O panorama nacional não se modificou nos últimos meses e tampouco é possível perceber uma “mudança de comportamento estrutural no país”, porque a “economia continua com as características que sempre teve: é a industrialização periférica mais bem-sucedida do planeta”, diz o economista Carlos Lessa à IHU On-Line, ao comentar a atual conjuntura brasileira.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Lessa defende uma transformação na estrutura produtiva do país, que hoje é fundamentalmente centralizada nas indústrias metalomecânica e automobilística. “Essa característica estrutural tem que ser levada em consideração, porque ela representa os maiores coágulos de capital que existem no país e a vanguarda da força operária. Então, a sociedade brasileira tem uma estrutura produtiva que se reflete na sua estrutura social e que se reflete na sua estrutura política. Para sair dessa dança, é necessária uma mudança estrutural significativa”, reitera. Uma reestruturação produtiva, argumenta, depende do desenvolvimento de um setor “que tenha a mesma centralidade que hoje tem a indústria automobilística. Eu só consigo pensar em um: a construção civil”.
Lessa também comenta a crise política e as consequências das Operações Carne Fraca e Lava Jato. Acerca da primeira, avalia que se trata de um “golpe pesado na indústria das carnes brasileiras”, e sobre a segunda, garante: “a novíssima geração não vai esquecer dela, não vai mesmo, porque vão chegar à conclusão de que o Brasil é deles”. E explica: “O meu problema não é de criticar ou não criticar a Lava Jato, o meu problema é diferente, e a pergunta que me coloco é: por onde ela se desdobra? Porque ela já é, ela faz parte da realidade, ela colocou o Poder Judiciário em enorme evidência, porém o Poder Judiciário, por si só, não faz história. Portanto, os protagonismos históricos ainda estão extremamente embaçados no Brasil. Se olharmos as lideranças, não perceberemos um discurso forte e afirmativo em nenhuma delas, e a Lava Jato não é, em si, uma liderança. Logo, estamos vivendo um período de crescente desarticulação política”.
Carlos Lessa | Foto: Blog da Floresta
Carlos Lessa é formado em Ciências Econômicas pela antiga Universidade do Brasil e doutor em Ciências Humanas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas - Unicamp. Em 2002, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e presidente do BNDES.
Confira a entrevista.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como está avaliando a conjuntura nacional neste momento? O que mais tem lhe chamado atenção no cenário atual?
Superamos, de maneira significativa, a Índia, e somos mais sólidos, do ponto de vista de estrutura produtiva, do que qualquer outra economia periférica. Porém, ao mesmo tempo, por causa dessa solidez, para nós é muito difícil mudar o padrão estrutural
Carlos Lessa – Não acredito que o panorama nacional tenha se modificado muito em relação às tendências identificadas; nós continuamos caminhando na crise e não saímos dela. As oscilações em uma trajetória de crise são normais, fazem parte do processo. Necessariamente a acumulação de pequenos sinais pode indicar uma luz no fim do túnel, mas não estou vendo ainda sinais de luz.
Não percebo nenhuma mudança de comportamento estrutural no país, na verdade a economia brasileira continua com as características que sempre teve: é a industrialização periférica mais bem-sucedida do planeta. Porém, como toda a atuação periférica, tem suas limitações, e a principal – por demais conhecida – é que o país depende, de maneira muito essencial, da conjuntura internacional, que não é nada favorável agora.
No âmbito nacional, o que consigo perceber com nitidez – eu e a torcida do Flamengo – é que o presidente Temer faz uma ginástica impressionante para manter-se sentado na cadeira; é realmente muito impressionante o processo pelo qual ele busca “aderência” ao cargo. Não acredito que será candidato à reeleição em 2018 ou que tenha algo parecido na cabeça. Acredito que ele quer completar o mandato, e faz tudo para isso. E, de certa maneira, muitas das suas atitudes políticas são explicadas por esse objetivo; diria que praticamente todas.
Há uma atitude muito curiosa em relação ao atual presidente, porque ele faz a política mais neoliberal possível e, ao mesmo tempo, vai sendo acusado ou vai se tornando vulnerável por padrões de comportamento que, em tese, estão sendo repudiados progressiva e paulatinamente pela população. É curioso que a imprensa conservadora tenha uma postura de não se alinhar com o atual presidente, a não ser no que diz respeito às reformas econômicas que ele pretende fazer. Ao mesmo tempo, o presidente acha que são essas reformas que darão a ele a credencial para passar pela história brasileira. É um jogo de empurra-empurra, que não sei bem qual será o resultado. Apenas numa coisa quero crer: esse jogo faz parte da crise; disso eu estou convencido.
IHU On-Line - Como o atual presidente está conduzindo a economia? A PEC do teto é justificável ou não?
Nós temos uma sociedade de grande porte econômico, porém, periférica; talvez sejamos, na periferia mundial, a mais importante economia
Carlos Lessa – Eu, pessoalmente, não acredito na visão neoliberal. Não creio que ela seja absolutamente capaz de tirar o país do buraco, porque o buraco em que estamos não é propriamente um buraco, mas uma configuração estrutural muito difícil de ser modificada. Nós temos uma sociedade de grande porte econômico, porém, periférica; talvez sejamos, na periferia mundial, a mais importante economia. Acredito que superamos, de maneira significativa, a Índia, e somos mais sólidos, do ponto de vista de estrutura produtiva, do que qualquer outra economia periférica. Porém, ao mesmo tempo, por causa dessa solidez, para nós é muito difícil mudar o padrão estrutural.
Como se abre mão, em um país como o Brasil, da centralidade da indústria metalomecânica e da centralidade da indústria automobilística? Como se faz isso? Não dá para ser feito da noite para o dia, não é um resultado neoliberal. O neoliberalismo, na verdade, nada significa em relação a essa característica estrutural, e essa característica estrutural tem que ser levada em consideração, porque ela representa os maiores coágulos de capital que existem no país e a vanguarda da força operária. Então, a sociedade brasileira tem uma estrutura produtiva que se reflete na sua estrutura social e na sua estrutura política. Para sair dessa dança, é necessária uma mudança estrutural significativa; eu não vejo essa mudança.
IHU On-Line - Essa mudança depende do quê?
Carlos Lessa – Para mim, depende fundamentalmente de passar por dentro da economia brasileira, no sentido de se desenvolver um setor que tenha a mesma centralidade que hoje tem aindústria automobilística. Eu só consigo pensar em um: a construção civil em seus diversos domínios. A construção civil tem alguns domínios extremamente importantes. O primeiro é o empresarial, propriamente dito, que são as empresas que tocam o setor, que dependem profundamente da dinâmica urbana e das decisões de aquisição de imóveis por parte da população urbana. Ela faz isso, em grande parte, endividando-se, só que a população urbana já está muito endividada. Então, a capacidade que a população urbana tem, hoje, de escorar uma atividade mercantil de construção civil, é menor em termos relativos do que foi no passado.
O segundo componente da construção civil é a autoconstrução, a construção dita “formiguinha”, aquela que é feita em fins de semana, em cooperação entre diversos moradores, ou seja, é a “engenharia popular”. Essa “engenharia popular” é responsável, hoje, por aproximadamente 30% ou 35% do que se constrói no país; ela tem de ser robustecida.
Os automóveis ficam muito mais tempo na rua, consumindo mais energia e mais combustível por conta dos congestionamentos, mais isso não é debitado ao país, isso é creditado à economia, porque é o PIB brasileiro funcionando sobre rodas empacadas nos congestionamentos
Finalmente, é claro e óbvio que a estrutura urbana e metropolitana brasileira apresenta problemas muito sérios que, curiosamente, não são vistos como problema. Tem coisas que são curiosas, por exemplo, os automóveis ficam muito mais tempo na rua, consumindo mais energia e mais combustível por conta dos congestionamentos, mas isso não é debitado ao país, isso é creditado à economia, porque é o PIB brasileiro funcionando sobre rodas empacadas nos congestionamentos. A qualidade de vida cai, enquanto o padrão de vida, em tese, sobe sem parar. É uma contradição violenta de uma sociedade que se urbanizou sem ter integrado socialmente a sua população.
Tenho a impressão, pode ser que esteja equivocado, de que há em curso um processo importante, que aponta para o futuro, que é dado pelo comportamento da juventude. Eu quero crer que esta garotada que está aí, está descobrindo algo que me parece fundamental: não há espaço para ela no mundo, e se não há espaço para ela no mundo, o espaço para ela é o Brasil. Tendo o Brasil, necessariamente vão se perguntar: o que é o Brasil? A juventude ainda não se colocou essa pergunta, mas vai colocar. Isso dará início a um processo político muito diferente.
IHU On-Line – Mas por quais razões não se conseguiu sair da crise? Por conta da situação econômica?
A indústria automobilística está, toda ela, em estado de torpor e não há como tirá-la desse estado, endividando novamente as pessoas
Carlos Lessa – Só se sai da crise se a atividade da economia subir, e só se consegue isso se for ampliado, significativamente, o comportamento da indústria automobilística. A indústria automobilística está, toda ela, em estado de torpor e não há como tirá-la desse estado, endividando novamente as pessoas; as pessoas não podem mais se endividar. Aliás, isso ficou visível com o comportamento das pessoas em relação a esses fundos do FGTS que foram liberados. Ontem li a manchete de um jornal dizendo que 90% das cotas do FGTS estão sendo utilizadas para quitar dívidas, porque o sonho da população brasileira é reduzir seu atual endividamento – é assim que eu leio esse indicador.
Se o sonho é reduzir o endividamento, como vai aumentar o endividamento para segurar a indústria automobilística? Essa é a pergunta central. Por outro lado, insistir na ideia de uma economia que se move a partir de um automóvel, do ponto de vista microeconômico, ou seja, que a atividade econômica interna gravita em função da indústria metalomecânica e do segmento automobilístico, é a visão pela qual o Brasil não sai da crise. É necessário estimular outra atividade para ocupar o espaço, e só há uma possível: a construção civil.
IHU On-Line – Então, com a resolução da crise econômica se resolverá a crise política?
A pergunta relevante é: onde estão os sinais para a saída? Na juventude. A juventude está tendo um comportamento surpreendente, porque ela quebra regras e, ao mesmo tempo, as vitaliza
Carlos Lessa – Eu tenho a impressão, pode ser que esteja equivocado, de que a chamada crise política é apenas uma dimensão da crise. A crise não é especializada em uma dimensão; ela acontece em variadas dimensões. Se a economia estivesse indo bem, os atuais governantes estariam tranquilos e sendo festejados, não é isso? Veja bem: a crise política depende da econômica, porém a crise dita econômica se realimenta pelas características da crise política. Esse é o jogo da crise. A pergunta relevante é: onde estão os sinais para a saída?
IHU On-Line - O senhor vê esses sinais?
Carlos Lessa – Vejo no comportamento da juventude. A juventude está tendo um comportamento surpreendente, porque ela quebra regras e, ao mesmo tempo, as vitaliza. Isto é, quando ela ocupa escolas, ela não está fazendo nenhuma baderna, está sinalizando, de maneira absolutamente clara, que o sistema educacional está quebrado e que é necessário dar prioridade a ele. Ela sinaliza sua prioridade com seu comportamento; isso é extremamente positivo. É o que estou querendo dizer: eu acredito que a juventude está descobrindo que o Brasil, tal como está, não vai para frente e que o Brasil é deles, porque essa é a única alternativa que eles têm de futuro.
IHU On-Line - Além da ocupação das escolas, que outros exemplos percebe de atuação da juventude no país?
Carlos Lessa – A principal que vejo é essa. Secundariamente, eles estão começando a perceber coisas mais relevantes, como a de que politicamente há a necessidade de encontrar uma saída. Penso que haverá uma renovação de quadros impressionante nas próximas eleições no país.
IHU On-Line - O senhor tem algum nome em mente?
Carlos Lessa – Não, não tenho ninguém em mente, mas acredito que isso vai acontecer, inexoravelmente. Do ponto de vista de Presidência da República, se a crise continuar, a candidatura de Lula é, obviamente, a candidatura vitoriosa. Porém, não penso que o PT seja o partido vitorioso. Com isso se criará uma situação muito curiosa: teremos uma renovação enorme na base do Congresso, e as pessoas que vão se eleger são aquelas que se dizem não políticas. Com isso teremos uma espécie de renovação de currículos. Qual será o resultado, não sei; não tenho bola de cristal.
IHU On-Line - Qual seria a implicação de uma possível eleição de Lula em 2018? Ele repetiria o mesmo modelo do governo anterior?
Acredito que a juventude está descobrindo que o Brasil, tal como está, não vai para frente e que o Brasil é deles, porque essa é a única alternativa que eles têm de futuro
Carlos Lessa – Acho que não. Se Lula vier a se eleger, ele vai olhar no entorno e se perguntar: “Cadê o partido, cadê a coalizão partidária?”. Ele não vai encontrá-los, porque o PT acabou.
As propostas econômicas do Lula serão, provavelmente, extremamente conservadoras, como geralmente são. Ele fará um discurso que, por um lado, sinaliza ao povo e, por outro, sinaliza aos conservadores, dizendo que não vai quebrar nada; vai fazer o discurso que ele sempre fez.
IHU On-Line – Como aquele da Carta ao Povo Brasileiro?
Carlos Lessa – Isso, como aquele da Carta ao povo brasileiro, mas vai repeti-lo de maneira atualizada, pois a história nunca se repete de maneira monótona.
IHU On-Line – Além do nome do ex-presidente Lula, hoje cogitam-se alguns possíveis candidatos para a eleição de 2018, como Ciro Gomes e João Doria. Como vê essas possibilidades políticas para o Brasil?
Carlos Lessa – Ciro Gomes não tem condições de ir muito em frente. O nome dele já está disponível, mas ele não gera, em relação à crise, nenhum sinal, nem positivo nem negativo, para a opinião pública. Para mim, gera, porque eu sei que ele não concorda com as orientações gerais neoliberais, mas e daí? A minha opinião não tem a menor importância. Acho que o Ciro vai se manter candidato, terá uma reconfirmação da presença dele no processo político e irá ajudar um determinado conjunto de candidatos que estarão renovando seus assentos no Congresso.
Quanto ao prefeito de São Paulo, vejo a imprensa conservadora fazendo um imenso esforço para fazê-lo candidato. De certa maneira, eu diria que o candidato provável não é o prefeito, mas sim o [Geraldo] Alckmin. Se bem que deve ter muita aposta em relação ao Doria. Ele terá vantagens também, caso se apresente com tendo um comportamento não político, no sentido clássico da palavra - é isso um pouco do que a imprensa está tentando construir como a imagem dele.
IHU On-Line - Como vê esse discurso de candidatos que se definem como “não políticos”?
A autoconstrução, a construção dita 'formiguinha', aquela que é feita em fins de semana, em cooperação entre diversos moradores, essa 'engenharia popular', é responsável, hoje, por, aproximadamente, 30% ou 35% do que se constrói no país; ela tem de ser robustecida
Carlos Lessa – Doria é visivelmente um dos bem-sucedidos, tanto que ele fez uma trajetória exitosa no principal colégio eleitoral brasileiro. O discurso dele é uma espécie de avant première, um discurso que vai, provavelmente, se generalizar daqui para a frente.
IHU On-Line - Isso é positivo para a política?
Carlos Lessa – A política não tem algo positivo ou negativo, a política se desdobra a partir do presente, pelas linhas de menor resistência ou pelas linhas possíveis. O povo brasileiro, visivelmente, vai procurar quem não tenha atestado político. Lula vai fazer a campanha dizendo que foi removido para fazerem a crise, vai atribuir a crise a seus inimigos, por isso a campanha eleitoral dele é fácil.
IHU On-Line – Que leitura o senhor fez da Operação Carne Fraca?
Carlos Lessa – A Carne Fraca, objetivamente, é um golpe pesado na indústria das carnes brasileiras. A grande pergunta é: ela será de longa duração? Acredito que no mercado interno rapidamente a situação será superada, daqui algumas semanas, dez dias mais ou menos. A população continuará consumindo o que consumia, porque não pode mudar sua alimentação; internamente será reconstruído o padrão de comportamento.
Externamente pagaremos um preço alto, que é reduzir nosso peso negocial, mas é importante ter presente que o Brasil é hoje a maior oferta de proteínas no mercado mundial; o mercado mundial não pode desconhecer isso. Claro que a negociação brasileira lá fora vai ficar muito mais difícil. Creio que a tendência são os preços internacionais estancarem ou caírem, porém é uma tendência que também não é extremamente demorada, porque não existem alternativas.
No caso do frango, ao que eu saiba, o frango norte-americano não pode substituir o frango brasileiro, porque tem uma crise aviária nos Estados Unidos. A carne de boi depende de forrageiras ou do capim, e, no caso do capim, o Brasil certamente é e continuará sendo campeão. Então, acredito que os esforços brasileiros serão, razoavelmente, bem-sucedidos para desarmar oficialmente os argumentos contra a carne brasileira. Agora, na opinião pública ficará sempre uma suspeita.
IHU On-Line – Mas por que entende essa operação como um golpe à indústria brasileira?
O Poder Judiciário, por si só, não faz história. Portanto, os protagonismos históricos ainda estão extremamente embaçados no Brasil. Se olharmos as lideranças, não perceberemos um discurso forte e afirmativo em nenhuma delas, e a Lava jato não é, em si, uma liderança. Logo, estamos vivendo um período de crescente desarticulação política
Carlos Lessa – Por uma razão muito simples: a atividade econômica no país depende de componentes e um dos componentes é gerado pelas exportações. Se as exportações vão mal, isso reflete internamente.
IHU On-Line – O senhor está mencionando o aspecto econômico, mas e do ponto de vista político e da corrupção?
Carlos Lessa – Do ponto de vista político eu não sei desdobrar a operação Carne Fraca em todas suas implicações. Na verdade, tenho até dificuldade de identificar as implicações. Acredito que o que vai acontecer - pode ser que esteja errado - é que internamente as pessoas vão, com rapidez, esquecer o problema, e a questão da carne continuará sendo tratada da forma como vem sendo tratada hoje.
Agora, o que não vai ser eterno, nem permanente são os padrões comportamentais da população brasileira no futuro, esses é que estão começando a se modificar. Provavelmente, na novíssima geração, vai aumentar o perfil dos que não comem proteína, algo desse tipo.
IHU On-Line - À época do governo Lula se incentivou a política de investimento a grandes gigantes nacionais via aportes do BNDES, como os grupos da indústria alimentícia. Como o senhor avalia essa política hoje e quais foram seus resultados?
Carlos Lessa – Pode ser que eu me engane, mas o chamado capitalismo em escala mundial passa por grandes organizações. Não acredito que a política explícita do governo Lula tenha sido a de criar grandes organizações. Para mim, elas já estavam em formação e o jogo, virado para elas. Obviamente que Lula jogou o jogo, então ele não é um transformador, mas um hábil “cavaleiro das tendências”, isto é, ele “sabe montar” nelas. Assim, uma das tendências em que ele montou foi o crescimento desses grupos.
IHU On-Line - Como está compreendendo a Operação Lava Jato? Vê relação entre ela e a Operação Carne Fraca?
Lava Jato: a novíssima geração não vai esquecer dela, não vai mesmo, porque vão chegar à conclusão de que o Brasil é deles
Carlos Lessa – Faço uma força enorme para não cair em nenhuma visão conspiratória, mas são demasiados golpes no país, e todos eles debilitam extremamente a imagem externa brasileira. Esse negócio da carne, por exemplo, debilita o poder negocial do Brasil lá fora; esse negócio da Lava Jato está dando um espaço de modificação comportamental muito grande; não sei avaliar todas as implicações. Apenas uma coisa vejo dessa Lava Jato: a novíssima geração não vai esquecer dela, não vai mesmo, porque vão chegar à conclusão de que o Brasil é deles.
O meu problema não é de criticar ou não criticar a Lava Jato, o meu problema é diferente e a pergunta que me coloco é: por onde ela se desdobra? Porque ela já é, ela faz parte da realidade, ela colocou o Poder Judiciário em enorme evidência, porém o Poder Judiciário, por si só, não faz história. Portanto, os protagonismos históricos ainda estão extremamente embaçados no Brasil. Se olharmos as lideranças, não perceberemos um discurso forte e afirmativo em nenhuma delas, e a Lava jato não é, em si, uma liderança. Logo, estamos vivendo um período de crescente desarticulação política.
A judicialização da política leva o Brasil para uma coleta de novos nomes. Quem são? Eu não sei, mas uma coisa posso dizer: vão se eleger muito com a afirmação, comprovada ou não, de que não são políticos. Entrará em moda essa afirmativa, que será muito atravessadora da vida política brasileira e será extremamente importante na próxima eleição.
IHU On-Line - Que reorganizações geopolíticas percebe com a eleição de Trump?
Carlos Lessa – Essa pergunta é tão relevante que você precisa montar um debate próprio sobre ela.Trump é um dado que modifica as regras do jogo mundial. Para nós, brasileiros, tem uma característica extremamente interessante: abre a possibilidade de o Brasil exercitar uma liderança maior na periferia mundial. Isso porque vejo a operação Trump como uma operação que desmantela a presença mexicana, porém, ao mesmo tempo, é uma operação que gera, necessariamente, na América do Sul, uma relação de solidariedade. O Brasil pode estar no centro de um processo de reestruturação periférica e tirar vantagens disso. Vai se reforçar, necessariamente, um eixo que passa pelo Brasil, pela Índia e pela China; esses eixos serão reforçados e se tornarão mais poderosos.
Não sei se os Estados Unidos e a Europa se fortalecerão, mas tem uma coisa da qual estou absolutamente convencido: a ligação dos Estados Unidos e da Europa com a Rússia se tornará mais forte, bem mais forte. Creio que a política de Trump vai apostar nisso também, não será contrária a esse movimento.
O cenário mundial abre possibilidades para um país chamado Brasil, não porque tenha qualquer desejo do Trump nessa direção, mas porque os desdobramentos da presença dele podem abrir possibilidades para o país
Vejo o cenário mundial como um cenário que abre possibilidades para um país chamado Brasil, não porque tenha qualquer desejo do Trump nessa direção, mas porque os desdobramentos da presença dele podem abrir possibilidades para o país. Não sei se a diplomacia brasileira está inteiramente alerta, mas tem competência suficiente para interpretar as potencialidades que estão se abrindo a partir da presença de Trump.
IHU On-Line - Como o senhor avalia o Brexit? O que mudou na União Europeia - UE depois desse fato?
Carlos Lessa – Pode ser que eu me engane, mas acho que os Estados Unidos e a Europa vão se robustecer e vão se colar mais com a Rússia; a tendência é inexorável nessa direção. Não vejo nenhum desmantelamento dos Estados Unidos e da Europa; vejo uma evolução. Essa evolução se dará por um aumento significativo da sua presença como parceiro mundial e se fará uma política de convergência com a Rússia.
IHU On-Line - Como se houvesse um projeto comum envolvendo UE, Rússia e EUA?
Carlos Lessa – Sim, é isso. Aliás, aparentemente, existem dois trajetos curiosos que ligam a China e a Europa: um deles passa pela Rússia, o outro contorna a Rússia. Essa será a grande aposta geopolítica dos estados europeus: vão tentar via Rússia e em troca terão de fazer algumas concessões. Tentarão também desenvolver uma alternativa, que existe, que é uma ligação entre China, EUA e Europa.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Carlos Lessa - Vocês deveriam fazer uma discussão em absoluta profundidade sobre a presença do Trump, do que ela contém dentro de si como ameaça, como possibilidade, como potencialidade e como realidade. É fundamental fazer essa discussão.
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