Ultraprocessados e a vontade inconsciente de comer
CATEGORIAS: COMPORTAMENTO, DESTAQUES, MEIO AMBIENTE, MUNDO, SOCIEDADE
– ON 27/03/2017
Não é a fome, mas a necessidade de reconforto emocional que gera a ânsia de comer. A indústria alimentícia sabe disso e abusa do sal, açúcar e gordura para levar ao êxtase e vender mais
Por Juliana Dias e Mónica Chiffoleau, editoras do blog Conhecer para Comer
__
LEIA TAMBÉM, NA MESMA SÉRIE:
Häagen Dazs, Temer e o país do agronegócio
Dois projetos para a terra e a agricultura
__
Sem terra fértil não há comida, como abordamos na parte 2 deste artigo. Depois de tratar sobre a produção alimentar, discutiremos alguns aspectos do consumo de alimentos ultraprocessados. Desde 2001, a marca de sorvetes Häagen Dasz faz parte da General Mills, uma das dez empresas que controlam quase tudo o que é consumido diariamente, de acordo com o estudo Por trás das Marcas, pulicado pela ONG inglesa Oxfam.
__
LEIA TAMBÉM, NA MESMA SÉRIE:
Häagen Dazs, Temer e o país do agronegócio
Dois projetos para a terra e a agricultura
__
Sem terra fértil não há comida, como abordamos na parte 2 deste artigo. Depois de tratar sobre a produção alimentar, discutiremos alguns aspectos do consumo de alimentos ultraprocessados. Desde 2001, a marca de sorvetes Häagen Dasz faz parte da General Mills, uma das dez empresas que controlam quase tudo o que é consumido diariamente, de acordo com o estudo Por trás das Marcas, pulicado pela ONG inglesa Oxfam.
Em 1961, a marca iniciou suas vendas com apenas três sabores: baunilha, chocolate e café. O fundador Reuben Mattus buscava qualidade para que seus sorvetes tivessem um sabor único. O chocolate vinha da Bélgica, o café da Colômbia e a baunilha era importada da ilha de Madagascar. A receita original tinha mais gordura do que os padrões que o governo norte-americano requeria, assim como menos ar, ou seja, sua cremosidade e diferencial vinham da excelência dos ingredientes e da receita baseada em creme de leite.
Mattus foi mesmo visionário, se seu interesse era a qualidade que o sorvete conseguiria ao ter maior teor de gordura. No entanto, hoje é bem conhecido que o sal, o açúcar e a gordura têm sido indispensáveis não só para a preservação dos produtos alimentares, mas também para a gestão e venda de produtos, como foi bem documentado pelo jornalista norte-americano Michael Moss em seu livro “Sal, Açúcar e Gordura, como a indústria alimentícia nos fisgou” (MOSS, M. Salt, Sugar, Fat: How the food giants hooked us. United States of America: Random House, 2013).
No departamento de novos produtos das empresas de consumo de massa é de grande importância calcular o ponto exato em que o sal, o açúcar e a gordura vão poder induzir ao ponto de êxtase os consumidores. Este ponto é conhecido como o “bliss point”, ou o ponto de extrema felicidade, o qual, na linguagem dos marqueteiros, vai levar os consumidores à lua. Dessa forma, a engenharia de alimentos tem como trabalho encontrar a equação matemática perfeita de sabor e conveniência para vender mais produtos (MOSS, 2013, p.XXV).
Não é de estranhar que a maioria de nós prefira comida doce e gordurosa, que é “mais densa” energeticamente, com altas doses de sal, açúcar e gordura (NESTLE, 2013, p.17). Biologicamente estamos “programados”, ou condicionados, desta maneira. Trata-se de neurotransmissores no cérebro, muito úteis para nossos ancestrais caçadores-coletores, que precisavam reconhecer comida energética para a sobrevivência. As empresas sabem disso, o que é evidente quando olhamos para as prateleiras dos supermercados e encontramos uma variedade de ultraprocessados, formulações industriais com aparência de produto comestível à base de sal, açúcar e gordura. O interessante para a indústria é vender mais.
De acordo com o livro de Moss, as maiores empresas têm levado a cabo pesquisas sobre os efeitos da gordura no cérebro. A Unilever investiu 30 milhões de dólares em uma equipe de 20 pessoas, empregando as mais avançadas tecnologias de estudo neurológico para determinar o poder sensorial dos alimentos, inclusive da gordura. O cientista que liderou o estudo foi Francis McGlone, que ficou um pouco envergonhado de provar o que o diretor de insights da empresa pedia: determinar se o sorvete deixava os consumidores felizes, o que foi cientificamente comprovado.
Por sua vez, o centro de pesquisa e desenvolvimento da Nestlé, perto de Genebra, na Suíça, tem um grupo de cientistas, dentre eles Johannes Le Coutre, que utilizam o mesmo tipo de mapas cerebrais usados nos centros de pesquisa acadêmicos. Suas ferramentas incluem eletroencefalógrafos (EEG), cuja rede de eletrodos é fixada na cabeça do paciente a fim de explorar como o cérebro responde a vários estímulos. Os resultados demostraram que o cérebro detecta a gordura com incrível rapidez. Um compêndio sobre todos os fatos relacionados com a gordura foi escrito por Le Coutre e outros 50 colegas da indústria e da academia. O livro de 609 páginas foi publicado em 2010, servindo de guia para as empresas que querem utilizar o poder da gordura em seus produtos (MOSS, 2013, pp.149-156).
Mas o sorvete não tem só gordura, tem também açúcar. Considerado uma das principais causas da obesidade, o açúcar é fundamental para o paladar dos consumidores. Moss relata que, durante os últimos quarenta anos, centenas de fisiologistas, químicos, neurocientistas, biólogos e geneticistas do Centro de Sentidos Químicos Monell, na Filadélfia (EUA), buscam decifrar os mecanismos do gosto e do olfato. Dentre as descobertas, observa-se que os receptores na língua são estimulados pelos endocanabinóides – substâncias que são produzidas no cérebro para incrementar o apetite e que são irmãs do THC, a substância ativa da maconha (2013, p.7). Outras pesquisas sinalizadas pelo jornalista, como a de Moskowitz, permitiram encontrar, a partir de modelos matemáticos, o ponto ideal de açúcar a ser utilizado no produto, de modo a não desperdiçar e não causar repulsa. O cientista descobriu que não é a fome que gera a ânsia de comer. Raramente chegamos a uma situação em que o nosso corpo ou cérebro esteja com falta de nutrientes. O que precisamos é de reconforto, satisfazendo as necessidades emocionais, que são os pilares da comida processada: gosto, aroma, aparência e textura (MOSKOVITZ, 2013, pp. 34-39).
O interesse das grandes corporações alimentares é a venda de produtos e o lucro, nas palavras de Marion Nestle: “as empresas devem competir com agressividade por cada dólar gasto em comida, a primeira missão das empresas é vender produtos. As empresas não são agências de saúde ou serviços sociais, a nutrição se converte em um fator que, para as empresas, só é considerado se puder ajudar a vender. As opções éticas são muito pouco consideradas (NESTLE, 2013, p. 2).”
Podemos pensar assim, que os benefícios do lucro têm sido, para as empresas, contrários às expectativas dos consumidores, cujo paladar tem sido modificado e, em alguns casos, viciado. Igualmente, existe uma facilidade maior de acesso aos produtos alimentares baratos, altamente calóricos, de baixa qualidade nutricional e alto conteúdo publicitário. Lembremos que, para os marqueteiros, existem produtos que devem ser vendidos sem pensar em suas implicações para a saúde ou outro tipo de consequência. Parte da gestão é justamente o desenvolvimento do “produto” que deve ser consumido. Assim, o sal, o açúcar e a gordura se convertem em grandes aliados.
E a General Mills sabe bem disso. Não é fácil ser uma das dez empresas que controlam o que compramos nos supermercados. As primeiras marcas desta empresa eram as de cereais matinais. Em 1949 ela lançou no mercado o cereal com maior conteúdo de açúcar da época, o Sugar Crisp, que foi um hit, levando os concorrentes a lançar produtos com grande teor de açúcar. (MOSS, 2013, pp.68-74).
Falar do leite renderia mais de um texto, só vamos mencionar um fato. Se Häagen Dasz é uma marca norte-americana, e o sorvete não é orgânico, provavelmente a vaca tenha sido submetida ao hormônio transgênico de crescimento bovino (rbBGH ou rbST, nas siglas mais usadas em inglês).
O hormônio foi desenvolvido pela Monsanto e é injetado em vacas para aumentar a produção de leite. Está proibido na maioria dos países, mas é livremente utilizado nos EUA, sem que o leite e os derivados tragam a informação nos rótulos. No Brasil, esse hormônio foi liberado em 2006.
Diante desse cenário de especialistas e marqueteiros ávidos em captar o ponto de êxtase do consumidor com fórmulas à base de sal, açúcar e gordura, a marca norte-americana Häagen Dasz permanece há 56 anos com a mesma imagem na mente do consumidor: uma paisagem bucólica dinamarquesa, sugerindo a origem dos sorvetes, fabricados com leite sem hormônios e sustentável. As ambiguidades e contradições da indústria alimentícia devem ser desveladas e complexificadas com a intenção de trazer informação e esclarecimento sobre esse modelo hegemônico de produzir e consumir produtos comestíveis.
Em 2016, a Häagen Dasz anunciou a redução progressiva de ingredientes transgênicos na fabricação dos seus sorvetes, indicando, ao que parece, uma aproximação com o amplo debate sobre o assunto e a pressão de organizações de consumidores em todo o mundo. Em paralelo, a produção de leite de vacas no país escandinavo vem aumentando desde a década de 1980 em mais de 50%, enquanto as emissões de carbono foram reduzidas neste intervalo. Produtores dinamarqueses estão agora entre os produtores de leite mais eficientes do mundo em termos de emissões de gases com efeito de estufa.
Ao final, a magia do marketing permite trazer imagens idílicas para a mente do consumidor mesmo que não sejam reais, antenadas com o discurso ecológico; e o marketing político alcança a aceitação da mente pública para criar e instaurar políticas favoráveis para os grupos no poder que controlam o sistema agroalimentar global.
No comments:
Post a Comment