Thursday, August 23, 2018

SÓ A LUTA POPULAR SALVA O SUS

Foto: Bruno Poletti / Folhapress
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“O ORÇAMENTO DA saúde no Brasil é de R$  130 bilhões, o da educação é de R$ 110 bilhões. Então os cinco maiores bancos cobram, só de tarifa, mais que esses dois orçamentos, quase que o tamanho do déficit brasileiro. Se hoje em dia as pessoas soubessem como funcionam as coisas, os pobres e a classe média fariam uma revolução”.
A contundente afirmação que você acabou de ler não é de um candidato da esquerda à presidência da República, nem de um intelectual universitário ou de um militante do movimento da reforma sanitária brasileira. Seu autor é Eduardo Moreira, economista e ex-sócio do antigo Banco Pactual. Curiosamente, um ex-banqueiro é quem identifica a perda de combatividade da luta popular, que só tem resultado em derrotas.

O Sistema Único de Saúde, parido pela Constituição Federal de 1988, é a política social de maior envergadura da Nova República. De lá pra cá, são 30 anos de um equilíbrio instável entre conquistas e também imposições de limites à sua expansão. O subfinanciamento é a maior expressão dessa tensão. Segundo dados de 2017 divulgados pela Organização Mundial de Saúde, a OMS, os gastos públicos do Brasil com saúde estão entre os mais baixos do mundo, atrás da média de gastos dos países das Américas, da África e da Europa.
É comum entre os sanitaristas a reclamação de que até hoje nenhum governo levou o SUS a sério e tomou para si a tarefa de expandi-lo e consolidá-lo – ainda que em quase metade desse tempo a presidência da República tenha estado nas mãos do PT, originário da mesma luta popular contra a ditadura empresarial-militar da qual emergiu o movimento sanitário.
A produção de estudos sobre o subfinanciamento, a publicação de notas públicas por entidades representativas do setor, a formação de campanhas e frentes políticas defendendo mais recursos e as tentativas de construção de maiorias no Congresso Nacional para a superação desse gargalo não foram poucas.
A realidade parece nos mostrar que o papel do Estado é, em última análise, defender os interesses de manutenção e avanço do sistema do capital.
Será, então, mero acidente de percurso que durante três décadas a tão buscada correlação de forças favorável ao SUS não tenha dado o ar da graça? É a mera existência de cúpulas governamentais descompromissadas e articulações partidárias malsucedidas que explicam a perda de terreno do SUS? Acredito que não.
Um outro caminho de entendimento pode ser buscado no fato de que as reconhecidas lideranças individuais e coletivas do setor saúde, que formularam o projeto da reforma sanitária, se dedicaram à construção do SUS pela via gerencial do sistema por apostarem na harmonização de interesses entre capital e trabalho, acreditando que o Estado poderia ser o fiel da balança dessa convivência pactuada.A realidade parece nos mostrar, sobretudo depois do golpe parlamentar de 2016 que, embora necessária a luta por direitos e democracia, o papel do Estado é, em última análise, defender os interesses do sistema do capital, a despeito de governos e da qualidade de vida dos trabalhadores.
E o que está em disputa hoje é o Fundo Público. Constituído principalmente a partir da arrecadação de impostos e contribuições, representa toda a capacidade de mobilização de recursos que permitem a intervenção do Estado na economia. É, portanto, a principal fonte de financiamento das políticas sociais.
Atualmente, a gestão da dívida pública interna é, disparado, o principal mecanismo de transferência de recursos desse fundo para o capital privado, especialmente os bancos. Segundo dados apurados pela ONG Auditoria Cidadã da Dívida, do orçamento federal executado em 2017, na casa dos R$ 2,483 trilhões, quase R$ 1 trilhão (39,7% do montante) foi destinado ao pagamento de juros e amortizações da dívida.
Em 2017, o bolsa empresário consumiu mais R$ 280 bilhões, mais duas vezes o orçamento federal da saúde previsto para 2018.
O fenômeno não é novo, embora venha se intensificando na medida em que se agravam as condições de saúde do capital. Marx, em 1867, já alertava: “A dívida pública converte-se numa das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o assim em capital”.
A sangria de recursos não para por aí. As desonerações e subsídios concedidos pelo governo federal a grandes empresas, embutidos em operações de crédito e financeiras, alcançaram a cifra de quase R$ 1 trilhão, entre 2003 e 2016, segundo dados do próprio Ministério da Fazenda.
Em 2017, o bolsa empresário, como é conhecido o programa de incentivo governamental, já consumiu mais R$ 280 bilhões – o equivalente a mais de duas vezes o orçamento federal da saúde previsto para 2018. O golpe de misericórdia no SUS e nas políticas sociais, no entanto, foi a Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada em 2016 já sob Temer, que congelou as despesas da União por 20 anos.
Segundo a nova regra, na prática os recursos que anualmente se destinam para a saúde (e educação) deixam de estar atrelados a eventuais aumentos futuros da arrecadação. Isto significa que a participação das despesas dessa natureza diminuirão potencialmente em relação ao PIB, contrariando a lógica de proteção social justamente num momento de crise econômica e das expectativas de crescimento populacional (e consequente aumento de despesas) para as próximas duas décadas. Projeções do economista Francisco Funcia apontam para perdas superiores a R$ 400 bilhões no período de vigência da emenda. Não por acidente, mantêm-se intactos os recursos públicos destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública.
Como parece ficar claro, de pouco adianta clamar por mais recursos para o SUS se ignoramos o verdadeiro centro da disputa. O subfinanciamento do sistema nada mais tem sido do que expressão da nossa derrota na disputa pelo Fundo Público. O Estado, mesmo que disputável nas suas franjas, é estruturalmente operador dessa expropriação.
Se o SUS foi produto de luta social potente, nas ruas, sua defesa não poderá obedecer a outra exigência.
Os tempos estão mais duros, mas o céu nunca foi de brigadeiro. A luta por sobrevivência, melhoria das condições de vida, dos direitos democráticos e a busca da emancipação plena foi sempre uma exigência histórica que pesou sobre os trabalhadores. No Brasil e no mundo, o estudo da história não nos autoriza a apostar em conquistas civilizatórias que não tenham sido produzidas por lutas sociais de peso, para além das eleições e da ocupação de cargos públicos ou em entidades.
Se o SUS foi produto de luta social potente, nas ruas, sua defesa não poderá obedecer a outra exigência. Saídas consensuais, pactuadas, disputas eleitorais, documentos, manifestos, abaixo-assinados e lobbies no parlamento não serão suficientes para conter a reverter a escalada global do drama social e de produção da barbárie que vivemos. Nem na saúde nem fora dela.
Fonte: https://theintercept.com/2018/08/23/levante-pelo-sus/

SE ALGUÉM TE MANDAR UM ARQUIVO ‘.EXE’ DO BOLSONARO, NÃO ABRA

Ilustração: João Brizzi/The Intercept Brasil
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ENTRAMOS NO GRUPO público de WhatsApp Resenha Política em julho para uma experiência antropológica: acompanhar as 256 pessoas que lá passam o dia tratando de política e segurança pública e também compartilhando algumas fake news. O grupo é quente e as conversas rendem tipo 2,5 mil mensagens por dia (!). No entanto, os debates apaixonados acontecem mesmo quando os integrantes falam de seu principal assunto: Jair Bolsonaro. “É contra o aborto, é contra o kit gay nas escolas, é contra a ideologia de gênero. É por isso e muito mais que eu voto e faço campanha de graça para Jair Messias Bolsonaro”, disse um participante, elencando seus motivos.
Os aficcionados do Resenha Política foram os escolhidos para receber em primeira mão o anúncio do lançamento do Bolsocop, um programa de computador que não poderia ser mais descarado: ele transforma os usuários que instalam o arquivo .exe em robôs de spam, que compartilham automaticamente no Facebook publicações da campanha do deputado.
O Bolsocop nada mais é do que uma espécie de browser com as cores da bandeira nacional (lógico) que serve basicamente para abrir o Facebook. O usuário deve entrar com login e senha pessoal. Instalado e logado no rede, o aplicativo começa a postar automaticamente conteúdos dos perfis oficiais do Bolsonaro em todos os grupos ao qual o usuário tem acesso e também em sua timeline. A pessoa vira um replicador zumbi de conteúdos, dando impressão que, publicamente, os assuntos são mais relevantes do que de fato são.
O objetivo do Bolsocop – que parece uma alusão ao Robocop, o policial humanóide –, segundo seu anúncio oficial, é criar um “exército de robôs” para combater as fake news relacionadas ao candidato. E ainda torce: “Imagine quantos milhões de pessoas podemos alcançar por dia? Podemos eleger Bolsonaro no primeiro turno”. Acontece que o Bolsocop viola a Lei das Eleições, que proíbe o uso de perfis falsos e robôs nas redes sociais para fazer propaganda eleitoral.
A mensagem enviada ao Resenha Política não trazia informações sobre os responsáveis pelo programa, apenas um link para download. O arquivo tipo .exe é daqueles que podem, literalmente, fazer qualquer coisa com o computador da pessoa que o baixar – de espionar a câmera a roubar senhas de banco, por exemplo.

‘Sou um robô do Bolsonaro’

Fomos atrás dos responsáveis e descobrimos que o aplicativo foi desenvolvido por um site chamado JF Startup Studio, uma empresa de Ji-Paraná, em Rondônia, que promete desenvolver softwares que ajudam no desempenho de vendas ou anúncios, com produtos que enviam mensagens de WhatsApp ilimitado, aumentam seguidores e curtidas no Instagram. No site, o texto marqueteiro diz que a empresa é capaz de transformar “o seu computador em uma verdadeira máquina de vendas!”.
Ligamos para o número de telefone publicado no site. Quem nos atendeu foi Jonatas Freira da Silva, sócio da empresa. Ele diz que a iniciativa não tem vínculo formal com o candidato. “Nós desenvolvemos o programa voluntariamente para combater notícias falsas que muitos usuários do próprio Facebook espalham a respeito do Bolsonaro.”
Silva contou que irá votar (claro) em Bolsonaro e que cerca de 40 pessoas já estão usando o programa ativamente. Perguntamos se ele não acha que é um número pequeno de downloads. “Por enquanto só divulgamos o app em um grupo de amigos e fizemos alguns comentários em posts no perfil oficial do Bolsonaro convidando os apoiadores a baixar”, explicou.
Segundo Silva, uma versão mais elaborada do software seria lançada na terça-feira passada. Pouco antes da publicação da reportagem, questionamos em outro grupo de WhatsApp, o ‘BolsoCop – Somos robôs’, criado para tirar dúvidas sobre o aplicativo, sobre o lançamento da versão. Imediatamente fomos removidos do grupo pelo administrador, que disse aos demais: “Ele é jornalista de esquerda”.

Trapaças digitais

De acordo com o cientista político Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC e especialista em inclusão digital, o Bolsocop só está no ar porque a Justiça Eleitoral se preocupa apenas com a página online dos candidatos e dos partidos, deixando de lado os seguidores. É um flanco enorme: um outro app relacionado a Bolsonaro, que teve 10 mil downloads e também foi lançado por pessoas que se diziam “fãs” do candidato, estava espionando celulares.
“Todo mundo sabe que a campanha política na internet é minoritariamente feita pelo comitê oficial dos candidatos. Ela é realizada pelos apoiadores, muitas vezes pagos pelos candidatos, que agora estão utilizando robôs e replicadores automáticos”, explicou.
A replicação de conteúdo não é uma novidade. O MBL foi um dos que se beneficiou desse tipo de trapaça. Em março, o grupo criou um aplicativo que compartilhava seu conteúdo de forma automática na timeline dos usuários como se fossem eles próprios.
Facebook não permite ‘comportamento inautêntico coordenado’, mas aplicativos do tipo seguem funcionando.
Segundo Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab e autor de “Direito Eleitoral na Era Digital”, esse tipo de programa pode ser alvo de investigação na Justiça Eleitoral uma vez que serve para espalhar propaganda eleitoral.
O Facebook também faz sua própria cruzada para remover “comportamento inautêntico”, como define. Recentemente, a rede social informou que tirou do ar 72 grupos, 50 contas e cinco páginas no Brasil que violaram suas políticas de autenticidade e spam, por encorajar e permitir a obtenção de seguidores e curtidas, e até a troca de páginas, com o objetivo de ampliar o engajamento em busca de ganho financeiro. “Nós não permitimos um comportamento inautêntico coordenado”, disse o Facebook em uma nota. O Bolsocop, no entanto, segue operando.

Ilegais e coordenados

Bolsonaro conhece bem essa lógica da campanha. Com apenas nove segundos na televisão, o candidato aposta na internet – sobretudo no zapzap – para propagandear suas propostas. Como se apoia em uma ideia antimídia, vende a ilusão de que só o que seus canais oficiais propagandeiam é confiável para seu público. E seus eleitores compram a ideia, baixando aplicativos duvidosos – e ilegais – para fazer a campanha do candidato.
Dessa forma, os eleitores se expõem aos perigos de uma instalação, ressalta Erin Pinheiro, programadora do LabHacker. “Se o bot [robô] consegue controlar suas postagens em mídias sociais, com certeza, é o equivalente a um malware [softwares maliciosos que tentam infectar um computador ou dispositivo móvel]”.
A campanha de Bolsonaro informou, por telefone, que não têm envolvimento com os aplicativos.
Fonte: https://theintercept.com/2018/08/23/exe-bolsonaro/

A estranha sociedade dos empregos de merda

A estranha sociedade dos empregos de merda

E se o capitalismo, para se manter sem traumas, tiver multiplicado ocupações inúteis, normativas e autoritárias? E se esta tendência estiver associada ao rentismo, a faculdade de enriquecer sem trabalhar? E se for possível reverter tudo isso?
Por David Graeber, em entrevista a Chris Brooks | Tradução: Inês Castilho
Seu trabalho não faz sentido? Você sente que seu cargo poderia ser eliminado sem que fizesse a menor falta? Talvez, pensaria você, a sociedade pudesse ser um pouco melhor se seu trabalho nunca tivesse existido? Se sua resposta a essas perguntas é “sim”, console-se. Você não está só. Cerca de metade do trabalho a que a população trabalhadora se dedica diariamente poderia ser considerada “de merda” [bullshit jobs] – diz David Graeber, professor de antropologia na London School of Economics e autor de Bullshit Jobs: A Theory [algo como “Empregos de Merda: uma Teoria”].
Para Graeber, as mesmas políticas de livre mercado que nas últimas décadas tornaram a vida e o emprego mais difíceis para tantas pessoas das classes trabalhadoras produziram, simultaneamente, administradores, telemarqueteiros, burocratas de seguradoras, advogados e lobistas, que não fazem nada de útil o dia inteiro, com regalias. O jornalista Chris Brooks, especializado em questões de Trabalho, entrevistou David Graeber para entender como tantos empregos de merda passaram a existir e o que isso significa para as lutas laborais.
Em seu livro, você faz uma distinção entre “empregos de merda” [bullshit jobs] e as “merdas de emprego” [shit jobs]. Pode falar um pouco sobre a diferença entre os dois?
É bem simples: “merdas de emprego” são apenas trabalhos ruins. Ninguém gosta de tê-los. Pessoas que ficam com o corpo quebrado, são mal pagas, não são reconhecidas, são tratadas sem dignidade e respeito… Na maioria das vezes, “merdas de emprego” não são besteira, no sentido de irrelevantes ou despropositados — porque envolvem fazer algo que realmente precisa ser feito: levar as pessoas nos lugares, construir coisas, cuidar das pessoas, limpar sua sujeira…
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O “empregos de merda” são frequentemente bem pagos e incluem muitos benefícios. Você é tratado como se fosse importante e de fato estivesse fazendo alguma coisa que deve ser feita – mas na verdade, você sabe que não. Por isso, são conceitos opostos.
Quantos desses empregos de merda você acha que poderiam ser eliminados e que tipo de impacto isso poderia ter na sociedade?
Muitos deles – e essa a questão. Trabalhos de merda são aqueles em que a pessoa que os faz acredita secretamente que, se o emprego desaparecesse (ou, às vezes, o setor econômico inteiro), não faria nenhuma diferença. Quem sabe (no caso, por exemplo, de telemarqueteiros, lobistas ou muitas empresas de direito corporativo), o mundo seria um lugar melhor.
E isso não é tudo: pense em todas as pessoas que fazem trabalho real em apoio a empregos de merda, limpando os edifícios de escritórios, fazendo a segurança ou controle de pragas para eles, correndo atrás dos danos psicológicos e sociais provocados nos seres humanos por pessoas trabalhando duro em nada. Estou certo que poderíamos facilmente eliminar metade do trabalho que estamos fazendo e que isso teria grandes efeitos positivos em tudo — de arte e cultura a mudanças climáticas.
Fiquei fascinado pela ligação que você faz entre o aumento de empregos de merda e o divórcio entre a remuneração e a produtividade do trabalhador.
Para ser honesto, não tenho certeza se é tão novo assim. A questão não era tanto sobre produtividade, no sentido econômico, mas de benefício social. Se alguém está limpando, ou cuidando de um doente, ou cozinhando, ou dirigindo um ônibus, você sabe exatamente o que eles estão fazendo e por que razão isso é importante. Isso não é absolutamente tão claro para um gerente de marca ou um consultor financeiro. Há sempre algo como uma relação inversa entre a utilidade de uma determinada forma de trabalho e a remuneração. Há algumas exceções, poucas e bem conhecidas, tais como médicos e pilotos.
O que aconteceu não foi tanto uma mudança de padrão, uma vasta inflação da quantidade de trabalhos inúteis e relativamente bem-pagos. Fala-se, enganosamente, no aumento do setor de serviços, mas a maior parte dos empregos neste setor é útil e mal paga (merda de serviço). Estou me referindo a garçonetes/criadas, motoristas de uber, barbeiros e semelhantes. Sua presença não mudou. O que realmente aumentou é o número de empregos de escritório, administrativos e gerenciais, que parecem ter triplicado na proporção geral de trabalhadores, no último século. É aí que entram os empregos de merda.
Kim Moody argumenta que o aumento da produtividade e dos baixos salários não tem tanto a ver com automação, mas com a intensificação das técnicas de gestão, tais como produção lean e Just-in-time, além das tecnologias de vigilância que policiam os trabalhadores. Se isso for verdade, é como se estivéssemos presos em um círculo vicioso de empresas que criam mais trabalhos para gerenciar e policiar os trabalhadores, tornando seus empregos mais sem sentido. O que você pensa sobre isso?
Bem, isso é certamente verdade se estivermos falando da Amazon, UPS ou Wallmart. É possível argumentar que os postos de supervisão, que aceleram o trabalho, não são na verdade sem sentido, fazem alguma coisa, ainda que não muito interessante para a sociedade. Na fábrica, os robôs realmente provocaram ganhos maciços de produtividade na maioria dos setores, porque os trabalhadores são reduzidos – embora os poucos que restam sejam melhor remunerados que os trabalhadores da maioria dos setores em geral.
Porém, em todas essas áreas há a mesma tendência a acrescentar níveis inúteis de gestores entre o patrão, ou as pessoas do dinheiro, e os trabalhadores de fato. Em grande parte sua “supervisão” não acelera nada, antes diminui a velocidade. Isso se torna mais verdadeiro conforme se dirige em direção ao setor de cuidados – educação, saúde, serviços sociais ou outros muito semelhantes.
Daí a criação de empregos administrativos irrelevantes e a concomitante merdificação do trabalho real. Ela obriga enfermeiros, médicos ou professores a preencher incontáveis formulários o dia inteiro e tem o efeito de reduzir maciçamente a produtividade. Usei a expressão “concomitante” porque muitas destas tarefas, embora justificadas pela digitalização, existem apenas para dar o que fazer aos administradores inúteis.
Isso é o que as estatísticas mostram de fato – a produtividade disparando na indústria, e com ela os lucros, mas a produtividade em Saúde e Educação caindo. Ou seja, os preços sobem e os lucros se mantêm em grande parte pela redução dos salários. O que, por sua vez, explica a razão de haver tantas greves de professores, enfermeiras e até médicos e professores universitários em tantas partes do mundo.
Outro argumento que você usa é que a estrutura da corporação moderna recorda mais o feudalismo que o ideal e hipotético capitalismo de mercado. O que quer dizer com isso?
Quando eu estava na universidade, me ensinaram que capitalismo significa que há capitalistas, os quais detêm os meios de produção, tais como fábricas; e que eles empregam gente para fazer coisas e em seguida vendê-las. Estes capitalistas, segundo a teoria, não podem pagar muito a seus trabalhadores e ficar sem lucro, mas devem pagá-los pelo menos o suficiente para que possam comprar as coisas que a fábrica produz. Feudalismo, em contraste, é quando você obtém seus ganhos lucros diretamente — cobrando aluguel, taxas e dívidas, transformando as pessoas em devedoras, ou extorquindo-as.
Bem, atualmente a grande maioria dos lucros corporativos não vêm da produção ou venda de produtos, mas das “finanças”, o que é um eufemismo para dívidas de outras pessoas. Cobrar aluguel, taxas, juros e o que mais. É feudalismo em sua definição clássica, “extração direta-política”, como disse alguém.
Isso também significa que o papel do Estado é  muito diferente. No capitalismo clássico, ele apenas protege sua propriedade e talvez policie a força de trabalho de modo que ela não fique muito indócil. Mas no capitalismo financeiro, você está extraindo seus lucros por meio do sistema legal. Por isso, as normas e regulamentos são absolutamente cruciais, você precisa que o governo os apoie, à medida em que extorque as pessoas por causa de suas dívidas.
Isso também ajuda a explicar porque os entusiastas do mercado estão errados quando alegam que é impossível, ou improvável, um capitalismo com empregos de merda.
Exatamente. Por incrível que pareça, os ultra-liberais [libertarians, na terminologia anglófona] e os marxistas tendem a me atacar por esses motivos. Ambos ainda estão operando basicamente com uma concepção de capitalismo como existia talvez nos anos 1860: um monte de pequenas empresas competindo, produzindo e vendendo coisas. Certo, isso ainda é verdade se falamos, digamos, de restaurantes tocados pelos donos, e concordo que tais restaurantes não tendem a contratar pessoas de que não necessitem de fato.
Mas se você está falando das grandes corporações que dominam hoje a economia, elas operam por uma lógica completamente diferente. Se os lucros são extraídos por meio de tarifas, alugueis, rendas e pela criação e execução de dívidas; se o Estado está intimamente envolvido na extração do excedente, a diferença entre as esferas econômica e política tende a se dissolver Comprar a lealdade política para seus esquemas de extração rentista é, por si só, um valor econômico.
Há também raízes políticas para a criação de empregos de merda. Em seu livro, você retoma uma citação impressionante do ex-presidente dos EUA, Barack Obama. Você poderia falar sobre ela e quais suas implicações para o apoio política a empregos de merda?
Quando eu sugeri que os empregos de merda resistem também porque são politicamente convenientes para muita gente poderosa, fui acusado de ser um teórico da conspiração. Na verdade, estava de fato escrevendo uma teoria anticonspiratória, investigando a razão pela qual essas pessoas poderosas não tentam reagir à situação que descrevo.
A citação do Obama foi como uma prova concreta com relação a isso. Basicamente ele disse: “Todo mundo diz que o plano de saúde pago por indivíduos seria muito mais eficiente. Talvez fosse, mas pense, temos milhões de pessoas trabalhando em todas essas empresas privadas de saúde concorrentes, por causa de toda essa redundância e ineficiência. O que vamos fazer com essas pessoas?” De modo que ele admitiu que o livre mercado era menos eficiente (na Saúde, pelo menos) e essa é precisamente a razão pela qual ele o preferia. Por manter os empregos inúteis…
Agora, é interessante que nunca se ouçam políticos falar desse modo sobre empregos industriais. Há sempre a “lei do mercado” para eliminar tantos quanto possível, ou cortar seus salários. Se eles sofrem, bem, não há nada que se possa fazer. Por exemplo, Obama não parecia ter nenhuma preocupação semelhante a respeito dos trabalhadores da indústria automobilística, que foram demitidos ou tiveram que fazer enormes sacrifícios depois do resgate do setor. Ou seja: alguns empregos importam mais que outros.
No caso de Obama, é bem claro por que: como notou recentemente Tom Frank, o Partido Democrata tomou uma decisão estratégica nos anos 1980: abandonou a classe trabalhadora como seu eleitorado principal e assumiu as classes gerenciais profissionais. Essa é sua base agora. Mas claro que é exatamente nessa área que os trabalhos de merda estão concentrados.
Em seu livro, você ressalta que não são só o Partido Democrata está institucionalmente implicado em empregos de merda, mas também os sindicatos. Pode explicar como os sindicatos estão investindo na sustentação e proliferação de empregos irrelevantes, e o que isso significa para os ativistas do setor?
Bem, eles costumavam falar em proteção [featherbedding], insistindo em contratar trabalhadores desnecessários. Nesses casos, claro: qualquer burocracia tenderá a acumular um certo número de postos de merda. Mas o que eu falava, principalmente, era simplesmente a demanda constante por “mais empregos” como a solução para todos os problemas sociais.
É sempre uma coisa que você pode exigir, à qual ninguém pode se opor, uma vez que não está reivindicando um brinde, mas algo para poder ganhar a vida. Até mesmo a famosa Marcha sobre Washington, de Martin Luther King, foi anunciada como uma marcha por “Empregos e Liberdade”. Se você tem apoio sindical, a demanda por empregos tem de estar presente. E, paradoxalmente, se as pessoas estão trabalhando de forma independente, como freelancers, ou mesmo em cooperativas, elas não estão em sindicatos, certo?
Desde os anos 60 tem havido uma linha radical que vê os sindicatos como parte do problema, por essa razão. Mas penso que precisamos perceber a questão em termos mais amplos: como os sindicatos, que no passado faziam campanha por menos trabalho, menos horas, passaram essencialmente a aceitar a estranha negociação entre puritanismo e hedonismo na qual o capitalismo de consumo está baseado. Ela sugere que o trabalho deveria ser “duro” (daí boas pessoas serem “pessoas que trabalham duro”) e que o objetivo do trabalho é a prosperidade material, que precisamos sofrer pra ganhar nosso direito de consumir brinquedos.
Você fala longamente em seu livro sobre quão errada é a concepção tradicional de classe trabalhadora. Especificamente, você argumenta que empregos da classe trabalhadora têm se parecido mais com o trabalho tipicamente associado às mulheres do que com o trabalho associado aos homens, nas fábricas. Isso significa que trabalhadores no trânsito têm mais em comum com o trabalho de cuidado das professoras do que com o de pedreiros. Você pode falar sobre isso e como se relaciona com os empregos de merda?
Temos essa obsessão com a ideia de “produção” e “produtividade” (que por sua vez tem que “crescer”, daí “crescimento”) – que eu realmente penso ser teológica em sua origem. Deus criou o universo. Os humanos foram condenados a imitar Deus criando seu próprio alimento e vestimenta, etc, com dor e tristeza. Então pensamos no trabalho principalmente como produtivo, fazendo coisas – cada setor é definido por sua “produtividade”, até mesmo o imobiliário! Porém, até mesmo uma reflexão instantânea poderia mostrar que na maioria dos trabalhos não se trata de “produzir” nada, é limpar e polir; dar assistência e cuidar; ajudar e alimentar e consertar; ao contrário, cuidar das coisas.
Você faz um copo uma vez. Você o lava mil vezes. Isso é o que sempre foi a maior parte das ocupações da classe trabalhadora. Sempre houve mais babás, engraxates, jardineiros,  limpadores de chaminés, profissionais do sexo, lixeiros e empregadas domésticas do que operários de fábrica.
E mesmo os que trabalham nos transportes, que aparentemente nada têm para fazer, agora que as bilheterias estão sendo automatizadas, estão lá no caso de crianças se perderem, de alguém ficar doente, ou para conversar com algum bêbado que esteja atrapalhando as pessoas… (Aqui o problema é que o público foi condicionado a pensar como patrões pequeno-burgueses, que não podem aceitar pessoas cuja função é apenas estar ali, no caso de haver algum problema, e possam estar sentadas, jogando cartas o dia inteiro. Então, espera-se que finjam estar trabalhando o dia inteiro.) Ainda deixamos isso fora de nossas teorias de valor, que são todas sobre “produtividade”.
Sugiro o contrário, como sugeriram economistas feministas. Poderíamos pensar mesmo em trabalhadores de fábrica como uma extensão do trabalho de cuidar. Você só deseja fazer carros, ou pavimentar estradas, porque cuida que as pessoas possam chegar aonde querem ir. Certamente alguma coisa assim sustenta o senso de “valor social” que as pessoas têm sobre seu trabalho – ou até mais, que ele não tem nenhum valor social, se as pessoas fazem trabalhos de merda.
Mas, penso, é muito importante começar a reconsiderar o valor do nosso trabalho. Essas coisas crescerão à medida em que a automação torne mais importante o trabalho de cuidar. Não somente porque ele tem o efeito paradoxal de fazer com que esses setores sejam menos eficientes (porque cada vez mais pessoas têm de trabalhar naqueles setores, para alcançar os mesmos efeitos). Nem porque, como resultado, essas são as zonas de real conflito. Mas especialmente porque essas são as áreas que não desejamos automatizar. Não gostaríamos de ter um robô acalmando bêbados ou confortando nossas crianças. Precisamos ver valor no tipo de trabalho que de fato gostaríamos que apenas seres humanos fizessem.
Quais são as implicações da sua teoria de empregos inúteis para os ativistas dessa área? Você afirma que é difícil imaginar como pareceria uma campanha contra trabalhos de merda, mas pode apresentar algumas ideias sobre o modo como sindicatos e ativistas podem começar a enfrentar essa questão?
Gosto de falar sobre “a revolta das classes cuidadoras”. As classes trabalhadoras sempre foram as classes cuidadoras – não apenas porque fazem quase todo o trabalho de cuidar, mas também porque, talvez em parte como um resultado, elas de fato têm mais empatia do que os ricos. Estudos psicológicos mostram isso, aliás. Quanto mais rico, menos competente você é para sequer entender os sentimentos das pessoas. Então, tentar reimaginar o trabalho – não como valor ou fim em si mesmo, mas como uma extensão material do cuidar – é um bom começo.
Na verdade eu propus até que se substituam “produção” e “consumo” por “cuidado” e “liberdade” – cuidado é qualquer ação dirigida em última instância para manter ou melhorar a liberdade de outra pessoa ou outro povo, assim como mães cuidam de crianças não apenas para que tenham saúde e cresçam e floresçam, mas, mais imediatamente, para que possam brincar, que é a expressão máxima da liberdade.
Tudo isso é a longo prazo, porém. No sentido mais imediato, penso que precisamos descobrir como opor a dominância do profissional-gerencial, não apenas nas organizações de esquerda existentes e assim, efetivamente, nos opor à merdificação dos empregos.
No momento desta entrevista, enfermeiras estão em greve na Nova Zelândia e uma das maiores questões é exatamente essa. Por um lado, seu salário real está caindo; por outro, elas também acham que estão gastando tanto tempo preenchendo formulários que não conseguem cuidar dos pacientes. É mais de 50%, para muitas enfermeiras.
Os dois problemas estão ligados porque, claro, todo o dinheiro que de outra forma seria para manter o valor de seus salários está sendo desviado para a contratação de novos e inúteis administradores, que então as oprimem com mais besteiras para justificar sua própria existência. Mas frequentemente esses administradores são representados pelos mesmos partidos, às vezes até mesmo pelos mesmos sindicatos.
Como elaborar um programa prático para combater esse tipo de coisa? Penso que é uma questão estratégica extremamente importante.
Fonte: https://outraspalavras.net/destaques/a-estranha-sociedade-dos-empregos-de-merda/

Eleições 2018: novas candidaturas, velhos desafios

Eleições 2018: novas candidaturas, velhos desafios

Lançamento de 59 pré-candidaturas, de 90 estados, no Ocupa Política do Teatro Oficina
Cresce diversidade, mas machismo, racismo e recursos desequilibram o pleito. Homens são mais que dobro de candidaturas femininas, mas maioria das mulheres é jovem – o que dá esperança no futuro
Por Carmela Zigoni
O perfil das candidatas e candidatos às Eleições 2018 apresenta alguma mudança em relação ao último pleito em 2014, mas os desafios às candidaturas de mulheres, negros, negras e indígenas continuam.
Mulheres ainda são minoria 
Do total de 27.835 candidaturas para todos os cargos, 69% são de homens e apenas 31% de mulheres. Os partidos com maior quantidade de mulheres são o PMB (39,42%) e o PSTU (38,39%), e os que contam com menor número de mulheres são o PSL (28,29%), PPL (28,31%) e o DEM (28,38%).
No segmento juventude, a proporção de mulheres é maior: elas são 51% na faixa de 20 a 24 anos (242 candidatas) e 44% na faixa de 25 a 29 anos (435 candidatas). Os homens são maioria nas faixas de 65 a 69 anos, com 74% (913 candidatos) e 72% na faixa de 60 a 64 anos (1.671 candidatos).
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Se considerarmos os candidatos entre 30 e 59 anos (21964 candidaturas), a média é a estipulada pelas cotas previstas na Lei 9.504/97: proporção de 70% homens para 30% mulheres, lembrando que a faixa de 40 a 54 anos concentra o maior número de candidaturas (13.021).
Com relação à proporção de mulheres por cargo concorrido, observa-se sua baixa presença, muito menos do que o mínimo de 30%, em cargos como governador (14,57%), presidente (15,38%) e senador (17,24%). Já para o Legislativo, a média se mantém nos 30% definidos pela Lei.

Mulheres negras e indígenas
Em relação aos números de 2014, cresceu em 70% o número de candidatas que se autodeclaram pretas: de 679 para 1.153. O aumento de candidatas pardas foi um pouco menor (23%): de 2.328 para 2.862, acompanhando o crescimento geral das candidaturas. Porém, ao olharmos para o universo das candidaturas, que também cresceu, em 22% (de 22.907 em 2014 para 27.835 em 2018), a proporção de mulheres negras se manteve relativamente estável: de 13% em 2014 para 14% em 2018. Considerando que as mulheres negras (pretas + pardas) representam 25% da população brasileira, o número de candidatas continua aquém da representatividade.
Das 13 candidaturas para a presidência da república, apenas duas candidatas registradas se declaram negras: Marina Silva, da Rede Sustentabilidade, e Vera Lucia, do PSTU; além da candidatura indígena de Sonia Guajajara à vice-presidência pelo PSOL.
Considerando a autodeclaração a partir das categorias do IBGE quanto à raça/cor, do total de candidatas, 16% são brancas (4.417candidatas), 4% pretas (1.153), 10% pardas (2.862) e somente 0,24% amarelas (66) e 0,17% indígenas (47). Verificou-se leve aumento nas candidaturas de mulheres brancas, de 14% para 15% (em 2014 foram 3.512 candidatas). Houve pequena queda nas candidaturas de homens brancos, de 40% em 2014 para 37% em 2018.
Presença de negros e indígenas
Os candidatos autodeclarados indígenas aumentaram em 59% em relação ao pleito anterior, passando de 81 para 129 candidatos.
Se considerarmos negros a somatória de pretos e pardos, o total de candidaturas é de 46% – 14% de mulheres negras e 32% homens negros (destes, 7% se declararam pretos e 25% pardos) – um discreto crescimento em relação a 2014, quando as pessoas negras representaram 44% do total.

Os negros (pretos + pardos) representam mais de 51% das candidaturas nos partidos PATRI (51,72%), PCdoB (55,74%), PHS (53,12%), PMB (54,12%), PMN (51,67%), PRP (52,89%), PPL (53,18%), PSC (54,33%), PSOL (54,29%), PSTU (53,55%), PTC (54,79%), SOLIDARIEDADE (51,37%) e REDE (54,26%). O partido com menos representantes negros é o NOVO (14,49%). O MDB conta com 36,32% de pretos e pardos, o PSDB com 32,72% e o PT com 49,32%.
No que se refere aos cargos, candidatos pretos, pardos e indígenas estão mais concentrados nas candidaturas para deputado estadual e federal, e os brancos são maioria para o Senado, governos e Presidência.

Com relação aos estados, somente Goiás não tem candidatos que se autodeclaram indígenas. O maior número de candidaturas neste grupo se encontra em Roraima (20), Amazonas (17) e Ceará (10). Os que se autodeclaram pretos estão mais presentes no Rio de Janeiro (558), São Paulo (400), Minas Gerais (258) e Bahia (251). Considerando pretos e pardos, os estados com maior número de candidaturas de negros e negras é o Rio de Janeiro, com 1.685 candidaturas, seguido de São Paulo, com 1.008.


Diversidade nas candidaturas
Além do aumento em números absolutos de mulheres negras e indígenas no pleito, outra mudança positiva foi o reconhecimento, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE),  do nome social de pessoas trans. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), https://antrabrasil.org/candidaturas2018/ são 43 candidaturas de pessoas trans para os cargos de deputado estadual e federal, em 18 estados do Brasil.
Com relação às candidaturas quilombolas, ainda que as categorias do IBGE não contemplem este grupo populacional, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) informou que serão 6 candidaturas quilombolas, sendo 5 de mulheres: Piauí, Goiás e Sergipe (deputado estadual); Maranhão e Rio de Janeiro (para deputado federal), pelos partidos PT (2), PSOL (2) e PSB (1).
A necessária reforma do sistema político
Assim, ainda que possamos identificar candidaturas mais plurais do ponto de vista da diversidade étnico-racial e de gênero, novos(as) candidatos(as) enfrentarão um sistema eleitoral que continua jogando contra a democratização dos espaços de poder. Em 2014, por exemplo, das 30% candidatas mulheres, somente 10% foram eleitas para o Parlamento. Destas, menos de 4% eram negras (pretas e pardas). Elas enfrentam o machismo e o racismo nas campanhas, e também são as candidatas com menos recursos para divulgar suas propostas aos eleitores.
Em relação ao recorte de raça/cor, embora o balanço racial das candidaturas se aproxime um pouco mais do perfil da população brasileira, no voto a situação muda, pois o racismo e o machismo operam também na hora da escolha pelos eleitores e se concretiza em espaços de poder ocupados majoritariamente por brancos.
Como vimos, nem todos os partidos cumpriram a cota de 30% de mulheres no pleito. As candidatas são, em geral, mais jovens e disputam os cargos de deputada estadual e federal, havendo muito menos mulheres candidatas para ocupar o Senado, os governos estaduais e a Presidência. O mesmo ocorre ao considerarmos o perfil étnico-racial. Uma estratégia adotada pelos partidos para dialogar com as eleitoras parece ter sido garantir mulheres no lugar de vice ou suplente.
Vitória dos movimentos sociais, o fim do financiamento empresarial de campanhas é uma realidade, mas não veio acompanhada de mecanismos de financiamento público que equilibrem o jogo: candidatos com patrimônio e renda altos acabarão se beneficiando do novo modelo. Isso porque o fundo público criado usa os mesmos critérios de partilha que o fundo partidário e tempo de TV, favorecendo os grandes partidos. Outro desafio para a maioria das candidaturas, especialmente as novas, é dialogar com o eleitor que não vota em ninguém: a soma de abstenções, brancos e nulos representou cerca de 29% do eleitorado em 2014 e 32,5% em 2016. Iniciativas inovadoras têm surgido para enfrentar este cenário, como a plataforma Mulheres Negras Decidem e as candidaturas coletivas.
Em 2014, demonstramos como o Congresso Nacional eleito se assemelhava em muito às casas grandes  do período colonial brasileiro: branco, masculino, proprietário; além de machista e comprometido com bancadas econômicas e religiosas. Assistimos à forma como, desde então, estes parlamentares têm atuado, compactuando com a violação de direitos de mulheres, juventude negra, LGBTI, indígenas e quilombolas, e também contra os trabalhadores e grupos mais pobres da sociedade. Neste sentido, podemos afirmar que sem uma reforma ampla e participativa do sistema político, pouco ou nada avançaremos em termos de representatividade, diversidade e superação das desigualdades no processo eleitoral brasileiro.
*Tratamento da base de dados realizado por: Nailah Veleci, Consultoria em Estatística.

A construção social da obesidade

A construção social da obesidade

Uma investigação estatística sobre o grande aumento de peso das populações ocidentais, em 40 anos, revela: as causas essenciais são invasão dos ultraprocessados e ideia de que engordar é culpa individual
Por George Monbiot | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Fernando Botero
Quando vi a foto, mal pude acreditar que era o mesmo país. O retratoda praia de Brighton, em 1976, estampada pelo Guardian algumas semanas atrás, parecia mostrar uma raça alienígena. Quase todo mundo era magro. Mencionei isso nas mídias sociais, e saí de viagem nos feriados. Quando voltei, encontrei as pessoas ainda debatendo o assunto. A discussão estava quente e me levou a ler os comentários. Como teremos mudado tanto, tão rápido? Para meu espanto, quase todas as explicações propostas revelaram-se falsas.
Lamentavelmente, não há no Reino Unido dados consistentes sobre obesidade anteriores a 1988, quando a incidência já estava aumentando bastante. Mas nos EUA os dados foram levantados bem antes. Eles mostram que, por acaso, o ponto de inflexão foi mais ou menos 1976. De repente, por volta do momento em que a foto foi feita, as pessoas começaram a tornar-se mais gordas, e desde então a tendência se manteve. A explicação óbvia, insistiam muitas daquelas pessoas que comentaram a foto, é que estamos comendo mais. Vários apontaram, não sem razão, que nos anos 1970 a comida era geralmente muito ruim. Era também mais cara. Havia menos restaurantes de fast food e as lojas fechavam mais cedo, de modo que se você perdesse seu chá ficaria com fome. Mas eis aqui a primeira grande surpresa: nós comíamos mais em 1976.
Segundo cálculos do governo, atualmente consumimos uma média de 2131 kcals [quilocalorias] por dia, um número que parece incluir doces e álcool. Mas em 1976 consumíamos 2280 kcal, excluindo álcool e doces, ou 2590, quando os incluímos. Isso pode ser verdade? Não encontrei razão para duvidar desses números.
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Outros insistiram que a causa é o declínio do trabalho manual. De novo, isso parece fazer sentido, mas, novamente, não pode ser sustentado pelos dados. Um artigo publicado no Jornal Internacional de Cirurgia afirma que “adultos trabalhando em serviços manuais não especializados têm probabilidade mais de 4 vezes maior de ser classificados como obesos mórbidos, quando comparados com profissionais especializados.
E quanto a exercícios voluntários? Um monte de gente argumentava que, como dirigimos, ao invés de caminhar ou andar de bicicleta, ficamos parados diante de nossas telas e fazemos nossas compras online, exercitamo-nos muito menos do que antes. Parece fazer sentido – e então, lá vai a próxima surpresa. Segundo um estudo de longo prazo da Universidade Plymouth, a atividade física das crianças é hoje a mesma de 50 anos atrás. Um artigo do Jornal Internacional de Epidemiologia revela que, corrigido o tamanho do corpo, não há diferença entre a quantidade de calorias queimadas pelas pessoas nos países ricos ou pobres, onde a norma continua a ser a agricultura de subsistência. Propõe não haver relação entre atividade física e ganho de peso. Vários outros estudos sugerem que exercitar-se, embora crucial para outros aspectos da saúde, é de longe menos importante que a dieta, para regular nosso peso. Alguns sugerem que não tem papel nenhum, uma vez que, quanto mais nos exercitamos, mais famintos ficamos.
Outras pessoas apontaram fatores mais obscuros: infecção por adenovirus-36, uso de antibiótico na infância e produtos químicos disruptivos do sistema endócrino. Embora haja evidências sugerindo que todos eles têm seu papel, e ainda que possam explicar algumas das variações no ganho de peso por pessoas diferentes com dietas semelhantes, nenhum deles parece ser suficientemente poderoso para explicar a tendência geral.
Então, o que aconteceu? A luz começa a surgir quando se olham os dados sobre nutrição mais detalhadamente. Sim, comíamos mais em 1976, mas comíamos de modo diferente. Hoje, compramos metade do leite fresco por pessoa que comprávamos; mas cinco vezes mais iogurte, três vezes mais sorvete e – veja só – 39 vezes mais sobremesas lácteas. Adquirimos metade dos ovos que adquiríamos em 1976, mas um terço a mais de cereais para o café da manhã e duas vezes mais cereais para o lanche; metade das batatas inteiras, mas três vezes mais batatas fritas. Embora nossa compra de açúcar tenha caído fortemente, o açúcar que consumimos em bebidas e doces provavelmente disparou (só há números sobre compra a partir de 1992, quando estava aumentando rapidamente. Talvez, já que em 1976 consumíamosapenas 9 kcal por dia em forma de bebida, ninguém imaginou que valesse a pena levantá-los). Em outras palavras, as oportunidades de sobrecarregar nossos alimentos com açúcar aumentaram. Como alguns especialistas propuseram há muito tempo, essa parece ser a questão.
A mudança não aconteceu por acaso. Como argumentou Jacques Peretti em seu filme O homem que nos tornou gordos, temos sido goleados deliberada e sistematicamente. A indústria alimentícia investiu pesadamente na criação de produtos que usam açúcar para driblar nossos mecanismos de controle do apetite, embalando-os e promovendo-os de modo a romper o que resta de nossas defesas, inclusive pelo uso de odores subliminares. Emprega um exército de cientistas e psicólogos para nos levar a comer mais junk food (e portanto menos alimentos integrais) do que necessitamos, enquanto seus publicitários usam as últimas descobertas da neurociência para romper nossa resistência.
Ela contrata cientistas corruptos e thinktanks  para nos confundir a respeito das causas da obesidade. Sobretudo, assim como a indústria do tabaco fez com o cigarro, promove a ideia de que manter o peso é uma questão de “responsabilidade pessoal”. Depois de gastar bilhões para anular nossa força de vontade, culpa-nos por não queimar calorias fazendo exercícios.
A julgar pelo debate desencadeado pela foto, tudo isso funciona. “Não há desculpa. Assumam responsabilidade por sua própria vida, gente!”. “Ninguém te força a comer junk food, é uma escolha pessoal. Não somos ratos de laboratório.” “Às vezes penso que ter um sistema de saúde gratuito é um erro. Todo mundo poder ser preguiçoso e gordo, porque há uma sensação de que se tem o direito de ser cuidado.” A emoção da desaprovação coincide desastrosamente com a propaganda da indústria. Temos prazer em culpar as vítimas.
Ainda mais alarmante, de acordo com um artigo do Lancet, mais de 90% daqueles que elaboram políticas públicas acreditam que “motivação pessoal” é “uma influência forte ou muito forte no aumento da obesidade”. Essas pessoas não explicam quais os mecanismos que levaram 61% dos ingleses que estão acima do peso ou obesos a perder sua força de vontade. Mas essa explicação improvável parece imune a evidências.
Talvez isso aconteça porque a gordofobia é frequentemente uma forma disfarçada de esnobismo. Na maioria das nações ricas, as taxas de obesidade são muito mais altas na base da pirâmide socioeconômica. Elas estão fortemente relacionadas com a desigualdade, o que ajuda a explicar por que a incidência no Reino Unido é maior do que na maioria das nações da Europa e da OCDE. A literatura científica mostra como baixo poder aquisitivo, estresse, ansiedade e depressão associados com status social inferior torna as pessoas vulneráveis a más dietas.
Assim como as pessoas sem emprego são culpabilizadas pelo desemprego estrutural, e as pessoas endividadas são culpabilizadas pelos custos impossíveis da moradia, as pessoas gordas são culpabilizadas por um problema social. Sim, a força de vontade precisa ser praticada – pelos governos. Sim, precisamos de responsabilidade pessoal – por parte de quem elabora as políticas públicas. Sim, o controle necessita ser exercitado – sobre aqueles que descobriram nossas fraquezas e as exploram impiedosamente.
Fonte: https://outraspalavras.net/capa/a-construcao-social-da-obesidade/

Militares, ciências, Educação Popular.

A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lóg...