PROPRIEDADE OU POSSE DA TERRA?
OS RISCOS DA MP QUE MUDA A ESTRUTURA FUNDIÁRIA NO BRASIL
A MP 759, que transita no congresso, coloca em risco os regimes jurídicos que regem: a regularização fundiária rural, a regularização fundiária urbana, regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e regime sobre os imóveis da União em especial sobre o regramento da alienação de imóveis da União
29 de março de 2017
Para entender a estrutura fundiária no Brasil devemos resgatar a “Lei de Terras” de 1850, que possibilitou que as áreas possuídas desde o período colonial pelas classes sociais privilegiadas e os homens livres (excluindo portanto o direito das populações negras e indígenas) fossem reconhecidas pelo Estado Brasileiro como proprietários dessas, e estabeleceu o regime da compra e venda de terras para fins de aquisição de terras como propriedade e constituiu a necessidade da propriedade fundiária ter registro público.
Em nosso histórico fundiário temos basicamente dois regimes fundiários, o da posse e o da propriedade. O regime fundiário da posse é o que de fato está enraizado em nos usos e costumes da maioria de população urbana e rural. Estamos falando das terras ocupadas tradicionalmente pelas populações indígenas, populações tradicionais, comunidades quilombolas e ribeirinhas, de áreas possuídas por trabalhadores rurais, das terras urbanas possuídas de forma predominante para fins de moradia por populações e comunidades de baixa renda como as favelas, loteamentos e bairros populares periféricos, conjuntos habitacionais populares, ocupações de movimentos populares urbanos. A posse de terras para fins sociais que é devidamente comprovada pela forma de uso como por exemplo moradia, cultivo de subsistência, agricultura familiar.
No caso do regime fundiário da propriedade estruturado pela lei de terras de 1850, com a modalidade da compra e venda passou a atribuir valor econômico para a terra porque para as pessoas passarem a ser proprietárias de uma terra seja rural ou urbana precisam pagar por essa terra e, portanto, estabelecendo a propriedade da terra uma valoração econômica. As terras passam a ser ofertadas e disponibilizadas para aqueles que têm condições econômicas de pagar por essas terras. Importante esclarecer que desde a lei de terras é possível o Estado brasileiro vender as terras públicas observando diversos critérios previstos nas legislações de cada ente federativo. A União tem um sistema legal bem complexo sobre as possibilidades de uso e de alienação de suas terras tendo como órgão responsável a Secretaria de Patrimônio da União – SPU.
Temos um sistema sofisticado para a proteção da propriedade da terra com base no tratamento conferido desde a Constituição Federal de 1988, a legislação civil em especial pelo Código Civil e processual, e a legislação de registros públicos. Essa desigualdade está presente de forma simbólica na Constituição que reconhece para quem tem o domínio de terras , imóveis urbanos ou rurais o direito sobre essa propriedade como direito fundamental.
Com relação a posse de uma terra, para fins sociais, não existe o reconhecimento do direito a posse ser um direito fundamental. A Constituição reconhece sim um proteção a situação fática da posse através do usucapião urbano e rural. Porém essa proteção gera um reconhecimento do direito dos posseiros se tornarem proprietários das terras que possuem.
Essa valoração constitucional trouxe uma cultura no meio jurídico incluindo principalmente o Judiciário, dos governos, gestores e social e em diversos setores da sociedade que o regime fundiário da posse não gera segurança e proteção no mesmo patamar que o regime da propriedade, de ser um regime frágil para a preservação dos direitos de quem tem posse de uma terra rural ou urbana. Exemplo nítido são os casos de conflitos fundiários no qual o Judiciário brasileiro com raras exceções reconhece o direito dos posseiros urbanos ou rurais permanecerem com proteção do Estado em suas terras.
Essa luta pelo menos nos últimos 30 anos foi obtendo gradualmente várias conquistas institucionais desde a Constituição brasileira de 1988, Estatuto da Cidade, em legislações especiais como a Medida Provisória 2220/ 2001 que disciplina o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em terras públicas , a Lei 11.977/2009 conhecida como lei da Minha Casa Minha Vida que instituiu em especial o regime da Regularização Fundiária de interesse social das áreas urbanas , leis específicas sobre as terras da União reconhecendo os direitos de posse social nas terras públicas
Ainda há muito que evoluir para a posse social ser um direito fundamental consagrado e, da função social da posse ser um princípio estruturante do direito brasileiro pelas razões já expostas, da posse ser de fato o regime fundiário da maioria das pessoas que estão vivendo hoje no campo e na cidade.
Essa evolução foi brutalmente interrompida com a edição da Medida Provisória 759/2016 no dia 22 de dezembro em plena véspera de natal, deixando toda a comunidade envolvida e comprometida com essa trajetória perplexa e estupefata porque modifica quatro regimes jurídicos instituídos nas últimas décadas, que são os seguintes: regularização fundiária rural (incluindo liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária), regularização fundiária urbana, regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e regime sobre os imóveis da União em especial sobre o regramento da alienação de imóveis da União.
A MP 759 contém vários vícios formais e materiais que resultam na sua inconstitucionalidade dos quais destacamos:
- A falta de relevância e urgência uma vez que que já foram constituídos os sistemas legais sobre os regimes fundiários das terras rurais e urbanas e sobre as terras públicas da União. Para demonstrar a gravidade dessa situação, imaginemos a edição de uma medida provisória que vise modificar matérias que são disciplinadas no Código Civil, no Código Penal e no Código Processual. Imaginem o caos jurídico se uma Medida Provisória tratar simultaneamente dos crimes contra a vida, contra os costumes, contra o patrimônio e no âmbito civil do direito aos contratos, direito de família e direito reais como propriedade e posse;
- A ausência de um processo democrático e participativo para a edição da MP , em especial de terem sido objeto de discussão e avaliação do Conselho das Cidades e do Conselho Nacional do Meio Ambiente que tem atribuições legais para tratarem respectivamente dos temas de regularização fundiária urbana e critérios de regularização em áreas de preservação ambiental. Deve ser garantido o devido processo legal com base numa leitura holística de nosso sistema político e jurídico. É preciso que haja um processo democrático e participativo para qualquer tentativa de mudança dos regimes jurídicos objetos da MP 759;
- A precisão de várias normas que vão impactar de forma negativa direitos fundamentais como moradia, função social da propriedade e direito ao meio ambiente. Tais medidas que vão impactar direitos, lesar ou abolir direitos não podem ser objeto de emendas constitucionais por serem cláusulas pétreas muito menos de uma medida provisória. Destaco em especial o direito fundamental coletivo da propriedade pública uma vez que a MP permite a venda das terras públicas em especial da União sem estabelecer critérios e exigências, bem como instituiu a legitimação fundiária que permite ao Poder Público declarar uma área pública ocupada como uma nova propriedade para beneficiar os ocupantes mesmo que não seja para fins sociais possibilitando legitimar várias situações de grilagens, exploração econômica que trazem prejuízos ao meio ambiente como a exploração de madeira, recursos minerais e agronegócios. A adoção da legitimação fundiária é uma verdadeira burla a proibição expressa do usucapião urbano e rural em área pública.
- A previsão da matéria sobre registros públicos dos procedimentos e institutos das terras rurais, urbanas e públicas poderem ser regulamentadas por decreto federal sendo que essa matéria somente pode ser tratada por lei , gerando insegurança jurídica e enfraquecimento do direito adquirido pois foram revogadas partes da lei de registro público sobre essa matéria . A previsão do registro público das terras ser feita por decreto, com certeza vai resultar num caos jurídico;
- A lesão ao Pacto Federativo sem dúvida um dos mais preocupantes maneira inverte a ordem, ela passa a atribuir competências que são da União aos Municípios de definir os beneficiários da reforma agrária e a competência, para fazer as titulações da área da Reforma Agrária. Com relação aos municípios existe uma nítida lesão constitucional na MP que retira sua competência, para definir os critérios e exigências de infraestrutura para uma área urbana ser passível de regularização fundiária, o que estabelece que esses critérios serão definidos pelo decreto federal regulamentador da medida. Essas matérias serem disciplinadas por decreto federal, e lesa a competência constitucional do interesse local e das suas competências sobre uso e ocupação e parcelamento do solo urbano.
Existem vários outros aspectos preocupantes como o tratamento do Licenciamento Ambiental, para fins de regularização fundiária, foi suprimido ou não abrindo brechas para interpretações se aplica ou não o tratamento já existente no Código Florestal para regularização de áreas ocupadas consideradas de interesse social em áreas de preservação permanentes as famosas APPs, a proibição expressa de regularização das ocupações que incidam sobre áreas objeto de demanda judicial que impede a regularização como a solução adequada para os conflitos fundiários em análise no Judiciário. Outra situação grave é a revogação de todo o tratamento da regularização fundiária urbana estabelecido no capítulo 3 da Lei 11.977 que por tabela enfraquece a aplicação de um instrumento fundamental de proteção das posses urbanas coletivas para fins de moradia que são as Zonas Especiais de Interesse Social.
Reforma Agrária
No âmbito da reforma agrária fica evidente o retrocesso, quando a MP define que cabe ao poder público, e não mais ao beneficiário, a escolha do título da concessão de direito real de uso ou do título de domínio sobre a terra rural que possui. Segundo informa a Coordenadoria de Comunicação Social do INCRA o governo pretende titular 750 mil famílias assentadas em áreas destinadas para a reforma agrária até o ano de 2018. Com a provável escolha pelo poder público de outorgar o título de domínio todas essas áreas estarão disponibilizadas para aquisição por grupos econômicos desvirtuando totalmente a finalidade dessa política garantir uma função social a propriedade rural seja pública ou privada. O mesmo vale com a aplicação da legitimação fundiária em grande escala nas áreas urbanas disponibilizando áreas atualmente destinadas as moradias de populações de baixa renda que serão transformadas em propriedades privadas facilitando que sejam adquiridas por empreendedores imobiliários.
Talvez possa ser uma expressão exagerada, mas a MP 759 projeta uma concepção fundamentalista do regime fundiário brasileiro ao concentrar que todas as situações fáticas de posse sejam transferidas para o regime jurídico da propriedade privada relação as posses sociais em terras rurais e urbanas e em terras públicas.
É uma discussão profunda e difícil, pois já temos muitos processos de regularização fundiária que fazem isso, transformando as posses em propriedade, mesmo nos programas sociais de habitação, reforçam o valor cultural da propriedade.
Nesta difícil conjuntura é preciso enfrentar essa questão de evitar não somente a predominância do regime fundiário da propriedade sobre o regime da posse como de termos somente esse regime fundiário constituído em nosso sistema legal e institucional.
Nesses momentos precisamos ser mais ousados do que ficar apenas resistindo a mudanças, mas de apontar novos caminhos para o fortalecimento do regime fundiário da posse social, adotando novos institutos, como as favelas consolidadas serem declaradas como bens sociais no mesmo patamar de proteção dos bens culturais e ambientais, precisamos estar abertos os reconhecimento dos institutos da posse comum da posse coletiva social, bem como de diversas formas de propriedade como a propriedade comum e coletiva como bens comuns tendo como referências experiências nos países mais desenvolvidos, e capitalistas como Inglaterra, Estados Unidos que tem já esses modelos. Devemos apostar na diversidade e não da unicidade, devemos acreditar em regimes fundiários plurais e não num único regime e essa Medida Provisória pode gerar essa consequência de que toda essa diversidade de posses fáticas que temos hoje das diversas formas como a maioria da população convive com a terra ser vinculado a apenas ao regime fundiário da propriedade da terra, temos que batalhar e lutar pela diversidade, pluralidade e diversos regimes abertos de convivência, de uso e de utilização das nossas terras, dos nossos espaços urbanos, das áreas rurais, favorecendo o processo de combate às desigualdades sociais e principalmente garantindo dignidade humana para milhões de pessoas que vivem em condições precárias e vulneráveis tanto no campo como na cidade.
Nelson Saule Júnior é diretor do Instituto Pólis, Professor de Direito Urbanístico da PUC-SP e coordenador do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico
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