitado e julgado, ou seja, desde que não caiba mais recurso e, nesse caso, vão caber os embargos de declaração, que não têm grande relevância para defesa, mas são importantes. Vai caber recurso especial para o Tribunal de Justiça e recurso extraordinário para o Supremo. A prisão como efeito puro e simples da condenação não pode ocorrer.
O que os desembargadores que julgaram o recurso de Lula no TRF4 representam dentro do Direito brasileiro? Qual o perfil deles?
A não ser o relator, que tem uma obra publicada e não relevante, os outros são totalmente desconhecidos para a comunidade jurídica, para nós aqui do sudeste, pelo menos. São desembargadores concursados desempenhando sua função. Mas não têm nenhuma expressão enquanto juristas. Pela informação que tenho do pessoal do Sul, eles têm uma posição muito severa, punitivista, acreditam muito no Direito Penal, no castigo, na prisão.
Falta uma visão mais crítica, uma leitura sobre criminologia, sociologia do direito, porque essa visão punitivista é muito ingênua. Acreditam que através do direito penal se possam resolver questões sociais, econômicas, é uma outra discussão da criminologia crítica. Uma posição simplista, ingênua. Estão ali para julgar, mas nesse caso não julgaram de acordo com o direito.
Se o Lula fosse corrupto, seria o mais burro do Brasil, porque está condenado por corrupção sem ter acrescido ao seu patrimônio um centavo sequer. Lavou dinheiro que não existiu e benefício que não teve. Não sou petista, nem morro de amores por Lula — mas querem que ele morra pobre e humilhado na cadeia. Isso entristece qualquer um. Um dos homens mais importantes do mundo, respeitado por chefes de Estado, por todos, humilhados assim.
Na sua opinião, qual o interesse deles nessa "destruição do Estado de Direito"?
Mesmo a direita, aqueles que têm esse comportamento, não querem destruir o Estado de Direito, isso é uma consequência. Eles querem derrotar o movimento de esquerda, e para tanto usam o Direito de instrumento. Quando o Direito não atende, se contorna ele, se flexibiliza a Constituição e as regras de garantia do processo. É uma guerra política, querem o Lula condenado, e a maioria dos juízes do Brasil quer ver isso.
Então é uma guerra política. Eu fui Promotor de Justiça por 31 anos. Nosso Ministério Público e a nossa magistratura são compostos por pessoas conservadoras de centro e centro direita, que não gostam do Lula enquanto líder popular. Isso é exemplificado com a euforia dos procuradores da república no evento do PowerPoint. A alegria mostra a posição ideológica deles. Se eu tivesse que denunciar o Lula, faria de forma discreta, como sempre fiz, e levaria ao cartório. Mas eles estavam eufóricos, vaidosos.
Aquela criançada de Curitiba está fazendo um grande mal ao Brasil, não ao punir a corrupção, mas na forma como fazem isso, e na ideia de que com isso vão acabar com problemas que na verdade são inerentes a uma sociedade capitalista.

Reformas trabalhista e da Previdência são 'combinação explosiva' para o trabalhador


"Esse governo tem até 2018 para implantar um programa que não foi respaldado pelas urnas, um programa liberal que se tenta implantar no Brasil há pelo menos 40 anos, e o golpe parlamentar foi essa oportunidade de implantar a chamada agenda do mercado." É assim que o professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) Eduardo Fagnani avalia a insistência do governo em aprovar a "reforma" da Previdência, cuja votação está agendada para acontecer em 19 de fevereiro, na Câmara dos Deputados.
Em entrevista concedida à Rádio Brasil Atual, Fagnani é taxativo ao dizer que a propaganda oficial mente ao dizer que os mais pobres não serão afetadas pela PEC 287. "É uma estratégia. Como se eles estivessem fazendo uma reforma que atinge apenas os marajás do serviço público. Isso não é verdade", aponta, destacando as dificuldades que o trabalhador terá para conseguir acesso ao benefício. "Para ter aposentadoria integral precisa contribuir durante 44 anos, isso inviabiliza, ninguém mais vai ter aposentadoria integral no Brasil. Isso é superior ao tempo de contribuição que os países desenvolvidos adotam."
Para o economista, a combinação dos efeitos da "reforma" trabalhista, que precariza os empregos e diminui as receitas previdenciárias, com a proposta de mudanças do governo no sistema previdenciário inviabilizam o sistema, aumentando ainda mais a desigualdade no país. "Antes da reforma trabalhista, em média, 50% do trabalho era informal, mas no Maranhão esse índice é de 75%. Essas pessoas em geral não contribuem para a Previdência e não vão conseguir ter os 15 anos (de contribuição mínima). Isso não só prejudica as camadas de menor renda mas a população que mora nas regiões Norte e Nordeste, o que vai ampliar a desigualdade regional e a desigualdade de renda no país."
A entrevista foi concedida a Glauco Faria, publicada por Rede Brasil Atual - RBA, 28-01-2018.
Eis a entrevista.
A propaganda do governo diz que os mais pobres não serão afetados pela reforma da Previdência, mas, pela sua análise, mesmo com as mudanças feitas a partir da proposta original eles continuam sendo os mais afetados pela PEC 287. É isso mesmo?
Sim. A reforma também atinge os trabalhadores de menor renda, do chamado regime geral da Previdência Social. Esses trabalhadores, quase 100% dos rurais, por exemplo, recebem o piso do salário mínimo; mais de 80% dos aposentados do INSS urbano também recebem o piso. No regime geral, a média do benefício é em torno dos 1,5 a 1,6 mil reais.
O governo diz que esse pessoal não vai ser afetado. Mentira. Quem são os privilegiados para o governo? É o servidor público, e a propaganda enganosa do governo dá a entender que a reforma só vai atingir esse segmento, e não é verdade. A ideia do combate ao privilégio, que teria como alvo o servidor público federal, esconde o fato de que a maioria da população pobre, de baixa renda, vai ser afetada pela reforma.
E nem dá para dizer que o servidor público é exatamente um privilegiado. Existem poucas carreiras em que se ganha muito, mas a média da remuneração em geral é pouco maior que a do trabalhador da iniciativa privada...
Exatamente. A média do servidor público está em torno de quatro, cinco mil reais. Existem algumas categorias, em especial do Judiciário e do Legislativo, que têm salários acima de 30 mil reais, além de auxílio-alimentação e outros itens que transformam essa remuneração em valores altíssimos. Para restringir esses salários é muito simples, basta que se cumpra a Constituição. E o que ela diz? Nenhum salário deve ser maior que o salário do presidente da República. É muito mais fácil exercer a Constituição do que fazer uma reforma desse tipo.
E outra coisa importante, que pouca gente sabe, é que existem várias situações diferentes entre os servidores públicos. Você acha que o gasto da Previdência com o setor público em 2040, 2050, vai aumentar? Não vai, vai cair. Foram mais de 20 anos para aprovar uma legislação constitucional complementar em 2013 que cria o teto, qualquer servidor público que entrar no serviço público a partir de 2012 tem o teto igual ao do INSS. É outra mentira que o governo diz, porque a situação de longo prazo já foi equacionada.
Nessa campanha publicitária do governo, o servidor público entra como bode expiatório para desviar a atenção de outros pontos da reforma da Previdência que afetam a população.
É uma estratégia. Como se eles estivessem fazendo uma reforma que atinge apenas os marajás do serviço público. Isso não é verdade. Essa reforma, insisto, pega o trabalhador rural, de baixa renda, que se aposenta pelo INSS com muita dificuldade e tem uma contribuição equivalente a um salário mínimo.
Sobre os efeitos dessa reforma, o valor médio da aposentadoria tende a cair e vai ficar muito mais difícil para o trabalhador conseguir a aposentadoria integral?
Aposentadoria integral acabou. Para conseguir a aposentadoria integral, que na prática é o teto de 5,5 mil reais tanto para o setor público quanto para o privado, isso vai ser impossível. Para ter aposentadoria integral precisa contribuir durante 44 anos, isso inviabiliza, ninguém mais vai ter aposentadoria integral no Brasil. Isso é superior ao tempo de contribuição que os países desenvolvidos adotam.
E que tem expectativa de vida maior que a do Brasil...
Tem tudo mais que o Brasil, expectativa de vida, renda per capita, IDH... Fizemos um documento com mais de 30 indicadores que mostram que é impossível fazer uma reforma no Brasil se inspirando no padrão dos países europeus, desenvolvidos, mas mesmo eles não exigem 44 anos de contribuição.
Aposentadoria integral, esquece, o que você pode ter é uma parcial. O governo queria inicialmente, para a parcial, exigir contribuição de 25 anos junto com o limite de idade, 65 anos para homens e 62 para mulheres. A sociedade gritou, eles recuaram, se tivesse 25 anos para a aposentadoria parcial, menos de 80% da população conseguiria comprovar 24 anos, excluiria todo esse segmento. Depois, baixaram para 15 anos e você pode dizer "poxa, agora está tudo bem". Não está, e por duas razões. A primeira: com 15 anos de contribuição você tem 60% da aposentadoriaSegunda razão, antes da reforma trabalhista, já era difícil uma pessoa de baixa renda comprovar 15 anos de contribuição e quem não consegue vai para o benefício assistencial. Com a reforma trabalhista, o que vai acontecer? Vai se tornar quase impossível porque vai haver uma tendência de redução dos empregos com carteira assinada, que contribuem para a Previdência, e vão aumentar os empregos temporários.
Como já está acontecendo.
Trabalho por hora, o trabalho intermitente... A tendência de contratação de pessoas jurídicas, cujas alíquotas são 50% do que paga o trabalhador com carteira assinada. A reforma trabalhista vai tornar o legal o trabalho precário. O Dieese diz que antes da reforma trabalhista uma pessoa em média, durante 12 meses, conseguia contribuir apenas nove meses por conta da rotatividade e da informalidade. Com a reforma trabalhista, vai reduzir esse período em que ele consegue contribuir. Isso também afeta os pobres, ao contrário do que eles dizem, não é uma proposta para acabar com os privilégios, mas para acabar com o direito à aposentadoria no Brasil, inclusive nas camadas de baixa renda.
Até porque a precarização do trabalho é maior nas camadas de mais baixa renda, e mesmo quando existe nas de alta, é possível a pessoa acessar outras alternativas, ao contrário dos mais pobres.
Não só nas camadas de mais baixa renda, como você falou corretamente, mas nas regiões mais pobres do país. Por exemplo, antes da reforma trabalhista, em média, 50% do trabalho era informal, mas no Maranhão esse índice é de 75%. Essas pessoas em geral não contribuem para a Previdência e não vão conseguir ter os 15 anos. Isso não só prejudica as camadas de menor renda mas a população que mora nas regiões Norte e Nordeste, o que vai ampliar a desigualdade regional e a desigualdade de renda no país.
O governo fala que essa reforma é para salvar a Previdência Social e que garantiria que o aposentado recebesse seu benefício no futuro. Mas, na prática, a combinação da reforma trabalhista com a da Previdência inviabiliza o sistema no curto e médio prazo com a queda da arrecadação.
Muito bem colocado. É uma combinação explosiva, já escrevemos isso, vários colegas, há um ano atrás. Isso vai quebrar a Previdência. Só a reforma da Previdência já tem um potencial enorme de reduzir as receitas do sistema previdenciário. O trabalhador rural não vai conseguir pagar e não vai contribuir. Por que pagar se não vai poder usar? Os jovens veem e pensam: "escuta, vou ter que contribuir 44 anos sem faltar um mês para ter aposentadoria? Dane-se, não vou contribuir".
As camadas de maior renda vão para a previdência privada, que cresce 30% ao ano desde 2015. Só a reforma da Previdência tem o potencial de quebrar o sistema. Mas, juntando com a reforma trabalhista, esse potencial aumenta enormemente. As pessoas, ao invés da carteira assinada, vão estar no emprego temporário, de curta duração, com contribuição durante um período muito curto. Ou vão estar em um trabalho precário, que agora passou a ser legalizado, e não vão contribuir.
Esse é o projeto. Vai chegar daqui a quatro, cinco anos e não vão ver a redução da receita que vai acontecer, só vão dizer "o déficit aumentou". Eles não querem saber que o déficit aumentou por conta da redução da receita, da recessão da economia, da reforma trabalhista que eles fizeram. O déficit aumentou, então vão tentar fazer a reforma que querem fazer, que simplesmente extingue a possibilidade de a pessoa ter direito à proteção à velhice.
E o governo ao mesmo tempo que investe contra o trabalhador com retirada de direitos e dificuldade de acesso à aposentadoria não demonstra se importar com ingresso de receitas por meio de cobrança de débitos bilionários. É um Robin Hood às avessas.
Há uma campanha terrorista. O governo não tem argumentos, não quer debate. a única maneira de fazer isso é pelo terrorismo e um deles é esse: sem a reforma da Previdência, o Brasil quebra. Mas o governo quer economizar com essa reforma, 500 bilhões em 10 anos. Hoje, a dívida das empresas com o governo é de 500 bilhões. Se cobrasse essa dívida, já faria a economia de 10 anos.
Tem várias alternativas para resolver essa questão, e passam pelo crescimento da economia e fazer com que não só os pobres e os trabalhadores paguem a conta. Há uma série de mecanismos de transferência de renda pra os ricos que se mantêm intocável. Esse estoque de transferência resolve facilmente o problema da Previdência.
Quais são essas alternativas?
O governo quer fazer uma reforma para economizar 50 bilhões de reais anualmente em um período de 10 anos. Ele poderia rever, por exemplo, as isenções tributárias que concede a grandes grupos econômicos que, por ano, representam 300 bilhões. O governo deixa de arrecadar todo ano 20% da receita por conta de isenções do andar de cima.
Segunda alternativa: o Banco Mundial diz que o Brasil só perde para a Rússia em termos de sonegação, algo em torno de 10% do PIB. O governo não só não está interessado em investir no sistema de fiscalização como dá uma licença para sonegar com o perdão da dívida. Agora, acabou de refinanciar 1 trilhão e 500 bilhões de refinanciamento por 20 anos.
É um escândalo. Estão cortando o dinheiro da aposentadoria rural e estão fazendo um Refis para o agronegócio, para os grandes produtores rurais. nós pagamos de juros por ano, 400, 500 bilhões. Recentemente, o governo e o Congresso Nacional, o mesmo que está muito preocupado com a Previdência, isentaram as petroleiras internacionais de impostos que se estima que representem 1 trilhão em 25 anos.
Só essa suposta economia que haveria com a reforma da Previdência vai por água abaixo com essa isenção às petroleiras.
E vai beneficiar o que? Petroleiras, à custa de penalizar 110 milhões de pessoas? Só agora, o governo, nesse rolo compressor que está fazendo para aprovar a reforma da Previdência em fevereiro, está gastando, segundo os jornais, 30 bilhões de reais. Quase o primeiro ano de economia já foi embora.
Sem falar na questão crucial que é o crescimento econômico. Você não pode combater só o aumento da despesa, existe a alternativa de melhorar as receitas, o que acontece com o crescimento econômico. Pela Constituição, mais de dois terços das fontes de financiamento da Previdência são contribuição do empregado e do empregador sobre a folha de salário. Se a economia cresce, aumenta o emprego, aumenta o salário, aumenta a receita. Essa é a maneira mais inteligente, vamos dizer assim, de enfrentar a questão da Previdência. Como nós vimos no passado recente. A previdência urbana foi superavitária em mais de 40 bilhões durante vários anos no período recente quando a economia cresceu.
Existem alternativas, mas a ideia não é essa. Esse governo tem até 2018 para implantar um programa que não foi respaldado pelas urnas, um programa liberal que se tenta implantar no Brasil há pelo menos 40 anos e o golpe parlamentar foi essa oportunidade de implantar a chamada agenda do mercado. O que está em jogo é isso, porque um programa como esse não passa pelas urnas, não tem o voto popular. Para fazer isso, não há argumentos técnicos, não se quer o debate público, plural de ideias. Tem que se fazer o que? Terrorismo. Terrorismo econômico, terrorismo financeiro, terrorismo demográfico. Nenhum dos argumentos do governos e sustenta à luz dos dados, das informações.
Qual a importância da resistência e da mobilização popular para barra essa reforma da Previdência agendada para ser votada em fevereiro.
É fundamental. Entendo que há uma certo cansaço da política, uma descrença, mas está na hora de acordar. Na Argentina, houve uma mobilização extraordinária. Sabe qual era a reforma previdenciária na Argentina? Era só mudar o indexador, a correção do benefício, e veja que comoção, que pressão que teve. No Brasil, eles querem acabar com o direito de proteção à velhice dos pobres.
A mobilização popular é importante e não precisa ser em Brasília, tem que se dar nos municípios, porque 2018 é um ano eleitoral. Daqui a pouco, os deputados federais, os candidatos a senador e governador vão pedir votos. Então, faça pressão agora, na base eleitoral, nos municípios. Chame assembleias e questione "deputado, o senhor quer votar a reforma da Previdência, que história é essa?". Porque no momento seguinte ele vai pedir votos. Esse é um momento importante para que a gente tenha uma tomada de consciência da gravidade do que está sendo votado no país e que as pessoas se mobilizem para impedir esse retrocesso.

De 458 a.C. a 2018 d.C.: da derrota da vingança à vitória da moral!

“Em pleno século XXI, autoridades não escondem e acham normal que o Direito valha menos que seus desejos morais e políticos”, escreve Lenio Luiz Streck, jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito, em artigo publicado por Conjur, 25-01-2018.
Segundo ele, “você pode pensar o que quiser sobre o réu; mas, como autoridade, só pode agir com responsabilidade política. Dworkin, para mim o jurista do século XX, sempre disse que juiz decide por princípio, e não política ou moral. Simples assim. E, assim, o custo da democracia é que a acusação, o Estado, deve ter o ônus da prova. Não é o juiz que faz a prova nem é o juiz que intui provas. A teoria da prova é condição de possibilidade. Ou vamos apagar centenas de anos de teoria da prova”.

Eis o artigo.

Coincidentemente, no dia do julgamento do recurso do ex-presidente Lula no TRF-4 me encontro na Grécia. E visitei o templo da deusa Palas Atena. Fiquei pensando sobre a história. Eu estava ali, no berço da civilização. E vendo o “lugar” em que a mitologia coloca o primeiro julgamento da história.
Os gregos inventaram a democracia. E, acreditem, também inventaram a autonomia do Direito. O primeiro tribunal está lá na trilogia de ÉsquiloOresteia, nas Eumênides, peça representada pela primeira vez em 458 a.C. Agamenon, no retorno da guerra de Troia, é assassinado na banheira de sua casa por sua mulher, Clintemestra, e seu amante, EgistoOrestes, o filho desterrado de Agamenon, atiçado pelo deus Apolo, é induzido à vingança.
Até então, essa era a lei. Era a tradição. Orestes deveria matar sua mãe (Clintemestra) e seu amante, Egisto. E ele mata os dois. Aí vem a culpa. É assaltado pela anoia, a loucura que acomete quem mata sua própria gente. Ao assassinar sua mãe, Orestes desencadeia a fúria das Eríneas, que eram divindades das profundezas ctônicas (eram três: AlephoTisífone e Megera). As Eríneas são as deusas da fúria, da raiva, da vingança (hoje todas as Eríneas e seus descendentes estão morando nos confins das redes sociais). Apavorado, Orestes implora o apoio de Apolo. Pede um julgamento, que é aceito pela deusa da Justiça, Palas Atena.
Constitui-se, assim, o primeiro tribunal, cuja função era parar com as mortes de vingança. Antes, não havia tribunais. A vingança era “de ofício”. As Eríneas berram na acusação. É o corifeu, o Coro que acusa. Não quer saber de nada, a não ser da condenação. E da entrega de Orestes à vingança. Apolo foi o defensor. Orestes reconheceu a autoria, mas invoca a determinação de Apolo. E este faz uma defesa candente de Orestes. Os votos dos jurados, depositados em uma urna, dão empate.
Palas Atena absolve Orestes, face ao empate. O primeiro in dubio pro reo. Moral da história: rompe-se um ciclo. Acabam as vinganças. É uma antevisão da modernidade.
Em pleno século XXI, autoridades não escondem e acham normal que o Direito valha menos que seus desejos morais e políticos. Na Oresteia, os desejos de vingança sucumbiram ao Direito. Embora a moral seja uma questão da modernidade, é possível dizer que o Direito, nesse julgamento, venceu a moral. Não aprendemos nada com isso.
Como falei alhures, o julgamento de Lula não é o Armagedom jurídico. Mas que o Direito já não será o mesmo, ah, isso não será. Na verdade, o Direito foi substituído por uma TPP (teoria política do poder). O PCJ (privilégio cognitivo do juiz) vale mais do que as garantias processuais e toda a teoria da prova que já foi escrita até hoje.
O mundo apreendeu muito com a Oresteia. Depois do segundo pós-guerra, aprendemos que a democracia só se faz pelo Direito e com o Direito. E o Direito vale mais que a moral. E, se for necessário, vale mais do que a política. Sim, quem não entender isso deve fazer qualquer coisa — como Sociologia, Ciência Política, Filosofia, religião, moral etc. —, menos praticar ou estudar Direito.
Temos um milhão de advogados, parcela dos quais se comporta como as Eríneas das Eumênides. Vi, entristecido, aqui da Grécia, nas redes sociais brasileiras, pessoas formadas em Direito — muitas delas com pedigree — torcendo por coisas como “domínio do fato”, “ato de ofício indeterminado” e quejandos. Parece que esquecemos que o Direito é/foi feito exatamente para impedir o triunfo das Eríneas.
Meus 28 anos de Ministério Público e quase 40 de magistério mostraram-me que, por mais que um discurso moral, político ou econômico seja tentador, ele deve pedágio ao Direito. Alguém pode até confessar que matou alguém, mas, se essa confissão for produto de uma intercepção telefônica ilícita, deve ser absolvido, porque a prova foi ilícita. Esse é o custo da democracia. Você pode pensar o que quiser sobre o réu; mas, como autoridade, só pode agir com responsabilidade política. Dworkin, para mim o jurista do século XX, sempre disse que juiz decide por princípio, e não política ou moral. Simples assim. E, assim, o custo da democracia é que a acusação, o Estado, deve ter o ônus da prova. Não é o juiz que faz a prova nem é o juiz que intui provas. A teoria da prova é condição de possibilidade. Ou vamos apagar centenas de anos de teoria da prova.
Isso quer dizer, de novo — e minha chatice é produto de minha LEER (Lesão Por Esforço Epistêmico Repetitivo) —, Direito não pode ser corrigido pela moral. Isso tem me conduzido. Disse isso nos momentos mais difíceis, inclusive no caso das nulidades contra Temer, de Aécio e dos indevidos pedidos de prisão do ex-presidente Sarney. Bueno: é só acessar minhas mais de 300 colunas neste site. E meus mais de 40 livros. E 300 artigos. Todas as semanas denuncio, aqui na ConJur, a predação do Direito pelos seus predadores naturais — a moral, a política e a economia. E me permito repetir o poeta T. S. Eliot: numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece que está fugindo. Mais: faz escuro, mas eu canto, diria Thiago de Mello, eternizado pela voz de Nara Leão.
Por tudo isso, fazendo minha oração à deusa Palas Atena ao cair da tarde do dia 24 — com o peso de mais de mais de 2.500 anos de história e mitologia —, fico pensando no que vai acontecer com o Direito brasileiro depois disso tudo. Se a moral e os subjetivismos valem mais do que o Direito, o que os professores ensinarão aos alunos? Teoria Política do Poder? Mas de quem? A favor e contra quem? Por isso, de forma ortodoxa, mantenho-me nas trincheiras do Direito. É mais seguro. Aliás, foi o que fez a diferença para a modernidade: a interdição entre a civilização e a barbárie se faz pelo Direito. Até porque, se hoje você gosta do gol de mão, amanhã seu time pode perder com gol de mão. E aí não me venha com churumelas.
Post Scriptum: Há um momento do julgamento de Lula em que o presidente da turma diz: "Terminamos a primeira fase — a das sustentações orais. Faremos um intervalo de 5 minutos e, na volta, o relator lerá seu voto". Ups. Ato falho? O relator lerá seu voto? E as sustentações? Lembro que, no julgamento mitológico de Orestes, os jurados não tinham o voto pronto. Cada um votou depois de ouvirem a defesa e a acusação. É incrível como, no Brasil, 2.500 anos depois, os votos vêm prontos e não levam em conta nada do que foi dito nas sustentações orais. Nem disfarçam. Afinal, por que manter, então, esse teatro? Se a decisão está tomada? Isso não é um desrespeito a quem sustenta? Insisto: o ensino jurídico no Brasil tem futuro? Ficções da realidade e realidade das ficções! E pior: há milhares de professores que, por aí afora, não protestam contra isso tudo. Aliás, de quem é a culpa do livre convencimento? Os professores são coautores. Artigo 29 do CP na veia. Mesmo assim, resisto.

Memória do Holocausto. Como desfazer a banalidade do mal

"Memória, consciência, responsabilidade". Ao traçar as coordenadas de seu trabalho como diretor do Museu-Memorial de Auschwitz-Birkenau, criado onde existia o maior campo de extermínio montado pelo Terceiro Reich, e um lugar que também se tornou o trágico símbolo de toda a barbárie nazista, o historiador polonês Piotr M.A. Cywinski nunca teve dúvidas.
A entrevista é de Guido Caldiron, publicada por Il Manifesto, 27-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Conforme explicado em Non c’é fine ( Não há fim, Bollati Boringhieri, pp. 148, 15 €) "em Auschwitz julgamos muito mais do que uma especifica geração, julgamos a humanidade. Como consequência, julgamos a nós mesmos." O sentido dessa memória desafia de forma radical o presente e o futuro, o que é feito ainda hoje na presença da indiferença da maioria, e o papel e as responsabilidades da Europa "civil" que naquele lugar perdeu, definitivamente, a sua inocência. Como muitas perguntas que ecoam no Dia da Memória.

Eis a entrevista.

Desde 2006, você dirige o Memorial e Museu de Auschwitz-Birkenau, quais os desafios mais importantes que já enfrentou?
Um local de tal magnitude representa, para quem que tem que lidar com tudo isso, um grande desafio de várias naturezas. Exige tanto uma espécie de atenção técnica constante como uma preocupação emocional delicada. Tudo isso, tentando manter uma abordagem histórica e moral honesta.
No plano prático, a maior responsabilidade foi certamente para definir e garantir que fosse posto em prática um mecanismo de financiamento dos trabalhos de conservação que é essencial para o futuro. Da mesma forma, foi necessário o compromisso de manter a autenticidade do sítio, isto é, o que o torna um lugar sagrado e que "fala" para os visitantes. Isso porque milhões de pessoas que visitam a cada ano Auschwitz (50 milhões até agora, ndr) não o fazem com o espírito de quem vai visitar um museu qualquer. Esperam realizar seu próprio rito de passagem, se aproximar o máximo possível da compreensão do ser humano, com todas as consequências que isso comporta.
Você escreveu que esse lugar não deve parar de "gritar", que não pode ser nem normalizado nem pacificado de forma alguma. Corremos, de fato, esse risco?
Sem dúvida. O risco é evidente no longo prazo. Hoje, os instrumentos de tortura da Idade Média estão expostos nas feiras dos vilarejos para despertar a curiosidade das crianças. Uma evolução realmente macabra.
Portanto, o maior desafio é fazer entender que Auschwitz não é um evento entre muitos ao longo de um amplo eixo temporal da história da EuropaAuschwitz é um ponto de não retorno. Os enormes esforços realizados após a Segunda Guerra Mundial na perspectiva de criação de um mundo mais humano, do ponto de vista jurídico, político, cultural, econômico e religioso, representam uma praxe sem precedentes em nossa cultura, mas é justamente a compreensão do que foi Auschwitz que representa a chave para compreender plenamente o valor e o significado dessas mudanças. É sinceramente impossível entender o que aconteceu depois de 1945 sem ver no Holocausto um ponto de inversão total na civilização europeia.
Em seu livro você ressaltava como a voz dos sobreviventes e o Memorial sejam os dois pilares da narrativa de Auschwitz. Com o ocaso da “era das testemunhas" qual o papel que se espera seja desempenhado pelo que você chama justamente de o "Lugar"?
O Lugar faz com que as narrativas dos sobreviventes sejam mais presentes. Exatamente como esses testemunhos tornam o Lugar mais compreensível. É uma experiência totalmente diferente visitar Auschwitz depois de ter lido Primo LeviShlomo Veneziaou Elie Wiesel. E a leitura dessas páginas se torna algo diferente quando você está caminhando na mesma rampa de que estão falando, quando se entra em um dos galpões que estão descritos, ou quando se passa sob a insígnia onde se lê "Arbeit macht frei”. Portanto, na percepção de todos, Auschwitz deve e deverá funcionar de alguma forma também no futuro em uníssono com as vozes dos sobreviventes. É por isso que continuamos a recolher e publicar os seus testemunhos.
Seu escritório fica perto do ponto onde normalmente termina a visita ao "campo". Milhões de pessoas, especialmente os jovens, participam de viagens de memória que representam uma das maneiras com que, nos últimos anos, muitos têm abordado o que aconteceu em Auschwitz e, mais geralmente, durante o Holocausto. O que você lê em seus rostos ao sair do sítio e que acredita que levem junto com eles depois dessa experiência?
As pessoas que eu vejo todos os dias em Auschwitz são muito diferentes entre si. Esses jovens vêm de diferentes sociedades, países e continentes. E, claro, eles têm vários e diferentes pontos de referência. O que realmente me anima é que depois dessa experiência, imaginando o próprio futuro e o papel que pretendem desempenhar nele, eles cruzem o limiar da memória para adquirir graças ao que viram e ouviram aqui uma visão de sua própria responsabilidade individual. E para que isso aconteça, eu acredito que deva também ser feito um trabalho educativo concreto, tanto antes e especialmente depois da visita. A história por si só não é suficiente, deve ser vinculada com a ética e com a educação cívica. Temos um dever para com as novas gerações, oferecendo-lhes todas as ferramentas para que possam se tornar adultos conscientes.
Elie Wiesel, que morreu no ano passado, descrevia Auschwitz como o "lugar da verdade" e explicava como recordar não é suficiente, mas deva ser compreendido e transmitido como o Holocausto acabou sendo possível graças à ação e à indiferença de muitos, fazendo com que a memória possa ser posta ao serviço de uma tomada de consciência. Você não acredita que essa ferida poderia ser útil agora, que novas formas de discriminação e indiferença em torno do destino dos migrantes na Europa e das vidas de tantas vítimas da guerra estão às portas de nossa casa?
É justamente por isso que encerrar o Holocausto no espaço da história não é suficiente. O grito das vítimas não é apenas um grito que vem da história. É um grito moral, ético e civil. E se alguém pensa que provar que um "fato" aconteceu seja suficiente, está muito enganado. É refletir sobre o sentido, o significado de tal fato, para mim neste momento, que representa a verdadeira aposta, se quisermos chegar a uma nova compreensão da responsabilidade que pesa sobre cada um de nós. A nossa indiferença, hoje, nos acusa ainda mais do que aquela do tempo da guerra. De um lado, agora sabemos muito bem qual é o preço da indiferença e, pelo outro, os nossos meios de ação são de um nível bem diferente daqueles do passado.
E, o elemento que agrava ainda mais a nossa situação, é que vivemos em sociedades que conhecem a paz há longo tempo. É fácil sentir pena de um mundo que não fez o suficiente durante a Segunda Guerra Mundial. Mas esse sentimento só pode ser considerado sincero para aqueles que se esforçam para fazer todo o possível agora. Existirão, no futuro, museus dedicados à onda de refugiados ou a tragédia dos rohingyas na Birmânia. E então seremos todos nós responsabilizados pelo que aconteceu.
Nas nossas sociedades retorna o discurso da "defesa da raça branca", denuncia-se a presença de muçulmanos como um 'corpo estranho', ecoam palavras de ordem fascistas e slogans antissemitas, como é o caso também da sua Polônia natal. Se, como você escreveu, em Auschwitz a Europa se perdeu, como partir dessa conscientização para fazer frente à nova barbárie que se assoma ao horizonte?
Em todos os lugares, nas nossas sociedades estamos testemunhando o ressurgimento do extremismo e da xenofobia. Um fenômeno que é mais que perturbador e pede que se multipliquem os esforços e a presença no plano público e educacional. Nesse sentido, estamos desenvolvendo o trabalho na rede, por exemplo, através de uma revista internacional (para acessar o sítio clique aqui), e nós acabamos de lançar uma exposição itinerante sobre Auschwitz destinada, nos próximos anos, a ser exposta no Velho Continente e nos EUA.

O retorno de doenças vetoriais é sintoma de políticas públicas não integradas. Entrevista especial com Marcia Chame

O retorno de surtos de doenças vetoriais, como febre amarela e dengue, por exemplo, praticamente erradicadas no Brasil, após décadas de vacinação, corresponde a uma série de fatores, que não se restringem, simplesmente, à precariedade da vacinação. “A simplificação e homogeneização dos ambientes naturais, pela perda de espécies silvestres de animais e plantas, por diversos impactos, pressionam o deslocamento e a dispersão de vetores e hospedeiros para áreas rurais e urbanas”, pontua Marcia Chame, professora e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“Esses estudos e as ações que deles derivarão só serão possíveis se a saúde e o ambiente estiverem em estreita parceria. A vigilância em saúde deve ser integrada e envolver a saúde humana, a biodiversidade e a saúde dos animais de criação”, propõe a entrevistada. “O esforço e conhecimento conjunto reduzem custos e alavancam políticas mais eficientes, eficazes e duradouras”, complementa.
Uma estratégia que é pouco debatida e desconsiderada na maioria dos debates é a questão da preservação das áreas de proteção ambiental, como um fator preponderante no controle de doenças vetoriais. “Elas oferecem além da água, conforto térmico, climático e acústico, solo fértil, redução de poluição e desastres, um serviço pouco conhecido e dimensionado que é a capacidade de diluir a transmissão de doenças, um dos maiores benefícios da biodiversidade”, sustenta.
Marcia Chame | Foto: arquivo pessoal
Marcia Chame possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula – USU, no Rio de Janeiro, mestrado e doutorado em Ciências Biológicas, área zoologia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente é pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz e também atua como pesquisadora colaboradora da Fundação Museu do Homem Americano. É, ainda, membro titular representante do Ministério da Saúde no Conselho Nacional da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, e coordenadora do Programa Biodiversidade & Saúde da Fiocruz.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que explica o crescimento de doenças vetoriais, como a febre amarela, no Brasil após décadas de erradicação quase total desse tipo de enfermidade?
Marcia Chame – Muitos fatores, entre eles falta de saneamento básico, destinação adequada de resíduos sólidos, mudanças climáticas, redução das áreas naturais, perda da biodiversidade por desmatamento, queimadas, introdução de espécies exóticas invasoras, e outros impactos.
IHU On-Line – Como o desequilíbrio ambiental e desmatamento ajudam a explicar o crescimento de doenças transmitidas por mosquitos?
Marcia Chame – A simplificação e homogeneização dos ambientes naturais, pela perda de espécies silvestres de animais e plantas por diversos impactos, pressionam o deslocamento e a dispersão de vetores e hospedeiros para áreas rurais e urbanas, onde vão buscar alimento e abrigo e, com eles, seguem os agentes patogênicos. A proximidade entre pessoas, animais domésticos e silvestres e a capacidade de adaptação dos vetores e agentes infecciosos a eles, favorecem o rompimento de barreiras biológicas pelos patógenos, que passam a infectar espécies mais abundantes e disponíveis, como cães, porcos e humanos.
IHU On-Line – Atualmente, quais são as regiões do Brasil mais afetadas por surtos de febre amarela?
Marcia Chame – A região sudeste do Brasil, mas temos casos no Centro-OesteNorte e raríssimos no Nordeste.
IHU On-Line –Depois da vacinação sistêmica da população, os casos de febre amarela no Brasil ficavam mais concentrados no Norte e Centro-Oeste. Contudo, nas últimas décadas o vírus voltou a circular nas regiões de Mata Atlântica. Que fatores foram (e são) determinantes para que retrocedêssemos tanto?
Marcia Chame – Ainda não sabemos exatamente. Mas os dados que temos indicam, a princípio, que a fragmentação das matas, anormalidades de meses secos seguidos de chuvas, pequenas alterações no vírus e, principalmente, a baixa cobertura vacinal nas populações humanas, nas áreas que já tinham recomendação de vacina, se mostram importantes.
IHU On-Line – Quais equívocos da política sanitária no Brasil ajudam a explicar o crescimento das doenças vetoriais?
Marcia Chame – No caso da Febre Amarela a falta de vacinação nas áreas recomendadas, apoio aos técnicos e capacitação continuada para a vigilância ativa de epizootias[1] e casos humanos, a falta de investimento no Sistema Único de Saúde - SUS e a deficiência de base de dados georreferenciada para que se possa produzir modelos de previsão.
IHU On-Line – Qual a importância do trabalho conjunto entre os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente para superar os desafios relacionados às doenças vetoriais?
Marcia Chame – Muitas das doenças vetoriais têm entre seus vetores e hospedeiros animais silvestres que fazem parte do ciclo natural de agentes patogênicos. Esse é o caso da febre Amarela, da MaláriaFebre do oeste do Nilo, entre outras. Para podermos antever problemas de saúde humana e de animais silvestres é preciso conhecer quais as espécies estão envolvidas nos ciclos de transmissão dos patógenos, como eles se comportam nos ecossistemas naturais, rurais e urbanos e como se adaptam aos impactos antrópicos cada vez maiores. Esses estudos e as ações que deles derivarão só serão possíveis se a saúde e o ambiente estiverem em estreita parceria. A vigilância em saúde deve ser integrada e envolver a saúde humana, a biodiversidade e a saúde dos animais de criação. O esforço e conhecimento conjunto reduzem custos e alavancam políticas mais eficientes, eficazes e duradouras.
IHU On-Line – Qual o impacto do aquecimento global nesse contexto de crescimento da febre amarela?
Marcia Chame – A anormalidade de períodos secos intensos seguido de chuvas, parece favorecer não só o aumento da densidade populacional dos vetores, mas também debilita os primatas que confinados em áreas fragmentadas sofrem com pouco alimento disponível, deslocam-se mais em busca de alimento e se tornam mais suscetíveis ao vírus. Mas é importante lembrar, que as mudanças climáticas são potencializadas pelos impactos regionais, como o desmatamento, queimadas e incêndios florestas, urbanização, dessecamento do solo.
IHU On-Line – É possível voltar a um cenário de controle dessas doenças? Que estratégias devem ser adotadas a curto prazo, médio prazo e longo prazo?
Marcia Chame – A vacina certamente é a medida mais eficiente de curto, médio e longo prazo para a população humana. No entanto, cabe pensar e nos aliarmos para elaborar planos consistentes para salvar as populações de primatas (e de outros animais) do Brasil. Com esse objetivo, precisamos de recursos financeiros para trabalhos de campo e de laboratório, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, gestores ambientais, especialmente das Unidades de Conservação, das autoridades e da sociedade que precisam entender e valorizar a importância de áreas naturais grandes. Elas oferecem além da água, conforto térmico, climático e acústico, solo fértil, redução de poluição e desastres, um serviço pouco conhecido e dimensionado que é a capacidade de diluir a transmissão de doenças, um dos maiores benefícios da biodiversidade.

Nota

[1] O termo, em epidemiologia, refere-se a uma doença que ocorre em uma população animal não-homo sapiens, semelhante a uma epidemia em seres humanos. (Nota da IHU On-Line)

A epidemia de assassinatos no Brasil

Chacina de Fortaleza segue um padrão macabro: como boa parte dos homicídios no país, ocorreu em uma área pobre da cidade, vitimando sobretudo jovens e, em sua maioria, negros e pardos. 
A reportagem é de Yan Boechat, publicada por Deutsche Welle, 28-01-2018.
Passava da meia noite quando o grupo de homens armados com coletes táticos, fuzis, pistolas e balaclavas apareceu no Bairro de Cajazeiras, uma área pobre da periferia de Fortaleza. Surgiram de três carros, estacionados nas proximidades de uma casa de shows popular por ali, o Forró do Gago. Chegaram atirando. A primeira vítima foi um motorista de um aplicativo de transporte que levava uma passageira para a festa que agitava a rua Madre Teresa de Calcutá na madrugada do último sábado (27/01). Ordenaram que o homem saísse do veículo e o executaram sem nada dizer.
A passageira tentou fugir, mas também foi atingida. Em seguida, caminharam 50 metros atirando em qualquer pessoa que estivesse na rua. Um vendedor de cachorro quente foi morto na porta da casa de shows, e seu filho de 12 anos, que o ajudava, atingido na perna. Os homens entraram no Forró do Gago atirando a esmo, escolhendo as vítimas aleatoriamente. Após 10 minutos de tiroteio, mais 12 pessoas estavam mortas e outras dez feridas. Foi a maior chacina da história do Ceará, um estado que vive uma epidemia de violência sem precedentes em sua história.
Apesar de inédita em sua dimensão, a chacina de Fortaleza segue um padrão macabro na espiral de violência sem controle que matou mais de 60 mil brasileiros apenas no ano passado e dizimou mais de meio milhão de pessoas ao longo da última década. Como boa parte dos assassinatos no Brasil, ela ocorreu em uma área pobre da cidade, vitimando em sua maioria jovens e, provavelmente, negros e pardos.
Assim como em todo o país, os crimes estão ligados, em diferentes estágios, à disputa pelo controle territorial entre facções criminosas que nacionalizaram suas ações a partir do Sudeste, principalmente em direção aos estados do Norte e do Nordeste. Repete, também, o ciclo de ações e reações violentas que caracterizam as regiões em que o Estado é ausente ou omisso.
"Apesar de sua dimensão assustadora, as mortes no Brasil são extremamente concentradas, tanto em faixa etária, quanto raça e localização geográfica”, diz Renato Sérgio Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Concentração endêmica de homicídios

Assim como em Fortaleza, a maior parte dos homicídios no Brasil ocorre em áreas periféricas, com taxa de renda média, baixa escolaridade e Índice de Desenvolvimento Humano semelhante ao de países da África Subsaariana. Além disso, há uma concentração endêmica de homicídios entre negros e pardos. "Os números assustam a qualquer um, mas a noção de que os homicídios são algo que atinge toda a sociedade brasileira de forma equânime é algo que não corresponde à realidade”, diz ele.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública desenvolve uma pesquisa anual com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sobre os homicídios no Brasil. Batizado de Atlas da Violência, o estudo consegue dar uma dimensão clara das diferenças entre as vítimas da violência no Brasil.
Apenas em 2015, último ano tabulado até o momento pelo Atlas41 mil homens negros e pardos foram assassinados no Brasil, enquanto o número de vítimas não negras e pardas (brancos, amarelos) chegou à casa de 15 mil. "Não conseguimos fazer uma distinção sobre classe, com base na renda, mas os números que temos e os outros estudos realizados com base neles mostram que há uma correlação entre pobreza eviolência muito forte."
Fortaleza é um exemplo claro disso. O Bairro de Cajazeiras, onde o ocorreu a tragédia, tem um Índice de Desenvolvimento Humano comparado com o da República Centro Africana, um dos países mais pobres da África. De acordo com um estudo da própria Secretaria de Pública de Segurança do Ceará, a região em que Cajazeiras está inserida é uma das mais violentas de Fortaleza, que, por sua vez, tem o título de terceira capital brasileira em número de homicídios.
Quase todos os bairros ao seu redor, onde se concentravam mais de 50% das mortes da cidade em 2012, data do último estudo, têm IDHs de nível africano. Nos bairros mais seguros, o Índice de Desenvolvimento Humano se aproxima de países do norte da Europa.
"A classe média não é vítima dessa epidemia de violência, quem está morrendo são os pobres e os negros, são os descendentes dos escravos, aqueles que sempre foram os párias dessa sociedade absurdamente desigual”, diz o sociólogo Jessé Souza.
Doutor em Sociologia pela Universidade Karl Ruprecht, de Heidelberg (Alemanha), Souza tem se dedicado a estudar a desigualdade no Brasil. Nos últimos 20 anos lançou mais de uma dezena de livros e estudos sobre o assunto.

Origens e crime organizado

Para ele, as vítimas da classe média na epidemia de violência brasileira são residuais. "É claro que há vítimas, mas elas são pequenas, não fazem parte dessa população que esta morrendo, dessa geração toda que está se matando entre si ou sendo morta pelas forças de repressão que trabalham exatamente para manter a pobreza, a ralé, como eu defino essa parte da população, longe da classe média e da elite”, diz ele.
Jessé Souza acredita que a extrema desigualdade da sociedade brasileira e a consequente violência que a marca são resultado das heranças escravocratas do país. Para ele, o Brasil jamais discutiu os 350 anos de escravidão e seus impactos na sociedade de uma maneira profunda. "O que vemos é uma repetição do status quo do escravismo, em que 20% da sociedade brasileira pretendem subjugar os outros 80% e manter as benesses de se ter mão de obra a preço vil para executar serviços que ela considera vil”, diz ele. "Como não ter violência?”
Souza diz não ter se aprofundado no estudo das organizações criminosas, e não entende exatamente sua dinâmica. Mas acredita que o surgimento das facções e sua penetração das áreas mais pobres do país têm relação direta com a profunda desigualdade brasileira. "Eu não tenho elementos para analisar essa questão a fundo, mas obviamente é uma forma de defesa de uma classe”, diz ele.
Bruno Paes Manso estuda há quase duas décadas as dinâmicas da criminalidade no Brasil. Jornalista e hoje pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Bruno passou a se interessar profundamente pelo assunto quando começou a perceber a redução abrupta dos assassinatos em São Paulo. Até os anos 2000, São Paulo era a campeã brasileira em assassinatos.
Em 1999, o estado paulista registrava mais de 15 mil homicídios, quase o dobro do Rio de Janeiro. Tinha 44 mortes por 100 mil habitantes, ocupando a quinta posição entre os estados do país. A partir daquele ano iniciou uma redução abrupta dos homicídios, até se tornar o estado do país com o menor índice de mortes por 100 mil habitantes doBrasil em 2015, com 12 mortes por grupo de 100 mil. Em números absolutos os homicídios despencaram para cerca de 5 mil mortes. "Fiquei obcecado em entender o que estava acontecendo”, conta Bruno, na época repórter do jornal O Estado de S. Paulo.
A resposta encontrada por Bruno e por outros pesquisadores da violência estava naquela que seria a maior organização criminosa do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC). Nascido após o massacre de 111 presos na Penitenciária do Carandiru pela Polícia Militar de São Paulo, o PCC surgiu com ideais de justiça e autodefesa. A ideia era unir o mundo do crime contra o chamado sistema e impedir que situações como o Carandiru voltassem a ocorrer.
"Houve uma pacificação nas cadeias, já não era permitido oprimir o mais fraco, havia uma espécie de sistema judicial que controlava a vida no sistema prisional”, conta Bruno. Logo, o PCC passou a também atrair bandidos que estavam nas ruas. Uma irmandade do crime nascia em São Paulo e logo ela se tornou hegemônica nas ruas da cidade e de todo o estado.
"O código de conduta das prisões foi para as periferias. Já não se podia ajustar as contas com um inimigo sem o aval do PCC, já não se podia roubar determinadas áreas sem o aval do "Partido”. O resultado foi uma redução profunda nos crimes de vingança que marcaram toda a década de 80 e 90 em São Paulo. Agora, para matar era preciso de autorização.

Migração da violência

Foi a partir de meados da primeira metade da primeira década do ano 2000 que o PCC iniciou um processo de nacionalização que viria a custar a vida de dezenas de milhares de brasileiros.
O grupo passou a focar seus esforços no comércio e distribuição de cocaína. Para expandir o mercado, passou a se aliar a facções locais, que por sua vez tentavam repetir localmente o sucesso do grupo em São Paulo. As facções cariocas, em especial o Comando Vermelho, que já haviam iniciado um processo de nacionalização, se sentem ameaçadas. Logo uma disputa de poder começa a se dar em áreas de grande crescimento do consumo de drogas, como no Norte e no Nordeste do país.
"Esse é um período de expansão econômica e do consumo, é o momento em que o Brasil passa a se tornar o segundo maior consumidor de cocaína e derivados do mundo”, conta Bruno, que atribui à estratégia do governo em concentrar em prisões federais os líderes regionais do crime em um incentivo à nacionalização. "As redes de contato se ampliaram”.
Em 1999 o Sudeste brasileiro produzia 26 mil cadáveres ao ano, enquanto o Nordestetinha pouco mais de 8 mil homicídios registrados. Cerca de dez anos depois, a região conhecida por suas praias paradisíacas e pelo grande sertão já contava mais mortes que a parte mais industrializada do país. Em 2016, foram quase 25 mil assassinatos. Boa parte deles, dentro da dinâmica um dia experimentada por São Paulo.
Foi exatamente o que aconteceu na madrugada do último sábado no bairro de Cajazeiras. A chacina, com características de um ato de terror para intimidar a população local, foi reivindicada pela organização criminosa ligada ao PCC no estado, os Guardiões do Estado, ou, G.D.E.
A área onde ocorreram as mortes é controlada pela franquia do Comando Vermelho no estado. No sábado mesmo, pouco mais de 12 horas após os assassinatos, membros do CV, presos em uma das cadeias de segurança máxima do Ceará, enviaram um vídeo pelas redes sociais prometendo vingança.
Só neste primeiro mês de 2018, quase 300 pessoas já foram mortas no Ceará. Ao que tudo indica, os números vão continuar a crescer.

Militares, ciências, Educação Popular.

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