Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).
Elogio da Corrupção
TEXTO
EDIÇÃO DE IMAGEM
Um costume de intelectuais, hoje sumido, reside na visita semanal às livrarias. Com o aumento dos textos eletrônicos e a crise dos impressos, a mais que agradável inspeção às prateleiras das lojas rareia. Não há mais tempo e lazer para conversas com os intelectuais (de variados setores acadêmicos ou mundanos) que traziam informações bibliográficas úteis ao passear olhos e mãos pelos volumes expostos. Recordo a excelente Livraria Duas Cidades, comandada por um discípulo do Padre Lebret, fundador do movimento Economia e Humanismo. Frei Benevenuto de Santa Cruz oferecia aos leitores de todas as crenças e ideologias as mais recentes e profundas análises sobre o mundo político, cultural, religioso, além de um diálogo seguro acerca de fonte e autores. No seu espaço pequeno, galáxias de saber tinham encontro marcado com pensadores ortodoxos ou heterodoxos, como Antonio Candido e outros.
Se andássemos um pouco mais na direção da Biblioteca Mário de Andrade (ela própria celeiro de intelectuais que marcaram a vida nacional, entre eles Mauricio Tragtemberg) entrávamos na Livraria Italiana, onde milhares de volumes traziam ar fresco para a pesquisa artística, histórica, filosófica. A viagem poderia terminar no Sebo do Brandão e outros estabelecimentos similares, próximos ao Largo de São Francisco. Ali, coleções inteiras de clássicos, românticos, modernistas e demais etiquetas do espírito eram oferecidas a preço acessível. O costume de frequentar os sebos marca o intelectual efetivo. Aqui mesmo, em Barão Geraldo, acompanhei um grande escritor em excursões rumo às prateleiras. O nome daquele precioso ensaísta é conhecido de toda a Unicamp: Eustáquio Gomes.
Mas antes de chegar aos sebos paulistanos era obrigatória uma parada longa na Livraria Francesa. Ali, em suas aleias superlotadas de livros, o mais substancioso da cultura humana era oferecido ao cérebro que desejava pensar com outros. Além dos proprietários, eles próprios bem formados acadêmica e humanamente, atendiam funcionários com mais erudição do que muito doutor de nossos dias. Daise, uma nipônica que domina com perfeição a literatura e as formas de pensamento histórico, antropológico, filosófico, ajudava muito na pesquisa de textos raros ou novos. Das sacolas daquela livraria vinha o bálsamo contra o psitacismo que sempre ameaça os debates no Brasil.
Numa visita assim à loja, situada na Rua Barão de Itapetininga, encontrei certo dia o fármaco para um dos piores males da vida nacional. Trata-se da enorme hipocrisia e fanatismo escondido na “luta contra a corrupção”. Sim, a ladroagem dos políticos e de seus cúmplices empresários é perene ameaça ao bem comum. Ela integra um sistema de poder que nos assola desde 1500. Mas um de seus efeitos colaterais é gerar supostos combates à prática corrupta, sendo eles mesmos uma corrosão virulenta.
O Brasil conhece espasmos de tal moralismo corrupto. Desde as campanhas da UDN (União Democrática Nacional) que moveu o fantasma do “mar de lama” contra Getúlio Vargas, até situações recentes, os implacáveis da ética vazia atacam adversários e governantes com lábios cheios de slogans em prol da moral pública. Mas na primeira ocasião em que têm oportunidade de chegar aos postos do Estado (nos três poderes), revelam imensa cupidez de riqueza oficial para seus cofres privados. Resulta que, assim como em todo fascismo, tais movimentos espasmódicos de moralidade semeiam ódios, intolerância, autoritarismo. Nas bocas dos moralistas se encontram os piores vitupérios contra a democracia, os direitos humanos, a tolerância face aos diferentes. Eles estão sempre dispostos a apoiar lideranças truculentas que prometem limpar a cena pública dos “corruptos”, por definição os que pensam de modo diverso ao deles.
Ah! Sim! O antídoto que encontrei na Livraria Francesa? Trata-se do livro editado em 2008 pela psicanalista Marie-Laure Susini com o título de Eloge de la Corruption (Paris, Ed. Fayard). Ali a autora traça a genealogia do moralismo que se traveste de política. Em primeiro lugar temos o magnífico tratamento de G. Orwell e seu ataque aos salvadores do mundo que desejam decidir o futuro das pessoas infernizando seu presente e distorcendo seu passado. Depois vem a análise do jacobinismo que teve Robespierre à frente do Terror “que a tudo purifica”. Susini desce até Tomás Morus e sua utopia de um Estado limpo, dentro e fora dos homens. E finalmente ela discute a semente da pureza ocidental, no pensamento de Paulo apóstolo.
Da pureza espiritual à pureza das intenções e da vontade, e daí para a pureza ideológica e de raça, o movimento é contínuo, de uma lógica sem piedade. Susini dá um tapa na face dos hipócritas que assumem o apelido de “incorruptíveis”, até o instante em que atravessam as praças e se instalam nos palácios. Num instante agudo de histeria coletiva brasileira, em que a propaganda dos “bem intencionados” tenta derrubar direitos de defesa e de pensamento plural, vale a pena consultar o volume daquela corajosa escritora. Em cada frase sua o leitor reconhecerá falas e atos, além das figuras, dos que hoje se arvoram em faxineiros da sociedade e de Estado. Falta no Brasil quem recorde aos referidos lavadores: medice, cura te ipsum. Para bom entendedor, meia palavra basta.
http://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/roberto-romano/elogio-da-corrupcao
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