A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lógicas ou empíricas. Segundo os defensores daquela cultura imaginária derreteram-se as formas sociais e políticas definidas nas Luzes e nas Revoluções inglesa (século 17), norte-americana e francesa (século 18). A ordem moderna estaria em questão, sobretudo instituições como o Estado. Com a globalização – outro dogma assumido sem muitas perguntas por acadêmicos, políticos, jornalistas – vieram as exéquias dos países que exigiam para si e seus amigos ou inimigos o poder soberano. Outro dogma: se não existem direitos individuais e coletivos garantidos pelo Estado democrático – conquista das revoluções mencionadas – seria preciso privatizar os serviços públicos. A sobra do poder soberano só pode manter duas funções: seguir o mercado, em especial o financeiro, e reprimir levantes populares contrários aos ditames das bolsas de valores.
A receita foi aplicada na Europa, mesmo por administrações “de esquerda”, nos EUA por governos “democratas”, na Ásia, África e América do Sul. A pandemia atual (outras com certeza podem ocorrer) é potenciada pela urbanização inédita da vida humana. Seu início mais forte vem do século XIV, mas ela foi acelerada desde o fim da Segunda Guerra. Bilhões de seres humanos se dirigiram para as periferias na busca de sobrevida. É dado histórico: a concentração populacional agravou as várias pestes europeias e mundiais como é o caso da influenza. Prover serviços para tais massas (água, esgoto, saúde, educação, segurança, alimentos, cultura, tecnologia) exige muito recurso técnico, humano, político, financeiro. Com as instituições públicas corroídas pela privatização e perdões de impostos para grandes empresas e fortunas, o caixa dos Estados fica à míngua. As massas tangidas rumo às megalópoles, ali postas em tugúrios sem espaço para respirar são as maiores vítimas da morte e da vida sem amanhã. Os poderes urbanos sempre foram tomados pelas “inesperadas” doenças que matam mais do que em muitas guerras. Urge repensar os pressupostos lógicos, jurídicos, políticos e científicos das doutrinas mencionadas no início, retornando ao poder de Estado e reconfigurando os seus três monopólios: o da norma jurídica, da força, dos impostos. Sem tais providências milhões perecerão ao desabrigo. Chegaremos quase mortos ao reino da natureza bruta, onde todos são os lobos de todos. Aliás, a frase do Leviatã não veio até Hobbes por acaso. Tradutor da Guerra do Peloponeso, ele sabe o quanto numa endemia – como a que levou Atenas à ruína– os laços entre humanos se degradam rumo à ferocidade. [I]
Elias Canetti comenta a passagem de Tucídides em Massa e Poder. Ele considera a epidemia um caso exemplar das massas sob ataque. Segundo Canetti os eventos que reúnem massas no mundo moderno pertencem à categoria das hordas em fuga ou em perseguição. Um ponto relevante trazido por Maclleland [II] é que a biologia, estratégica para compreender as pandemias, assumida no pensamento de Canetti não se aproxima de Darwin. Ponto estratégico pois muitas doutrinas sobre as massas e as elites, sobretudo as que defendem uma suposta meritocracia na educação, assumem de forma direta ou sub-reptícia a tese de que os “inferiores” caem vítimas das doenças, miséria, ignorância em processos “naturais” onde são escolhidos os melhores. Assim, sacralizam-se os genocídios modernos. Não. A biologia próxima ao pensamento de Canetti encontra-se em Pasteur. Cito Maclleland: “Toda a teoria das massas é ligada a números; multidões são contadas aos milhares e as massas aos milhões; a teoria das multidões em suas formas modernas teria sido desnecessária, talvez impossível, sem a consciência da vida fervilhante das grandes cidades, num mundo cuja população aumenta sem cessar e premido por espaço. Canetti pensa que a origem de tal ‘milhão mágico’ vai além da urbanização e crescimento populacional com a descoberta (...) de que o mundo já foi superpovoado em grau inimaginável por massas de bacilos hostis que lutam com o homem (...) viver agora é viver entre incontáveis milhões; multidões estão em toda parte e exigem a atenção das ciências”. [III]
No interior da natureza as massas existem e se aglomeram, são dizimadas e ressurgem nos quatro elementos. Não é diferente com o ser humano. Daí, digamos, a enorme dificuldade para estabelecer isolamentos profiláticos nas cidades superpovoadas durante as pandemias. Restringir grupos em espaços limitados vai contra o que ocorre no plano físico, biológico, psicológico e social que, todos eles, moldam e são moldados pela atividade técnica dos homens. Ocorre mesmo que tal restrição pode trazer resultados tremendos. Canetti mostra que o interior das massas é uma espécie de reino natural hobbesiano. Concentradas em pequenos espaços os seus embates crescem, a violência e o medo as seguem. Não é também acidente que os alemães tragados pela Primeira Guerra Mundial, diminuído o seu território, passaram a delirar com espaços cada vez mais amplos. A busca frenética do Lebensraum os levou ao assassinato de seis milhões de judeus, ciganos, homossexuais, milhões de guerreiros germânicos, franceses, ingleses, soviéticos. Concentrar massas em espaços pequenos serve como estopim de ódios, ideologias ressentidas que, para serem momentaneamente saciadas exigem a plena adesão dos grupos e indivíduos à massa que opera por meio das hordas. Para atingir tal fim líderes assassinos incentivam a geração de massas virulentas. Mas precisam reprimi-las para que sigam o rumo favorável ao controle político.
Um elemento essencial na urbanização sofrida pela Humanidade reside no excesso concedido às políticas de repressão das massas. Agora mesmo no Brasil milhões de pessoas sem emprego passam fome e perdem esperanças de sobrevida. Surgem na imprensa “avisos” do Ministério Público sobre “vandalismos” e “saques” que apavoram o comércio, os bancos, as indústrias. [IV] Comoções sociais são prognosticadas e as culpas do perigo são jogadas sobre as multidões famintas. Nenhuma novidade em tal comportamento das elites seguidas pelas classes médias do mundo inteiro. Aliás, desde o começo da suposta civilização cristã e ocidental as massas foram apresentadas como perigo eterno a ameaçar as “boas sociedades” e seus regimes políticos. Mas com a concentração urbana, na passagem do feudalismo para o Estado provido de um centro de poder, a polícia foi inventada, bem como os Exércitos burocráticos, máquinas de matar no aparelho público. Começa a cultura da repressão planificada contra as massas pobres, as “aves de rapina” no dizer de John Locke, liberal mas não o bastante para tolerar insurreições populares. [V]
Dos três monopólios do Estado moderno – norma jurídica, impostos e força física – o último se evidenciou cada vez mais necessário para manter os outros e o domínio no poder social e político. No Brasil o monopólio das armas não se estabeleceu de imediato com a Independência. O costume dos fazendeiros, cujos exércitos privados (os esquemas da capangagem) ajudavam a definir o mando nos municípios persistiu na Guarda Nacional sob seu controle, agora como Coronéis. Forte resistência ao Exército Nacional veio em nome de um pretenso programa “federativo” para reiterar a sua força e dominação sobre populações pobres. Mesmo após a implantação do Exército o coronelismo se mantém e gera déficit democrático nas entranhas do país.
O Exército, desde o seu início, apresenta uma característica intelectual importante. Existem estudos sobre o uso, nele, das ciências e das técnicas. Um clássico descreve com acuidade os primeiros passos da república e a importância do positivismo na formação das lideranças militares. A releitura de Ivan Lins faria muito bem aos militares hoje silentes diante de um ministro da Fazenda que se gaba de ter lido oito livros sobre cada processo de reconstrução nacional na Europa. A formação de um militar de alta patente nos inícios da república compreendia a matemática, a física, a química… a biologia e outros setores da pesquisa. [VI] Além do culto à ciência os militares defendiam a laicidade estatal e o predomínio do poder civil. Durante a Questão Militar que, seguida pela Questão Religiosa acelerou a queda do Império, ocorre o caso Senna Madureira. Este se desdobra em dois episódios: primeiro veio a atitude do Tenente-coronel Senna Madureira contra a contributo ao montepio militar. Punido, ele traz no ano seguinte para a Escola de Tiro o jangadeiro Francisco José do Nascimento (alcunhado Dragão do Mar que se recusou a transportar escravos). A homenagem causa a punição de Madureira. Como fruto da penalidade segue a proibição para os militares discutirem assuntos nacionais na imprensa. A ebulição foi grande e no dia 2 de fevereiro de 1887 Benjamin Constant, no Clube Militar, defende a subordinação da farda ao poder civil. Ivan Lins destaca o pronunciamento: “Se, no regime democrático é condenada a preponderância de qualquer classe, muito maior condenação deve haver para o predomínio da espada, que tem sempre mais fáceis e melhores meios de executar os abusos e as prepotências”.
Volto à pandemia e às massas. O projeto positivista para o Brasil, em termos educacionais, exigia que as cidades concentradas no Atlântico, sem maiores extensões para o interior, se aplicassem à ciência, técnicas e, last but not least, ao pensamento laico. O mesmo ocorre no Exército. Apesar de seu programa ditatorial (que os adeptos afastavam de ditaduras como as bonapartistas) o positivismo valoriza os debates públicos, a livre imprensa e a separação do Estado e das igrejas. Se teve enraizamento nas elites militares e civis, a doutrina comteana não atingiu massas urbanas ainda sob o manto eclesiástico. A guerra surda para atingir multidões foi vencida pela Igreja. Esta última, desde o final do século 19 orientou seu controle social pelo movimento de massas. Nos anos 30, em imensas procissões dos Congressos Eucarísticos, fica patente o uso de multidões pela Hierarquia católica para manter o controle da sociedade. [VII] Os positivistas foram contrários à instauração da universidade. Eles receavam com receio que a Igreja a controlasse. Os seguidores de Comte no Brasil valorizam institutos de pesquisa e a educação popular nos campos técnicos e científicos. A defesa da ciência e do laicismo tem como centro elites acadêmicas e militares. Vence o programa da Igreja, com a presença de católicos conservadores no Ministério da Educação durante décadas. É o caso de Alceu Amoroso Lima e seus companheiros da Revista A Ordem. O programa positivista de ampla educação popular nos setores científicos foi derrotado. O país não seguiu no rumo de valorizar a ciência e os militares positivistas permaneceram ativos sobretudo nas instituições de ensino das Forças Armadas. Estava posta a sementeira do ódio à ciência no país. A ditadura Vargas protege o plano da Igreja e com ela se protege dos “inimigos”. Em vez de preparar uma administração das massas pelo ensino científico ocorre a reafirmação do autoritarismo, do culto ao ditador, da perseguição aos defensores do ensino laico. Simbolicamente a consagração do Brasil ao Sagrado Coração – o Cristo Redentor – definiu os rumos do poder teológico-político, inimigo da ciência, propagador de milagres na redução do povo ao estatuto de rebanho.
Mesmo na ditadura de 1964 os militares não abandonam totalmente a ciência e a técnica. Projetos não raro grandiosos foram iniciados com ajuda de universitários. Mesmo com a caça aos “comunistas” dos campi, os militares guardaram núcleos de pesquisa. Apesar das intervenções contra as ciências humanas, elas foram mantidas e, em alguns casos, incentivadas. A fundação da Unicamp evidencia a ambiguidade do governo ditatorial: de um lado, persegue os opositores acadêmicos ao regime e, de outro, dialoga com o saber universitário. [VIII] E assim foi nos anos em que o governo se tornou oficialmente civil, após a ditadura. Ressalto um ponto: durante os últimos decênios os militares pareciam adstritos às funções constitucionais. Eles continuaram seus estudos científicos e técnicos. A Embraer marca semelhante rotina, o trato dos pesquisadores das Forças Armadas com os campi civis teve progressos significativos.
No entanto, os militares ligados às ciências e os acadêmicos estão limitados a um público diminuto, se considerarmos as massas populacionais brasileiras. A ciência e a técnica, longe dos projetos positivistas e dos liberais paulistas que fundaram a USP, não chegou às camadas populares. No mesmo ritmo, as técnicas de comunicação e controle popular se aprimoraram no áudio visual, na TV, na telefonia (primeiro os e-mails, depois o Torpedo, depois as redes “sociais”, o Whatsapp e similares), gerando uma potência persuasiva e de comando inédito na história humana. Sem conhecimentos científicos pelo menos medianos, massas passam a “opinar” do único modo costumeiro: pelo ouvir dizer sem análise lógica ou empírica. As universidades e laboratórios, embora produzam conhecimentos essenciais para a sobrevivência e o progresso social, encontram-se isolados das multidões que consomem técnicas de comunicação persuasiva e controle. Tal barreira pode ser notada sempre que ocorrem cortes de recursos financeiros para a pesquisa científica e técnica, algo praticado desde os governos FHC, Luiz Inácio da Silva, Dilma Rousseff. A subtração de meios para incentivar as investigações (em todas as especialidades) não enfrenta resistência popular, muito pelo contrário. Diminui, assim, de modo acelerado a potência do conhecimento no trato com as massas no território nacional.
Em outra vertente os militares passam a ser chamados a intervir em assuntos não previstos em sua função, sobretudo na repressão policial. Gradativamente eles são postos em operações desastradas nas periferias urbanas, manobras que autorizam procedimentos contra os direitos civis. No Rio de Janeiro, na luta contra narcotraficantes, foi comum juízes decidirem sentenças e processos instalados em caminhões do Exército. Na exata medida em que os governos civis se fragmentam e perdem legitimidade por atos corruptos (desde a Emenda da Reeleição presidencial) os militares são chamados para resolver assuntos próprios da Justiça, polícia ou demais instituições civis.
Volto à questão educacional e às massas. Tanto os positivistas quanto os liberais que idealizaram o ensino universitário (ainda cito a USP) consideravam que a pesquisa superior deveria ser praticada por elites do saber, mas com obrigatória difusão entre a massa populacional, múnus do Estado. Os militares positivistas conheciam de cor e salteado o programa do Catecismo Positivista. A Biblioteca do Proletário elenca 150 títulos para leitura dos setores populares. A coleção se divide em quatro setores, entre os quais história, ciências, poesia. Autores indicados? Buffon, Broussais, Lavoisier, Condorcet, Carnot, Lagrange, Bichat, Blainville, Navier, Poinsot, Aristóteles, Santo Agostinho, Cabanis, Gall, Barthez, Dante... O fato de ser a lista dirigida aos proletários mostra o ímpeto positivista. O Estado deveria cuidar para que as multidões saíssem do reino da superstição, caminhando para o saber que, embora não rigoroso como o dos pesquisadores e cientistas, preparava para o pensamento, o controle das informações. [IX]
Ao longo da república militares e liberais civis pagaram um lip service ao programa de educação das massas. Apesar dos progressos, conseguidos com muitas lutas, sacrifícios, heroísmos, o ideal não se efetivou. Salvo iniciativas como as lideradas por Paulo Freire e Darcy Ribeiro, inspirados em Anísio Teixeira, pouco se fez naquele setor. Mas os coletivos civis e militares ligados à pesquisa científica desenvolveram esforços naquele plano. Com o regime de 1964 houve uma grande abertura para o ensino popular. Em vez das antigas escolas rigorosas, a rede pública acolheu alunos aos borbotões. Mas o Estado não se adequou à nova efetividade. O número foi imenso mas o programa educacional não foi pensado de modo eficaz. Além disso, dado o número espetacular somado à ineficiência do ensino, surgem os cursinhos preparatórios ao vestibular para os que pudessem dispender tempo e dinheiro. O vestibular se apresenta como barreira para os “negativamente privilegiados” (termo de Max Weber). Tais cursinhos se organizam em termos capitalistas gerando “universidades. A indústria das instituições “universitárias” passa a integrar a Bolsa de Valores, um negócio a mais.
As universidades públicas perceberam muito tarde o sistema injusto dominado pelo vestibular. Surgem propostas para diminuir o desigual acesso ao campus, aparecem as cotas para remediar a injustiça. Jovens pobres, negros, indígenas são acolhidos mas não o bastante para gerar capilaridade entre os campi e as massas. Já era tarde para definir o elo entre os povos e os pesquisadores acadêmicos. A massa desprovida de saberes mas com acesso imediato aos instrumentos de comunicação já se formara. E tal massa, sem informação, não sabem que os celulares e computadores exigem muito esforço intelectual. Ela passa a difundir mensagens misólogas em escala inusitada. E tudo é simultâneo ao predomínio na “opinião pública” de pastores, ideólogos, políticos fascistas que atacam a ciência e negam o saber.
Os militares, embalados pelo sucesso relativo de suas intervenções repressivas nas periferias, começam a esposar teses da extrema direita inimiga do conhecimento. Com a eleição de Bolsonaro surge a face religiosa obscurantista que promete perenidade no poder desde que a pauta eclesiástica, protestante ou católica, seja obedecida. Assim, retornamos ao período Vargas, mas com hegemonia “evangélica”. Igrejas fundamentalistas assumem algo impensável no protestantismo dos século 16 e 17, a guerra, antes privilégio católico, contra a ciência.
Acrescento o conúbio do governo Bolsonaro – e seus economistas neoliberais que desejam tudo privatizar – e militares. Pela primeira vez na história brasileira as pessoas fardadas assumem uma atitude cordial diante de discursos que desejam reduzir a laicidade e os deveres do Estado para com os serviços públicos. Termino: as Forças Armadas não continuam a politica pretérita de defender a ciência e a técnica, aspirando à educação das massas. Hoje os militares aproveitam oportunidades para sua vida pessoal nos governos, defendem pautas corporativas e não têm mais uma doutrina de ciência e tecnologia para o Estado brasileiro. No recente e infausto vídeo da reunião ministerial, assistido por toda a Nação, vimos o pensamento político das Forças Armadas estraçalhado pelo Ministro da Economia. “Li oito livros sobre cada processo de recuperação econômica na Europa”. Na universidade que se preza tal assertiva impediria um mestrando de ir à Banca, tal a pobreza exibida sem pejo. Mas o general ao lado, responsável por um Plano de recuperação econômica para o Brasil pós epidemia, calou-se, não forneceu ao pedante ministro nenhuma resposta à altura. Assim, infelizmente, os militares brasileiros deixam de valorizar a ciência ao obedecer pastores ignaros ou economistas que defendem o interesse privado e não o estatal. Eles servem como instrumento para que velhas raposas retornem ao controle de cargos e verbas, como o Centrão de Roberto Jefferson. Em vez de diminuir, aumenta a distância entre geradores de saber e a massa popular. Esta, por sua vez, segue como Destino uma vocação letal: a de se prestar como elemento de barganha de poderosos e permanecer sem os saberes que lhe permitiriam o salto do estatuto de vulgo (que Spinoza seja relido...) para o da cidadania. Os próximos tempos tornarão ainda mais triste o papel das Forças Armadas, levando para bem longe o sonho de Benjamin Constant: o de fazer o setor militar servir governos civis, e não vice-versa. E fazer da ciência o fundamento de um país soberano. Ouvimos a cada dia maior número de militares que perdem a sua herança histórica, a vituperar como simples militantes de extrema direita a Justiça e o Parlamento. E temos os ensaios de golpes em prol de obscurantistas delirantes postos a serviço de seitas evangélicas inimigas da ciência e dos direitos humanos. Assim, o gráfico que indica o grau civilizatório do braço armado no poder estatal brasileiro mostra acentuada queda. Rumo à barbárie. No Clube Militar está sendo retirado o retrato de Benjamin Constant. Em seu lugar chega a efígie do General Augusto Heleno Ribeiro Pereira. Ele marca os novos tempos dos golpes, da repressão, de intimidação dirigida aos poderes republicanos e, sobretudo, da intolerância contra a ciência.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[I] Uma passagem significativa da tradução hobbesiana de Tucídides. As pessoas, na epidemia, nada temiam dos deuses “nor laws of men awed any man, nor the former because they concluded it was alike to worship or not worship from seeing tha alike they all perished, nor the latter because no man expected tha lives would last till he received punishment of his crimes by judgement”. Thucydides, The Peloponesian War 53 , The complete Hobbes Translation (London, University of Chicago Press, 1989), página 119.
[II] Cf. J.S. McLelland : The Crowd and the Mob, from Plato to Canetti (Unwin Hyman, 1989).
[III] Mclelland, página 294.
[IV] Por exemplo o sugestivo alerta do Ministério Público diante dos eventos “indesejáveis”da pandemia trazida pelo coronavirus : “Promotoria alerta Covas sobre riscos de saques e vandalismo em São Paulo”: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/05/20/promotoria-alerta-covas-sobre-riscos-de-saques-e-vandalismo-em-sp.htm. Sobre o uso da força pelos Estados modernos, cf. Ann L. Phillips, “Prosperity and Monopoly on the use of force” no link https://library.fes.de/pdf-files/iez/12036.pdf
[V] Maria Sylvia Carvalho Franco: “All the World was America”, John Locke, liberalismo e propriedade como conceito antropológico”, Revista USP, Dossie Liberalismo/Neoliberalismo, http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25952
[VI] Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964). Um estudo significativo e útil foi publicado por Maria Isabel Moura Nascimento “O Império e as primeiras tentativas de organização da Educação Nacional (1822-1889) in http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/periodo_imperial_intro.html#_ftnref1
[VII] Romualdo Dias: Imagens de OrdemA doutrina católica sobre autoridade no Brasil. . Ed. Unesp.
[VIII] Um clássico sobre a Unicamp é o livro do saudoso Eustaquio Gomes: O Mandarim. A sua leitura permite notar a enorme diferença entre a política ditatorial e o que o ocorre hoje no governo Bolsonaro.
[IX] Cf. Robert Fox : The savant and the State: Science and Cultural Politics in Nineteenth (The Johns Hopkins University Press, 2012.
Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).
Fonte: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/roberto-romano/militares-ciencias-educacao-popular 14 de julho de 2020.