Tuesday, July 14, 2020

Militares, ciências, Educação Popular.

A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lógicas ou empíricas. Segundo os defensores daquela cultura imaginária derreteram-se as formas sociais e políticas  definidas nas Luzes e nas Revoluções inglesa (século 17), norte-americana e francesa (século 18). A ordem moderna estaria em questão, sobretudo instituições como o Estado.  Com a globalização – outro dogma assumido sem muitas perguntas por acadêmicos, políticos, jornalistas –   vieram as exéquias dos países que exigiam para si e seus amigos ou inimigos o poder soberano. Outro dogma: se não existem direitos individuais e coletivos garantidos pelo Estado democrático – conquista das revoluções mencionadas –  seria preciso privatizar os serviços públicos. A sobra do poder soberano só pode manter duas funções: seguir o mercado, em especial o financeiro, e reprimir levantes populares contrários aos ditames das bolsas de valores.

A receita foi aplicada na Europa, mesmo por administrações “de esquerda”, nos EUA por governos “democratas”, na Ásia, África e América do Sul. A pandemia atual (outras com certeza podem ocorrer) é potenciada pela urbanização inédita da vida humana. Seu início mais forte vem do século XIV, mas ela foi acelerada desde o fim da Segunda Guerra. Bilhões de seres humanos se dirigiram para as periferias na busca de sobrevida. É dado histórico: a concentração populacional agravou as várias pestes europeias e mundiais como é o caso da influenza.  Prover serviços para tais massas (água, esgoto, saúde, educação, segurança, alimentos, cultura, tecnologia) exige muito recurso técnico, humano, político, financeiro. Com as instituições públicas corroídas pela privatização e perdões de impostos para grandes empresas e fortunas, o caixa dos Estados fica à míngua. As massas tangidas rumo às megalópoles, ali postas em tugúrios sem espaço para respirar são as maiores vítimas da morte e da vida sem amanhã. Os poderes urbanos sempre foram tomados pelas “inesperadas”  doenças que matam mais do que em muitas guerras. Urge repensar os pressupostos lógicos, jurídicos, políticos e científicos das doutrinas mencionadas no início, retornando ao poder de Estado e reconfigurando os seus três monopólios: o da norma jurídica, da força, dos impostos. Sem tais providências milhões perecerão ao desabrigo. Chegaremos quase mortos ao reino da natureza bruta, onde todos são os lobos de todos.  Aliás, a frase do Leviatã não veio até Hobbes por acaso. Tradutor da Guerra do Peloponeso, ele sabe o quanto numa endemia – como a que levou Atenas à ruína– os laços entre humanos se degradam rumo à ferocidade. [I]

Elias Canetti comenta a passagem de Tucídides em Massa e Poder. Ele considera a epidemia um caso exemplar das massas sob ataque. Segundo Canetti os eventos que reúnem massas no mundo moderno pertencem à categoria das hordas em fuga ou em perseguição. Um ponto relevante trazido por Maclleland [II] é que a biologia, estratégica para compreender as pandemias, assumida no pensamento de Canetti não se aproxima de Darwin. Ponto estratégico pois muitas doutrinas sobre as massas e as elites, sobretudo as que defendem uma suposta meritocracia na educação, assumem de forma direta ou sub-reptícia a tese de que os “inferiores” caem vítimas das doenças, miséria, ignorância em processos “naturais” onde são escolhidos os melhores. Assim, sacralizam-se os genocídios modernos. Não. A biologia próxima ao pensamento de Canetti encontra-se em Pasteur. Cito Maclleland: “Toda a teoria das massas é ligada a números; multidões são contadas aos milhares e as massas aos milhões; a teoria das multidões em suas formas modernas teria sido desnecessária, talvez impossível, sem a consciência da vida fervilhante das grandes cidades, num mundo cuja população aumenta sem cessar e premido por espaço. Canetti pensa que a origem de tal ‘milhão mágico’ vai além da urbanização e crescimento populacional com a descoberta (...) de que o mundo já foi superpovoado em grau inimaginável por massas de bacilos hostis que lutam com o homem (...) viver agora é viver entre incontáveis milhões; multidões estão em toda parte e exigem a atenção das ciências”. [III] 

No interior da natureza as massas existem e se aglomeram, são dizimadas e ressurgem nos quatro elementos. Não é diferente com o ser humano. Daí, digamos, a enorme dificuldade para estabelecer isolamentos profiláticos nas cidades superpovoadas durante as pandemias. Restringir grupos em espaços limitados vai contra o que ocorre no plano físico, biológico, psicológico e social que, todos eles, moldam e são moldados pela atividade técnica dos homens. Ocorre mesmo que tal restrição pode trazer resultados tremendos. Canetti mostra que o interior das massas é uma espécie de reino natural hobbesiano. Concentradas em pequenos espaços os seus embates crescem, a violência e o medo as seguem. Não é também acidente que os alemães tragados pela Primeira Guerra Mundial, diminuído o seu território, passaram a delirar com espaços cada vez mais amplos. A busca frenética do Lebensraum os levou ao assassinato de seis milhões de judeus, ciganos, homossexuais,  milhões de guerreiros germânicos, franceses, ingleses, soviéticos. Concentrar massas em espaços pequenos serve como estopim de ódios, ideologias ressentidas que, para serem momentaneamente saciadas exigem a plena adesão dos grupos e indivíduos à massa que opera por meio das hordas. Para atingir tal fim líderes assassinos incentivam a geração de massas virulentas. Mas precisam reprimi-las para que sigam o rumo favorável ao controle político. 

Um elemento essencial na urbanização sofrida pela Humanidade reside no excesso concedido às políticas de repressão das massas. Agora mesmo no Brasil milhões de pessoas sem emprego passam fome e perdem esperanças de sobrevida. Surgem na imprensa “avisos” do Ministério Público sobre “vandalismos” e “saques” que apavoram o comércio, os bancos, as indústrias. [IV] Comoções sociais são prognosticadas e as culpas do perigo são jogadas sobre as multidões famintas. Nenhuma novidade em tal comportamento das elites seguidas pelas classes médias do mundo inteiro. Aliás, desde o começo da suposta civilização cristã e ocidental as massas foram apresentadas como perigo eterno a ameaçar as “boas sociedades” e seus regimes políticos. Mas com a concentração urbana, na passagem do feudalismo para o Estado provido de um centro de poder, a polícia foi inventada, bem como os Exércitos burocráticos, máquinas de matar no aparelho público. Começa a cultura da repressão planificada contra as massas pobres, as “aves de rapina” no dizer de John Locke, liberal mas não o bastante para tolerar insurreições populares. [V]

Dos três monopólios do Estado moderno – norma jurídica, impostos e força física – o último se evidenciou cada vez mais necessário para manter os outros e o domínio no poder social e político. No Brasil o monopólio das armas não se estabeleceu de imediato com a Independência. O costume dos fazendeiros, cujos exércitos privados (os esquemas da capangagem) ajudavam a definir o mando nos municípios persistiu na Guarda Nacional sob seu controle, agora como Coronéis. Forte resistência ao Exército Nacional veio em nome de um pretenso programa “federativo” para reiterar a sua força e dominação sobre populações pobres.  Mesmo após a implantação do Exército o coronelismo se mantém e gera déficit democrático nas entranhas do país.

O Exército, desde o seu início, apresenta uma característica intelectual importante. Existem estudos sobre o uso, nele,  das ciências e das técnicas. Um clássico descreve com acuidade os primeiros passos da república e a importância do positivismo na formação das lideranças militares. A releitura de Ivan Lins faria muito bem aos militares hoje silentes diante de um ministro da Fazenda que se gaba de ter lido oito livros sobre cada processo de reconstrução nacional na Europa. A formação de um militar de alta patente nos inícios da república compreendia a matemática, a física, a química… a biologia e outros setores da pesquisa. [VI] Além do culto à ciência os militares defendiam a laicidade estatal e o predomínio do poder civil. Durante a Questão Militar que, seguida pela Questão Religiosa acelerou a queda do Império, ocorre o caso Senna Madureira. Este se desdobra em dois episódios: primeiro veio a atitude do Tenente-coronel Senna Madureira contra a contributo ao montepio militar. Punido, ele traz no ano seguinte para a Escola de Tiro o jangadeiro Francisco José do Nascimento (alcunhado Dragão do Mar que se recusou a transportar escravos). A homenagem causa a punição de Madureira. Como fruto da penalidade segue a proibição para os militares discutirem assuntos nacionais na imprensa. A ebulição foi grande e no dia 2 de fevereiro de 1887 Benjamin Constant, no Clube Militar, defende a subordinação da farda ao poder civil. Ivan Lins destaca o pronunciamento: “Se, no regime democrático é condenada a preponderância de qualquer classe, muito maior condenação deve haver para o predomínio da espada, que tem sempre mais fáceis e melhores meios de executar os abusos e as prepotências”.   

Volto à pandemia e às massas. O projeto positivista para o Brasil, em termos educacionais, exigia que as cidades concentradas no Atlântico, sem maiores extensões para o interior, se aplicassem à ciência, técnicas e, last but not least, ao pensamento laico. O mesmo ocorre no Exército. Apesar de seu programa ditatorial (que os adeptos afastavam de ditaduras como as bonapartistas) o positivismo valoriza os debates públicos, a livre imprensa e a separação do Estado e das igrejas. Se teve enraizamento nas elites militares e civis, a doutrina comteana não atingiu massas urbanas ainda sob o manto eclesiástico. A guerra surda para atingir multidões foi vencida pela Igreja. Esta última, desde o final do século 19 orientou seu controle social pelo movimento de massas. Nos anos 30, em imensas procissões dos Congressos Eucarísticos, fica patente o uso de multidões pela Hierarquia católica para manter o controle da sociedade. [VII] Os positivistas  foram contrários à instauração da universidade. Eles receavam com receio  que a Igreja a controlasse. Os seguidores de Comte no Brasil valorizam institutos de pesquisa e a educação popular nos campos técnicos e científicos.  A defesa da ciência e do laicismo tem como centro elites acadêmicas e militares. Vence o programa da Igreja, com a presença de católicos conservadores no Ministério da Educação durante décadas. É o caso de Alceu Amoroso Lima e seus companheiros da Revista A Ordem. O programa positivista de ampla educação popular nos setores científicos foi derrotado. O país não seguiu no rumo de valorizar a ciência e os militares positivistas permaneceram ativos sobretudo nas instituições de ensino das Forças Armadas.  Estava posta a sementeira do ódio à ciência no país. A ditadura Vargas protege o plano da Igreja e com ela se protege dos “inimigos”. Em vez de preparar uma administração das massas pelo ensino científico ocorre a reafirmação do autoritarismo,  do culto ao ditador, da perseguição aos defensores do ensino laico. Simbolicamente a consagração do Brasil ao Sagrado Coração – o Cristo Redentor – definiu os rumos do poder teológico-político, inimigo da ciência, propagador de milagres na redução do povo ao estatuto de  rebanho.

Mesmo na ditadura de 1964 os militares não abandonam totalmente a ciência e a técnica. Projetos não raro grandiosos foram iniciados com ajuda de universitários. Mesmo com a caça aos “comunistas” dos campi, os militares guardaram núcleos de pesquisa. Apesar das intervenções contra as ciências humanas, elas foram mantidas e, em alguns casos, incentivadas. A fundação da Unicamp evidencia a ambiguidade do governo ditatorial: de um lado, persegue os opositores acadêmicos ao regime e, de outro, dialoga com o saber  universitário. [VIII] E assim foi nos anos em que o governo se tornou oficialmente civil, após a ditadura. Ressalto um ponto: durante os últimos decênios os militares pareciam adstritos às funções constitucionais. Eles continuaram seus estudos científicos e técnicos. A Embraer marca semelhante rotina, o trato dos pesquisadores das Forças Armadas com os campi civis teve progressos significativos.

No entanto, os militares ligados às ciências e os acadêmicos estão limitados a um público diminuto, se considerarmos as massas populacionais brasileiras. A ciência e a técnica, longe dos projetos positivistas e dos liberais paulistas que fundaram a USP, não chegou às camadas populares. No mesmo ritmo, as técnicas de comunicação e controle popular se aprimoraram no áudio visual, na TV, na telefonia (primeiro os e-mails, depois o Torpedo, depois as redes “sociais”, o Whatsapp e similares), gerando uma potência persuasiva e de comando inédito na história humana. Sem conhecimentos científicos pelo menos medianos, massas passam a “opinar” do único modo costumeiro: pelo ouvir dizer sem análise lógica ou empírica. As universidades e laboratórios, embora produzam conhecimentos essenciais para a sobrevivência e o progresso social, encontram-se isolados das multidões  que consomem técnicas de comunicação persuasiva e controle. Tal barreira pode ser notada sempre que ocorrem cortes de recursos financeiros para a pesquisa científica e técnica, algo praticado desde os governos FHC, Luiz Inácio da Silva, Dilma Rousseff. A subtração de meios para incentivar as investigações (em todas as especialidades) não enfrenta resistência popular, muito pelo contrário. Diminui, assim, de modo acelerado a potência do conhecimento no trato com as massas no território nacional.

Em outra vertente os militares passam a ser chamados a intervir em assuntos não previstos em sua função, sobretudo na repressão policial. Gradativamente eles são postos em operações desastradas nas periferias urbanas, manobras que autorizam procedimentos contra os direitos civis. No Rio de Janeiro, na luta contra narcotraficantes, foi comum juízes decidirem sentenças e processos instalados em caminhões do Exército. Na exata medida em que os governos civis se fragmentam e perdem legitimidade por atos corruptos (desde a Emenda da Reeleição presidencial) os militares são chamados para resolver assuntos próprios da Justiça, polícia ou demais instituições civis.

Volto à questão educacional e às massas. Tanto os positivistas quanto os liberais que idealizaram o ensino universitário (ainda cito a USP) consideravam que a pesquisa superior deveria ser praticada por elites do saber, mas com obrigatória difusão entre a massa populacional, múnus do Estado. Os militares positivistas conheciam de cor e salteado o programa do Catecismo Positivista.  A Biblioteca do Proletário elenca 150 títulos para leitura dos setores populares. A coleção se divide em quatro setores, entre os quais história, ciências, poesia. Autores indicados? Buffon, Broussais, Lavoisier, Condorcet, Carnot, Lagrange, Bichat, Blainville, Navier, Poinsot, Aristóteles, Santo Agostinho, Cabanis, Gall, Barthez, Dante... O fato de ser a lista dirigida aos proletários mostra o ímpeto positivista. O Estado deveria cuidar para que as multidões saíssem do reino da superstição, caminhando para o saber que, embora não rigoroso como o dos pesquisadores e cientistas,  preparava para o pensamento, o controle das informações. [IX] 

Ao longo da república militares e liberais civis pagaram um lip service ao programa de educação das massas. Apesar dos progressos, conseguidos com muitas lutas, sacrifícios, heroísmos, o ideal não se efetivou. Salvo iniciativas como as lideradas por Paulo Freire e Darcy Ribeiro, inspirados em Anísio Teixeira, pouco se fez naquele setor. Mas os coletivos civis e militares ligados à pesquisa científica desenvolveram esforços naquele plano. Com o regime de 1964 houve uma grande abertura para o ensino popular. Em vez das antigas escolas rigorosas, a rede pública  acolheu alunos aos borbotões. Mas o Estado não se adequou à nova efetividade. O número foi imenso mas o programa educacional não foi pensado de modo eficaz. Além disso, dado o número espetacular somado à  ineficiência do ensino, surgem os cursinhos preparatórios ao vestibular para os que pudessem dispender tempo e dinheiro. O vestibular se apresenta como barreira para os “negativamente privilegiados” (termo de Max Weber).  Tais cursinhos se organizam em termos capitalistas gerando “universidades. A indústria das instituições “universitárias”  passa a integrar a Bolsa de Valores, um negócio a mais.

As universidades públicas perceberam muito tarde o sistema injusto dominado pelo vestibular. Surgem propostas para diminuir o desigual acesso ao campus, aparecem as cotas para remediar a injustiça. Jovens pobres, negros, indígenas são acolhidos mas não o bastante para gerar capilaridade entre os campi e as massas. Já era tarde para definir o elo entre os povos e os pesquisadores acadêmicos. A massa desprovida de saberes mas com acesso imediato aos instrumentos de comunicação já se formara. E tal massa, sem informação, não sabem que os celulares e computadores exigem muito esforço intelectual. Ela passa a difundir mensagens misólogas em escala inusitada. E tudo é simultâneo ao predomínio na “opinião pública” de pastores, ideólogos, políticos fascistas que atacam a ciência e negam o saber.

Os militares, embalados pelo sucesso relativo de suas intervenções repressivas nas periferias, começam a esposar teses da extrema direita inimiga do conhecimento.  Com a eleição de Bolsonaro surge a face religiosa obscurantista que promete perenidade no poder desde que a pauta eclesiástica, protestante ou católica, seja obedecida. Assim, retornamos ao período Vargas, mas com hegemonia “evangélica”. Igrejas fundamentalistas assumem algo impensável no protestantismo dos século 16 e 17, a guerra, antes privilégio católico, contra a ciência.

Acrescento o conúbio do governo Bolsonaro – e seus economistas neoliberais que desejam tudo privatizar – e militares. Pela primeira vez na história brasileira as pessoas fardadas assumem uma atitude cordial diante de discursos que desejam reduzir a laicidade e os deveres do Estado para com os serviços públicos. Termino: as Forças Armadas não continuam a politica pretérita de defender a ciência e a técnica, aspirando à educação das  massas. Hoje os militares aproveitam oportunidades para sua vida pessoal nos governos, defendem pautas corporativas e não têm mais uma doutrina de ciência e tecnologia para o Estado brasileiro. No recente e infausto vídeo da reunião ministerial, assistido por toda a Nação, vimos o pensamento político das Forças Armadas estraçalhado pelo Ministro da Economia. “Li oito livros sobre cada processo de recuperação econômica na Europa”. Na universidade que se preza tal assertiva impediria um mestrando de ir à Banca, tal a pobreza exibida sem pejo. Mas o general ao lado, responsável por um Plano de recuperação econômica para o Brasil pós epidemia, calou-se, não forneceu ao pedante ministro nenhuma resposta à altura. Assim, infelizmente, os militares brasileiros deixam de valorizar a ciência ao obedecer pastores ignaros ou economistas que defendem o interesse privado e não o estatal. Eles servem  como instrumento para que velhas raposas retornem ao controle de cargos e verbas, como  o Centrão de Roberto Jefferson. Em vez de diminuir, aumenta a distância entre geradores de saber e a massa popular. Esta, por sua vez, segue como Destino uma vocação letal: a de se prestar como elemento de barganha de poderosos e permanecer sem os saberes que lhe permitiriam o salto do estatuto de vulgo (que Spinoza seja relido...) para o da cidadania. Os próximos tempos tornarão ainda mais triste o papel das Forças Armadas, levando para bem longe o sonho de Benjamin Constant: o de fazer o setor militar servir governos civis, e não vice-versa. E fazer da ciência o fundamento de um país soberano.  Ouvimos a cada dia maior número de militares que perdem a sua herança histórica, a vituperar como simples militantes de extrema direita a Justiça e o Parlamento. E temos os ensaios de golpes em prol de obscurantistas delirantes postos a serviço de seitas evangélicas inimigas da ciência e dos direitos humanos. Assim, o gráfico que indica o grau civilizatório do braço armado no poder estatal brasileiro mostra acentuada queda. Rumo à barbárie.   No Clube Militar está sendo retirado o retrato de Benjamin Constant. Em seu lugar chega a efígie do General Augusto Heleno Ribeiro Pereira. Ele marca os novos tempos dos golpes, da repressão, de intimidação dirigida aos poderes republicanos e, sobretudo, da intolerância contra a ciência.

 

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

 

 


[I] Uma passagem significativa da tradução hobbesiana de Tucídides. As pessoas, na epidemia, nada temiam dos deuses “nor laws of men awed any man, nor the former because they concluded it was alike to worship or not worship from seeing tha alike they all perished, nor the latter because no man expected tha lives would last till he received punishment of his crimes by judgement”. Thucydides, The Peloponesian War 53 , The complete Hobbes Translation (London, University of Chicago Press, 1989), página 119.

[II] Cf. J.S. McLelland : The Crowd and the Mob, from Plato to Canetti (Unwin Hyman, 1989).

[III] Mclelland, página 294.

[IV] Por exemplo o sugestivo alerta do Ministério Público diante dos eventos “indesejáveis”da pandemia trazida pelo coronavirus : “Promotoria alerta Covas sobre riscos de saques e vandalismo em São Paulo”:   https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/05/20/promotoria-alerta-covas-sobre-riscos-de-saques-e-vandalismo-em-sp.htm. Sobre o uso da força pelos Estados modernos, cf. Ann L. Phillips, “Prosperity and Monopoly on the use of force” no link  https://library.fes.de/pdf-files/iez/12036.pdf

[V] Maria Sylvia Carvalho Franco:  “All the World was America”, John Locke, liberalismo e propriedade como conceito antropológico”, Revista USP, Dossie Liberalismo/Neoliberalismo, http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25952

[VI] Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964). Um estudo significativo e útil foi publicado por Maria Isabel Moura Nascimento “O Império e as primeiras tentativas de organização da Educação Nacional (1822-1889) in http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/periodo_imperial_intro.html#_ftnref1

[VII] Romualdo Dias:  Imagens de OrdemA doutrina católica sobre autoridade no Brasil. . Ed. Unesp.

[VIII] Um clássico sobre a Unicamp é o livro do saudoso Eustaquio Gomes: O MandarimA sua leitura permite notar a enorme diferença entre a política ditatorial e o que o ocorre hoje no governo Bolsonaro.

[IX] Cf. Robert Fox : The savant and the State: Science and Cultural Politics in Nineteenth (The Johns Hopkins University Press, 2012.


Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).


Fonte: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/roberto-romano/militares-ciencias-educacao-popular 14 de julho de 2020.

Brasil: o Assassinato do Espírito

"Wenn ich Kultur höre ... entsichere ich meinen Browning! Hanns Johst

As universidades surgem antes do Estado moderno e reúnem pessoas que se libertaram da servidão eclesiástica ou nobre imperante no feudalismo. O campus acolhe intelectos na busca do verdadeiro, do bom, do belo e do justo. Os Estados nascentes buscam técnicos nas artes médicas, engenharia, direito e disputam alunos ou professores, prometem melhores salários e bolsas. Tal procura leva Francis Bacon ao dito célebre: knowledge and power meet in one. Bacon enuncia com base na Raison d’ État que só há poder efetivo e não apenas uso da força, se política estatal e conhecimentos científicos formam um bloco. Os modernos poderes estatais instalam universidades como base do poderio. Nelas surgem formas inovadoras de direito, contabilidade, arquivos, bibliotecas, laboratórios, arquitetura, engenharia e outros. Os governos que valorizam suas universidades crescem no concerto das Nações. A ética de tipo baconiano atinge camadas religiosas que inovam a política. Os puritanos ingleses destronam o rei, instauram a república na fé e no pensamento científico. Derrotados, eles rumam às Colônias americanas onde inauguram centros de ensino e pesquisa. Seus docentes praticam matemáticas, física, latim, grego, história, literatura. A partir da Europa as técnicas e as ciências atingem âmbito planetário. A indústria e o comércio fornecem produtos tecnológicos confiáveis no mercado internacional.

A colaboração entre Estados e universidade sofre abalos nos séculos 19 e 20. Na Contra Revolução conservadora que sucede o império napoleônico surge a denúncia do pensamento científico, a sua relativização em favor de doutrinas que acentuam a fé emotiva e a disciplina. Universidades são vistas como ameaça contra os valores tradicionais. Estamos nos germes dos movimentos que, radicalizados, definem “ciências” e técnicas a serviço de doutrinas etnocêntricas. Começam as ameaças mais graves para a vida universitária internacional nos movimentos nacionalistas. Ao chegarem ao poder tais formações – nazismo e fascismo entre eles– implodem a ordem acadêmica e nomeiam seus adeptos nos campi. São expulsos os que impediriam tais práticas.

Ateadas as fogueiras de livros se completa o trabalho de sapa. Os nazistas aplicam verbas apenas nos setores que servem aos seus desígnios, reduzem o nível superior de ensino à propaganda ou censura. Cientistas deixam a Alemanha por não aceitar o regime. Sete ganhadores do prêmio Nobel saem dos campi a partir de 1933. Anna-Maria Sigmund resume a situação germânica, quase a mesma da brasileira de agora: “O abandono pelo Estado nazista do potencial econômico e intelectual (...) assim como a atitude retrógrada do IIIº Reich diante da pesquisa e da ciência arrastou em prazo espantosamente curto consequência tremendas. Enquanto os nazistas no poder obstaculizavam os trabalhos de cientistas sérios (...) nutrindo entusiasmo por teorias obscuras (...) os físicos que eles expulsaram preparavam a guerra atômica”. Nos EUA o obscurantismo explode na Guerra Fria. Com base em crenças perseguidores da ciência, das técnicas e das artes se instalam no Congresso. A intimidação macartista fere a instituição de pesquisa. Vencida na aparência, a onda contrária ao saber se mantém em jornais, rádios, televisões financiada por lideranças político-religiosas. Numerosas seitas guerreiam a ciência naquele país.

Falemos do Brasil. Menciono o ministro Celso de Mello e o perigo nazista. O solo brasileiro é regado por águas totalitárias. O integralismo reúne adeptos que geram herdeiros. Duas ditaduras implantam a força física repressiva que ameaça instituições, da imprensa aos campi. Para corroborar o que enuncia Mello, o primeiro signo do horror instaurado pelo nazismo é a corrosão da autoridade ética e científica no culto ao Líder. Dissolvendo as atividades fins dos campi, o projeto totalitário mina a sua autoridade administrativa. Reitores e Conselhos perdem a direção e assumem grupos ligados aos ministérios. Alocações de recursos, escolhas de professores, bolsas para estudantes passam a ter como conditio sine qua non o alinhamento ao governo. A escolha dos dirigentes exige adesão aos Palácios.

Na ditadura brasileira de 1964 ficou célebre o reitor Calmon ao dizer a um soldado: “filho, aqui só se entra por vestibular”. Era um assalto externo à instituição. Agora o assalto vem no corte de verbas, exclusão de áreas, etc. O MEC arranca recursos das ciências humanas mas um astrólogo é condecorado. Na Alemanha nazista tudo se faz para adequar a forma acadêmica à do governo, estatizá-la no pior sentido. Para tanto é usada a fraqueza financeira das universidades após 1929 e a hiperinflação. Os recursos são látego e afago na crise. No Brasil tudo é feito para reduzir a responsabilidade governamental pelo ensino público universitário.

Na pandemia é claro o ataque do poder à autoridade científica. Como expõe Hanna Arendt, o meio de elidir o totalitarismo está na autoridade ética, científica, política. É por semelhante motivo que os fascistas minam a autoridade dos campi. O deboche de ministros quando falam das ciências é arma contra o saber. O responsável pela Educação não age apenas como personagem circense. Ele despreza milênios de saber humano. As massas que negam a esfericidade da Terra são hordas que logo arrombarão laboratórios e bibliotecas. Se o presidente classifica trágica moléstia como “simples gripe” e nega os saberes científicos ao impor fármacos, estamos na aurora do fascismo. Na reunião ministerial de abril último o máximo afastamento entre governo e saber ocorre no ensino dado a um general pelo ministro da Economia. “Li oito livros sobre cada caso de reconstrução na Europa”. Em nossas universidades o estudante que fizesse tal display de preguiça intelectual, um microscópico saber, seria impedido de ir a exame de qualificação no mestrado, por pesquisa insuficiente.

A erosão da autoridade acadêmica e dos recursos públicos na pesquisa e no ensino piora a fuga de cérebros.O brain drain foi combatido por autoridades universitárias e agências de fomento à pesquisa. No governo federal de hoje ele é dolorido êxodo de cientistas. Causa sofrimento ler notícias de brasileiros que lideram pesquisas de ponta no mundo. Aqui, o deserto acadêmico se anuncia. A prática de nossos ministérios, sobretudo o que se dedica à Educação, também gera a morte de milhões. Sofremos o sequestro dos saberes em proveito de poderes que não alicerçam o Estado numa sociedade forte. O governo gera astenia. Entre os primeiros atos palacianos está a demissão de um cientista respeitado. O costumeiro no Ministério da Educação é perene ataque aos saberes. Tudo lembra as falas e atos histriônicos do poder nazista diante da ciência: para seus defensores a Teoria da Relatividade seria apenas uma “conspiração judaica para reduzir os alemães à escravidão”. Aqui, a ciência é posta como conspiração contra o Brasil. Cito a fala da ministra dos Direitos Humanos (!): “A igreja evangélica perdeu espaço na história,perdemos o espaço na ciência quando deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas, quando nós não questionamos (...) e aí cientistas tomaram conta dessa área”.

Uma pandemia é dita “gripezinha”. Quem em institutos de pesquisa respeitáveis denuncia a corrosão da natureza é demitido e caluniado pela mais alta autoridade do país. A crise médica ilumina triste miséria social: 60% dos municípios não possuem água e esgoto dignos do nome. Mesmo o Rio de Janeiro recebe água oriunda de esgotos. Não existe Plano de educação das massas brasileiras para o trabalho técnico de ponta. O empresariado não aplica recursos em inovação tecnológica preferindo, conforme o jornal Valor Econômico, usa empréstimos oficiais em títulos do governo norte-americano. Parecem ilusórias as advertências de especialistas em Ciência, Tecnologia e Inovação. Em nota técnica sobre pesquisa e desenvolvimento, preparada para o Ipea em janeiro de 2020, Priscila Koeller suspeita que os dispêndios em Política e Desenvolvimento brasileiro poderão se reduzir a níveis inferiores aos do ano 2000.  

Na saúde os cortes no SUS deixam quase inerte um sistema excepcional. Dois ministros da saúde saem por não aceitar “receitas” de cura fornecidos por via política, boicote da quarentena, guerra contra prefeitos e governadores. Tudo ruma para agravar a luta contra a ciência e os cientistas. Sairemos da pandemia com taxas minguadas de investimento em C/T. Universidades perseguidas pelo ministério que deveria protegê-las ficam sem poder pagar pesquisadores, docentes, funcionários: estarão prontas para serem privatizadas. Além da perseguição oficial existem mais desafios para os que administram universidades. Mesmo com o fraco entusiasmo de nossos empresários para resguardar os serviços públicos, até a pandemia impostos iam para os cofres do Executivo, distribuídos penosamente aos campi. Mas o que fazer quando os mesmos impostos chegam ao nível mais baixo? Escutemos a tributarista Claudia Roberta de Souza Inoue: “É certo que a redução das atividades nos diversos setores também implicará uma queda na arrecadação, afetando as contas públicas. Porém, como conciliaremos o pagamento dos tributos a vencer nas competências futuras que coincidirão com os pagamentos dos tributos adiados se a crise continua atingindo a todos e se temos uma projeção de queda de 4,7% do PIB ao longo de 2020? A crise está gerando uma recessão quase sem precedentes, de alto impacto no cenário tributário, exigindo a adoção de medidas especialmente para o momento pós-pandemia”. Muitos empresários brasileiros e não dos menores têm ojeriza por pagar impostos. Se cai a economia “normal”, caem mesmo os impostos. Sem eles chega a um nível dramático o investimento em P&D, C/T, universidades, laboratórios. Pouco sobra para inovação tecnológica e produção competitiva no mercado nacional e internacional. Menos impostos e parcos recursos nas ciência e técnicas: círculo vicioso é pouco para descrever tal queda.

Um povo enfraquecido por crimes sanitários e sem plano nacional de educação técnica, dificilmente sobreviverá a doenças coletivas, pois endemias novas podem ocorrer em data próxima. A mão de obra brasileira reduzida a imenso exército de reserva sem amanhã no mundo técnico pode assistir a morte de milhões. Mesmo os setores que tomam vias de comércio exterior como o agronegócio e repetem a monocultura, por motivos ideológicos estão ameaçados. Para combater a China o governo usa diplomacia de empréstimo dos EUA e conspira sob a batuta de um astrólogo e do... ministro da Educação. Em manobra contábil foi retirado do Bolsa Família milhões de reais. Após pressões, a verba retorna (até quando?) ao seu fim. E num instante desesperador não se pensou em aplicar tais recursos na saúde, educação, universidades. A maquiagem do número dos mortos pelo Covid entra no marketing do terror.

“Enquanto o governo despreza o conhecimento, a Alemanha destina 2,8% de seu PIB (3,677 trilhões de dólares segundo dados de 2017) em pesquisa, e anuncia para os próximos três exercícios a aplicação de 14,6 bilhões de euros anuais em tecnologia. Em 2018 os EUA aplicaram US$ 476,5 bilhões e a China (...), US$ 370,6 bilhões em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Enquanto isso o governo brasileiro corta de forma drástica recursos dos ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia e Inovação (…).O MCT&I, além do corte de algo como 40% de seu orçamento, foi punido com a redução bolsas do CNPq e das aplicações de fomento . Por preconceito ideológico e limitação cognitiva o governo investe contra a universidade pública e gratuita, responsável pelo melhor ensino superior, pela melhor pós-graduação e por 90% da pesquisa”. (Roberto Amaral).

Róseas profecias não escondem o cenário pavoroso a ser vivido por 200 milhões de seres humanos. A licença para que particulares importem e usem armas poderosas evidencia que se prepara um confronto de milícias e democratas. O governo está longe da cultura, pois depende dos revólveres, ele apaga o saber. Com promessas de ditadura obscurantista vem a ameaça de usar as Forças Armadas contra a cidadania. O quanto é corrosivo o governo no campo universitário pode ser visto na Medida Provisória de 10/06/2020. Ela permitiria ao ministro da Educação escolher reitores. Tudo sem consulta a docentes, funcionários, estudantes. Assim os donos provisórios do poder retomariam a política dos regimes totalitários. O tristemente histórico discurso de posse pronunciado pelo reitor Martin Heidegger, que assume o princípio nazista do Führung, exemplifica a deletéria intervenção ideológica no âmbito universitário. Crises são oportunidades para dissolver instituições, praticar o assassinato do espírito. O fascismo manifesta loucura. Mas como em Hamlet no seu delírio há método. O ataque e o cerco às bases universitárias segue a lógica da força bruta.

Magníficos Reitores, sois representantes de cientistas e professores aos milhares e, por tal motivo,  alvos imediatos. Desejo a todos, pleno sucesso na tarefa tormentosa de honrar a autoridade ética e acadêmica dos campi. O projeto obscurantista será vencido. Mas perguntamos o custo em existências e saber. As universidades em vínculo com instituições que defendem a ciência, os movimentos democráticos além da imprensa ainda não vendida, sairão frágeis mas legitimadas na luta pela vida humana. O governo estará em minúscula nota ao pé da página na história dos crimes. Analistas insistem em colocar a folha de parreira sobre o poder federal. Eles falam em prática “populista ”. Deixemos as camuflagens. Falemos de fascismo porque “fascista é alguém com profunda identificação com um determinado grupo ou nação em cujo nome se predispõe a falar, que não dá a mínima para os direitos de outros e está disposto a usar os meios que forem necessários –inclusive a violência – para atingir suas metas” (Madeleine Albright, Fascismo, um alertacitado por Ruy Samuel Espíndola in Marcelo Peregrino, da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial). O governo não dá a mínima para o direito à vida dos cidadãos. O saber é negado por ele na espiral violenta em que suas hordas se engolfam contra todos os que não dobrarem os joelhos para o Líder e seus cúmplices. Última palavra: lembro o nome do Magnífico Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. E à Universidade Federal de Minas Gerais, violentada em sua dignidade acadêmica e também ética, por quem dever a respeitar e proteger.

Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Carlos Roberto Velho Cirne-Lima

Carlos Roberto Velho Cirne-Lima

EDIÇÃO 261 | 09 JUNHO 2008



Há uns quarenta anos, perguntei ao meu amigo e professor Francisco Taborda SJ quem era o Cirne-Lima. Ele então me resumiu mais ou menos assim: “Brilhou no noviciado, brilhou no juniorado, brilhou na filosofia, brilhou no magistério, brilhou na teologia, brilhou na Alemanha, brilhou na Áustria...”. Um currículo impressionante, para alguém com trinta e poucos anos! A idéia que tirei dessa conversa foi a de que Cirne-Lima (tal como seu amigo Puntel ) representava uma das melhores cabeças que os jesuítas do sul do Brasil haviam ajudado a formar, em muitas décadas.
No começo dos anos 1980, conheci-o então pessoalmente, depois de ter ouvido contar, por outras fontes, que ele era um brilhante administrador de empresas, tanto no ramo da celulose quanto no ramo bancário ou no imobiliário. Soube depois que um de seus orientadores exigira que ele estivesse capacitado profissionalmente para a eventualidade de um dia vir a ser cassado. Santo conselho! Ou profecia? Cirne-Lima repetiu muitas vezes o seu bordão: “Quando a revolução me obrigou a ficar rico...”.
Conheci Cirne-Lima no Departamento de Filosofia da UFRGS, quando Valério Rohden  conseguiu o retorno dos cassados: Fiori, Cirne-Lima, Stein  e João Carlos. Após a cerimônia da reintegração, dei carona ao professor Fiori, que comentou comigo: “O Carlos Roberto, sempre generoso, esqueceu de dizer que no antigo Departamento de Filosofia nem todos foram cassados porque vários cassavam”. 
Eu, recém-doutor, por ter tempo e condições de criar o mestrado, aceitei o convite de Valério para ser chefe do Departamento. Que responsabilidade, ser chefe daquela turma! Mas, no que tocava ao Cirne-Lima, quanto prazer na tarefa! Chamei-o uma vez e conversamos: “Nosso curso foi mandado para o Campus do Vale e transferido do período da noite para o da tarde: querem acabar com a Filosofia; preciso de ti na Introdução à Filosofia!”. E lá se foi o nosso professor, que encantara os europeus com a tese Der personale Glaube, seduzir os nossos jovens para o charme da filosofia. Não sei se foi nesta época que teve um enfarto, mas me lembro dele, com microfone e amplificador, dando aula para mais de cem estudantes, incansável, ele mesmo encantado com o labor filosófico. Mais adiante, quando o alunado já havia crescido bastante, combinei “promovê-lo” ao terceiro ano: “Agora, Cirne-Lima, quem quiser assistir tuas aulas terá de vencer antes dois anos do curso...”. E lá se foi ele, alegre e parceiro da estratégia, sempre com a mente voltada para sua paixão: o ensino e a pesquisa.
Formei dele minha definição: Carlos Roberto é dos últimos representantes da mais bela “aristocracia gaúcha”, que defino como uma combinação de meritocracia com boa educação. Meritocracia: trata-se, queiramos ou não, de uma elite, de mentes privilegiadas, que merecem muito mais do que recebem, que se doam muito mais do que manda a obrigação. E isso junto à esmerada educação, no duplo sentido: intelectual e social. Cirne-Lima sempre mostrou, singela e despretensiosamente, que se movia com a maior facilidade tanto pelo alemão e o inglês quanto pelo grego e o latim (uma brincadeira de nosso reitor Marcelo Aquino com ele, na Unisinos, era ir à biblioteca procurar alguma passagem de Aristóteles num volume só em grego, ou greco-latino). Cirne-Lima cita um pré-socrático no original, assim como cita um Lupicínio Rodrigues (O pensamento parece uma coisa à toa...), chamando-o “Aquele bedel da Faculdade de Direito, quando meu pai era Diretor”. Mas sua boa educação tem sido também a marca do gentleman: se critica o trabalho de um colega, ele o faz de modo a engrandecer e estimular, apontando aspectos de que discorda, e indicando caminhos que poderiam ser seguidos. Apresentar diante dele um projeto sempre foi para os colegas um desafio, desafio tanto para um Puntel quanto para qualquer jovem iniciante. Mas jamais o vi humilhar um autor de um trabalho que comenta. Esta boa educação tem um lado frágil: não tem sido tão difícil magoá-lo; basta uma combinação de grosseria com pretensão, de mediocridade ambiciosa e informal. Pois Cirne-Lima é capaz de contestar deus e todo o mundo, mas sempre o faz com elegância e respeito. O próprio Deus dos tomistas e do Papa Ratzinger não poderá levar a mal, pois se ele contesta uma imagem de deus, é porque tem em mente (viva Santo Anselmo!) uma outra superior.
Entre 1953, quando lecionou Filosofia em São Leopoldo, e 2008, quando encerra seus compromissos profissionais, Carlos Roberto lecionou na UFRGS, na PUC-RS e na Unisinos, pesquisou e orientou trabalhos de pós-graduação, deu palestras no Brasil e na Europa, num pé de igualdade com Habermas ou Apel,  com Manfredo Oliveira ou Henrique Vaz. Em centenas de debates deu a cara para bater, mas sempre levando a sua interpretação, a sua filosofia, sempre curioso e criativo. Publicou livros e CD, e entre nós acabou inaugurando o gênero literário da Festschrift, como homenageado. Além de conhecer a Filosofia como poucos, Cirne-Lima sabe muito bem cultivar a amizade.

Álvaro Luiz Montenegro Valls, sempre na área de Filosofia, é graduado pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, de São Paulo, mestre pela Universität Heidelberg, e doutor pela Universität Heidelberg. Atualmente, é docente da Unisinos e presidente da Anpof (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia).

Tuesday, June 09, 2020

Miguel: breve simbologia de um país que não mudou

Miguel: breve simbologia de um país que não mudou

O passeio com os cachorros, o menino que fica com a patroa Corte Real. A empregada paga com dinheiro público. A manicure. O condomínio de luxo construído em área de patrimônio histórico. Em uma morte, resumo da tragédia brasileira
Por Simone Paz
Miguel Otávio Santana da Silva tinha 5 anos e caiu do nono andar de um condomínio conhecido como as “torres gêmeas”, em Recife, na última terça-feira (2/6), enquanto a sua mãe, Mirtes Renata Souza, trabalhava passeando o cão da patroa, Sarí Côrte Real.
A história é simples: Sarí não liberou a empregada Mirtes em tempos de pandemia — apesar de serviço doméstico não ser atividade essencial. Então, Miguel, com aulas suspensas na creche por causa da quarentena, precisou ir com a mãe para o trabalho dela, como acontece com muitas crianças e muitas mães precarizadas no Brasil.
Mirtes Renata e seu filho Miguel
Sarí estava com sua manicure (outra atividade não essencial), fazendo as unhas, quando mandou a mãe de Miguel passear os cachorros e ficou na responsabilidade de cuidar do menino, no apartamento.
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Mas Miguel sentiu falta da mãe e começou a chorar. Coisa comum em crianças de cinco anos. Sarí deve saber que crianças não podem andar em elevadores desacompanhadas, afinal de contas, ela também é mãe de duas crianças, de três e seis anos, respectivamente.
Sarí deve saber que elevadores apresentam inúmeros riscos. Mas, quando Miguel fugiu do apartamento à procura da mãe, ela, irritada, em vez de descer com ele até o térreo para aguardar a volta de Mirtes, ou oferecer ligar para ela, o deixou sozinho no elevador e apertou o botão de outro andar mais alto — como comprovam as câmeras do prédio.
Sari Corte Real e Sérgio Hacker
Todos sabemos o desespero e estranhamento que causa descer num andar desconhecido e inesperado, ao sair de um elevador. Miguel, que já estava aflito, acabou caindo do nono andar, onde foi parar por causa da patroa de sua mãe.
O caso junta uma série de símbolos e fatores que tornam ele ainda mais grave e emblemático, ao acumular todas as aberrações possíveis e cabíveis — inclusive os clichês que pareciam datados de tempos passados, e que muitos acreditam não existir mais nos tempos atuais:
  1. O sobrenome da patroa Sarí é Corte Real. Parece ironia, mas não é. Além disso ela é primeira-dama do município de Tamandaré, que fica a 104 quilômetros da capital de Pernambuco, no litoral sul.
  2. O marido de Sarí, Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré, pagava um salário mínimo a Mirtes, no valor de R$1.015,24, com dinheiro público: a doméstica está cadastrada na prefeitura de Tamandaré no cargo de Gerente de Divisão (as informações foram obtidas pelo site noticiapreta.com.br e podem ser verificadas no Portal de Transparência da Prefeitura de Tamandaré).
  3. A mãe de Mirtes, e avó de Miguel, Marta Santana, também trabalhava para a família. Tanto Mirtes como Marta pegaram Covid-19 de seus patrões, e mesmo assim não foram liberadas do trabalho (confira na matéria da Pública).
  4. A patroa delega o passeio de seu próprio cachorro, mesmo não tendo que trabalhar, já que no momento ela não estava num call de trabalho ou cuidando de seus outros filhos. Fazia as unhas, um símbolo caricato da superficialidade, expondo mais uma trabalhadora em tempos de pandemia.
  5. As empregadas e o menino Miguel são negros. A patroa é branca e loira. A morte de mais uma criança negra ocorre em meio a um momento incendiado por protestos em defesa das vidas negras e de denúncia do racismo estrutural no mundo inteiro.
  6. O caso ocorreu em um condomínio de luxo que envolveu uma disputa judicial, iniciada pelo Ministério Público Federal para barrar a edificação das chamadas “torres gêmeas”, na época de sua construção. O motivo: estar em uma área de patrimônio histórico. As obras dos edifícios com 41 andares e 134 metros de altura, intitulados Pier Maurício de Nassau e Pier Duarte Coelho, ficam próximos de vários prédios tombados pelo Iphan. Em 2016, no filme Aquarius, Kleber Mendonça Filho retirou as torres gêmeas digitalmente da paisagem.
  7. Sarí responde em liberdade, por homicídio culposo, após pagar uma fiança de apenas R$ 20 mil. Tanto a Polícia Civil de Pernambuco como o delegado do caso, decidiram proteger a identidade de Sarí e manter suas informações em sigilo, sem confirmar se se trata efetivamente dela. As razões são óbvias: ela é rica e primeira-dama. Se fosse o oposto, “a empregada negligente e culpada” teria seu rosto estampando noticiários, sem sequer direito a fiança e defesa.
Edifício de luxo apelidado “torres gêmeas”, em Recife
O horror que é o Brasil de todo dia pareceria surreal ou “exagerado” se retratado num filme de ficção.
Uma síntese do Brasil pôde ser feita, com todos seus símbolos colonialistas e escravocratas, nos rápidos acontecimentos de uma terça-feira de outono, em pleno século XXI.

O grande apagão no ministério da Saúde

O grande apagão no ministério da Saúde

Incapaz de coordenar qualquer combate nacional à pandemia, e sem titular efetivo há duas semanas, pasta agora dedica-se a maquiar os números da covid-19. E mais: Wizard, fundamentalista bilionário, deixa o governo antes de assumi-lo
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Esta é a edição do dia 8 de junho da nossa newsletter diária: um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia. Para recebê-la toda manhã em seu e-mail, é só clicar aqui.
APAGÃO ESTATÍSTICO

Primeiro foram os atrasos: como dissemos na semana passada, a partir da última quarta-feira os números atualizados da covid-19 no Brasil começaram a ser divulgados às 22h, e não mais às 19h como acontecia desde o início de maio. Os balanços feitos em entrevistas coletivas às 17h, que ocorriam quando Luiz Henrique Mandetta comandava o Ministério da Saúde, ficaram para trás há muito tempo.

A pasta argumentou que a divulgação tardia evitaria subnotificação e inconsistências. O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, foi mais explícito: “Acabou matéria no Jornal Nacional“, disse na sexta-feira, referindo-se à impossibilidade de números divulgados tão tarde entrarem no telejornal. A Globo não se fez de rogada. Deve ter provocado algumas quedas do sofá quando interrompeu a novela das nove com a vinheta do plantão de emergência. Então William Bonner entrou ao vivo, informando que os números do dia haviam acabado de sair – eram 1.005 mortes nas 24 horas anteriores, totalizando 35.026.

Naquela mesma noite veio o verdadeiro apagão. O portal do ministério que traz as informações consolidadas saiu do ar, sem explicações, e só voltou no sábado à tarde. Porém, estava… diferente. Não trazia mais o acumulado de casos e mortes registrados no país, mas apenas o total das últimas 24 horas. O número de óbitos sob investigação (que até quinta-feira era de 4.159) também desapareceu. O Brasil até chegou a sumir do ranking da Universidade Johns Hopkins, que tem sido referência em estatísticas globais na pandemia, porque as informações eram puxadas direto do site do Ministério.

Jair Bolsonaro confirmou que, dali pra frente, seria sempre assim. Justificou, ao publicar no Facebook uma nota do Ministério: é que os dados acumulados não estavam “retratando o momento do país”

Não bastasse a mudança surreal, ontem à noite o governo divulgou dados divergentes em relação à pandemia. Por volta das 20h30, soltou um balanço informando 1.382 mortes nas 24 horas anteriores, o que seria o maior número já registrado em um domingo. Mas às 22 horas, depois que a notícia já tinha circulado, esse número saiu e foi substituído por outro: 525. Uma diferença de nada menos que 857 vítimas. O número de casos, por outro lado, subiu. No primeiro balanço eram 12.581 novos registros e, no segundo, 18.912. 

Com esse inacreditável fim de semana, outro episódio de estatísticas camufladas veio à memória de muitos: entre 1971 e 1974, durante a ditadura civil-militar, uma epidemia de meningite assolou o país, especialmente São Paulo. Mas, para o governo, o melhor remédio era ignorar o problema, evitando que as mortes manchassem o ‘milagre econômico’. As autoridades sanitárias e a imprensa ficaram proibidas de falar a respeito. Mesmo após junho de 1974, quando o acúmulo de doentes tornou impossível escondê-los, a liberdade de informar sobre a epidemia não durou muito: “logo em seguida, julho ou agosto, se proibiu a divulgação de dados estatísticos a respeito da doença para ‘não alarmar a população’. O assunto era considerado de segurança nacional“, lembra, numa antiga entrevista ao Viomundo, o epidemiologista José Cássio de Moraes, um dos especialistas que tentou alertar para o problema na época.

ESFORÇO CONJUNTO

Segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, a intenção do governo não é a de esconder os dados, “Basta você somar com o dia anterior“, simplificou ontem, em entrevista.

É óbvio que as somas estão sendo feitas. Com o apagão, iniciativas que já estavam lidando com dados da pandemia no país, como Brasil.io e MonitoraCovid-19, começaram a trabalhar com os dados das secretarias estaduais. Ontem, o Conass lançou um painel próprio. O TCU, em parceria com os tribunais de contas dos estados, também deve produzir e divulgar consolidados.

Aliás… O erro nos primeiros dados divulgados pelo Ministério ontem à noite já havia sido pescado pelo pessoal do Brasil.io. Segundo Álvaro Justen, um dos integrantes da iniciativa, os números de óbitos de Roraima e Bahia divulgados inicialmente pela pasta eram muito maiores do que os registrados pelas secretarias de saúde, possivelmente devido a erros de digitação.

De acordo com o Brasil.io, o Brasil tem hoje 693.041 casos confirmados de covid-19 e 36.498 mortes. Quase 80% dos municípios já registraram infecções.

Só que a responsabilidade por divulgar informações corretas, claras e atualizadas deve ser do governo. Desde a sexta-feira, várias iniciativas no sentido de cobrar isso estão na mesa. Parlamentares da Rede Sustentabilidade, do PCdoB e do PSOL entraram com uma ação no STF pedindo que todos os dias, até as 19h30, sem adivulgados os números de casos, óbitos e pacientes recuperados das últimas 24 horas, além dos dados acumulados. No sábado, a Defensoria Pública da União entrou com um pedido de liminar com a mesma reivindicação.

E um órgão ligado à Procuradoria-Geral da República, a Câmara de Direitos Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral do MPF, abriu um procedimento extrajudicial para investigar os atrasos e omissões. A Câmara quer que o ministro interino, general Eduardo Pazuello, dê em 72 horas detalhes sobre a decisão. Além disso, a imprensa internacional deu destque à notícia absurda.

Pode ser que a pressão tenha funcionado. Ontem à noite, o Ministério da Saúde divulgou uma nota afirmando que está finalizando uma plataforma que vai trazer os números detalhados da pandemia e que “vem aprimorando os meios para a divulgação da situação nacional”… Para quem diz buscar aprimoramento, a ordem dos eventos está um pouco confusa. Se a plataforma anterior não tivesse sumido, talvez desse até para acreditar. 

RECONTAGEM DE MORTOS

Para completar, o apagão pode não ficar “apenas” na omissão dos números acumulados. O futuro (agora ex-futuro, como veremos a seguir) secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério), Carlos Wizard, disse ao Globo que o governo pretende recontar os mortos que já entraram para as estatísticas. De acordo com ele, os números que a pasta divulgava eram “fantasiosos ou manipulados”, e estados e municípios estavam inflacionando casos e mortes para receber mais recursos. “Temos uma equipe de militares trabalhando nisso, sob o comando do general Pazuello. Estamos levantando os dados e fatos. Levaremos à esfera competente”, completou, no dia seguinte, em entrevista ao Estadão.

Como não poderia deixar de ser, a fala foi imediatamente criticada. “Fico me perguntando como vai ser uma contagem retroativa de mortos. Não existe um banco de dados formal no Brasil: fora do DataSus, não há nada. Como o governo vai dizer que na linha A23 da tabela a pessoa não morreu de covid? Quais são as métricas?”, questiona Marcelo Mendes Brandão, pesquisador do Laboratório de Biologia Integrativa e Sistêmica da Unicamp, no Estadão.

Os secretários de saúde, diretamente acusados por Wizard de inflar números, defenderam-se. “Sua declaração grosseira, falaciosa, desprovida de qualquer senso ético, de humanidade e de respeito, merece nosso profundo desprezo, repúdio e asco”, escreveu Alberto Beltrame, presidente do Conass.

No fim das contas, não sabemos se o plano diabólico de Wizard vai seguir adiante, porque ontem à noite ele anunciou seu desligamento total do Ministério. Em nota, afirmou que deixaria o cargo que já ocupava como conselheiro da pasta, e que desistiu também de assumir a Secretaria, da qual tomaria posse hoje. “Peço desculpas por qualquer ato ou declaração de minha autoria que tenha sido interpretada como desrespeito aos familiares das vítimas da Covid-19 ou profissionais de saúde que assumiram a nobre missão de salvar vidas” escreveu.

A verdade é que o bilionário estava prestes a sentir no bolso o resultado de suas trapalhadas, desde a defesa apaixonada da cloroquina até a recontagem de mortos. Os nomes de das empresas de que ele é dono ou acionista, como Mundo Verde, Rainha e Pizza Hut, começaram a circular nas redes, impulsionando um movimento de boicote.

AOS PÉS DE TRUMP

Donald Trump, sabemos, tem lidado tragicamente com a covid-19 nos Estados Unidos. Em certo momento, chegou a dar uma perturbante declaração, afirmando que se o país tivesse 100 mil mortes, teria feito um bom trabalho. Até agora são 110 mil e, embora o número diário de mortes tenha caído, a situação ainda não é confortável. Mas, para sorte do presidente, há outro líder pior que ele, e bem perto. Trump, que já havia criticado Bolsonaro, foi mais incisivo nessa sexta-feira: “Se você olha para o Brasil, eles estão num momento bem difícil. E, falando nisso, continuam falando da Suécia. Voltou a assombrar a Suécia. A Suécia também está passando por dificuldades terríveis. Se tivéssemos agido assim, teríamos perdido 1 milhão, 1,5 milhão, talvez 2,5 milhões ou até mais”, disse.

Mais tarde, Bolsonaro faria mais uma tentativa de aproximar-se de sua fonte de inspiração: disse que o Brasil também pode deixar a OMS. “Ou a OMS deixa de ser uma organização política, partidária até vou assim dizer, partidária, ou nós estudamos sair de lá”, afirmou ele. Perguntado sobre o cutucão de Trump, esquivou-se: “[Trump]  É meu amigo, é meu irmão. Falei com ele essa semana, foi uma conversa maravilhosa, um abraço, Trump. O Brasil aí quer cada vez mais aprofundar nosso relacionamento”,

SUSPENSAS, SÓ QUE NÃO

O ministro Edson Fachin, do STF, determinou na sexta-feira a suspensão de operações policiais nas favelas do Rio enquanto durar a pandemia. Elas só poderão ocorrer em “hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro” e, caso deflagradas operações, a polícia deve tomar “cuidados excepecionais” para não colocar em risco a população, os serviços de saúde e a ajuda humanitária.

Mesmo com as brechas, foi uma vitória. Durou pouco, porém. Na noite seguinte, moradores do Complexo do Alemão já foram surpreendidos com um tiroteio. Eram PMs  participando de uma incursão. Questionado, o governo do Rio disse apenas que ainda não havia sido  notificado pelo STF sobre a suspensão.

DIA DE PROTESTOS

Conforme havia sido anunciado, ontem vários protestos contra Jair Bolsonaro aconteceram no país, com a defesa das vidas negras como principal grito. Houve manifestações em pelo menos 11 estados e no Distrito Federal, segundo informações da Folha. A maior delas, em São Paulo, terminou com bombas e 32 pessoas detidas.

Ontem, um editorial do Financial Times apontou Bolsonaro como alguém que “acendeu o medo” na democracia brasileira e disse que há risco crescente de uma virada autoritária. “É improvável que o Exército apoie um golpe militar para instalar Bolsonaro como um autocrata. Mas outros países devem observar: os riscos para a maior democracia da América Latina são reais e estão crescendo”, afirma o texto. E também: “Isso pode soar exagerado. Mas poucos presidentes eleitos atenderiam e contemplaria protestos nos quais os manifestantes pedem pelo fechamento do Congresso e da Suprema Corte, sendo substituídos por uma lei militar. Ainda assim, isso é o que o Sr. Bolsonaro fez – não uma, mas várias vezes. No fim de semana passado ele apareceu em uma dessas manifestações montado a cavalo”

Neste fim de semana, entretanto, não houve clima para aparições chocantes nem grandes sorrisos do presidente. Atos em favor dele também aconteceram em Brasília, em São Paulo e no Rio, mas muito mais tímidas. O próprio Bolsonaro havia pedido a seus apoiadores que não fossem às ruas no domingo, mas mesmo assim é inevitável comparar o volume de manifestantes. A multidão que ocupou avenidas ontem, apesar da pandemia, é bem maior. Fora das ruas, o presidente recebeu ainda na sexta um grupo de líderes evangélicos que oraram contra a “baderna” e o “quebra-quebra”. Disseram que quem escolhe e retira as autoridaes públicas é “Deus”. “Que Deus livre o Brasil dessa praga e dessa pandemia, que esse espírito de morte seja repreendido da nossa nação”, rogou Silias Malafaia.

Em tempo: mundo afora, multidões continuam marchando em atos antirracistas. Uma das grandes cenas do domingo veio de Bristol, na Inglaterra, onde manifestantes derrubaram uma estátua de mais de cinco metros do traficante de escravos Edward Colston. Jogaram no rio.

NO MUNDO E NOS EUA

O número de mortos por covid-19 no mundo ultrapassou a marca de 400 mil, e os infectados já passam de sete milhões. A cada quatro mortes, uma aconteceu nos Estados Unidos, que já tem mais de 110 mil óbitos e quase dois milhões de infectados.

Há um receio de que as manifestações desencadeadas pelos protestos contra o assassinato de George Floyd provoquem um novo aumento nos casos. O virologista Trevor Bedford, do Centro de Pesquisa de Câncer Fred Hutchinson, estima que cada dia de protesto resulte em cerca de três mil novas infecções. E, dadas as disparidades raciais observadas até agora na pandemia, ele acredita que as novas mortes também serão desproporcionalmente maiores entre os negros. “O benefício social de protestos contínuos deve ser pesado contra impactos substanciais em potencial à saúde”, afirma.

A reportagem do New York Times diz que manifestantes de várias cidades já relatam terem contraído o vírus. Porém, diante de um provável aumento nos casos nos próximos dias, vai ser muito difícil saber de onde eles vieram, porque os protestos acontecem ao mesmo tempo que flexibilizações do isolamento.”Você não pode colocar tudo na conta dos protestos”, afima o epidemiologista Jeffrey Shaman, da Universidade de Columbia.

Aliás, o aumento nos casos já está começando por lá. Em 23 dos 50 estados do país, houve na semana passada um aumento de pelo menos 10% em relação à média de casos semanais registrados. E o percentual é menor nos estados que começaram depois e relaxaram primeiro as medidas de isolamento.

NOVAS ORIENTAÇÕES

A OMS atualizou ontem suas orientações sobre o uso de máscaras. A principal novidade é a incusão das máscaras de tecido para a população em geral. Segundo a entidade, elas devem ter pelo menos três camadas de tecidos diferentes: a externa deve ser de tecido impermeável, como poliéster; a de dentro precisa ter um tecido que absorva água; a intermediária deve ser de um material que atue como fltro. Essas máscaras devem ser usadas em locais onde há muitos infectados, caso não seja possível manter distanciamento físico. Mas a orientação é de usar máscaras cirúrgicas (e não de pano) para quem está nos seguintes grupos: profissionais de sáude, cuidadores infectados, pessoas com 60 anos ou mais, doentes crônicos e pessoas com sintomas de covid-19.

PERSEGUIÇÃO

Falamos aqui sobre uma nota técnica do Ministério da Saúde que tratava da garantia, durante a pandemia,  de acesso a métodos contraceptivos e a aborto nos casos previstos em lei. O documento foi retirado do ar por pressão de Jair Bolsonaro, mas não foi só isso: o ministro interino, Eduardo Pazuello, exonerou dois dos três técnicos que assinavam a nota: Flávia Andrade Nunes Fialho, da coordenação de Saúde das Mulheres, e de Danilo Campos da Luz e Silva, da coordenação de Saúde do Homem. Entidades da saúde publicaram notas de repúdio.

Militares, ciências, Educação Popular.

A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lóg...