Bom artigo do professor Roberto Romano.
Em defesa da Unicamp (2)
(*) Roberto Romano da Silva
As acusações inverídicas contra a Unicamp, emitidas por frei David dos Santos, o líder da Educafro, mostram que seus ataques não visam apenas conseguir cotas para seus liderados. Elas visam interferir nas formas de recrutamento, ensino e investigações acadêmicas. Depois da ditadura militar e de suas violências no campus, agora vêm os aiatolás com a renovada tentativa de domesticar a universidade em favor da visão teológico-política. A mesma visão que norteia a tutela exercida por vários padres sobre setores do movimento negro. O que mais irrita aqueles clérigos é a autonomia da universidade. Ela impede o exercício de sua peculiar cura d’almas, na qual destruir a essência acadêmica é o maior objetivo, para erigir a fé submissa aos ditames sacerdotais.
Nos séculos 17 e 18, a Sorbonne atacou, quando não tinha mais autonomia, a ciência representada por Descartes e Pascal. Tal perda ocorreu no século 16 sob Gerson, o reitor que abandonou a liberdade acadêmica em troca das verbas para o sustento da escola superior. Segundo ele, a universidade deveria fornecer técnicos eficazes à Igreja, ao Estado e à burguesia comercial. Com a Faculdade de Medicina manteria os corpos saudáveis no trabalho e na guerra. As Faculdades de Artes e Decretos orientariam a política. A Teologia formaria os dirigentes das almas. Gerson define rígida hierarquia entre os três setores: primeiro a teologia, depois os estudos jurídicos e a medicina.
A universidade deveria manter a unidade da Igreja e do Estado, ao mesmo tempo em que aperfeiçoava o mercado. Com a perda da autonomia, diz J. Le Goff (Pour un Autre Moyen-Âge) a corporação “dos manipuladores de livros se transformou num grupo de teólogos decoradores de textos que se arvoraram em policiais do espírito e dos costumes, queimadores de livros”. Rei, papa ou comerciantes pagavam as contas das escolas, mas exigiam “o direito de apresentação, o patronato. A corporação universitária não gozava inteiramente de um dos privilégios essenciais das corporações, o auto-recrutamento. Ela parece ter-se resignado facilmente a esta limitação de sua independência por vantagens materiais”. Estava pronta a “polícia ideológica a serviço dos poderes. (...) A Renascença vê uma domesticação das universidades pelos poderes públicos” ou pela Igreja.
No século 18, a pesquisa e o ensino livres foram obras de pessoas exteriores à universidade, como os Enciclopedistas liderados por Diderot. No campus, Imanuel Kant, na crítica da desrazão universitária - O Conflito das Faculdades - ironiza as “Faculdades Superiores” (Teologia, Medicina, Direito): “o que mais interessa ao governo é o que lhe possibilita a mais forte influência – e a mais durável – sobre o povo, os objetos das Faculdades superiores são dessa natureza”. Nas faculdades “superiores” não existia liberdade de pesquisa, pois tudo vinha dos ministérios. Nelas era ignorado o uso público da razão, professores e alunos eram postos tratados como crianças que jamais deveriam argumentar contra as decisões dos príncipes. Na universidade assim concebida, diz Kant, o todo é uma fábrica, professores e alunos são engrenagens da máquina que produz obediência coletiva, como nas demais burocracias religiosas ou de Estado.
Essa prática trouxe os piores abusos, a perversão máxima no século 20 totalitário. Energúmenos políticos inventaram a religião blasfema da raça pura e a impuseram aos campi da Alemanha, Itália, França, e demais países de tradição anti-semita (M. Stolleis, A History of Public Law in Germany, 1914-1945).
Quando movimentos dirigidos por religiosos e fanáticos tentam impor regras de recrutamento para a universidade, atentam contra a autonomia acadêmica. O narrado em meu artigo anterior é claro: para domesticar a universidade vale tudo, inclusive o dado falso de que na Faculdade de Medicina da Unicamp, 90% dos que ingressam no vestibular, um ano depois são reprovados. Esta falácia digna da propaganda sem peias, serve o desejo de desmoralizar os campi para neles incutir a suposta justiça clerical. Estranha justiça, cuja base é a falta da necessária verdade. Continuarei o assunto na próxima semana.
(*) Roberto Romano da Silva é Professor titular de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor de Ética, também pela Unicamp. Doutor em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e membro do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Unicamp, é autor dos livros "Brasil, Igreja contra Estado", de 1979, "Copo e Cristal, Marx Romântico", de 1985, e "Conservadorismo Romântico", de 1997.
Os artigos do Professor Roberto Romano da Silva também são publicados.
Fontes: http://www.ucho.info/roberto_romano.htm
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