Tuesday, February 13, 2018

Os limites de uma reforma com “empresariamento” e que ignora as desigualdades. Entrevista especial com Monica Ribeiro da Silva

Formar uma base comum nos currículos de todas as escolas e de todos os níveis no país não é má ideia. Entretanto, a professora Monica Ribeiro da Silva adverte: “a diversidade e desigualdades educacionais pelo país são aspectos que também precisam ser levados em conta”. Segundo ela, uma das falhas da proposta da Base Nacional Comum Curricular - BNCC é justamente não levar isso em conta, o que coloca escolas “em condições distintas de realizar o que está definido em uma listagem de objetivos e conteúdos”. “Por óbvio, as escolas com condições mais precárias estarão mais distantes de cumprir o que está prescrito, aumentando ainda mais as desigualdades de aprendizagem entre os estudantes”, pontua.
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora chama atenção para a forma como a Base ranqueia colégios, trazendo ao ambiente de aprendizagem uma lógica empresarial. Segundo Monica, isso revela que a educação crítica com vistas à autonomia é posta de lado em detrimento a uma formação voltada às demandas de mercado. “Nesse cenário de disputas parece estar conquistando uma certa hegemonia o que estamos chamando por ‘empresariamento da educação’. Isso significa que o setor empresarial vê na educação uma mercadoria como outra qualquer”, analisa. Realidade que, para a professora, fica ainda mais clara quando se olhar para propostas referentes ao Ensino Médio. “A reforma em curso propõe que a formação técnica e profissional seja um dos itinerários formativos do Ensino Médio, podendo ser oferecido por meio de parceria com o setor privado, em duas trajetórias concomitantes. Isso é o que destrói a ideia de integração entre formação profissional e formação científica básica”, completa.
Monica Silva | Foto: UNE
Monica Ribeiro da Silva possui doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, mestrado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar e graduação em Pedagogia com habilitação em Administração Escolar pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp. Está realizando estágio pós-doutorado na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. É professora na Universidade Federal do Paraná - UFPR, nos cursos de formação de professores e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Entre suas publicações, destacamos Currículo e Competências: a formação administrada(São Paulo: Cortez, 2008) e Educação, Movimentos sociais e políticas governamentais (Curitiba: Appris, 2017).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a senhora avalia a mais recente versão da Base Nacional Comum Curricular - BNCC?
Monica Ribeiro da Silva – Vejo com muitas ressalvas a ideia de uma Base Nacional Comum Curricular para o país, independentemente da versão. A extrema padronização inerente a um documento desse tipo contraria tanto as trajetórias que o Brasil vinha percorrendo, por meio da definição de diretrizes curriculares, quanto o acúmulo que as pesquisas no campo do currículo e das políticas curriculares evidenciam.
A ideia de diretrizes curriculares nacionais, como as exaradas pelo Conselho Nacional de Educação para as diversas etapas e modalidades da Educação Básica permitem, ao mesmo tempo, assegurar alguma proximidade curricular entre as diferentes unidades da federação e, ao mesmo tempo, a autonomia que as escolas e redes de ensino necessitam tendo em vista atender às necessidades formativas e aos interesses dos sujeitos, alunos e professores, no interior das escolas. A diversidade e desigualdades educacionais pelo país são aspectos que também precisam ser levados em conta ao se pensar a formulação de políticas curriculares. As desigualdades de condições de oferta, por exemplo, quando deparadas com um currículo padrão, extremamente prescritivo como se vê especialmente na terceira versão da BNCC, coloca essas escolas em condições distintas de realizar o que está definido em uma listagem de objetivos e conteúdos.
Por óbvio, as escolas com condições mais precárias estarão mais distantes de cumprir o que está prescrito, aumentando ainda mais as desigualdades de aprendizagem entre os estudantes. O campo de pesquisa em currículo no Brasil tem se posicionado também de forma contrária, e com bastante veemência, quando se trata do assunto, por entender que essa padronização, essa lista que impõe às escolas o que elas devem ser, contrariam até mesmo a ideia de educação, uma vez que é algo definido sem sequer atentar para o que é praticado e definido pelas pessoas diretamente envolvidas.
IHU On-Line – Neste primeiro momento da aplicação da Base Nacional Comum Curricular, o Ensino Médio está de fora. Quais as implicações disso?
Monica Ribeiro da Silva – Afirmei anteriormente que entendo como um retrocesso imenso a definição de uma Base Nacional Comum Curricular nos termos que vem sendo encaminhado pelo governo federal. Ainda que fosse desejável essa prescrição de objetivos e conteúdos de forma centralizada, o fato de estar sendo produzido em separado um documento como este, desconsidera que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB 9.394/96 institui um nível de ensino chamado “Educação Básica”, que compreende a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Veja, um único nível de ensino que recebeu, inclusive, a partir de 2010 uma orientação do Conselho Nacional de Educação que este nível compõe “um todo sequencial, orgânico e articulado”.
Esta definição, que é a norma estabelecida nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, busca assegurar que não haja um tratamento estanque entre as etapas que compõem esse nível de ensino. O encaminhamento dado pelo MEC vai justamente na posição contrária ao separar o Ensino Médio e compromete, com isso, até mesmo o sentido de educação básica atribuído pela LDB.

IHU On-Line – O que deve mudar no Ensino Médio do Brasil?
Monica Ribeiro da Silva – O Ensino Médio brasileiro se caracteriza por um conjunto de dificuldades, dentre as quais destaco:
O elevado número de jovens entre 15 e 17 anos que não se encontram matriculados na última etapa da Educação Básica. O Brasil possui atualmente algo próximo a 10 milhões e 500 mil jovens nessa faixa etária. Destes, pouco mais de 5 milhões estão matriculados no Ensino Médio. Pouco mais de 3 milhões e 500 mil estão cursando ainda o Ensino Fundamental e quase 1 milhão e 700 mil não possuem qualquer vínculo escolar, mesmo estando em idade obrigatória.
Afora o problema de acesso, temos ainda o problema do abandono escolar. Nem todos que começam concluem. Nota-se uma dificuldade das redes de ensino em qualificar a permanência dos jovens na escola, fazer com que a escola dê respostas efetivas às necessidades e interesses dessas várias juventudes que se encontram dentro dela. A origem desses problemas está na estrutura da própria sociedade brasileira, nas desigualdades históricas que dentre outras coisas mascara as diferenças e naturaliza aquilo que é produzido social e culturalmente.
A ampliação da matrícula que se deu de forma acelerada entre o início dos anos de 1990 a início dos anos 2000 é outro fator que explica as dificuldades atuais por que passa o Ensino Médio. Passamos de 3.500.000 matrículas em 1991 para 9 milhões em 2004. Desde então a matrícula tem oscilado em torno de 8 milhões. Certamente a inclusão de um contingente imenso de pessoas que ao longo do século XX esteve excluída do ensino secundário tem contribuído para criar distorções na oferta, dado que esta escola pensada para poucos teve que buscar respostas (nem sempre encontradas) de como acolher uma diversidade de pessoas das mais variadas origens sociais, econômicas e culturais. Corrigir tais distorções passa por dar maior atenção às especificidades desse público, o que é o oposto de propor uma padronização como a da BNCC que ignora ainda mais essas especificidades.
Outras dificuldades estão nas condições muitas vezes precárias de infraestrutura das unidades escolares, na formação de professores que nem sempre responde às necessidades das escolas e redes de ensino, nas condições de trabalho docente cada vez mais precarizadas e desvalorizadas.
Diante desse quadro, a ideia de uma BNCC como sendo capaz de resolver os problemas educacionais do país torna-se inócua. Do mesmo modo, a reforma do Ensino Médiofeita por meio de medida provisória, sem qualquer diagnóstico mais próximo da realidade, não mostra quaisquer condições de superar os problemas apontados. Pelo contrário, poderá agravá-los.
IHU On-Line – Como a senhora tem acompanhado as discussões relacionadas à BNCC que serão aplicadas ao Ensino Médio? Que caminhos têm sido trilhados?
Monica Ribeiro da Silva – Desde que a atual equipe do Ministério da Educaçãoassumiu, muito pouco se tornou público dos caminhos trilhados na elaboração da BNCC do Ensino Médio. Do que está publicizado, além da preocupação com a padronização e prescrição centralizada de uma listagem de objetivos, outro elemento se configura em um claro retrocesso. Estou me referindo à retomada da proposta de organizar uma base curricular por meio da definição de uma listagem de “competências” que caberia à escola desenvolver nos estudantes.
Trata-se de uma retomada de um modelo que se tentou impor ao país ao final da década de 1990 e que se mostrou absolutamente inapropriado. Isso pelo próprio significado do termo “competências”, carregado de um viés pragmático que reduz o conhecimento escolar à sua condição de aplicabilidade imediata, acarretando uma fragilização na formação dos estudantes por meio justamente da perda de centralidade do conhecimento.
IHU On-Line – Em um contexto de intensificação da automação industrial e da redução de postos de trabalho, o que significa apostar em uma formação profissional no Ensino Médio? O BNCC está alinhado aos desafios atuais do mundo do trabalho?
Monica Ribeiro da Silva – A BNCC trata apenas dos conhecimentos gerais, não estando vinculada à formação profissional. A Educação Profissional Técnica de Nível Médio no Brasil é uma necessidade e precisaria estar disponível aos estudantes que por ela optassem. No entanto, teria que se assegurar uma oferta de qualidade, que respondesse ao contexto das mudanças no mundo do trabalho e, ao mesmo tempo, garantisse a formação geral, científica e humanista. O país tem efetivamente essa possibilidade por meio do Ensino Médio Integrado - EMI, isto é, a educação profissional integrada ao Ensino Médio. A oferta do EMI está atualmente quase restrita aos Institutos Federais e foi colocada em risco com a atual reforma do Ensino Médio(Lei 13.415/17 que resultou da MP 746/16).
A reforma em curso propõe que a formação técnica e profissional seja um dos itinerários formativos do Ensino Médio, podendo ser oferecido por meio de parceria com o setor privado, em duas trajetórias concomitantes. Isso é o que destrói a ideia de integração entre formação profissional e formação científica básica. Mais um retrocesso, portanto, em relação ao que vinha sendo feito.
IHU On-Line – No que diz respeito à autonomia do professor, que garantias a BNCC estabelece?
Monica Ribeiro da Silva – Ainda que o Ministério da Educação, nos momentos em que apresenta os documentos de BNCC, insista em dizer que a autonomia das redes de ensino está assegurada, a vinculação desse documento às políticas de avaliação em larga escala sinalizam claramente para uma dimensão de obrigatoriedade, de controle e de imposição que recairá, em última instância, sobre professores e professoras. O resultado disso é exatamente a ausência de autonomia.
IHU On-Line – Não parece contraditório reformar o ensino básico no Brasil (incluído o Médio) em um contexto de cortes no Ministério da Educação? Como melhorar o ensino sem investimentos?
Monica Ribeiro da Silva – A evidência dessa contradição, em especial no que diz respeito ao Ensino Médio, está no empréstimo realizado pelo MEC logo após a aprovação da Lei 13.145/17. Em torno de 800 milhões de reais junto ao Banco Interamericano para Reconstrução e Desenvolvimento - eBIRD, essa ação significa a retomada do endividamento externo como política de financiamento de reformas educacionais, experiência nefasta que o país havia praticamente abandonado e agora é retomada.
Esse modelo de financiamento de reformas por meio de endividamento externomostrou-se inócuo, especialmente devido às contrapartidas exigidas pelos organismos “parceiros” e pelo pagamento de altos juros que com o tempo consomem os recursos financeiros que seriam destinados à educação. Esse cenário se agrava no contexto de vigência da Emenda Constitucional 95/16 (PEC 241/55) que impõe teto de gastos nas áreas sociais, especialmente educação, saúde e assistência social.
IHU On-Line – Que disputas de poder estão em jogo nas atuais reformas relacionadas à educação?
Monica Ribeiro da Silva – São várias as disputas, desde a que gira em torno dos sentidos e finalidades da educação básica,por exemplo, mais voltadas a uma formação crítica e autônoma ou mais atrelada a demandas do mercado, até a disputa quanto à responsabilidade sobre a oferta, a produção de materiais, a formação de professores. Nesse cenário de disputas parece estar conquistando uma certa hegemonia o que estamos chamando por “empresariamento da educação”. Isso significa que o setor empresarial, que vê na educação uma mercadoria como outra qualquer, tem adquirido cada vez mais espaço, colocando em risco até mesmo o princípio constitucional de que a educação é dever da família e do Estado.
Temos assistido a uma verdadeira demonização do público – ao qual se atribui a alcunha de ser caro e ineficiente – decorrente de perspectiva economicista que possui claramente a finalidade de justificar a privatização de serviços tidos, até o presente, como sendo de oferta pública por ser direito do cidadão e dever do Estado. Assim, flexibilização das relações de trabalho, reforma trabalhistareforma da previdência e reformas educacionais fazem parte de um mesmo cenário que, em síntese, culmina com a perda dos poucos direitos que a população brasileira ousara acumular ao longo de sua história.
IHU On-Line – Quais os desafios para a formação docente no nosso tempo?
Monica Ribeiro da Silva – Um primeiro desafio diz respeito à valorização dessa formação, o que, por sua vez, depende, da valorização do trabalho docente, da escola e da educação. Somente um conjunto de políticas públicas que articulem ao mesmo tempo esses aspectos poderiam contribuir na direção dessa valorização. Outros desafios, como por exemplo, a maior articulação entre a formação superior e a escola, entre a universidade e a educação básica, encontram possibilidades reais nas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica (Parecer CNE/CEB 02/2015).
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Monica Ribeiro da Silva – Considero necessário apenas explicar as razões da afirmação feita anteriormente acerca da atual reforma do Ensino Médio. O reconhecimento da existência de problemas na última etapa da Educação Básicasinaliza claramente para a necessidade de mudanças. Mas, as alterações aprovadas na Lei 13.415/16 respondem a essa necessidade? Certamente que não. E por quê? Porque fatia o currículo em itinerários de modo a que cada estudante faça apenas um deles. Compromete com isso uma formação integral bem como o acesso a um conjunto de conhecimentos nas múltiplas áreas da ciência e da arte, necessários para o desenvolvimento de uma visão crítica do mundo; porque ilude os jovens com a falsa promessa de que poderão escolher uma das quatro áreas (itinerários formativos) ou a formação técnica e profissional, e ao mesmo tempo desobriga os sistemas de ensino de oferecer em uma mesma escola os cinco itinerários propostos; porque contribui ainda mais para a desvalorização dos professores ao instituir a figura do “notório saber” e permitir que pessoas sem formação apropriada passem a ter direito à docência. Estes, dentre outros aspectos, constituem-se em fragilização do direito à educação básica e compõem o cenário de retrocessos a que estamos assistindo no país.

Meditação sobre os juízes (1)

Meditação sobre os juízes (1)

   
A Volksgerichtshof (Corte do Povo) foi oficializada em 1934 para processar “traidores”
A Volksgerichtshof (Corte do Povo) foi oficializada em 1934 para processar “traidores”
“Eu não julgo a vítima, mas apenas os juízes”. A frase tremenda foi enunciada por alguém que não era socialista nem de esquerda. Falo do Padre Laberthonière, que recusa a pretensa soberania da lei e denuncia os tribunais de exceção. Atrás da lei, disse o sacerdote, surgem pessoas que a usam como instrumento de domínio. No recurso de Luiz Inácio da Silva, discutido em Porto Alegre, juízes exibiram seu poder. Jornalistas e universitários discutiram o fato. A maioria deles estranhou a tese segundo a qual a sentença aumentaria o fascínio do político junto aos pobres e setores da classe média. “Mas e a unanimidade assumida pelos juízes?” A pergunta tem réplica: unanimidade não significa posse do verdadeiro. A gente pobre sabe o desprezo que muito magistrado nutre por suas causas e pessoas. A elite jurídica imagina a si mesma acima do povo, do Estado, das leis.
Quando a Constituição completou vinte anos,  fui convidado pela Unafisco – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal,  Ajufe – Associação dos Juízes Federais do Brasil, Sinal –Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central e ANPR – Associação Nacional dos Procuradores da República, para um seminário em Porto Alegre. A Lava Jato inexistia, mas seus vagidos já eram ouvidos em ações vetadas pelo STF.
Não levei boas notícias às togas e não fui por elas festejado. Aqueles numes tiveram razões ponderáveis de irritação após minha análise. Passados dez anos sintetizo aqui o que lhes disse face a face: sua ingerência política prejudica a  sociedade e o Estado. Em São Paulo, pouco antes, certo Desembargador falou sobre três jovens presos por crime não  cometido por eles. Ao defender o arbítrio, foi aplaudido pelo promotor:  “todo preso diz ser torturado”. Os meninos deixaram a Detenção após sevícias e  dois anos em cela superlotada, suspeitos de estupro e assasinato. Foram soltos porque o “maníaco de Guarulhos” confessou. A ONU alerta contra a persistência no Brasil “de tortura para obter confissões, execução extrajudiciária de suspeitos". Rara lucidez social surge no Judiciário, como a do juiz Nivaldo Mulatinho Filho. Ele puniu algozes de uma criança de Recife, jogada em tina de ácido a ponto de sua pele, na fala dos próprios policiais, parecer “papel amassado”. Ela roubou goiabas na vizinhança de uma oficina que pintava automóveis. O vigia chamou a patrulha. A defesa dos agressores alegou que a vítima “não tinha credibilidade”. Como se a película corporal destruída não fosse crível o bastante.   Na toga brasileira poucos ostentam o senso de justiça do juiz recifense. [1]
Juízes surdos (bom padre Laberthonière!) não existem apenas no Brasil. O velho Israel e a antiga vida grega tiveram magistrados parciais. "Havia numa cidade certo juiz que nem a Deus temia, nem respeitava o homem. Havia também na mesma cidade uma viúva, que ia ter com ele, dizendo: ‘Faze-me justiça contra o meu adversário’. Ele por algum tempo não quis atendê-la; mas depois disse consigo: ‘Ainda que não tema a Deus, nem respeite os homens, todavia, como esta viúva me molesta, hei de fazer-lhe justiça, para que enfim não volte e me importune muito’". (Lucas, 18, 4- 8). No Brasil, grande parte dos tribunais pouco escuta e nada responde. Notícia de última hora: “Laurita Vaz, primeira mulher a presidir o STJ, negou – durante o recesso do Judiciário – pedido para que uma lactante respondesse a processo em casa. A mulher, cujo filho mais novo tem um mês de idade, é ré primária e foi presa por portar 8,5 gramas de maconha. Na decisão, Vaz disse que a mãe não conseguiu comprovar ser imprescindível para seus… cinco filhos. A decisão judicial causou indignação entre defensores visto que Vaz concedeu prisão domiciliar a Roger Abdelmassih em julho” (O Estado de São Paulo, 02/02/2018). Talvez a magistrada precise consultar um otorrino, já que a consciência está amortecida.
“Se um magistrado decide algo injusto e causa danos ao litigante, sua pena face à vítima deverá ser o dobro do valor reclamado. E todo aquele que desejar poderá ir às cortes comuns contra os magistrados, por causa de decisões injustas”. (Platão, Leis, 846 b) E mais: “Nenhum juiz ou governante deve ser isento de responsabilidade pelo que faz como juiz ou governante”. [2] É platônica a noção de checks and balances. O filósofo, diz G. Morrow, quer evitar práticas como as da Star Chamber, usadas pelos soberanos para governar contra as práticas judiciais comuns. [3]
Cautela deve ser assumida diante do juiz. Ele vincula a lei e os cidadãos. M. Stolleis tece considerações relevantes sobre os magistrados. Depois da Grécia, em vez do povo soberano, o juiz "julga em nome de um outro e maior poder. (...) Desde que Bodin apresentou a soberania como o poder do seu possuidor de dar ordens a cada indivíduo e a todos, legislando, o Estado moderno tornou-se um Estado de legislação".
Dos Levellers aos democratas franceses temos a Nação uniforme, não três corpos sociais como a nobreza, o clero e o terceiro estado. A graça divina é afastada pela soberania do povo, as leges fundamentales dão passo à Constituição. A mudança exigiu sangue dos que fugiam da Justiça  absolutista. [4] E o juiz? Ele, adianta Stolleis, é unido à lei que “não mais é ordem de um soberano onipotente, mas compromisso entre o parlamento e o governo”. Os jurados indicam que a justiça foi transferida do monarca  para o povo.
O Estado constitucional usa o juiz para domesticação, uma tragédia política. A globalização mina os Estados fracos e, diz Stolleis, um brinquedo chinês, importado e revendido, pode conter integrantes perigosos. Qual a situação, em termos legais, se o dano ainda não foi detectado? Ou a manteiga dinamarquesa subsidiada pela Bélgica e trazida para a Argélia via Bavária e Itália para ser reimportada na Europa como óleo? Trata-se de fraude, mas sob qual lei? O juiz deve ser ao mesmo tempo especializado e generalista, o que traz incertezas. [5] O togado que alega neutralidade e proclama nunca "fazer juízo de valor" só triunfaria em países que negam a publicidade e a prestação de contas ao povo. Mas nos tribunais norte-americanos, quantos juízes recusaram a Lei Patriótica? Os processos contra torturadores brasileiros mostram o peso do tema. A lei de Anistia deu salvo conduto aos que usaram torpemente a força do Estado.
Nas formas judiciais burocráticas existe a perpetuidade do cargo. O que não significa a posse do mesmo cargo. “Quando garantias são dadas aos juízes contra destituições ou remoção arbitrárias, tais medidas procuram oferecer ´segurança´ no cumprimento objetivo e isento de consideração pessoal, o dever específico imposto pelo cargo correspondente. (…) O funcionário administrativo, em todos os casos, pode ser despedido com mais facilidade do que o juiz ‘independente’” (Max Weber).
A burocracia afasta a subjetividade, das partes à defesa, desta à promotoria e ao juiz. “O juiz moderno”, diz Weber, não mais depende de um soberano (rei, papa, aristocracia ou povo), mas a sua independência diante de pessoas é paga pela inserção na máquina que o controla.  Alguém que deve decidir com raciocínio se reduz a um "autômato de parágrafos” legais (Ein Paragraphen-Automat) cujo funcionamento é calculável. [6] Não há juízo, só mecanização, pesadelo dos gregos ao romantismo. [7] Nele, Joseph K. se move sem saber os motivos do processo. E nem o julgador conhece o que o leva a condenar indivíduos. Ele é prisioneiro da máquina.  Vale retomar as reflexões de Jan kott em Shakespeare nosso contemporâneo, sobre as engrenagens do poder. [8]
Pensadores do século 17, quando se firma a razão de Estado, notaram o advento da armadilha mecânica que devora quem se julga superior aos humanos, do rei aos juízes. Trata-se da sociedade automática descrita na Lógica de Port Royal. O poderoso almeja ser obedecido como se as pessoas fossem ferramentas, “entièrement privées de raison et de pensée”. Ao mesmo tempo ele deseja “mandar em homens, não em autômatos pois seu prazer consiste na visão dos movimentos gerados pelo medo, estima, admiração que eles geram nos outros”.  O paradoxo é vivido no governo, quartéis e tribunais. É delírio e sonho impossível. Mas nele se define o poder moderno. [9]
Cito Eric Voegelin e o julgamento de Hans Hefelman. O réu afirma que "os procuradores de justiça chefes e presidentes das Cortes de Apelação tinham declarado apoio à eutanásia. O acusado de cumplicidade na morte de 73 mil supostos doentes mentais, disse que o secretário de Estado do Ministério da Justiça, doutor Franz Schlegelberger (....) fez uma preleção na conferência em que declarou que a ação ´T 4´ era legal. Nenhum dos cem membros antigos, entre os quais estava o presidente da Suprema Corte, Erwin Bumke, objetou". O fundamento "legal" era um decreto sigiloso de Hitler. Brasileiros sabem o que significa decreto secreto. Na época, quantos juízes aqui se levantaram? Voegelin: "Temos documentos do encontro. Esses advogados, entre eles o presidente da Suprema Corte, Bumke, sabiam que a campanha fora planejada, de fato, sem base legal, com fundamento no decreto secreto do Füher (...) Testemunhas da cena descrevem como os presidentes da Corte de Apelação olharam para Bumke – o que dirá Bumke? – e Bumke nada disse!”. [10]. A máquina de moer consciências estava em plena opetração, no judiciário.
As cortes especiais de justiça, instaladas em Vichy, marcaram presença na Alemanha. Entre elas, a Volksgerichtshof (Corte do Povo) oficializada em 1934 para processar “traidores”.  Naqueles tribunais tudo foi rápido e seguiu para a humilhação do acusado, exibido com algemas. A defesa era simbólica, o juiz e o promotor se uniam nas invectivas contra o preso. Apelos proibidos, o réu eliminado em poucas horas. [11]
Notas
[1] R. Romano, “Como papel amassado” in  Lima JCF, Neves LMW, (org): Ed. Fiocruz; 2006 : Fundamentos da Educação Escolar no Brasil Contemporâneo, www.epsjv.fiocruz.br/upload/d/CAPITULO_4.pdf
[2] Platão.  Comentários de G. R. Morrow, que cito sem modificações notáveis.
[3] G. R. Morrow “Plato and the Rule of Law” in G. Vlastos (ed.) : Plato, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosophy of art and religion, T. II (University of Notre Dame Press, 1978), pp. 144 e ssO ensaio de Morrow é de 1946.  “I confess to a secret fondness for Plato´s proposal, because it strikes at a defect in the administration of justice to which our Anglo-Saxon lawyers seem to be congenitaly blind, viz. the abuse of judicial power. For the rule of law, as it worked out in our legal institutions, means the rule of judges, and this kind of rule, like any other, can become tyranny unless properly safeguarded.” Op. cit. p. 157.
[4] J. Campbell: Atrocious Judges: Lives of Judges Infamous as Tools of Tyrants and Instruments of Oppression (London, John Murray, 1849)Urge consultar os clássicos da resistência, como O Direito dos Magistrados e Vindiciae contra Tyrannos. Este último foi traduzido em nosso idioma por F. V.  Carvalho (Ed. Discurso).
[5] Cf. Stolleis, M/: A History of Public Law in Germany, 1914-1945(Oxford, University Press, 2004).
[6] M. Weber, “Parlament und Regierung im neugeordneten Deutschland”Gesammelte Politische Schriften, J.C. Mohr, 1971, p. 523.
[7] A., Droz: Les automates, figures artificielles d’hommes et d’animaux, Histoire et Technique, Ed. Du Griffon, 1949.
[8] Logique de Port- Royal, introdução e notas de Ch. Jourdan, Hachette, 1854,  p. 65
[9] J. kott, Shakespeare nosso contemporâneo, SP, Cosac Naif para a edição brasileira.
[10] E. Voegelin, Hitler e os Alemães (São Paulo, É Realizações, 2008), pp. 92-93, Por volta de mil juristas alemães colaboraram com o nazismo. Cf. H. Camarade: “Le passé national-socialiste dans la société ouest-allemande entre 1958 et 1968. Modalités d’un changement de paradigme mémoriel” in Vingtième Siècle. Revue d'histoire, 2011/2 (n° 110), pp. 83-95.

Fé e ciência: o conflito continua

Muito antes do notório julgamento de Galileu, o grande filósofo e médico do século XII Ibn Rushd (Averróis) foi banido de sua casa em Córdoba e viu todos os seus livros serem proibidos e queimados pelas autoridades religiosas islâmicas, que denunciaram sua crença na existência da causalidade na ordem natural – uma causalidade que ele considerava como independente da ação direta de Deus no mundo. Como Edward J. Larson e Michael Ruse salientam em seu novo livro, On Faith and Science [Sobre fé e ciência] (Yale University Press, 321 páginas), os clérigos da Espanha muçulmana temiam que, por conta própria, a razão, a lógica e a ciência humanas poderiam possuir um poder que ameaçaria fazer com que Deus parecesse desnecessário.
A reportagem é de John Farrell, publicada na revista Commonweal, 07-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esse medo permanece disseminado hoje entre os fiéis religiosos de todas as fés – especialmente nos Estados Unidos, onde, por exemplo, a oposição à crença na evolução continua sendo muito forte. Mas ele tem assombrado o debate sobre a tensão entre religião e ciência há séculos.
Ibn Rushd, que morreu mais de um quarto de século antes do nascimento de São Tomás de Aquino, pelo menos viveu o suficiente para voltar para casa do seu exílio, mas sua obra nunca alcançou entre os muçulmanos a influência que teve na Europacristã, onde foi traduzido e estudado nas novas universidades medievais. De fato, era tão grande o respeito de Aquino pelas explanações de Ibn Rushd sobre as obras de Aristóteles, que Tomás sempre se referia a ele como “O Comentarista”.
Subsequentemente, a ciência arraigou na Europa e floresceu durante a Revolução Científica, mas não sem vítimas causadas pelas mesmas tensões que haviam atormentado Ibn Rushd. O julgamento de Galileu assombrou a Igreja Católicadurante séculos – tornando-a um alvo fácil para os protestantes que atacavam os papas após a Reforma e para os defensores do Iluminismo que detestavam qualquer autoridade religiosa que interferisse no progresso da ciência.
Na visão de Larson e Ruse, esse debate de longa data tem sido mal servido pelo chamado modelo de conflito que o caso Galileu simboliza, e o objetivo deles nesse livro é argumentar que a relação entre ciência e religião é mais complexa do que qualquer noção que tanto o conflito quanto a complementaridade simplista permitem.
Larson, professor da cátedra Hugh e Hazel Darling em Direito na Pepperdine University, ganhou o Prêmio Pulitzer 1998 de História pelo seu livro Summer for the Gods: The Scopes Trial and America’s Continuing Debate Over Science and ReligionRuse, professor da cátedra Lucyle T. Werkmeister e diretor do Programa de História e Filosofia da Ciência da Florida State University, foi conferencista Gifford e é autor de diversos livros sobre a inter-relação entre ciência e fé. Firme evolucionista e famoso conferencista, Ruse irritou alguns membros da comunidade científica por ter colaborado em alguns livros com os principais defensores do movimento de Design Inteligente nos Estados Unidos. Mas ele também gosta de entrar em atrito com seus leitores religiosos. Em uma recente conferência na Notre Dame University, eu o vi deixar de lado seu texto preparado sobre evolução e cristianismo para afirmar: “Vejam, Adão e Eva nunca existiram. Deixem isso para trás!”.
(Foto: Divulgação)
Em seus nove capítulos, On Faith and Science perpassa a história da ciência e da filosofia, destacando as descobertas que tiveram um impacto particular sobre a doutrina religiosa ao longo dos últimos mil anos de cultura cristã e, em menor medida, judaica e muçulmana.
No início do livro, os autores partem de onde Ibn Rushd parou, com a ideia das leis independentes da natureza – ou, como os escolásticos se referiam a ela, a doutrina das causas secundárias, sendo que a causa primeira é Deus. A noção não deixou de receber críticas entre os contemporâneos de Aquino, e, em 1277, o arcebispo de Paris condenou uma série de proposições associadas à nova filosofia natural.
A ideia de que o mundo opera de acordo com suas próprias leis e regularidades continua sendo controversa no debate sobre a evolução hoje, já que os defensores do Design Inteligente atacam o consenso da ciência sobre a evolução darwiniana e insistem que a intervenção direta de Deus na história da vida pode ser cientificamente demonstrada.
Mas, como Larson e Ruse mostram nos dois primeiros capítulos que abrangem o desenvolvimento precoce da astronomia e da física – desde a Revolução Copernicanaaté a Revolução Quântica –, essa noção deu seu fruto mais antecipado na ciência dos céus e dos corpos em movimento. A Revolução Copernicana é muitas vezes descrita como o primeiro grande choque que a ciência provocou à mentalidade religiosa ocidental, em que o sistema heliocêntrico rebaixava a Terra em relação à sua posição central e privilegiada no cosmos, tornando-a apenas outro planeta que orbita ao redor do Sol.
Mas Larson e Ruse argumentam que o que realmente incomodou os tradicionalistas foi que Copérnico usou o movimento circular natural dos planetas (incluindo a Terra) ao redor do Sol para explicar os movimentos retrógrados dos outros planetas, que periodicamente diminuíam de velocidade e revertiam a direção antes de continuar seu curso.
Uma vez que se assumia que o Sol estava no centro do sistema, não era mais preciso citar causas especiais (por exemplo, os anjos) para explicar o que, aos antigos, parecia ser um fenômeno arbitrário. O movimento retrógrado seguiu naturalmente as leis do movimento circular em um sistema centrado no Sol.
KeplerGalileu e, especialmente, Isaac Newton melhoraram o grande programa de Copérnico, abrindo mão da insistência em órbitas perfeitamente circulares em favor de órbitas elípticas, e descrevendo completamente a dinâmica dos planetas com as leis do movimento e da gravitação universal de Newton. Mas mesmo Newton, talvez incomodado com essa autossuficiência, insistia que Deus ainda era necessário para ajustar ocasionalmente os movimentos dos planetas, se algum deles ameaçasse se afastar do curso.
As leis da natureza nos céus eram uma coisa, mas a aplicação de tais leis aos seres humanos era outra coisa. E, no terceiro capítulo, os autores abordam o impacto da mecânica newtoniana sobre os conceitos de mente e alma. A separação de Descartes entre uma mente imaterial e a mecânica do corpo humano pode ser vista sob essa luz como uma espécie de ataque preventivo para proteger o status exclusivo da alma. Se assim foi, ela teve vida curta, já que o advento da evolução darwiniana ameaçou colocar todo o humano sob o poder da seleção natural.
Aqui é onde permanece o verdadeiro conflito com a fé. O mecanismo da seleção natural foi uma afronta suficiente aos fiéis do século XIX em relação à criação especial de todas as espécies (incluindo os humanos). Mas então, nas décadas seguintes e no século XX, veio a conscientização gradual dos éons e éons de espécies extintas que viveram e morreram muito antes da humanidade, juntamente com a crescente conscientização sobre o desperdício e o sofrimento que esses éons passados envolviam. Isso adicionou outra camada de verdadeira inquietação à crença na providência divina.
Podemos chamar de bom um Deus que presidiu tal sofrimento gratuito? Como alguns teólogos suspeitaram, até mesmo a tentativa mais acomodatícia de encaixar o Deus da Bíblia com a evolução não conseguiria livrar Deus quando se tratasse da existência generalizada do mal e do sofrimento. Como disse o teólogo cristão evangélico John Schneider, o mundo revelado pela evolução “descreve o passado planetário e biológico como aquele em que biomas inteiros vieram e se foram de forma aparentemente despropositada e brutal, e revela que o nosso passado é apenas um deles” (“The Fall of ‘Augustinian Adam’”, em Zygon, novembro de 2012).
E, mais recentemente, os avanços feitos pela ciência cognitiva parecem dar uma credibilidade adicional a um materialismo radical que, na opinião dos autores, prejudica qualquer crença religiosa na transcendência do espírito humano. A mente e a alma parecem ser os subprodutos do cérebro. Se deve haver alguma reconciliação possível entre ciência e fé aqui, escrevem eles, talvez ela possa ser encontrada no campo da mecânica quântica, embora eles não aprofundem o assunto.
E a própria origem da humanidade – e das doutrinas teológicas associadas a ela, principalmente o pecado original e a queda? Houve tentativas de alguns teólogos católicos de acomodá-las em uma perspectiva evolutiva, mas, até hoje, os pronunciamentos oficiais do Vaticano continuam sendo muito gerais.
No nível pastoral, permanece muita confusão e mal-entendido sobre a ciência da evolução humana e suas implicações. O Catecismo não discute nada da evolução e continua tratando Adão e Eva como figuras históricas.
Talvez não seja surpreendente, então, que a imprensa popular continue assumindo uma desconfiança geral em relação à ciência por parte da Igreja. Roma não consegue superar o caso Galileu. Por exemplo, quando o Papa Francisco, pouco depois de ser eleito, afirmou que não há nenhum conflito entre as noções de criação e evolução, isso foi abordado como manchete de primeira página em todo o mundo, mesmo que João Paulo II e Bento XVI tivessem dito o mesmo em muitas ocasiões.
Para não fechar com uma nota desencorajadora, Larson e Ruse abordam o papel das lideranças religiosas na promoção de uma abordagem mais protetora do ecossistema mundial cada vez mais frágil. Eles ressaltam a Igreja Católica e, em particular, o Papa Francisco, que dedicou toda a sua encíclica Laudato si’ à defesa do mundo natural, e os esforços mundiais para reduzir as emissões de carbono para combater os efeitos cada vez mais destrutivos das mudanças climáticas. Eles também comparam as exortações do Papa Francisco às de E. O. Wilson, de Harvard, um ateu notório e também um notório defensor de uma visão de toda a vida como um todo interconectado. Wilson expressou um grande respeito pelos esforços do papa de se pronunciar em apoio ao consenso científico sobre as mudanças climáticas.
Na opinião dos autores, tanto o papa quanto Wilson, apesar de abordarem a questão a partir de tradições amplamente diferentes, representam um caminho a seguir para ateus e crentes, para juntos irem ao encontro dos desafios que a Mãe Natureza guarda para a humanidade.

Não foi Lula que se desviou, foi o poder que o mudou, diz o sociólogo José de Souza Martins

José de Souza Martins estava disposto a falar. A entrevista a seguir durou 117 minutos exatos. Poderia ter durado muito mais, pois não faltou prontidão a esse professor e pesquisador, que transformou os estudos sociológicos no Brasil com abordagens criativas e corajosas, arriscando deixar-se à margem para poder ver melhor.
Suas investigações renderam dezenas de livros, alguns já clássicos da sociologia, como os sobre o subúrbio, de onde ele veio e conhece muito bem, além da honraria de professor emérito da USP (Universidade de São Paulo), onde lecionou por cerca de quatro décadas.
Na entrevista, feita debruçada sobre uma longa mesa oval de madeira avermelhada de uma sala do departamento de sociologia da USP, Martins vai ao Brasil profundo, da margem, à estrutura mais funda do pensamento. "Pensamos às vezes como alguém lá do século 17. E mascando chiclé, tomando coca-cola e comendo hambúrguer no McDonald's", descreve.
Martins rememora um encontro antigo com Luiz Inácio Lula da Silva, quando o ex-presidente era só um sindicalista latino-americano sem dinheiro no banco e queria aprender sobre a Amazônia e a questão agrária. Pediu então uma aula ao sociólogo. "Lula era o aluno que gostaria de ter tido aqui na universidade. Muito inteligente", elogia. Sobre a trajetória do líder popular, hoje condenado pela Justiça em segunda instância , pondera: "Não foi Lula que se desviou, foi o poder que o desviou". E define: "O poder é maléfico".

Foto: Reprodução Youtube
A entrevista é de Guilherme Azevedo e publicada por Uol, 10-02-2018.
Eis a entrevista.
Vamos começar pelo seu modo de fazer sociologia? Foram vários temas [estudados], movimentos sociais, subúrbio, questão agrária, a indústria, os operários, a violência dos linchamentos, entre outros. O que te motivava a pesquisar? O que dava o brilho nos olhos para se entrar na pesquisa? E tinha também o seu modo particular de valorizar o cotidiano, aquilo que talvez fosse desimportante para muitos.
Eu tive a sorte de ser aluno no curso de ciências sociais no tempo em que a influência da missão francesa ainda era muito forte [um grupo de professores franceses foi contratado para as atividades docentes iniciais da USP, que foi inaugurada em 1934]. O primeiro professor de sociologia aqui na faculdade foi o Claude Lévi-Strauss [1908-2009], que depois se tornaria o grande etnólogo. Aliás, as grandes descobertas etnológicas do Lévi-Strauss foram feitas no Brasil. O estruturalismo nasceu de conversa dele com um xamã no norte do Mato Grosso, narrando um mito para ele e aí ele vê, putz!, é uma dica epistemológica.
Era uma coisa que revolucionava tudo. Você tem um bom ouvinte e pesquisador e um bom informante, que é um xamã, uma figura dona... que é um intelectual, enfim, do grupo é sorte. Aí ele resolveu ir embora para os Estados Unidos e veio para o lugar dele o Roger Bastide. Que foi um grande achado da universidade, grande figura. E ele é que faz o Florestan Fernandes, que fez a minha geração. Fez Fernando Henrique, Ianni, Marialice Foracchi [1929-72], Maria Sylvia de Carvalho Franco, e eu e a minha turma, da terceira geração.
Era um pessoal que tinha uma coisa que estava muito no Bastide: o Brasil era uma mina de informação sociológica na comparação com a Europa, por exemplo. Bastidedisse uma vez uma coisa do tipo: "A Europa está saturada de razão". Na verdade, o grande mundo sociológico não está nesse âmbito, está fora dos esquemas, da racionalidade. Ele vai se interessar pela cultura negra. Tem um pequeno trabalho dele sobre sonhos que é primoroso. Fez um pequeno banco de sonhos de negros. Ele se interessou pela cultura negra, se tornou filho de santo. Ele era protestante, um huguenote, que vai para o lado oposto para vasculhar o inconsciente coletivo. O primeiro curso que ele deu aqui foi de sociologia e psicanálise.
Nesse banco de sonhos, ele descobre uma coisa importante: a cor da pele não diz que uma pessoa é negra. Uma estrutura profunda no inconsciente dela é que pode dizer isso. Porque todo o período colonial foi um período de cristianização do escravo e de demolição de todas as referências culturais dele. A ideia foi apagar da memória dele a alma da tradição, da nação, do grupo de origem dele. Isso eles não conseguiram fazer com todo mundo. Então, o negro de verdade é o negro que sonha, quando está dormindo, a partir de parâmetros, de matrizes e referências que são dos ancestrais. Ele conversa com os ancestrais no sonho. E os ancestrais são fundamentais nas culturas negras, porque são eles que interpretam, que dão pistas de conduta, quer dizer, existe uma alma negra que vem dessa tradição. Então, negro é quem sonha como negro, o fato de a epiderme do sujeito ser negra não é suficiente, já é uma outra negritude, uma negritude moderna, que não tem nada a ver com aquela.
O senhor compartilha dessa ideia também?
Compartilho. Eu trabalho com as estruturas profundas. Eu não posso explicar linchamentos [justiçamentos populares] se eu não lidar com essa ideia, não só em relação ao negro, mas em relação ao branco também. Quando você vasculha os indícios dessa profundeza de referência, se descobre, no caso dos linchadores, que se orientam por uma mentalidade que foi gestada pelas Ordenações Filipinas [código jurídico que vigorou no período colonial] e pela Santa Inquisição [perseguição violenta feita pela Igreja Católica em nome do combate à heresia, entre os séculos 16 e 18, no Brasil]. A ideia da vendeta [vingança], você de preferência queimar o acusado vivo, que é isso que se faz nos linchamentos. Existe um ser arcaico no nosso inconsciente que continua muito ativo mesmo no comportamento moderno.
Isso me interessa muito. Isso significa que a modernização, essa ideologia oficial modernizante etc., não funcionou, não deu certo. Nós continuamos divididos em tudo. Até na política somos arcaicos. Você não vê? Todos os dilemas de agora são de tipo oligárquico, coisas do século 18. As pessoas governam em nome de um passado residual que parasitou a consciência delas, a identidade delas, mesmo do eleitorado. Não estou dizendo dos políticos só, eles também.
O discurso moralizante de certa forma tentou desmerecer talvez uma tradição?
Ele desconheceu o que nós somos. Nossos políticos desconhecem o que somos.
O que nós somos, alguns elementos, por exemplo?
Somos arcaicos, sem ser propriamente uma tradição, como na Inglaterra ou na França ou na Itália. Somos vítimas do que sobrou dos vários passados que tivemos. Pensamos às vezes como alguém lá do século 17. E mascando chiclé, tomando coca-cola e comendo hambúrguer no McDonald''. É uma colagem. Somos uma colagem de visões de mundo, de orientação, nós não vamos chegar a lugar nenhum com isso. Essa é a verdade.
Somos retalhos, um pensamento retalhado, figuras retalhadas. Mas com isso não se forma uma colcha, um dia? Ou com que se forma essa colcha? Ou se não se forma, também?
Colcha nós já somos. Somos uma colcha de retalhos.
Mas cobre, não é?
Só cobre. Contra o frio etc. Mas você não tira um projeto de nação de uma fragmentação tão grande. Nós não temos um rumo. Porque nossa modernização é superficial, historicamente. Começa com a República superficial. A República foi um chute. Se você examina os detalhes do dia da Proclamação, como a coisa foi, tem vontade de chorar. Não proclamaram República nenhuma. Não foi nem sequer um golpe de Estado. Uma coisa de um primarismo espantoso. Aquela imagem do Deodoro [da Fonseca] com a espada proclamando, isso não aconteceu. Eles [os proclamadores] não souberam lidar com padrões de civilidade [a começar do tratamento impróprio e desumano dado à família real, segundo Martins]. É uma República incivilizada a proclamada dia 15 de novembro. Uma coisa de improvisação.
O Brasil [da época] era muito Rio de Janeiro, o governo estava ali. E as províncias estavam nas mãos das oligarquias, não tinham nada a ver com nada. O que aconteceu? Proclamaram a República, botaram uma infraestrutura em cima, formalmente republicana, mas o resto do país continuou igual. O clientelismo político, troca de favores, isso até hoje.
E houve Canudos [Guerra de Canudos, 1896-97].
Canudos foi um brutal equívoco. Não tinha revolução monarquista nenhuma lá. A monarquia de Canudos era a monarquia do divino espírito santo. Vem do joaquimismo, que não tem nada a ver com a monarquia política, nada, nada, nada. Gioacchino [ou Joaquim] da Fiore, século 12, na Itália, faz uma releitura da Bíblia, ele é um monge cisterciense e descobre que é possível encontrar na estrutura da Bíblia não dois testamentos, mas três. O Velho Testamento, o Novo e o Novíssimo. Cada testamento corresponde a um ente da Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E cada testamento corresponde a uma etapa da história. Há uma concepção difundida na sociologia de que Gioacchino da Fiore foi, na verdade, o homem que estabeleceu as bases da moderna concepção de história. Quer dizer, o mundo não é parado. O tempo do Pai, o tempo do Filho, o tempo do Espírito Santo, cada tempo vai se esgotando, tem a sua finitude e vem um novo tempo.
E o tempo do Espírito Santo, que era o tempo iminente no fim do século 19, havia muita crença quanto ao fim do milênio, se está chegando ao último século do milênio e aquele pavor, porque vai vir um cataclisma e vai surgir uma nova era, que é a era do Espírito Santo. Que é uma era de Justiça, paz, fartura, alegria. Existe também uma tradição popular joaquimista, que é a das folias do divino, a festa do divino. Canudos é uma grande festa do divino, não tem nada a ver com política. Coincidiu de acabar a monarquia e o povo estar reunido lá. Eram grupos que faziam caridade, reconstruíam igrejas em ruínas, que era o caso de Canudos, e vão se aglomerando e se estabelecendo lá.
Queria pegar um pouco do modo como o senhor trabalha, que é a coisa da pesquisa de campo, que eu, como jornalista, também sempre brigo por isso, [contra] o jornalismo de gabinete, ou só o estudo pelo estudo. O senhor poderia falar um pouquinho da obrigatoriedade de estar no lugar, de conviver com as pessoas?
Os livros são importantes como referências teóricas, eventualmente como referências equivocadas. Porque um dos trabalhos da ciência é fazer a crítica do conhecimento, as inconsistências dele. O campo [de pesquisa] pode ser o arquivo histórico, ou pode ser o campo mesmo, você vai para o mato.
Eu fiz pesquisa na Amazônia. Quando começou a entrada na Amazônia, com o regime militar, a frente de expansão com muito dinheiro do governo, os incentivos fiscais etc., percebi que ia arrebentar com ela. Onde estavam populações indígenas nem sequer contatadas. A última fronteira do mundo. Larguei tudo aqui e fui para lá, em 1975. Quase sem dinheiro. Resolvi estudar primeiro os fluxos migratórios do pessoal que se deslocava, dia e noite tinha gente saindo do Paraná, de Santa Catarina, Minas Gerais, Espírito Santo em direção à Amazônia. Era um êxodo de populações rurais indo para lá. Faço a pesquisa cobrindo sozinho uma área que ia da pré-Amazônia maranhense ao Acre e Rondônia. Eram alguns lugares, uma pesquisa amostral. E aí escrevo o livro "Fronteira'. Ali era o limite da humanidade, ela acabava ali.
Desde a sua ida à Amazônia, algumas questões se exacerbaram, como a exploração econômica pelos fazendeiros, a madeira etc. Como o senhor observa a Amazônia, hoje?
Mudou o grau de interferência e de problema. Houve um enorme desmatamento, a questão da madeira ilegalmente extraída. É um lugar de pirataria. Falar que isso é capitalismo é bobagem. Capitalismo é uma coisa completamente diferente, é racional. Não tem como haver um capitalismo irracional, que destrói as bases da sua própria existência. Isso não é capitalismo, é burrice.
O que nós temos hoje na Amazônia, numa escala muito grande, e eventualmente em outros lugares do Brasil, é uma economia burra, que destrói aquilo que é fundamental para que ela se desenvolva e progrida. Então você tem trabalho escravo (já tinha naquela época), que é absurdo. Tem a devastação da mata, que é outro absurdo.
Não é necessário destruir o país em nome do lucro de grupos minoritários que nem sequer são grupos empresariais. Você pode preservar a Amazônia e fazer desenvolvimento econômico.
As nações indígenas são bibliotecas eruditas sobre o que é o mundo natural, e esse pessoal está sendo tratado como bicho. Você tem um índice de suicídios entre os Kaoiwá que é absurdo, uma autoimolação causada pelo branco. Nós estamos acabando com essa nossa biblioteca. O Brasil não teve uma biblioteca nacional, a Biblioteca Nacional foi aquela que Dom João 6º deixou aqui no Brasil, mas nacional mesmo não tem nenhuma. As populações indígenas são nossa Biblioteca Nacional, dessa parte da informação etnológica e cultural. A informação está aqui. Porque o que ainda há para descobrir, na área de humanas, está no Brasil, eventualmente em algum outro país, mas aqui em abundância.
O senhor acha que acontece um desperdício, uma depreciação da nossa própria condição, tem a coisa da ideologia, que deve atuar de uma forma, aquilo que vem de fora é melhor, as ideias que estão aí circulando mais. Não tem ainda esse componente meio Nelson Rodrigues, da alma nacional e os vira-latas...
Nós temos ainda mentalidade do colonizado. A gente gosta de ser colonizado. E não é esquerda e direita, veja aqui, os jovens sonham em ir para os Estados Unidos, a França etc. e passam a ver o Brasil a partir de uma perspectiva que é totalmente estranha ao que somos, em vez de construir uma interpretação do Brasil a partir do que temos para dizer. Claro que tem uma força lá de fora, os pesquisadores estrangeiros, mesmo os brasilianistas, que nos veem nessa perspectiva. Não estou dando uma de patriota bobo, que não sabe o que está falando. Quer dizer, nós estamos jogando fora uma fonte preciosa de informação sobre um mundo novo e alternativo que está contido na nossa realidade e nós não sabemos expor.
Aí talvez estivesse a liga da colcha de retalhos.
Mas não liga, esse é o problema. Henri Lefebvre, que é um sociólogo francês que já morreu [1901-91, um dos grandes mestres de Martins], é mais criativo nesse sentido. Ele fala que a sociedade é dominada por poderes e a única forma de enfrentar os poderes de maneira sociologicamente criativa é tentar ver como se dá a coalizão dos resíduos, como eles se juntam historicamente, se num certo momento promovem aquele susto que vai despertar nossa consciência: "Pô, nós podemos construir um país". Mas a gente não tem mediações. A esquerda brasileira é muito deficiente de formação teórica. E a direita é maliciosa, voraz e incompetente, também não vai levar ninguém a lugar nenhum.
Nós não temos mais grandes referências teóricas para sair desse buraco. A universidade não está fazendo isso. Foi possuída por grupos ideológicos, mas de fato existe veto a você ir numa certa linha de interpretação.
Essa tua postura talvez mais independente, tem uma coisa periférica, a vantagem de ser periférico, o senhor já comentou isso algumas vezes.
A margem. A grande mina de inspiração e de informação para se entender um país como o Brasil. A margem.
A margem significa que existe um centro...
O centro foi possuído pelo poder. Diria, pelos poderes. Porque tem não só o poder da República, mas também os poderzinhos, que são os pequenos grupos que querem mandar nos outros, que são donos da verdade, do politicamente correto. Não sabem nada sobre o Brasil, mas são os donos. Então o poder está no centro. E o centro não é o geográfico só, é um centro de poder. É por isso que faço pesquisa na Amazônia, no subúrbio, fiz uma trilogia sobre o subúrbio, porque o subúrbio fala muito mais sobre as nossas contradições e dificuldades e as nossas possibilidades, que é o que me preocupa, do que o centro, porque o centro foi tomado e ocupado pelos poderios. E portanto não é daí que vai surgir uma informação. O subúrbio é muito mais criativo historicamente do que o centro.
E Brasília? É curioso, porque não tem muro lá. E como pôde ser dominada desse jeito? Porque é uma visão de futuro muito interessante proposta ali. Parece que os seres que ali habitam e habitaram não eram os convidados daquele lugar.
Quem planejou Brasília, Lúcio Costa e o [Oscar] Niemeyer, não levaram em conta que os muros estão nas estruturas profundas do pensamento brasileiro. Você pode fazer a cidade mais aberta que quiser e vai ter muro lá. As pessoas levam o muro na cabeça delas. Nós brasileiros somos incapazes de viver sem muros. Nós fomos criados nas senzalas, nas reduções, aí é que se formou o caráter nacional brasileiro. Mesmo quem veio de famílias estrangeiras depois chegou aqui e encontrou os muros feitos, os muros ideológicos, culturais. Abrir as paredes implica uma revolução. Fernando Henrique Cardoso disse num trabalho de 1970, um livro coletivo que foi publicado pelo Paulo Sérgio Pinheiro: o grande problema do Brasil é que o Brasil não fez uma revolução da independência. É o único país das Américas.
A independência do Brasil foi feita pelo herdeiro do rei de Portugal, foi feita pelo Estado. O Estado fez a independência do Brasil. E depois criou a sociedade, diferentemente de outros países. Você pensa no modelo da Revolução Francesa, é a sociedade que criou o Estado. No México, a sociedade criou o Estado, nos Estados Unidos. No Brasil o Estado criou a sociedade. Essa é a cruz que nós temos de carregar. Se a gente não se der conta disso e não criar [condições]... Eu não estou falando de revolução de sair dando tiro, matando gente, mas a grande revolução que revoluciona as mentalidades, e isso não está sendo feito. A escola não prepara para isso. A universidade não está preparando quadros para o pensamento crítico, porque sem pensamento crítico não se faz revolução. Uma revolução implica quebrar as estruturas interpretativas para poder descobrir onde está a saída. Isso é pensamento crítico. Esta poderia ser a hora, não vai ser.
Por quê?
Porque não temos as mediações. Os partidos são incompetentes e não conseguem perceber isso. Escrevem-se e publicam-se livros sobre isso, ninguém lê, mil pessoas [leem], isso não é suficiente. E o que é uma grande pena: se você abre a boca, as pessoas te censuram imediatamente.
Eu passei a sofrer, nos últimos anos, o cala-boca, aqui mesmo dentro da universidade. Fui dar uma aula magna, a convite da Faculdade de Filosofia, a minha boca foi caladapor um grupo que reivindicava que eu não fizesse a minha conferência e falasse sobre cotas raciais. Só que eu não poderia falar sobre cotas raciais se não fizesse críticas à ideologia subjacente, e nunca faria a conferência por imposição de um grupo que me dava um cala-boca e acusava todo mundo.
Mas não aconteceu só aqui [na USP]. Fui fazer uma palestra em São Caetano [do Sul, onde o próprio Martins nasceu, no ABC paulista] sobre um assunto totalmente diferente, idem, tinha um grupo lá em nome da educação impedindo que eu falasse. "Então vocês estão impedindo que a educação fale", disse. Agora, em Rio Grande [da Serra, Grande São Paulo], também não foi possível fazer palestra.
Mas por que o senhor ficou identificado como alguém contrário [a lutas sociais]? O senhor nunca se opôs a nada.
Eles não me identificam, não sabem quem eu sou. É uma aversão ao pensamento crítico. Eu não posso ser crítico em relação às suas ideias, ou às ideias dele, nem você pode ser em relação às minhas ideias. Temos de ser críticos em relação às ideias em geral. As suas, as minhas. Onde é que estão os nossos impasses? Quando é que a gente empacou e não consegue ir para a frente? De onde vêm essas referências que nos aprisionaram num imobilismo brutal? Quando vai, vai num episódio, não vai em outras coisas. É isso que a gente tem de saber.
Outros professores têm tido problemas na universidade. Essa coisa de calar a boca do professor, se ele não fizer o discurso politicamente correto, o que em geral não tem nada a ver com ciência, tem a ver com ideologia. Eu nunca vivi isso, nem durante a ditadura.
O senhor estudou muitos movimentos sociais, a gente vê hoje movimentos novamente pela igualdade de gênero, as mulheres protagonistas, o movimento negro, afrodescendente também falando mais ou querendo seu espaço e o senhor pontuou alguns episódios com esses movimentos reagindo. De que forma poderia dizer, "Olha, gente, eu não sou contra, nós não somos contrários"?
É muito positivo o surgimento de todos esses movimentos dos chamados grupos particulares, que não são uma classe social, que começam dizendo, "Nós existimos, nós estamos aqui". As populações indígenas inauguraram isso no Brasil, nos anos 1970, durante a ditadura. E fizeram isso com um jeito absolutamente lindo e eficiente. Nos anos 1970 houve a revolta dos índios Kaingang. Os Kaingang estão distribuídos por uma imensa área que vai de São Paulo até a Argentina. Eles descobriram que o território deles era arrendado pela Funai [Fundação Nacional do Índio] para os fazendeiros e eles, Kaingang, eram empregados dos fazendeiros.
Mas a terra era deles pela Constituição. Eles resolvem se levantar, com porrete, com enxada, com o que eles tinham. Primeiro, agradecem as professoras que a Funai tinha enviado: "Obrigado, vocês estão dispensadas. Daqui para a frente vamos ter professores Kaingang nas escolas Kaingang. As crianças têm que aprender a língua Kaingang, pensamento Kaingang".
Depois botaram todos os fazendeiros e sitiantes para fora, que é quando nasce o MST[Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Originalmente, é um grupo que teve de cair fora, expulso pelos Kaingang. E a coisa se espalhou por Santa Catarina, Paraná, só em São Paulo não teve. E eles conseguiram se modernizar em termos de economia agrícola, trabalhar com máquinas etc. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul é a única que tem um programa interessante de cotas, porque faz o vestibular separado para os índios. Os índios estão mandando os seus filhos para a universidade porque querem médicos, engenheiros, professores Kaingang, que dialoguem com a cultura deles, os costumes agrícolas, a medicina deles. Vai me dizer que a medicina dos laboratórios é necessariamente muito melhor do que o benzimento de um pajé? Hoje, os jovens Kaingang entram na universidade por uma porta para eles e vão fazer os mesmos cursos que os outros estão fazendo.
As figuras que o senhor encontrou, algumas figuras que foram decisivas para dar aquela abertura para o mundo, o senhor consegue lembrar quem foi? Esses encontros?
Fiz pesquisas com crianças na Amazônia. Quando estava conversando com as pessoas [adultas], me dei conta de que as crianças, porque criança não opina, não dá palpite, isso é muito comum na nossa sociedade, notei que elas ficavam observando e ouvindo tudo. Então resolvi fazer uma parte da pesquisa com elas. Só crianças. Nas áreas em que havia muita violência contra os pais delas. Essas crianças me revelaram o que era a Amazônia, o restante também ajudou, mas as crianças... A criança é também uma analisadora da realidade, a gente não valoriza isso, mas ela é. E elas tinham uma interpretação.
Uma das pessoas que falou comigo logo no começo, quando soube que eu estava fazendo pesquisa [na Amazônia], é um sujeito aí de São Bernardo [do Campo, no ABC paulista] chamado Lula [Luiz Inácio Lula da Silva]. Ele soube, por meio de uma conhecida dele, e eu não conhecia o Lula, apesar de eu ser do ABC também [nasceu em São Caetano, em 1938]. Que ele gostaria de conversar comigo. Não era político ainda, não tinha o PT,tinha o sindicato [dos Metalúrgicos do ABC, do qual foi presidente nos anos 1970]. Eu fui e passamos uma tarde inteirinha.
Como foi?
Foi interessantíssimo. Ele era o aluno que eu gostaria de ter tido aqui na universidade. Muito inteligente, presta uma atenção incrível, ouve e só faz as perguntas quando as dúvidas se apresentam. Era o aluno ideal para uma universidade. Passamos uma tarde inteira tomando café, saí verde de lá. Conversamos numa casa paroquial, não foi nem no sindicato, nada disso. Na casa do padre, que era amigo dele, em São Bernardo. Uma tarde inteirinha conversando.
O que ele quis saber?
O que estava acontecendo no campo e especialmente na Amazônia. Ele não sabia nada sobre a Amazônia. [O encontro] Foi tão genuíno que ele sugeriu para a CUT [Central Única dos Trabalhadores]: "Vocês têm que conversar com esse cara". E a CUT me chamou. Passei um dia inteiro dando curso sobre os problemas do campo, não só da Amazônia, as dificuldades e extensões dos conflitos.
Lula é um homem da cultura oral. É um grande ouvinte e tem uma senhora memória. É o que eu digo: é o aluno que queria ter na sala de aula. Eu tive excelentes alunos, não estou subestimando. Hoje vários são professores universitários e grandes pesquisadores. Mas ele é o aluno que faltou na universidade, o tipo do aluno, de mentalidade, o tipo de preocupação, a competência para ouvir e entender. Isso eu tenho bem presente.
Geralmente tentam classificar o Lula: "Ah, nunca se interessou pela educação". Ou: "Nunca cuidou da sua formação". Esse tipo de molde que tentam colocar serve para ele?
É injusto, isso. Essa coisa de chamar o Lula de ignorante, analfabeto, não é verdade. Ele disse uma vez que tinha dificuldade para ler, ele ficava muito cansado. Isso é próprio do aluno excepcional, no sentido de excepcionalmente bom, quer dizer, com QI [quociente de inteligência] mais alto que a média. Esses alunos sempre têm dificuldades de leitura. Sempre têm. Eles não têm paciência. Porque o professor está aqui e eles já estão lá adiante. Eles conseguem entender o código da informação que você está dando. O Lula é desse tipo.
O senhor quer dizer que ele é um aluno de altas capacidades?
Sim. Ele é. O QI dele é muito acima do QI do PT. Por isso, ele está num ponto, assim em termos de quando a opinião pública se manifesta, lá adiante e o PT está aqui atrás. O PTnão entendeu o Brasil como o Lula entende. Eu compartilho com os desembargadores lá do Rio Grande do Sul [ que condenaram Lula em segunda instância, no caso do tríplex em Guarujá (SP) ], quando um deles chamou a atenção para isso. Quer dizer, num certo momento, o Lula se desviou. Mas não foi o Lula que se desviou, foi o poder que o desviou. O poder é maléfico, o poder é oportunista, não é compatível com grandes projetos de nação, projetos intelectuais etc. Foi uma pena, uma grande perda para o Brasil.
E a Dilma foi o grande equívoco do Lula. Ela não era mulher para aquela função. Não estou dizendo que ela não devesse e tal, mas não era ela. Ela foi um calço que o PTcolocou no processo político para segurar o lugar para o Lula voltar. Na reeleição dela, o Lula já intuiu que havia mais gente interessada no poder e não estava interessada nele no poder. Que foi isso que aconteceu [com o impeachment]. A voracidade de poder é nociva a um país que está em trânsito, como o nosso. Um país que está tentando chegar a algum lugar.
Dois governos Lula, depois ele fez a sucessora e talvez já preparasse uma volta. A Dilma manteve mais ou menos o mesmo sistema, algumas figuras que permaneceram, algumas coisas que vimos observando. Essa tentativa de permanência sempre, é positiva para o país?
Não, não é. O Brasil tem que aprender a reconhecer a importância democrática da alternância de poder. Nós não temos isso. O Fernando Henrique teve. Eu observei atentamente o processo político brasileiro desde que Fernando Henrique foi eleito.
Não só o Fernando Henrique, mas também a Ruth [Cardoso (1930-2008), antropóloga, professora da USP e mulher de FHC], que tinha grande sensibilidade antropológica para o processo político. Ela percebeu isso. Ela dá um tratamento para a Marisa [Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017), primeira-dama nos governos Lula] que uma rainha dá para a outra. Foi um gesto de grande respeito por ela.
Nas eleições presidenciais de agora, como o sr. vê a pré-candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB)?
Alckmin cometeu erros enormes. O primeiro foi entrar na guerra contra Serra [José Serra, hoje senador por São Paulo]. Os dois deveriam ter compreendido que tinham que fazer uma aliança aqui. Eles não precisam de inimigos aqui. Demorou muito [para um acordo].
Depois, cometeu o erro de lançar o [João] Doria para a prefeitura. Doria não é do ramo. E eles não perceberam que a votação do Doria, eleito em primeiro turno [prefeito], não foi do Doria, foi contra o PT. O eleitor brasileiro faz muito esse tipo de coisa por falta de esquemas de autodefesa. Aí o Doria acreditou que era o escolhido da população. Por um desses milagres inexplicáveis, ele seria o rebento, o ungido, o escolhido do povo. Ele vai ver agora, se for candidato a alguma coisa. Na verdade, ele se contrapôs ao Alckmin e o enfraqueceu. Foi esse o erro do Alckmin. Agora, o eleitorado mudou, cada geração é uma geração, e esses erros vão pesar negativamente. Mas pode ser que Alckmin tenha chance.
O senhor tem estudo bastante bom sobre misticismo na política, do poder, os messias. A gente tem um "messias" agora até no nome, Jair Messias Bolsonaro [PSC-RJ].
Esse messias não cola. Deus não está disponível para ser usurpado. É um equívoco, das igrejas que o estão apoiando, acho ruim essa coisa de igreja se meter em política partidária, não deveria. Bolsonaro não percebeu que não representa nada. Ele representa a caricatura do autoritarismo.
Karl Marx [estudioso crítico do capitalismo, base de preceitos do comunismo] escreveu um livro que se chama "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte". O Luís Bonaparteera sobrinho do Napoleão querendo imitar Napoleão. Marx diz: "A história não se repete senão como caricatura". Esse aí é a caricatura da ditadura militar. E general não bate continência para sargento [Bolsonaro é capitão reformado do Exército, de patente mais baixa, portanto]. Esse é um detalhe importantíssimo.
Para encerrar, existe algum princípio condutor, algo que pudéssemos visualizar na história brasileira, alguma coisa com que a gente pudesse contar nossa história do início ao fim? Ou esse fio não existiu ainda? Uma ausência, uma presença?
Existe uma coisa que é muito nossa e muito mal trabalhada, que é uma espécie de obsessão pela esperança. O brasileiro pode estar na pior, ele nem usa essa palavra esperança, mas ele não abre mão da convicção de que amanhã vai ser diferente de hoje. A aposta que os grupos populares fizeram na educação, desde o fim do século 19, é uma coisa surpreendente. A grande luta do ABC, que é o ABC operário, não foi sindical, não foi por salário, foi por escola. Eu fui filho dessa escola.

Militares, ciências, Educação Popular.

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