Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil
NA VOTAÇÃO NA CCJ sobre o parecer que pedia admissibilidade da denúncia contra Michel Temer, a sessão de discursos dos deputados começa com o voto de Paulo Maluf (PP-SP) que apresenta o presidente como “um homem honesto, probo, correto e decente”. Mas quem conhece Paulo Salim Maluf sabe que sua fala seria constrangedora em qualquer lugar do mundo onde a política fosse levada a sério.
O deputado Paulo Maluf, que já foi condenado à prisão na França e figurou na lista da interpol, diz que Temer é homem "honesto e probo".
A era do cinismo pelo qual estamos passando permite que alguém como o ex-prefeito de São Paulo, condenado por lavagem de dinheiro pela corte francesa, torne isso completamente irrelevante e invisível. E dita as regras numa comissão que traz no nome as palavras constituição e justiça.
A condenação de Lula por Sérgio Moro, criou o ambiente propício para o tipo de disputa narrativa que se tornou o grande embate na política brasileira atual. Lula é um símbolo, é impossível negar isso, e, como todo símbolo, seu sentido, ou o sentido de tudo que diz respeito a ele, será, inevitavelmente, disputado, concorrido, requerido, reivindicado permanentemente.
Cinismo generalizado
De um lado, falando sobre Lula, a senadora Ana Amélia (PP-RS) dizia que “agora, felizmente, estamos vendo que a lei é igual para todos, porque antes só pobres, ladrões de galinha ou negros iam para a cadeia”. É o cinismo de quem sabe que uma frase como essa nem deveria ser pronunciada, porque é um escárnio diante das diversas histórias cotidianas da seletividade da justiça e do sistema penal brasileiro. Ana Amélia, crítica dos excessivos cargos comissionados do governo do seu estado, mas que foi servidora do Senado enquanto era diretora da RBS, na década de 1980.
O senador Paulo Bauer (PSDB-SC) fez questão de ressaltar que “ninguém está acima da lei, que foi feita para ser cumprida por todos os cidadãos brasileiros”. Ele que, acima da lei, nos custou quase 150 mil reais, alugando carros de luxo para uso particular, para se deslocar no seu estado, Santa Catarina.
Por outro lado, o senador Carlos Zarattini, líder do PT na Câmara, chama atenção para o fato de a condenação de Lula ter de ser reprovada por todos os brasileiros, porque ela atropela a democracia e os processos jurídicos. Cinismo e desonestidade é associar a prisão de Lula a um atropelo da democracia, mas não reconhecer a violação da democracia com a sanção, pelo governo Dilma, da chamada Lei Antiterrorismo em 2016.
À revelia dos vetos feitos por Dilma, a lei foi o balde de água fria definitivo em grande parte da herança do junho de 2013. Aliás, em junho de 2013, as manifestações foram, sobretudo no Rio e em São Paulo, reprimidas com força desproporcional, com diversas violações de direitos.
É cínico não reconhecer o atropelo da democracia na assinatura de uma portaria casuística como a 3.461, em 2013, feita por Celso Amorim, à época ministro da Defesa, para garantir a Lei e a Ordem: leia-se, reprimir, com o Exército, todo levante popular contra a maneira que os grandes eventos foram pensados (e pagos) para o Brasil, com a Copa das Confederações, Copa do Mundo e Olimpíadas/Paraolimpíadas.
O cinismo de Moro
Tomados pelo cinismo que inspira e pauta as relações na política no país, nada mais coerente que a construção como herói de uma figura como Sérgio Moro. É ele, hoje, a principal referência de ética e honestidade, à revelia do cinismo com o qual age, mas envolto em uma áurea de imparcialidade inquebrável.
Celebrado pela elite política conservadora que tem nitidamente asco da política de ascensão dos pobres empreendida pela gestão de Lula e celebrado pela elite midiática que não quer mesmo ver o petista novamente no centro do poder, Moro exerce bem sua aparente capacidade de revestir frieza e cinismo de serenidade.
Lula, se preso preventivamente, só se fortalece como herói, e Moro corre o risco de se afundar na imagem de juiz a serviço de uma torcida, em grande parte, rica e conservadora.
Faz isso quando diz que não decretou prisão preventiva de Lula por prudência, e para evitar “certos traumas”, por se tratar de um ex-presidente da república. Envolto no ambiente do cinismo que envolve a todos, Moro sabe que as provas para a condenação de Lula são frágeis, e as provas produzidas pelo MPF não lhe dão a garantia de que sua decisão não passe na revisão de instância superior.
Neste caso, Lula, preso preventivamente, só se fortalece como herói, e Moro corre o risco de se afundar na imagem de juiz a serviço de uma torcida, em grande parte, rica e conservadora. Dizer “não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você” é o cinismo típico de quem confunde-se com a própria lei, e que, portanto, está ele mesmo acima de qualquer um.
O cinismo de Renan
E o que diríamos ao ver Renan Calheiros rompendo publicamente com Temer, acusando o governo e criticando a reforma trabalhista. Assim como no caso de Maluf, chega a ser constrangedor sob a luz da troca de carinhos entre os dois políticos, em novembro de 2016, portanto menos de um ano atrás, em que Renan prometia sua fidelidade a Temer, colocando o Senado aos seus serviços para votações, disposto inclusive a cancelar as férias.
Logo ele, que votou contra a PEC do Trabalho Escravo, em 2012. Só o cinismo explica.
Mas no nosso universo cínico, Renan Calheiros critica a reforma trabalhista como um homem preocupado com o direito dos trabalhadores pobres, assim como o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) critica o governo e a reforma da previdência. Logo ele, que votou contra a PEC do Trabalho Escravo, em 2012. Só o cinismo explica.
Também soa muito cínico o PSDB dissimular uma disputa interna, como se fosse quase uma crise de consciência, sobre deixar o governo ou ficar com o governo, alegando como única questão dessa crise a falta de ética da gestão Temer. Depois de ser marcado por uma geração de políticos de relevância – José Gregori, Mário Covas, Sergio Motta, Celso Lafer, além do próprio Fernando Henrique Cardoso – o PSDB alcança um momento medíocre de sua história, mendigando espaço na cúpula do poder, em crise internamente porque não consegue ocupar e manter este espaço.
É este cinismo que sustenta cada declaração da cúpula do PSDB
O ninho tucano vê a queda política do senador Aécio Neves, sua outrora principal estrela e aposta, enquanto vê agora sua única força política para cargos majoritários, ser possível na figura de um ambíguo e outsider João Doria, prefeito de São Paulo. É o partido cuja metade da bancada fecha com o senador Romero Jucá (PMDB-RR) para blindar membros da linha sucessória da presidência e volta atrás vergonhosamente diante da repercussão negativa.
É este cinismo que sustenta cada declaração da cúpula do PSDB, simulando unidade e compromisso com os interesses do Brasil, enquanto tudo o que querem é que seus poderes e privilégios não percam espaço.
O fato é que, politicamente, o Brasil parece se encontrar no seu momento mais cínico. E o seu momento mais cínico é também o seu momento mais frustrante e diametralmente oposto ao que junho de 2013 esboçou pautar, antes de ser também capitulado por uma pauta cínica anticorrupção.
O que temos no Legislativo é uma coleção de correlações de forças, onde tudo se torna imprevisível, toda trama é obscura, a rua está distante, e a democracia é só recurso narrativo impregnado de muito cinismo.
ENTRE EM CONTATO:
Diego Padgurschi/Folhapress
UM DIA APÓS a aprovação de uma reforma trabalhista sem a participação dos trabalhadores, o juiz herói Sérgio Moro condenou a 9 anos e meio o maior líder sindical da história do país. O ex-presidente foi condenado por lavagem de dinheiro e corrupção passiva no caso do Triplex, um desfecho óbvio de um roteiro manjado.
A sentença se debruçou longamente sobre as provas frágeis apresentadas pela Ministério Público, mas ignorou completamente as provas da defesa. A imparcialidade de Moro vem sendo questionada durante o processo por parte significativa da opinião pública e o conteúdo da sentença contribui para reforçar essa percepção. Não é para menos. Desde o início do processo, o juiz foi visto em eventos públicos organizados por tucanos, pela Globo, pela Isto É, pelo Lide de Doria. Enfim, talvez seja mera coincidência, mas Moro só confraterniza com inimigos declarados de Lula.
“Não se trata aqui de levantar indícios de que o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa Marisa Letícia Lula da Silva eram os proprietários de fato do imóvel consistente no apartamento 164-A, triplex, do Condomínio Solaris, no Guarujá.”
Aqui temos um juiz explicando que não está levantando indícios, algo que seria absolutamente desnecessário, já que é algo que foge às suas atribuições. Há algo de errado quando um julgador precisa explicar na sentença que não está cumprindo o papel de promotor.
“Em síntese e tratando a questão de maneira muito objetiva, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não está sendo julgado por sua opinião política e também não se encontra em avaliação as políticas por ele adotadas durante o período de seu Governo (…)Também não tem qualquer relevância suas eventuais pretensões futuras de participar de novas eleições ou assumir cargos públicos.”
A necessidade hercúlea de Moro em se defender das acusações de que pretende tirar Lula das próximas eleições é reveladora. Desde quando um juiz deve esse tipo de satisfação? Por que não se ater unicamente aos fatos que envolvem o processo? Se Lula faz política em cima do processo, Moro jamais poderia fazer. Os motivos são óbvios.
“Essas condutas são inapropriadas e revelam tentativa de intimidação da Justiça, dos agentes da lei e até da imprensa para que não cumpram o seu dever. Aliando esse comportamento com os episódios de orientação a terceiros para destruição de provas, até caberia cogitar a decretação da prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entretanto, considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação. Assim, poderá o ex-Presidente Luiz apresentar a sua apelação em liberdade.”
Moro considera “tentativa de intimidação” o fato dos advogados de Lula recorrerem à Justiça contra ele por abuso de autoridade, uma ação absolutamente legítima. Não cabe a um juiz desqualificá-la dessa forma em uma sentença.
Moro ainda afirma que poderia cogitar a prisão de Lula tendo como base uma declaração de Léo Pinheiro em delação premiada em que afirma que teria sido orientado pelo ex-presidente a destruir provas. Essa declaração não foi sustentada com provas — fato fundamental para validação de uma delação premiada — e, sozinha, jamais poderia justificar a prisão por obstrução de justiça. Mas Moro escreveu na sentença que pretendeu evitar “certos traumas” que a prisão de um ex-presidente da República poderia causar. Eu pensei que todos fossem iguais perante a lei e que o juiz julgasse com base unicamente com base nas provas do processo, mas Moro confessa, ainda que indiretamente, que norteia seu trabalho a partir de cálculos políticos. Não podemos nos dizer surpresos.
“Por fim, registre-se que a presente condenação não traz a este julgador qualquer satisfação pessoal, pelo contrário. É de todo lamentável que um ex-Presidente da República seja condenado criminalmente, mas a causa disso são os crimes por ele praticados e a culpa não é da regular aplicação da lei. Prevalece, enfim, o ditado “não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você” (uma adaptação livre de “be you never so high the law is above you”).”
Agora esqueçamos a cafonice anglo-saxã entre parêntesis e nos concentremos na satisfação pessoal de Moro, que ele próprio considerou adequado trazer para a sentença. Quando um juiz precisa precisa explicar que não está julgando com base na sua satisfação pessoal é porque está julgando com base na sua satisfação pessoal. Claro, eu não tenho provas materiais para afirmar isso, porém, entretanto, pelo conjunto de indícios dessa sentença e pelas manchetes e capas de revistas, acredito que a satisfação pessoal de Moro já não cabe dentro dele. Quando um juiz vê sua imparcialidade sendo questionada publicamente, ele deveria se considerar impedido de julgar para que dúvidas dessa natureza não prejudicassem o processo, e não ficar se explicando infantilmente em sentença.
Houvesse provas substanciais para a condenação de Lula, Moro mataria a cobra e mostraria, orgulhoso, o pau. Mas elas não aparecem na sentença. O interminável titubeio e a necessidade de se justificar revelam um juiz preocupado em se defender politicamente e provar sua imparcialidade. Bom, faltou combinar com a materialidade dos fatos.
Depois de ter uma presidenta eleita arrancada do poder, os brasileiros agora veem o candidato favorito para 2018 sendo expulso da disputa eleitoral após uma condenação sem nenhuma prova material. Por outro lado, grandes nomes governistas como Aécio e Temer gozam de liberdade e continuam ocupando seus cargos mesmo diante de uma pororoca de provas. Obviamente, as circunstâncias são diferentes, mas, na prática, é essa a aberração que o país vive.
Numa época em que se vive a judicialização da política, o que vemos é a balança da Justiça pendendo a favor da turma do Grande Acordo Nacional — aquela que pretendia tirar Dilma do poder e fazer um pacto com Supremo, com tudo. Políticos comprovadamente corruptos seguem no comando da nação, sendo julgados por aliados políticos, enquanto um ex-presidente sem cargo público há quase 8 anos pode ir para a cadeia com base num roteiro traçado por um juiz que claramente rivaliza com o réu e que baseou sua decisão apenas em delações e indícios. E há quem continue dizendo que as instituições estão funcionando normalmente. Funcionando pra quem?
Fonte: https://theintercept.com/2017/07/14/em-era-de-cinismo-nada-mais-interessa-alem-da-disputa-de-poder/
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