Monday, May 28, 2018

A Greve dos Caminhoneiros: entre a guerra civil na direita e a desorganização da esquerda

"Sem desenvolver essa nova gramática e essa nova composição de corpos e desejos, todo debate em torno de "quem é mais radical" mostra exatamente sua faceta inócua e moralista", escreve Moysés Pinto Neto, Blogueiro, escreve normalmente sobre política, música, futebol, filosofia e outros temas próximos. Migramos do blog 'O ingovernável' para essas bandas, em artigo publicado em seu Medium, 26-05-2018. 

Eis o artigo.

greve dos caminhoneiros desperta suspeitas, desconfianças e apoios, dependendo de quem olha e sem observar qualquer linha ideológica. A esquerda desconfia da greve por observar indivíduos apoiando Bolsonaro ou a ilegal e ilegítima intervenção militar, enquanto os liberais procuram associar o movimento a um lockout patronal para conseguir privilégios.
Politicamente, até agora, me parece que isso pode significar duas coisas:

1

A guerra civil entre o establishment liberal-financista composto pela Globo e boa parte da mídia, mercado financeiro e centro-direita política (tucanos, sobretudo) contra a ultradireita que estava prometida para mais próximo das eleições se precipitou.
Pela adesão popular e a fragilidade da esquerda, a ultradireita visualiza a greve como oportunidade de produzir efeitos de longo alcance que quebrem a institucionalidade a partir do caos social. É claro que todo fascismo é contrarrevolucionário: seu objetivo é se apropriar da revolta para neutralizá-la, mas até agora sabemos que a estratégia de confusão ideológica produzida via guerrilha virtual tem sido relativamente eficaz.
Ao mesmo tempo, o establishment liberal vem reagindo mediante a checagem de fatos, que dificulta a propagação de fake news e fatos alternativos utilizada pelaultradireita para propagar suas ideias lunáticas, e atacando com o argumento liberal-econômico esse segmento, refazendo a imagem de que estaria abastecido por um puro populismo.
O primeiro ponto é importante porque mina a infraestrutura de viralização conquistada pela ultradireita, filtrando as informações falsas e elevando o nível do debate na esfera pública. Não viola diretamente nada de democrático, uma vez que apenas prestigia a correspondência aos fatos objetivos, e com isso inviabiliza a propagação de boatos e outras ferramentas de pânico moral que consolidaram esse novo campo político. Se isso vingar, a extrema direita vai ter que redefinir toda sua estratégia comunicacional que, até agora, foi vitoriosa.
O segundo ponto é outro elemento interessante, já que, como disse no post anterior, Bolsonaro depende de uma adoção "pinochetista" do mercado para se viabilizar eleitoralmente — e vem tentando isso seguidamente mesmo contrariando seu perfil de militar nacionalista. O nó da greve pode deixar a contradição exposta e eliminar a ambivalência, dividindo e fragmentando a direita em dois polos antagônicos (o liberal e o fascista) que estiveram reunidos para derrubar o PT. Enquanto a extrema direitafaz o discurso populista ("olhem o preço da sua gasolina! é roubalheira dos políticos!), a centro-direita sustenta o argumento liberal do "você paga a conta" (pela liberalização dos preços). Com isso, o establishment vê a possibilidade de minar, a médio prazo, o prestígio popular do populismo reacionário.
Nisso, o flerte do neoliberalismo com o militarismo não apenas revela propriedades imanentes dessa política (1), como figura agora sobreposto como estratégia conjuntural. Desde a intervenção militar no Rio de Janeiro, fica claro que Temerbusca legitimação desde cima, aproveitando a onda reacionária no Brasil para se cacifar via alto comando. Assim, enquanto o bolsonarismo envolve as baixas patentes, conquistando os militares pelo ethos fascistaTemer negocia com as cúpulas, trazendo os militares para o interior do seu governo e usando a hierarquia a seu favor. Isso deve, por consequência, levar a uma rachadura que o Estadão — único órgão grande de imprensa hoje rigorosamente governista — já deu o tom: Bolsonaro e seus asseclas serão atacados por insubordinação, utilizando a hierarquia (um dos principais valores do militarismo) como trunfo contra o populismo fascista. Isso vale também pelo histórico militar de Bolsonaro. Com isso, firma-se desde cima uma aliança entre alto comando militar, finanças e patrimonialistas.
Claro que a Globo, por exemplo, sempre terá que equilibrar essa equação com a Lava Jato e a burocracia anticorrupção, que por sua vez é um discurso mais eficaz que a própria medida liberal do "você paga a conta". Por isso a importância estratégica das eleições: é preciso retirar a oligarquia patrimonialista logo do poder e substituir por um governo mais higienizado (Alckmin e, no caso de dar tudo errado, Marina), a fim de corrigir essas incongruências e neutralizar simultaneamente a ultradireita (com a aliança militar e o bloqueio aos trolls) e a esquerda (com a pauta anticorrupção), fazendo valer aquilo que no fundo é o que mais importa: o programa econômico. Claro, enquanto Alckmin não decola tudo é extremamente preocupante para esse segmento. Por isso mesmo a greve pode ter sido uma oportunidade: eliminar logo Bolsonaro e o militarismo crescente da disputa para finalmente focar em quem pode ganhar as eleições como resto depois da guerra: Ciro Gomes.
Veremos se a estratégia do establishment vai funcionar, porque se der tudo errado o risco é ainda pior: o exército negar-se a obedecer à hierarquia e… bem, prefiro nem falar disso para não dar a ideia.

2

O outro ponto é o quanto o momento é delicado para a esquerda. Diante de uma ampla mobilização com apoio popular, a resposta foi cética e desconfiada. Não apenas pela razão clássica, arquirrepetida durante 2013, de recusar aquilo que não pode controlar. Mas pela consciência de que ela própria não pode se apresentar diante de um movimento de alto intensidade popular porque não tem mais organização para isso.
As revoluções são períodos de desconstrução em que as formas configuradas perdem seus contornos e as chances aparecem. Quem tem o kairós se aproveita do momento e guia o processo para uma direção ou outra. Geralmente as organizações que controlam o processo posterior não eram do tamanho das massas que expressam a insatisfação rebelde nas ruas. Mas elas conseguem produzir um enganche nele e com isso dar-lhe forma, produzindo uma sequência institucional capaz de prolongar no tempo a explosão.
Hoje, nós não temos nenhuma organização nesse sentido.
Não creio que seja possível imaginar que um partido possa ocupar novamente esse lugar — isso já ficou bem patente em 2013. Mas também ficou patente que, quando uma fagulha chamada MPL deflagrou um processo incontrolável (literalmente, a repressão policial que o diga) de indignação popular capaz de contagiar inclusive indivíduos em geral indiferentes à política, havia uma confluência de múltiplos movimentos, coletivos e organizações capazes de produzir uma estética e uma mobilização política à altura do momento. Isso tudo foi gestado pelas forças indígenas nas mobilizações ao longo do governo Dilma (como os Guarani Kaiowas), pela luta contra a urbanização gentrificadora e a arquitetura controlada pelas grandes construtoras, pela Marcha das Vadias, os movimentos LGBT e os movimentos contra a Lei de Anistia e em prol de uma Comissão da Verdade forte e efetiva. Esse ecossistema encontrou no MPL e na repressão policial uma ocasião para sair às ruas e com isso tornar aquela fagulha um verdadeiro incêndio que tomou o país.
Hoje sabemos que a fragmentação da esquerda é tão grande que não temos mais nem isso. E nem o que pode ser também uma autocrítica de 2013: a dificuldade de ligar o espontaneísmo e a estética subversiva avassaladora que conquistou os corações dos brasileiros com uma organização de longo prazo capaz de produzir transformações efetivas para além das explosões momentâneas, do "intenso agora". Sem dúvida, o "intenso agora" é necessário para destituir o poder, como aliás estamos testemunhando desde então com o derretimento generalizado das instituições e a completa deslegitimação do status quo. Mas a "fase 2" — como aliás a série Mr. Robot explora muito inteligentemente — é um tema que ainda falta começar a debater (começamos por aqui, mas ainda é pouca coisa) (2).
Com isso, prevalece entre nós o medo típico dos conservadores e a ideia de que a ameaça de uma subversão geral caminha para o lado do fascismo. Mas, se isso realmente é verdade  —  e é  —  as razões de produção estão muito menos ligadas à alguma ordem natural das coisas que da nossa desorganização generalizada, nossa incapacidade de produzir discursos capazes de contagiar, nossa incapacidade de nos conectarmos a uma rebeldia comum, a algo que possa produzir uma aliança improvável, heterogênea, que vá além do impulso identitário (de esquerda) que nos trancafia em um condomínio fechado onde só quem conhece as palavras-senha pode transitar.
Sem desenvolver essa nova gramática e essa nova composição de corpos e desejos, todo debate em torno de "quem é mais radical" mostra exatamente sua faceta inócua e moralista.
Notas:
(1) Ver, por exemplo, o trabalho de Paulo Arantes, O Novo Tempo do Mundo, em que o "urbanismo militar" é uma das chaves de leitura.
(2) Movimentos como o #Muitas e a Bancada Ativista, agora engajados em uma ocupação geral da política institucional (#ocupapolítica), vão nessa direção. Tenho tentando trazer esse debate permanentemente no podcast política em transe: 

Caminhoneiros: o maior impacto na História do Brasil

Caminhoneiros: o maior impacto na História do Brasil
por Aldo Fornazieri
"O medo tem alguma utilidade, mas a covardia não"(Gandhi)
Nenhum acontecimento da história do Brasil teve um impacto tão avassalador sobre o conjunto da sociedade e do Estado, em todas as suas dimensões, tal como este produzido pelo movimento paredista dos caminhoneiros. Nem a Independência, nem a proclamação da República, nem a Revolução de 1930, nem a Segunda Guerra, nem o golpe militar de 1964, nem o Plano Collor, nada produziu um efeito tão universal sobre todos os aspectos da vida nacional. Com exceção de poucos lugares remotos do país, todos os demais lugares setores foram afetados. Nem mesmo uma guerra teria um efeito tão avassalador. Foi como se o Brasil fosse atacado em todo o território nacional, em todas as suas cidades, em todos os ramos de atividade, em todas as linhas de  abastecimento. A singularidade que o movimento dos caminhoneiros produziu talvez não tenha similaridade em nenhum outro país.
O movimento dos caminhoneiros revelou o grau de abandono do povo brasileiro e desnudou a mediocridade da política nacional - da direita, do centro e da esquerda; do governo e da oposição. Pôs à luz do sol a falência das instituições do Estado, dos partidos e das lideranças políticas. Espatifou a autoridade do Executivo, do Legislativo e do Judiciário reduzindo-os à impotência. Emudeceu os falsos moedeiros do mercado e ensinou aos movimentos populares como se para o país. Comprovou os equívocos das nossas opções estratégicas de desenvolvimento. Ninguém tinha nada a fazer e ninguém tinha nada a dizer. O povo, mesmo sacrificado pelo desabastecimento, na sua sabedoria espontânea, fez o que era certo: apoiou o movimento porque suas demandas são justas e o que é justo precisa ser apoiado.
Temer, o chefe da quadrilha governamental, depois de ter mergulhado o país no caos e nos desgoverno, depois de ter humilhado o povo brasileiro, depois de ter destruído os parcos sentimentos de sociabilidade, depois de ter extinguido direitos e de ter conspirado contra os interesses nacionais, fez o  que de mais ridículo se pode fazer: fez um acordo com as entidades representativas das empresas de transporte para depois acusá-las de locaute. Trata-se da estupidez elevada à máxima potência.
O movimento dos caminhoneiros revelou também a desorientação das oposições, das esquerdas, a sua falta de compreensão da conjuntura, sua incapacidade de se conectar com os sentimentos do povo,  a escassez de líderes virtuosos e competentes e a falência das direções partidárias. No seu temor crônico, a primeira coisa que as esquerdas viram no movimento, particularmente setores petistas, foi uma conspiração para um golpe militar e para cancelar as eleições. Em consequência deste pavor, demoraram em dar apoio aos caminhoneiros e, quando o deram, foi com toda a cautela do mundo e de forma protocolar e formal, através de notas. Em tudo isto ocorreram exceções, claro, a exemplo de movimentos sociais e da Frente Povo sem Medo.
O presidente da CUT emitiu a seguinte recomendação: "O governo deve sentar à mesa e negociar com seriedade, respeitando todos os representantes dos movimentos". A nota da entidade recomendou também que o governo mude a política de preços dos combustíveis. Belos conselhos a um governo golpista, nessa plácida aceitação, como se fosse possível sair daí alguma seriedade. As oposições só tinham uma coisa digna a fazer: apoiar os caminhoneiros, exigir a renúncia de Temer e de Pedro Parente colocando-se em sintonia com o sentimento de indignação da sociedade e chamar manifestações em favor dessas consignas. A nota do PT também sequer pediu a renúncia de Temer e de Parente.
Era preciso entender que o movimento dos caminhoneiros suscitou uma enorme disputa política junto à opinião publica que voltou suas atenções de forma concentrada para os acontecimentos e desdobramentos da paralisação. O temor das esquerdas impediu que a disputa fosse feita de forma consequente e correta. Grosso modo, os caminhoneiros ficaram a mercê da direita.
Dividir para conquistar e unir para governar
Os grandes estrategistas da história, quando estavam em dificuldade ou dispunham de força insuficiente para combates decisivos, sempre agiram com a seguinte premissa da astúcia: dividir os inimigos e agregar o máximo de forças possível sob o seu comando. Os partidos de esquerda, alguns por pruridos infundados, outros por perda da noção da disputa política, preferem jogar as forças confusas ou intermediárias para o lado da direita. Grandes estrategistas como Felipe da Macedônia, Júlio César e Mao Tse Tung, entre outros, adotaram com eficiência esta estratégia. Quando, em 1937, os japoneses invadiram a China, Mao não vacilou em adotar a estratégia da frente única anti-imperialista. Foi com essa estratégia que reorganizou e fortaleceu o Exército Vermelho, tornando-o apto a triunfar.
Em A Arte da Guerra, Maquiavel faz uma síntese clara das estratégias vencedoras para conquistar o poder: dividir para conquistar. E em O Príncipe, mostrou qual a melhor estratégia no governo: unir o povo para governar. A rigor, o PT inverteu essas estratégias. No governo, adotou a estratégia da tirania: "divide et impera". E na oposição busca o isolamento, jogando forças disputáveis para o lado do inimigo.
Era preciso perceber que nem todos os caminhoneiros são pró-Bolsonaro e favoráveis à intervenção militar. Mais do que isso: ao apoiar a paralisação e exigir a renúncia de Temer era a forma mais consequente de disputar setores da sociedade, humilhados, indignados e revoltados. O PT não consegue entender que parte do eleitorado de Lula pode votar em Bolsonaro e parte também quer a intervenção militar como solução da crise. Os dirigentes do PT não conseguem compreender os sentimentos difusos e confusos da espontaneidade popular.
Aliás, os dois líderes que compreenderam bem os sentimentos populares, terminaram mal: Getúlio Vargas foi levado ao suicídio e Lula foi posto na prisão. Esta é a tragédia do povo brasileiro. Um povo abandonado por todos. As elites só agem para assaltar o povo e, os progressistas, com a ressalva das exceções, só pensam em eleições e nas benesses dos cargos. O povo é massa de manobra, número de votos. Na paralisação dos caminhoneiros, em face da ausência de líderes e de partidos que indicassem caminhos, cada indivíduo ficou por sua própria conta, mergulhado nos transtornos do desabastecimento e na sua indignação solitária.
A incapacidade das esquerdas de lidar com os sentimentos confusos da espontaneidade popular faz com que setores desse segmento, diante do desespero social, do desemprego, da falta de direitos, busquem saídas na extrema-direita. Este fenômeno, que vinha acontecendo nos Estados Unidos e na Europa, parece estar chegando na América Latina. Como as esquerdas não são capazes de estimular o calor da solidariedade combativa, a direita desencadeia a fúria da solidão ressentida.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

Você realmente se preocupa com os caminhoneiros?

Você realmente se preocupa com os caminhoneiros?

"A mobilização dos caminhoneiros, formalmente, tem tudo para ser considerada uma greve e a adesão social que se tem dado ao movimento representa, no mínimo, a oportunidade para que se supere, de uma vez, a aversão generalizada que as greves de trabalhadores enfrentam no Brasil."

Por Jorge Luiz Souto Maior.

Perguntaram-me se a mobilização dos caminhoneiros seria greve ou locaute.
Do ponto de vista jurídico, não se trata de locaute, pois este, nos termos da lei é “a paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados”, sendo proibido (art. 17 da Lei n. 7.783/89).
No caso concreto, ainda que se tenha elementos para afirmar que muitas empresas de transporte apoiaram e até impulsionaram a paralisação dos caminhoneiros, não se pode dizer que o fizeram para frustrar uma negociação com os respectivos empregados ou dificultar-lhes o atendimento de suas reivindicações. Muito pelo contrário, embora rara, haveria uma comunhão de interesses com relação ao objeto da paralisação, a redução dos custos de produção, razão pela qual, visto como ação de natureza política, parece-me legítimo o movimento, pois a política não está interditada para nenhum segmento social.
Seria, então, greve?
​A resposta não é tão simples.
Nos termos do art. 9º da CF, a greve é um direito dos trabalhadores aos quais compete “decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.
A Constituição Federal apenas remete à lei a possibilidade de definir “os serviços ou atividades essenciais”, cumprindo-lhe, também, dispor “sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, de modo a, sem impedir o direito de greve, buscar os meios necessários para que a greve não implique danos irreparáveis (parágrafo único do art. 9º).
Além disso, a Constituição prevê que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”.
Então, ainda que se possa falar em uma coincidência de interesses com o das transportadoras, pelas normas constitucionais, a mobilização deflagrada pelos caminhoneiros, de conteúdo político, pode ser considerada uma greve.
Do ponto de vista jurídico formal, no entanto, a já citada Lei n. 7.783/89, votada logo depois da promulgação da Constituição, teve a nítida intenção de reduzir o alcance da norma constitucional.
Assim, segundo a lei, a greve só poderia ser deflagrada por entidade sindical, após deliberação em assembleia, atendendo, também, o requisito de uma comunicação prévia ao empregador, o que remete, ainda, à ideia de que só pode haver greve de reivindicação de direitos perante o empregador (art. 1º a 4º).
Nos moldes da compreensão positivista, e atendendo-se à visualização quase sempre restritiva como as mobilizações de trabalhadores sempre foram juridicamente tratadas no Brasil, se levada a questão em juízo, o resultado seria a declaração da ilegalidade da greve dos caminhoneiros.
Ocorre que esses limitadores da Lei n. 7.783/89 são, nitidamente, inconstitucionais, pois o pacto firmado na Constituição de 1988 foi no inegável sentido de integrar os trabalhadores à vivência política do país, garantindo-lhes a greve como um Direito Fundamental, inclusive. Aliás, não se chegaria ao pacto constituinte sem a ocorrência das greves do ABC, que se alastraram Brasil afora, sinalizando a abertura de um processo de ascensão popular que congregou não só trabalhadoras e trabalhadores de outros setores profissionais, como o movimento antimanicomial e as lutas pela saúde pública, pelo direito das mulheres, das negras e dos negros, das populações indígenas, de LGBTs, e que por isso mesmo, da mesma forma como pode ocorrer com a greve dos caminhoneiros, teve uma enorme adesão popular.
A mobilização dos caminhoneiros, portanto, formalmente, tem tudo para ser considerada uma greve e a adesão social que se tem dado ao movimento representa, no mínimo, a oportunidade para que se supere, de uma vez, a aversão generalizada que as greves de trabalhadores enfrentam no Brasil.
A greve, cumpre acrescentar, é um Direito Fundamental dos trabalhadores e para ser exercido não exige formalidade essencial, limitando-se, unicamente, pela inserção, no caso concreto, de outros Direitos Fundamentais, não bastando, pois, para o mero incômodo ou prejuízo econômico, pois a greve, na essência, causa transtornos, já que quebra a normalidade, e pode levar a danos econômicos.
A greve, além disso, faz parte da essência da democracia em uma sociedade capitalista, pois, sem ela, os trabalhadores não teriam vez e voz.
É, também, uma oportunidade para o desenvolvimento de um processo de conhecimento, vez que a engrenagem da vida transforma as pessoas em máquinas. Neste sentido, aliás, é bastante oportuno questionar se a “normalidade” que foi quebrada era, de fato, normal, ou seja, fruto de uma situação natural, inexorável, ou o resultado de uma construção histórica e que, por diversas determinantes, criou a aparência de “natural” para relações sociais carregadas de opressões históricas e extremamente assimétricas.
O dano econômico gerado pela greve seria, efetivamente, um prejuízo, ou a mera obstrução temporária da extração de mais-valor do trabalho exercido pelos trabalhadores?
Neste aspecto, a greve permite perceber que é o trabalho que produz e faz circular a riqueza produzida.
Ocorre que na concebida vida “normal”, as pessoas vivem em função das mercadorias que adquirem (produzidas para atenderem aos interesses do estômago ou do imaginário) e do trabalho que precisam realizar para ganhar o dinheiro que lhes permite ter acesso às mercadorias. Mas, no geral, no estágio da “normalidade” não paramos para pensar que, como já se disse, “as mercadorias não chegam sozinhas ao mercado”. Elas são produzidas por alguém em algum lugar e precisam ser transportadas até o local de consumo.
Assim, por trás de uma bela marca há trabalho, muito trabalho, prestado em condições bem distintas daquelas que foram fetichizadas nas vitrines iluminadas de shoppings perfumados.
Pensadas as relações sociais pela sua essência, o que se tem por normalidade é apenas um mascaramento da realidade. O real, então, é desvelado pela greve.
Vejamos o caso dos caminhoneiros.
Na dinâmica da vida “normal” não se consegue perceber que os caminhoneiros estão nas estradas dirigindo durante 14 horas ou mais, sendo que não é rara a situação de que fiquem dias seguidos à disposição do trabalho, longe de casa, dormindo na boleia do caminhão, nos carregamentos e descarregamentos, entre uma viagem e outra, em pátios ao redor de grandes fábricas ou entrepostos. Pior, inclusive, é a vida dos denominados motoristas “autônomos”, ou “Transportador Autônomo de Cargas” – TAC (Lei n. 11.442/07), também identificados como “agregados”1 ou “independentes”2, vez que trabalham em condições típicas de empregados e lhes são negados os direitos trabalhistas, com agressão a diversos preceitos constitucionais. Esses “autônomos”, aos quais se transferem os custos da produção, recebendo por quilômetro rodado, muitas vezes acabam se vendo obrigados a consumir substâncias prejudiciais a própria saúde para conseguirem trabalhar dias e noites quase sem parar.
Inúmeras são as situações em que os “agregados” são induzidos a adquirem os caminhões, com financiamento impulsionado pelas próprias empresas, e depois precisam trabalhar de forma incessante para, com o dinheiro do “frete”, conseguirem pagar o financiamento, o combustível, a manutenção do veículo, os pedágios, os impostos, sobrando-lhes um “ganho” que é pouco superior a um baixo salário, isto quando não experimentam prejuízos, sobretudo quando, para o exercício da atividade, precisam contratar ajudantes, cuja condição de trabalho é ainda pior. Esses ajudantes, aos quais a Lei n. 11.442/07, de forma grotescamente inconstitucional, também nega a relação de emprego e, consequentemente, os direitos trabalhistas, aparecem como empregados dos motoristas “autônomos” e, assim, os “autônomos” muitas vezes ainda precisam assumir os custos de reclamações trabalhistas, na condição falseada de empregadores.
Aliás, a todos que se dizem comovidos com a situação dos caminhoneiros, cumpre informar que as diversas reclamações trabalhistas, movidas por motoristas e ajudantes em todo o Brasil, pelas quais pleiteiam o reconhecimento da relação de emprego e a efetivação dos direitos trabalhistas, questionando os termos da Lei n. 11.442/07, estão com sua tramitação suspensa desde 28 de dezembro de 2017, por determinação do Ministro Luís Roberto Barroso, em decisão proferida na Ação Direta de Constitucionalidade n. 48, movida pela Confederação Nacional do Transporte – CNT.
O fato é que, seja na condição formalizada de empregados, seja na situação juridicamente desvirtuada de “autônomos”, tem sido trágica a condição de trabalho e de vida dos caminhoneiros no Brasil e essa é uma questão central na produção e na distribuição da riqueza nacional, tanto que até mesmo a recente “reforma” trabalhista pode ser apontada, em parte, como uma reação do poder econômico, encabeçado pela CNT (Confederação Nacional do Transportes), à alteração, na última década, do posicionamento da Justiça do Trabalho frente às condições de trabalho dos motoristas, tanto no que tange à superação do disfarce da autonomia, quanto no que diz respeito à limitação da jornada de trabalho.
Essa postura da Justiça do Trabalho, inclusive, refletiu-se na edição da Lei n. 12.619, de 30 de abril de 2012, que avançou na proteção jurídica desses trabalhadores, notadamente no aspecto da limitação da jornada de trabalho, por se tratar, inclusive, de uma questão de saúde pública, dado o enorme índice de acidentes nas estradas envolvendo motoristas de caminhão. No entanto, a reação do setor econômico logo veio e, em 02 de março de 2015, foi publicada a Lei n. 13.103, que revogou vários dispositivos da Lei n. 12.619/12, retomando a lógica de uma exploração quase sem limites do trabalho desses profissionais.
A quantidade de horas de trabalho, a baixa remuneração, a ausência de proteção social, o elevado número de acidentes de trabalho, a assunção pelos trabalhadores do custo da produção que seria próprio do capital e não deles próprios constituem a essência das dificuldades cotidianamente enfrentadas pelos caminhoneiros e nada disso está em pauta, seja na própria reivindicação dos caminhoneiros, conforme o que tem sido difundido na grande mídia, seja daqueles que tentam se aproveitar do movimento para construir uma narrativa que favoreça a interesses não revelados.
Um movimento de trabalhadores que não tenha bem nítido o seu interesse de classe, quando tenha grande força mobilizadora, pode ser apropriado como um movimento de massa para abarcar uma insatisfação generalizada, despolitizada, contra o aumento de preços, a majoração de impostos, uma rejeição ao governo e aos políticos. No lastro dessa disputa de narrativa é que, em um país historicamente refratário às lutas dos trabalhadores, contrário à ascensão da classe trabalhadora, à declaração e à efetivação dos direitos dos trabalhadores, resistente às políticas de redução da pobreza, a greve dos caminhoneiros está recebendo um enorme apoio da classe média e até mesmo de parte da classe dominante, que veem no movimento a chance para emplacarem seus projetos específicos, apresentados como interesse da nação, aproveitando-se da perda completa de legitimidade do governo.
É por isso que se tem tentado apropriar do movimento dos caminhoneiros para torná-lo legitimador de pautas genéricas que, concretamente, não explicam nada e nada propõem, a não ser a quebra total da institucionalidade para a instauração do caos e, com isso, se chegar a negativação plena do Estado Democrático de Direito.
Como revelador das contradições, é possível ver inúmeras pessoas e movimentos se manifestando em favor da greve dos caminhoneiros, mas que, concretamente, são arredios aos direitos dos trabalhadores.
A questão é que quando trabalhadores se mobilizam para formular pretensões restritas à redução dos custos de produção, sem interferir nas condições de trabalho, atendendo, por conseguinte, a interesses que seriam próprios dos empregadores e, com isso, abrindo espaço à formação de um movimento de massa que destrói a política e que põe em risco as instituições democráticas, não se teria, propriamente, uma greve. Não seria mais que um movimento de massa, que ganha apoio generalizado, em novo movimento de massificação da racionalidade, para servir a interesses que pouco, ou quase nada, dizem respeito àqueles dos protagonistas iniciais do movimento.
De todo modo, não me arriscaria a dizer que a mobilização em questão seja somente isso que se tem projetado sobre ela, que, mesmo com reivindicação restrita, ligada ao custo da produção, não tenha importância concreta para os caminhoneiros ou que seja completamente deslocada de uma autêntica greve de trabalhadores, até porque os movimentos sociais são, como o próprio nome diz, uma história em movimento e, portanto, pode até ganhar um direcionamento muito além daquele que fora o inicialmente projetado ou simplesmente imaginado.
Daí porque se equivocam todos aqueles que pretendem explicar o que é e para qual objetivo se destina a greve dos caminhoneiros. As certezas a respeito são, de fato, apostas e são muito mais uma projeção da vontade do analista do que, propriamente, a essência do movimento.
Trata-se, isto sim, de um movimento muito importante e que, por isso mesmo, está em disputa. Diante da grandiosidade atingida, inclusive, abriu as portas do futuro, que não está escrito.
A grandiosidade dessa mobilização, que parte de uma insatisfação tão grande que, inclusive, conseguiu se alastrar pelo mero uso do WhatsApp, pode fazer com que os caminhoneiros, vivenciando um processo de autoconhecimento, se percebam como trabalhadores e tenham a compreensão de que sua vida efetivamente sofrerá mudança significativa, e ainda assim bastante restrita, com a efetivação de direitos como a limitação das horas de trabalho, férias, descanso semanal remunerado, 13º salário, estabilidade no emprego e demais direitos trabalhistas, aumento real de remuneração, inserção na rede de proteção social, assunção pelas empresas dos riscos da atividade, sobretudo no que tange aos acidentes de trabalho, e não com a mera redução de impostos e diminuição do preço de pedágio, que são, concretamente, custos da produção que lhes foram transferidos indevidamente.
O processo de formação da consciência cabe a todos que se propõem a formular seus registros narrativos e cabe, claro, de modo prioritário, no caso concreto, aos próprios caminhoneiros, ao menos no sentido de reconhecerem quais são os interlocutores que estejam efetivamente dispostos a levar adiante as causas que digam respeito aos seus reais interesses.
A quem se propuser a formular impressões valorativas sobre a situação, uma pergunta está pressuposta: você realmente se preocupa com os caminhoneiros?
NOTAS
1 Art. 4º – “§ 1o  Denomina-se TAC-agregado aquele que coloca veículo de sua propriedade ou de sua posse, a ser dirigido por ele próprio ou por preposto seu, a serviço do contratante, com exclusividade, mediante remuneração certa.”
2. Art. 4º – “§ 2o  Denomina-se TAC-independente aquele que presta os serviços de transporte de carga de que trata esta Lei em caráter eventual e sem exclusividade, mediante frete ajustado a cada viagem.”
***
Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

Sunday, May 27, 2018

Edmilson Moutinho: “Só a Petrobras pode financiar uma solução para a crise no curto prazo”

Edmilson Moutinho: “Só a Petrobras pode financiar uma solução para a crise no curto prazo”

Para professor do Instituto de Energia da USP, só o corpo técnico e a inteligência da empresa podem se apresentar como instrumento organizado no meio do caos absoluto que tomou o país

O professor Edmilson Moutinho Santos em evento sobre desenvolvimento tecnológico em óleo e gás offshore em 2016.
O professor Edmilson Moutinho Santos em evento sobre desenvolvimento tecnológico em óleo e gás offshore em 2016. USP
falta de combustível em postos da capital paulista levou o professor Edmilson Moutinho dos Santos, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), de volta aos anos 1970. "Durante as crises petroleiras de 1973 e 1979, os brasileiros, assim como cidadãos de todo o mundo mais desenvolvido, correram em filas aos postos de abastecimento para encher os tanques de seus carros", lembra Moutinho. Era a época dos choques de oferta promovidos pelos países do Oriente Médio. Boicotes impostos aos Estados Unidos e a algumas nações da Europa Ocidental obrigaram o sistema petroleiro internacional a reorganizar os fluxos globais do produto. Receios de desabastecimento rapidamente espalharam-se em todas nações, incluindo o Brasil.
"Ao longo da década perdida de 1980, a economia brasileira mergulhou em frequentes ciclos de crise e de inflação explosiva", conta o professor. As famílias se acostumaram aos “sustos sistêmicos”. "Com constância enervante, o Governo e a Petrobras anunciavam aumentos expressivos dos preços da gasolina nos jornais televisivos das 22h. Imediatamente, pais, em pijamas e outras vestimentas noturnas, reagiam às notícias, tirando seus carros da garagem e se metendo em filas, que adentravam as madrugadas, para um último abastecimento antes da majoração dos preços", diz Moutinho, destacando que "foram incertezas como essas e a perda generalizada de confiança na nação e em seus governantes que conduziram o país ao definitivo apoio ao presidente Fernando Henrique Cardoso e ao Plano Real".
Na entrevista abaixo, o especialista defende um papel de protagonismo da Petrobras neste momento de crise, mas diz que no médio e longo prazo a solução passa por reestruturações de mercado, diversificação de agentes econômicos e criação de concorrência no setor de petróleo.
Resposta. De forma mais ampla, não há uma solução imediata e de efeito definitivo no curto prazo. Nenhuma das partes encontra-se em situação favorável e com algum grau de manobra para acomodar os efeitos de um choque de petróleo, importado do mercado global. O país apenas se recupera de três anos seguidos de recessão econômica, cujas principais heranças foram enormes capacidades ociosas no sistema produtivo nacional, milhões de desempregados, déficits e dívidas públicas e privadas gigantescas. Enfim, um país completamente despreparado para lidar com uma crise de desabastecimento de combustível nas cidades e nas estradas.
"A história, mais uma vez, se repete: o Brasil necessita urgentemente de mais Petrobras”
P. Dentro desses limites, o que é possível fazer?
R. Infelizmente, na minha leitura, apenas “mais Petrobras”. O atual choque [do petróleo] encontra uma nação ainda fortemente dependente de consumo de diesel, gasolina e outros derivados de petróleo. Em compensação, esta mesma nação tornou-se uma grande produtora e exportadora de petróleo bruto. O aumento dos preços do petróleo aumenta a competitividade e lucratividade das áreas produtivas de óleo bruto, incluindo o gigantesco pré-sal. Para a Petrobras, a reversão dos preços do petróleo e o início de um novo ciclo de alta garantem cenários realistas de recuperação econômica e financeira de curto, médio e longo prazo. A estatal brasileira se vê favorecida por uma situação que lhe permite compensar, parcialmente, perdas exuberantes de anos recentes.
P. Mas a situação da Petrobras ainda não é tão confortável assim. 
R. A Petrobras não apresenta um quadro financeiro de céu de brigadeiro. Antes que possa monetizar suas enormes — mas arriscadas — reservas do pré-sal, requererá investimentos vultosos, que apenas serão garantidos se a empresa reconquistar a credibilidade de longo prazo de investidores nacionais e internacionais. Suas receitas são dependentes das exportações de óleo bruto no mercado internacional e das vendas de derivados no mercado doméstico. A empresa não pode conviver com o retorno de políticas internas de controle de preços, que subsidiem os consumidores nacionais e deprimam a capacidade de gerar caixa da estatal. No momento, não há como contar com a máquina Petrobras em sua melhor forma. A empresa ainda cambaleia. Contudo, em uma nação ainda mais vulnerável, descapitalizada e desorganizada em todos os sentidos. A história, mais uma vez, se repete: o Brasil necessita urgentemente de “mais Petrobras”.
P. O que se pode esperar da Petrobras para solucionar a crise, então? 
"O problema é que a segunda presidência de Dilma Rousseff foi desastrosa em todos os sentidos, inclusive em destruir essa política de preços"
R. Dada a dimensão ganha pela crise e a completa falta de articulação política dos demais agentes estatais — e das limitações ainda maiores de todos os demais stakeholders —, soluções parciais de curto prazo apenas podem ser obtidas através da Petrobras. Apenas a estatal pode financiar os recursos imediatos necessários para amenizar a crise de curto prazo, recompondo-se com receitas futuras no médio e longo prazo. Somente o corpo técnico e a inteligência da Petrobras podem apresentar-se como um instrumento organizado da máquina estatal, no meio de um caos absoluto, que parece marcar essa mesma máquina em final antecipado de Governo e às vésperas das eleições mais confusas e incertas que a nação jamais viveu.
P. Um sistema de amortecimento para os preços dos combustíveis no Brasil é razoável?
R. Não podemos perder a referência histórica. A Lei do Petróleo de 1997 estabeleceu um regime de ajuste de preços domésticos em sintonia com a paridade internacional. Contudo, o entendimento dessa regra tem sofrido diferentes interpretações. Por muitos anos, ao longo dos governos de FHC e Lula, e mesmo durante o primeiro mandato da presidente Dilma, adotou-se no Brasil um sistema de amortecimento para os preços dos derivados nos mercados domésticos. Ainda que possamos apontar distorções aqui e acolá, em segmentos de mercado específicos, acho que podemos concordar que esse sistema funcionou razoavelmente bem, principalmente para gasolina e diesel automotivos. Difícil acusar esses governos de adotarem políticas que feriam os ditames da Lei do Petróleo. O sistema de amortecimentos seguia a paridade internacional no médio e longo prazo. Os preços domésticos respondiam às grandes tendências do mercado internacional assim que elas ficavam cristalinas e aceitas por todos. Desta forma, aliviavam-se consumidores e produtores dos desconfortos gerados pelas grandes oscilações para cima ou para baixo. Verdade que o amortecimento poderia ser implementado pelo Estado, através de tributos, ao invés de se utilizar a política de preços para o mesmo fim. De certa forma, a CIDE [Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico} nasce com finalidade similar.
P. Se a política funcionava bem, por que foi alterada?
R. Rápido percebemos que o Estado brasileiro é incompetente para adotar e prosseguir com tais políticas ao longo de anos. Amortecimentos exigem colchões, que, por sua vez, exigem um mínimo de disciplina fiscal. Nada disso está presente no Estado brasileiro. Coube à Petrobras carregar os ônus e bônus dessa política. Os ônus sempre se revelaram nos momentos de baixa, quando consumidores domésticos furiosos reclamavam da ausência de repasses das baixas para o mercado doméstico. Os bônus sempre foram mais opacos, pois é apenas observando o variar dos ciclos ao longo de várias décadas que se percebe que a Petrobras foi devidamente remunerada por carregar essa política em nome do país. O problema é que a segunda presidência de Dilma Rousseff foi desastrosa em todos os sentidos, inclusive em destruir essa política de preços. O Governo Dilma foi radical em seu populismo energético, segurando preços de combustíveis e tarifas elétricas, para buscar um maior controle das curvas ascendentes de inflação — um malogro previsível — e, também, para beneficiar grandes consumidores, principalmente industriais, no afã de se resgatar a competitividade da indústria nacional através de energia barata — um erro de concepção e estratégico incrível.
"Pela primeira vez, surgiram interesses convergentes do Governo brasileiro e da Petrobras no sentido de se abrir os mercados domésticos de petróleo e gás a novos agentes, domésticos e internacionais"
P. A Petrobras adotou uma política muito radical de preços?
R. A atual política de repasses quase automáticos das volatilidades de preço para os mercados petroleiros nacionais parece ser muito radical em extremo oposto. Talvez sejam respostas radicais à incongruência promovida nos últimos anos pela presidente Dilma. Ademais, há de se justificar que a nova política foi estabelecida com os preços do petróleo estacionados em nível relativamente baixo e apresentando oscilações de menor envergadura. Nesse cenário, a nova política de preços da Petrobras não receberia qualquer crítica. Ainda que o novo rali de alta não aparecesse nas previsões dos analistas, o fato é que a quase duplicação do preço do bruto em menos de dois anos coloca, sim, a atual política de preços sob estresse e em um teste de grande envergadura. No curto prazo, o teste estará parcialmente perdido e a Petrobras precisará flexibilizar o atual movimento de alta, diluindo-o ao longo de um período maior. A interferência da empresa precisará ter maior ou menor musculatura dependendo da volatilidade que deveremos enfrentar na taxa de câmbio e nos preços internacionais do petróleo durante os próximos meses.
P. Há quem diga que a solução passa por mais abertura do mercado.
R. De fato, com a descoberta do pré-sal, uma nova realidade surgiu no Brasil. Pela primeira vez, surgiram interesses convergentes do Governo brasileiro e da Petrobras no sentido de se abrir os mercados domésticos de petróleo e gás a novos agentes, domésticos e internacionais. A estatal tem apresentado planos de negócio que indicam importantes reduções de suas participações em atividades downstream [de transporte e distribuição], para concentrar investimentos no upstream [toda a atividade que antecede o refino] do pré-sal. A abertura dos mercados domésticos terá efeitos benéficos para o país no médio e longo prazo. Novos investidores com foco nesses ativos poderão incrementar suas produtividades, conduzir programas de modernização e/ou ampliação. Através de uma eventual ampliação da concorrência doméstica, os consumidores tendem a se beneficiar de preços e qualidades de produtos mais vantajosos. No entanto, esses ganhos não são de curto prazo.
P. Esse processo está sendo bem conduzido?
"A cultura pró-Petrobras é fortíssima e levará anos até que novas gerações de petroleiros possam realmente estabelecer mercados competitivos no Brasil"
R. Não devemos menosprezar as dificuldades de privatização de ativos no setor de petróleo e gás. Mesmo quando ativos são transferidos para agentes privados, não se garante automaticamente o nascer de concorrência saudável. As pessoas são as mesmas, a cultura pró-Petrobras é fortíssima e levará anos até que novas gerações de petroleiros possam realmente estabelecer mercados competitivos no Brasil. De qualquer forma, neste momento crítico, onde o labirinto parece ser sem saída, há sim de se pensar em soluções de curto prazo, as quais, como já disse, passarão, quase necessariamente, por “mais Petrobras”, e objetivos de médio e longo prazo de reestruturações de mercado, diversificação de agentes econômicos, criação de concorrência, etc. Tudo isso representa “menos Petrobras”, fora do pré-sal. Há, portanto, conflitos de interesse a serem geridos nos atuais momentos de tomadas de decisão. Lembrar que o “mais Petrobras” salvador do curto prazo levantará novamente as mesmas forças nacionalistas que tendem a se opor ao “menos Petrobras” de médio e longo prazo.
P. Quais são suas previsões para o desenrolar da crise?
R. A sociedade precisará devolver valor econômico para a estatal. E o Governo necessitará fechar os olhos, mais uma vez, para uma política de preços da Petrobras que dissipará ao longo de meses ou anos eventuais tendências baixistas que voltarão a se apresentar. Ou seja, a política de amortecimento estará de volta. Mas ficam algumas questões em aberto. O atual ciclo de alta do [petróleo] bruto será suficientemente robusto para que a Petrobras resgate sua função de amortecedor dos preços domésticos, sem comprometer seus importantes investimentos upstream e suas ações igualmente essenciais de ajustes financeiros? Será que a Petrobras e o Governo brasileiro encontrarão, novamente, quando as volatilidades baixarem, ambiente para adotar com plenitude a atual política de preços? Em caso afirmativo, poderemos dizer que a sugerida solução de curto prazo de “mais Petrobras” será temporária e sem que se perca os objetivos maiores da nação no médio e longo prazo. Não deixa de ser uma expectativa. Porém, há de se reconhecer que os riscos de perda desses focos estarão sempre presentes.

Militares, ciências, Educação Popular.

A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lóg...