"O que os textos utópicos pensam e possibilitam pensar é o comum entendido como princípio de subjetivação alternativo ao de proprietário. Essa é a ”hipótese comunista” que eu acredito seja importante recuperar, colocando-a no coração de uma reinvenção e transformação do projeto existente. O comum deve produzir os seus sujeitos. Só que essa produção ativa-se sempre à beira de um paradoxo: uma vez libertados da gaiola de ferro da propriedade, os indivíduos ainda correm o risco de serem jogados de volta para a imobilidade de um proprium que retorna na forma de pertencimento comunitário, (re) tornando-se “os proprietários de seu comum”, escreve Lorenzo Coccoli, doutor em filosofia, em artigo publicado por EuroNomade, 01-01-2017, precedido por uma introdução feita pelo Coletivo EuroNomade. A tradução é de Luisa Rabolini.
Introdução
O ensaio foi originalmente publicado em A. Quarta e M. Spanò (Org.), Beni comuni 2.0. Contro-egemonia e nuove istituzioni (em tradução livre, Bens comuns 2.0. Contra-hegemonia e novas instituições). Milano-Udine: Mimesis, 2016, p. 23-34.
O comum é liberdade. Uma liberdade que é obliterada sempre que a instância coletiva que se pretende como contraponto ao “individualismo possessivo” assume contornos comunitários e invoca a concretização do bem comum. A afirmação forte da própria identidade e de valores comuns, vinculantes para o grupo que os assume, consolida a comunidade internamente ao mesmo tempo em que demarca o seu perímetro e a transforma em uma entidade pronta a rejeitar tudo que lhe é estranho, independentemente de se tratar de uma comunidade restrita – um povoado, os cidadãos “ativos” de um bairro metropolitano ou o coletivo político – ou de uma comunidade ampla – o povo, a nação. O resultado é o de declinar de forma coletiva aquela coação para a exclusão típica do individualismo proprietário burguês que se pretendia contrastar. É nesse ponto que se choca a promessa do comunismo utópico, narrada de forma tão clara por Lorenzo Coccoli no ensaio a seguir, substituindo pulsões identitárias às instâncias libertárias originárias e sobrepondo à possível multiformidade de ligações sociais a univocidade de um único código moral legítimo. E que, por fim, revela-se incapaz de projetar a própria virtude (e o próprio modelo) para além dos limites da sua dimensão comunitária.
Portanto, da mesma forma que no passado a ortodoxia de pensamento e práticas cultivada dentro de comunidades fechadas não foi suficiente para vencer as relações de exploração que estruturam as sociedades capitalistas, não será, hoje, apenas invocando um retorno ao povo soberano que conseguiremos responder à fragmentação da subjetividade em mil identidades diversas, destinadas a povoar de novas figuras de consumo os mercados globais e de novas formas de cidadania ‘fraca’ as cartas de direitos neoliberais.
O comum é liberdade. Uma liberdade que é obliterada sempre que a instância coletiva que se pretende como contraponto ao “individualismo possessivo” assume contornos comunitários e invoca a concretização do bem comum. A afirmação forte da própria identidade e de valores comuns, vinculantes para o grupo que os assume, consolida a comunidade internamente ao mesmo tempo em que demarca o seu perímetro e a transforma em uma entidade pronta a rejeitar tudo que lhe é estranho, independentemente de se tratar de uma comunidade restrita – um povoado, os cidadãos “ativos” de um bairro metropolitano ou o coletivo político – ou de uma comunidade ampla – o povo, a nação. O resultado é o de declinar de forma coletiva aquela coação para a exclusão típica do individualismo proprietário burguês que se pretendia contrastar. É nesse ponto que se choca a promessa do comunismo utópico, narrada de forma tão clara por Lorenzo Coccoli no ensaio a seguir, substituindo pulsões identitárias às instâncias libertárias originárias e sobrepondo à possível multiformidade de ligações sociais a univocidade de um único código moral legítimo. E que, por fim, revela-se incapaz de projetar a própria virtude (e o próprio modelo) para além dos limites da sua dimensão comunitária.
Portanto, da mesma forma que no passado a ortodoxia de pensamento e práticas cultivada dentro de comunidades fechadas não foi suficiente para vencer as relações de exploração que estruturam as sociedades capitalistas, não será, hoje, apenas invocando um retorno ao povo soberano que conseguiremos responder à fragmentação da subjetividade em mil identidades diversas, destinadas a povoar de novas figuras de consumo os mercados globais e de novas formas de cidadania ‘fraca’ as cartas de direitos neoliberais.
Pelo nosso ponto de vista, as subjetividades do comum, na concreta materialidade dos seus corpos, só poderão ter fisionomias ‘em movimento’, moldadas pelas múltiplas relações nas quais estão imersas, pelas agregações em dimensões coletivas sempre fluidas e dinâmicas. Essas ‘singularidades comuns’ espelham a heterogeneidade constitutiva do trabalho vivo nas metrópoles. A relação entre heterogeneidade das singularidades e o comum enraíza-se na cooperação social que elas próprias produzem. Apenas a partir da heterogeneidade que vive na cooperação social podem surgir instituições do comum não identitárias e fechadas. Lugares de construção e de exercício de liberdade.
Eis o artigo.
“O mais louvável nas utopias é haver denunciado os danos que causa a propriedade, o horror que representa, as calamidades que provoca. [...] Esse mundo de proprietários,[é] o mais atroz dos mundos possíveis.” (E.M. Cioran, História e utopia)
1.- “Logo, a luta política travar-se-á entre os que possuem e os que não possuem; o grande campo de batalha será a propriedade” [1]. A famosa profecia de Torcqueville, proferida poucos meses antes da revolução de fevereiro de 1848 e da publicação do Manifesto do partido comunista, pode novamente ser eleita como lema do nosso tempo. Evidentemente, as parte em conflito não são mais as mesmas de 150 anos atrás. Mas o fato é que a propriedade – ou melhor, a expansão contínua dos processos de privatização do mundo material e imaterial – ainda é um enjeu fundamental no embate político, social e econômico que atravessa e divide a atualidade. É quase supérfluo, nesse contexto, nomear as facções opostas que disputam o jogo, por mais fluidas e mutáveis que sejam: de um lado estão os novos regimes de acumulação originária [2] e o “segundo movimento de enclosures” [3], elementos-chave de um dispositivo neoliberal mais amplo e de sua afirmação em escala planetária; do outro, as mobilizações, as resistências, os antagonismos que, dos movimentos alteromundialistas dos anos 1990 e do início de 2000 até os mais recentes ciclos de lutas globais, procuraram contrapor-se ao avanço da ‘nova razão mundial’.
Também é supérfluo relembrar o papel que a prática e a teoria dos bens de consumo jogaram na articulação dessa frente de oposição. Em primeiro lugar, a bandeiras dos commons serviu como ‘significante vazio’ apto a catalisar energias e forças sociais heterogêneas, desencadeando dinâmicas frutíferas de subjetivação [4]. E não apenas isso. O “benicomunismo” não se limitou a servir como polo agregador de iniciativas de resistência, mas até se aventurou a elaborar e propor um projeto de sociedade radicalmente alternativo àquela capitalista, desafiando a pretensão hegemônica do discurso neoliberal. Movimentando-se em conjunto no plano da tática e da estratégia, do constituído e do constituinte, o movimento dos bens comuns conseguiu religar o motor da imaginação política que estava um tanto afogado, gerando ideias e vida a novas formas institucionais horizontais, participativas e inclusivas, afastando-se do isomorfismo moderno de público e privado [5].
Ora, com bastante frequência os partidários da teoria dos bens comuns buscaram no passado o combustível imaginário e simbólico para esse impulso em direção ao possível. Isso porque, escrevem Dardot e Laval, “aquilo que parece ser o aspecto mais inovador das lutas emerge em um contexto e se inscreve em uma história. É a exploração dessa longa história que permite fugir às banalidades, às confusões e aos contra-sensos”[6]. Dessa forma, a escavação arqueológica e a indagação genealógica permitiram ao discurso dos bens comuns construírem seu próprio arquivo e reconectar os fios entre as trilhas interrompidas pelo triunfo apenas aparentemente pacífico do individualismo possessivo. Da Charter of the Forest à guerra dos camponeses, das comunidades monásticas ao mutualismo operário, de Spinoza a Proudhon e Marx, partes das teorias e das praxes foram gradualmente invocadas com o intuito de decifrar o palimpsesto de uma “altermodernidade” que sofre uma forclusão causada pelo advento do paradigma proprietário. Minha proposta, no espaço desse curto subsídio, é acrescentar mais uma peça a essa operação contra-hegemônica de memória coletiva, recuperando uma tradição de pensamento que justamente sobre a contestação daquele paradigma construiu parte da sua plurissecular fortuna. Refiro-me àqueles textos utopistas que, de Platão em diante, colocaram o comum no centro de um projeto de reinvenção das estruturas juridico-políticas existentes [8]. Vamos de imediato dirimir toda dúvida: o que me interessa não é a atitude quimérica que em muitos desses textos separa claramente o ser do ter que ser, tornando impossível toda recomposição do real e do ideal. Ao contrário, trata-se aqui de analisar o nó conceitual que amarra abolição da propriedade privada, formas de vida comum e imaginação institucional, destilando suas reservas de sentido que, para além e muitas vezes contra as intenções de determinado autor, podem ser postas à disposição da atualidade, sem jamais esquecer possíveis derivações regressivas.
2.- Em sua monografia sobre Saint-Simon, resultado do ciclo de palestras apresentadas a Bordeaux entre 1895 e 1896, Durkheim identifica na insistência exclusiva sobre as consequências morais da propriedade o ponto crítico do comunismo utópico: “A sua (dos comunistas) ideia fundamental, que reaparece sempre sob formas levemente distintas, é que a propriedade privada é a fonte do egoísmo e que do egoísmo deriva a imoralidade. [...] resumindo, em seu conjunto, o comunismo consiste em um lugar comum da moral abstrata que não é própria de nenhum tempo e de nenhum país” [9]. É difícil, aliás impossível, negar a predominância do tom moralizador no discurso utopista, em especial para tudo aquilo que diz respeito à constelação do proprium: avareza, ambição, inveja e hipocrisia são os frutos envenenados da “ímpia Propriedade, Mãe de todos os crimes que assolam o Mundo” [10]. Também é verdade, ao contrario, que a forma de vida comunitária – que, aliás, frequentemente utiliza a Igreja primitiva e o cenobitismo como modelo, é descrita de forma pontual utilizando o léxico da virtude, da santidade e da perfeição: “Em relação ao gênero de vida, já foi falado e comprovado pela experiência que ela é possível, pois está mais em conformidade a natureza viver de acordo com a razão e a virtude do que segundo a sensualidade e o vício, [...] e isso foi provado pelos monges e, na atualidade, pelos Anabatistas que vivem em comunidade” [11]. Dito isso, falta ainda esclarecer qual é a transição lógica que permite reconhecer na propriedade a fonte de todo mal e no comum a precondição de uma possível palingenesia individual e coletiva. O que permite atribuir a uma e ao outro um poder de desempenho tal a ponto de direcionar para caminhos totalmente opostos os destinos do homem e da sociedade?
O ponto - que gostaria de aprofundar pelo menos como hipótese – é que esses dois princípios figuram nos textos utopistas não apenas e nem tanto como simples dispositivos de regulação da relação entre as pessoas e os bens, mas como nascedouro de dois processos distintos de subjetivação. O sujeito não é aqui algo que preexiste inteiramente à apropriação (privada ou comum) das coisas, mas, ao contrário, é no mínimo parcialmente o efeito da institucionalização daquela apropriação. É a instituição da propriedade privada, ou sua negação, que literalmente torna o homem bom ou mau. Eis a intuição implícita no comunismo utópico: o comum é potência produtiva de subjetividades radicalmente outras em relação às existentes, modeladas no paradigma do indivíduo possessivo. Isso permanece válido independentemente dos diferentes conteúdos morais com que cada autor decide, depois, substanciar essa alteridade. Isso responde pela impossibilidade de medir com os nossos parâmetros proprietários seres tão diferentes de nós: “Eles não têm nem as nossas paixões, nem as nossas inclinações, nem os nossos desejos” [12]. Portanto seria inexato falar, a propósito da literatura utópica, de uma antropologia ingenuamente positiva. O que parece emergir, ao menos em primeira instância, parece ser uma concepção plástica da natureza humana que pode ser moldada em um sentido ou em outro segundo o contexto institucional em que se insere. “O homem” escreve Morelly “não tem ideias e nem tendências inatas” [13].
1.- “Logo, a luta política travar-se-á entre os que possuem e os que não possuem; o grande campo de batalha será a propriedade” [1]. A famosa profecia de Torcqueville, proferida poucos meses antes da revolução de fevereiro de 1848 e da publicação do Manifesto do partido comunista, pode novamente ser eleita como lema do nosso tempo. Evidentemente, as parte em conflito não são mais as mesmas de 150 anos atrás. Mas o fato é que a propriedade – ou melhor, a expansão contínua dos processos de privatização do mundo material e imaterial – ainda é um enjeu fundamental no embate político, social e econômico que atravessa e divide a atualidade. É quase supérfluo, nesse contexto, nomear as facções opostas que disputam o jogo, por mais fluidas e mutáveis que sejam: de um lado estão os novos regimes de acumulação originária [2] e o “segundo movimento de enclosures” [3], elementos-chave de um dispositivo neoliberal mais amplo e de sua afirmação em escala planetária; do outro, as mobilizações, as resistências, os antagonismos que, dos movimentos alteromundialistas dos anos 1990 e do início de 2000 até os mais recentes ciclos de lutas globais, procuraram contrapor-se ao avanço da ‘nova razão mundial’.
Também é supérfluo relembrar o papel que a prática e a teoria dos bens de consumo jogaram na articulação dessa frente de oposição. Em primeiro lugar, a bandeiras dos commons serviu como ‘significante vazio’ apto a catalisar energias e forças sociais heterogêneas, desencadeando dinâmicas frutíferas de subjetivação [4]. E não apenas isso. O “benicomunismo” não se limitou a servir como polo agregador de iniciativas de resistência, mas até se aventurou a elaborar e propor um projeto de sociedade radicalmente alternativo àquela capitalista, desafiando a pretensão hegemônica do discurso neoliberal. Movimentando-se em conjunto no plano da tática e da estratégia, do constituído e do constituinte, o movimento dos bens comuns conseguiu religar o motor da imaginação política que estava um tanto afogado, gerando ideias e vida a novas formas institucionais horizontais, participativas e inclusivas, afastando-se do isomorfismo moderno de público e privado [5].
Ora, com bastante frequência os partidários da teoria dos bens comuns buscaram no passado o combustível imaginário e simbólico para esse impulso em direção ao possível. Isso porque, escrevem Dardot e Laval, “aquilo que parece ser o aspecto mais inovador das lutas emerge em um contexto e se inscreve em uma história. É a exploração dessa longa história que permite fugir às banalidades, às confusões e aos contra-sensos”[6]. Dessa forma, a escavação arqueológica e a indagação genealógica permitiram ao discurso dos bens comuns construírem seu próprio arquivo e reconectar os fios entre as trilhas interrompidas pelo triunfo apenas aparentemente pacífico do individualismo possessivo. Da Charter of the Forest à guerra dos camponeses, das comunidades monásticas ao mutualismo operário, de Spinoza a Proudhon e Marx, partes das teorias e das praxes foram gradualmente invocadas com o intuito de decifrar o palimpsesto de uma “altermodernidade” que sofre uma forclusão causada pelo advento do paradigma proprietário. Minha proposta, no espaço desse curto subsídio, é acrescentar mais uma peça a essa operação contra-hegemônica de memória coletiva, recuperando uma tradição de pensamento que justamente sobre a contestação daquele paradigma construiu parte da sua plurissecular fortuna. Refiro-me àqueles textos utopistas que, de Platão em diante, colocaram o comum no centro de um projeto de reinvenção das estruturas juridico-políticas existentes [8]. Vamos de imediato dirimir toda dúvida: o que me interessa não é a atitude quimérica que em muitos desses textos separa claramente o ser do ter que ser, tornando impossível toda recomposição do real e do ideal. Ao contrário, trata-se aqui de analisar o nó conceitual que amarra abolição da propriedade privada, formas de vida comum e imaginação institucional, destilando suas reservas de sentido que, para além e muitas vezes contra as intenções de determinado autor, podem ser postas à disposição da atualidade, sem jamais esquecer possíveis derivações regressivas.
2.- Em sua monografia sobre Saint-Simon, resultado do ciclo de palestras apresentadas a Bordeaux entre 1895 e 1896, Durkheim identifica na insistência exclusiva sobre as consequências morais da propriedade o ponto crítico do comunismo utópico: “A sua (dos comunistas) ideia fundamental, que reaparece sempre sob formas levemente distintas, é que a propriedade privada é a fonte do egoísmo e que do egoísmo deriva a imoralidade. [...] resumindo, em seu conjunto, o comunismo consiste em um lugar comum da moral abstrata que não é própria de nenhum tempo e de nenhum país” [9]. É difícil, aliás impossível, negar a predominância do tom moralizador no discurso utopista, em especial para tudo aquilo que diz respeito à constelação do proprium: avareza, ambição, inveja e hipocrisia são os frutos envenenados da “ímpia Propriedade, Mãe de todos os crimes que assolam o Mundo” [10]. Também é verdade, ao contrario, que a forma de vida comunitária – que, aliás, frequentemente utiliza a Igreja primitiva e o cenobitismo como modelo, é descrita de forma pontual utilizando o léxico da virtude, da santidade e da perfeição: “Em relação ao gênero de vida, já foi falado e comprovado pela experiência que ela é possível, pois está mais em conformidade a natureza viver de acordo com a razão e a virtude do que segundo a sensualidade e o vício, [...] e isso foi provado pelos monges e, na atualidade, pelos Anabatistas que vivem em comunidade” [11]. Dito isso, falta ainda esclarecer qual é a transição lógica que permite reconhecer na propriedade a fonte de todo mal e no comum a precondição de uma possível palingenesia individual e coletiva. O que permite atribuir a uma e ao outro um poder de desempenho tal a ponto de direcionar para caminhos totalmente opostos os destinos do homem e da sociedade?
O ponto - que gostaria de aprofundar pelo menos como hipótese – é que esses dois princípios figuram nos textos utopistas não apenas e nem tanto como simples dispositivos de regulação da relação entre as pessoas e os bens, mas como nascedouro de dois processos distintos de subjetivação. O sujeito não é aqui algo que preexiste inteiramente à apropriação (privada ou comum) das coisas, mas, ao contrário, é no mínimo parcialmente o efeito da institucionalização daquela apropriação. É a instituição da propriedade privada, ou sua negação, que literalmente torna o homem bom ou mau. Eis a intuição implícita no comunismo utópico: o comum é potência produtiva de subjetividades radicalmente outras em relação às existentes, modeladas no paradigma do indivíduo possessivo. Isso permanece válido independentemente dos diferentes conteúdos morais com que cada autor decide, depois, substanciar essa alteridade. Isso responde pela impossibilidade de medir com os nossos parâmetros proprietários seres tão diferentes de nós: “Eles não têm nem as nossas paixões, nem as nossas inclinações, nem os nossos desejos” [12]. Portanto seria inexato falar, a propósito da literatura utópica, de uma antropologia ingenuamente positiva. O que parece emergir, ao menos em primeira instância, parece ser uma concepção plástica da natureza humana que pode ser moldada em um sentido ou em outro segundo o contexto institucional em que se insere. “O homem” escreve Morelly “não tem ideias e nem tendências inatas” [13].
São os legisladores, ou seja, aqueles que deram vida ao direito civil fundado na propriedade privada que “fizeram todo o necessário para que no coração do homem fosse plantada e desabrochasse a semente de vícios que jamais haviam existido e para sufocar o pouco de virtude que pensavam ali cultivar” [14]. Isso explica porque “a vida e os bens em comum” não são apenas um elemento entre tantos da invenção utópica, mas “aquilo que essencialmente forma o máximo fundamento de toda a sua [dos Utopianos] organização social” [15]. O comum desancora os sujeitos do existente – ao qual estão amarrados pelo “peso de suas posses” [16] – permite sua desterritorialização e faz dessa desterritorialização a condição de um outro mundo possível. Essa é portanto a alavanca que permite desviar a utopia dos trilhos do real e põe em ação sua imaginação institucional prolífica e extremamente detalhista, que investe nos mínimos pormenores cada aspecto da organização material e simbólica das comunidades humanas.
3.- É justamente esse primeiro momento de fluidificação das relações sociais, libertadas da rigidez do “meu” e do “teu”, que parece ser extremamente ameaçador aos adversários do comunismo utópico, cientes de sua explosiva carga subversiva. Por isso More, talvez antecipando de forma cautelosa as possíveis objeções ao seu projeto, ressaltava que “essa única coisa seria suficiente para revirar desde as suas bases toda nobreza, toda magnificência, esplendor e majestade que formam, de acordo com a opinião pública, a beleza e a ornamentação do Estado” [17]. Vinte anos mais tarde, outro humanista amigo de More, Juan Luis Vives, em um folheto escrito para condenar a rebelião de Münster, iria dar voz a preocupações análogas. A communio rerum que os anabatistas proclamaram em sua “Nova Jerusalém” é “absurda, ímpia e perversa”, pois subtrai a base onde se apóiam as hierarquias sociais, econômicas e políticas que regem a ordem da sociedade. Sem diferenciações na distribuição de riquezas e honrarias, nada mais de elites, nada mais de classes, nada de status, mas apenas uma “injustíssima igualdade entre inferiores e superiores” [18]. Sem o aguilhão da pobreza, acaba a repartição funcional das tarefas e a obrigação de trabalhar: “Se agora com toda a premência da necessidade e a pressão da indigência existem tantos indolentes que prefeririam morrer a trabalhar, o que aconteceria uma vez imposta a igualdade e a comunidade de todas as coisas?” [19]. Mas especialmente a utopia comunitária dos rebeldes anabatistas exclui desde a raiz toda distinção política dos papeis, todo regime de governo, relação de comando e obediência: “Vos parece correto que ninguém seja dono e ninguém seja servo? [...] Acreditais talvez que todos devam ser magistrados ou, ao contrário, cidadãos privados? A lei de Cristo diferencia entre patrões e servos, magistrados e privados. Não subverte aquela ordem graças a cujas prescrições cada coisa subsiste [...], como seria possível imaginar uma República na qual ninguém governasse nem comandasse, quase um corpo sem a cabeça, um navio sem leme e sem timoneiro, um homem sem razão?”[20].
É precisamente essa suposta impossibilidade que o discurso utopista procura consubstanciar. O sujeito do comum, desvinculado da dimensão do próprio, torna-se – ou ao menos tende a se tornar – sujeito nômade indisponível às tradicionais estruturas familiares, sociais e políticas. A abolição da propriedade (privada) e o uso (comum) das coisas dissolvem a solidez das formas transcendentes que organizam a ordem estabelecida e abrem um espaço de imanência no qual os indivíduos podem mover-se livremente sem a necessidade de se fixar em identidades predeterminadas. Como veremos, não é essa a última palavra dos utopistas sobre esse argumento: na quase totalidade dos casos, de fato, uma outra transcendência intervém para fechar novamente aquele espaço. Contudo, permanece o fato que grande parte da vida comunitária que eles descrevem coloca-se sob o signo do dinamismo, da circulação e da mobilidade. Mobilidade literal: nas cidades ideais viaja-se, às cidades ideais chega-se viajando. Sua arquitetura é pensada para obter “espaço e liberdade de movimento” [21], e ali não vige a lei da moradia fixa: “Ninguém possui uma casa como propriedade privada, mas todas estão disponíveis e cedidas ao uso e, se assim o Estado quiser, é possível mudar facilmente de habitação” [22]. Mas, principalmente, trata-se de uma mobilidade subjetiva que atravessa e invalida os limites traçados pela verticalidade hierárquica dos aparatos que bloqueiam a fluidez das relações e limitam os encontros e as trocas. O amor não está preso nas malhas da “eterna escravidão” do casamento: “Sim, falam os amantes, enquanto nos amarmos seremos inseparáveis” [23]. A desigual distribuição de riquezas, dignidade e saber/poder não destina mais uma parte consistente da sociedade aos esforços de uma atividade ingrata e sempre idêntica a si mesma, e a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual parece desaparecer: “Mas entre eles, compartilhando os ofícios, as artes e as obrigações entre todos, não precisa alguém se esforçar mais que quatro horas ao dia; e todo o restante é aprender brincando, jogando, lendo, ensinando, caminhando e sempre com alegria” [24]. O caçador-pescador-criador-crítico da Ideologia Alemã não está mais tão distante.
Principalmente, consideradas essas premissas, é a própria distinção entre governantes e governados que, pelo menos potencialmente, tende a diminuir. Tudo é comum, inclusive o poder: e o governo vai se modificando em autogoverno, embora com gradações distintas de acordo com os diversos autores. Mesmo ali onde ainda persistem magistrados, funcionários e oficiais, os princípios de elegibilidade, sorteio, rotação dos cargos são objetivados para garantir uma igual distribuição da faculdade decisória em todo o tecido social. Mas o ponto limite permanece o da eliminação total de toda separação na gestão do poder. Atenção, não se trata tanto da transferência saint-simoniana do governo dos homens à administração das coisas, mas de uma soldagem perfeita entre forma de vida e regras que desabilita qualquer dispositivo de autorização. Na futura Inglaterra de Morris, as “regras [...] substituíram o governo. [...] Já são cento e cinquenta anos que vivemos mais ou menos dessa forma e entre nós foi se desenvolvendo uma tradição ou, melhor dizendo, um sistema de vida que nos incentiva a agir para o melhor” [25]. O monstruoso corpo sem cabeça temido por Vives torna-se aqui uma “realidade” paradoxal.
4.- Como já mencionei, essa é apenas uma parte da história: uma linha de tendência, uma virtualidade quase sempre destinada a permanecer como tal. O ponto é que aquele primeiro movimento desterritorializante, cujos efeitos conceituais tentamos esboçar acima, resulta na maioria dos casos propedêutico a um novo movimento de reterritorialização. O sujeito é subtraído à esfera do proprium apenas para ser entregue a um proprium mais autêntico, mais originário. A metafísica proprietária é substituída por outra metafísica, igualmente letal: a metafísica da comunidade. O comum já não desempenha mais o papel de multiplicador de diferenças e de incubador de subjetividades móveis, mas ao contrário serve para garantir a fusão indiferenciada dos indivíduos em uma comunhão imediata, absoluta, totalizante. Por sua vez, essa comunidade substancializada constitui-se em poder separado que transcende o corpo social e atribui, a cada um, tarefas e papeis em nome de uma finalidade coletiva. Os bens comuns reduzem-se ao unum de um bem comum que, apesar de ser em base diferente, restabelece a verticalidade da classificação hierárquico-funcional [26].
O texto platônico da República - que como se sabe representa um dos mais importantes pontos de referência dos textos utópicos – exibe essa dinâmica com extraordinária evidência. Basta lembrar que a forma de vida comum da kallipolis não diz respeito a todos os seus membros, mas apenas à classe dos guardiões. Contudo, mesmo nesse âmbito de aplicação restrito, estão claros os objetivos que ela é chamada a desempenhar. Trata-se, principalmente, de instituir aquela “comunhão de prazer e dor” que interliga a cidade até sua assimilação “à condição de um único homem”[28]. O problema do possível atrito entre os interesses privados e da sua eventual composição é resolvido eliminando totalmente a dimensão do idiosis (privacidade), na tentativa de obter uma comunidade depurada de todo o viés conflitual que ocorre quando todos repetem em uníssono “meu” e “não meu”: “Isso os torna completamente alheios àqueles motivos de conflito que afligem os homens que possuem riquezas, filhos, parentes” [29]. Para ser sua expressão adequada, até mesmo o poder que esse tipo de comunidade exerce sobre si mesma e sobre os outros deve ser submetido a um análogo processo de expropriação. O desafio a ser respondido é aquele lançado por Trasímaco: “Tu pensas que os pastores e os vaqueiros procuram o bem do rebanho ou dos bois e os engordam e tratam tendo em vista outra coisa que não seja o bem dos seus patrões e deles mesmo. E, assim, também os governantes das cidades [...]” [30]. O comum serve então para trazer novamente o governo “pastoral” dos guardiões à sua verdade, transformando esses últimos de lobos famintos em cães fieis ao serviço da polis. Sem bens ou afetos familiares próprios, nenhuma utilidade pessoal intervém para distrair os governantes dos seus deveres: “Assim se salvarão e salvarão a cidade. Ao contrário, logo que sejam proprietários de terra, casas e dinheiro, de guardas que eram transformar-se-ão em mercadores e lavradores e, de aliados, em déspotas inimigos dos outros cidadãos” [31]. A ruptura da equação riqueza/poder esvazia o político de seu conteúdo social ou econômico, elevando-o assim a uma transcendência que desalinha o comum da trajetória imanentista e captura-o dentro de outra linha genealógica, a do “serviço público”[32]. Apenas eliminando propriedade e interesse pessoal pode-se esperar tornar “magistrados, grandes de uma República, monarcas [...] simples ministros designados a cuidar da felicidade” dos seus povos [33].
3.- É justamente esse primeiro momento de fluidificação das relações sociais, libertadas da rigidez do “meu” e do “teu”, que parece ser extremamente ameaçador aos adversários do comunismo utópico, cientes de sua explosiva carga subversiva. Por isso More, talvez antecipando de forma cautelosa as possíveis objeções ao seu projeto, ressaltava que “essa única coisa seria suficiente para revirar desde as suas bases toda nobreza, toda magnificência, esplendor e majestade que formam, de acordo com a opinião pública, a beleza e a ornamentação do Estado” [17]. Vinte anos mais tarde, outro humanista amigo de More, Juan Luis Vives, em um folheto escrito para condenar a rebelião de Münster, iria dar voz a preocupações análogas. A communio rerum que os anabatistas proclamaram em sua “Nova Jerusalém” é “absurda, ímpia e perversa”, pois subtrai a base onde se apóiam as hierarquias sociais, econômicas e políticas que regem a ordem da sociedade. Sem diferenciações na distribuição de riquezas e honrarias, nada mais de elites, nada mais de classes, nada de status, mas apenas uma “injustíssima igualdade entre inferiores e superiores” [18]. Sem o aguilhão da pobreza, acaba a repartição funcional das tarefas e a obrigação de trabalhar: “Se agora com toda a premência da necessidade e a pressão da indigência existem tantos indolentes que prefeririam morrer a trabalhar, o que aconteceria uma vez imposta a igualdade e a comunidade de todas as coisas?” [19]. Mas especialmente a utopia comunitária dos rebeldes anabatistas exclui desde a raiz toda distinção política dos papeis, todo regime de governo, relação de comando e obediência: “Vos parece correto que ninguém seja dono e ninguém seja servo? [...] Acreditais talvez que todos devam ser magistrados ou, ao contrário, cidadãos privados? A lei de Cristo diferencia entre patrões e servos, magistrados e privados. Não subverte aquela ordem graças a cujas prescrições cada coisa subsiste [...], como seria possível imaginar uma República na qual ninguém governasse nem comandasse, quase um corpo sem a cabeça, um navio sem leme e sem timoneiro, um homem sem razão?”[20].
É precisamente essa suposta impossibilidade que o discurso utopista procura consubstanciar. O sujeito do comum, desvinculado da dimensão do próprio, torna-se – ou ao menos tende a se tornar – sujeito nômade indisponível às tradicionais estruturas familiares, sociais e políticas. A abolição da propriedade (privada) e o uso (comum) das coisas dissolvem a solidez das formas transcendentes que organizam a ordem estabelecida e abrem um espaço de imanência no qual os indivíduos podem mover-se livremente sem a necessidade de se fixar em identidades predeterminadas. Como veremos, não é essa a última palavra dos utopistas sobre esse argumento: na quase totalidade dos casos, de fato, uma outra transcendência intervém para fechar novamente aquele espaço. Contudo, permanece o fato que grande parte da vida comunitária que eles descrevem coloca-se sob o signo do dinamismo, da circulação e da mobilidade. Mobilidade literal: nas cidades ideais viaja-se, às cidades ideais chega-se viajando. Sua arquitetura é pensada para obter “espaço e liberdade de movimento” [21], e ali não vige a lei da moradia fixa: “Ninguém possui uma casa como propriedade privada, mas todas estão disponíveis e cedidas ao uso e, se assim o Estado quiser, é possível mudar facilmente de habitação” [22]. Mas, principalmente, trata-se de uma mobilidade subjetiva que atravessa e invalida os limites traçados pela verticalidade hierárquica dos aparatos que bloqueiam a fluidez das relações e limitam os encontros e as trocas. O amor não está preso nas malhas da “eterna escravidão” do casamento: “Sim, falam os amantes, enquanto nos amarmos seremos inseparáveis” [23]. A desigual distribuição de riquezas, dignidade e saber/poder não destina mais uma parte consistente da sociedade aos esforços de uma atividade ingrata e sempre idêntica a si mesma, e a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual parece desaparecer: “Mas entre eles, compartilhando os ofícios, as artes e as obrigações entre todos, não precisa alguém se esforçar mais que quatro horas ao dia; e todo o restante é aprender brincando, jogando, lendo, ensinando, caminhando e sempre com alegria” [24]. O caçador-pescador-criador-crítico da Ideologia Alemã não está mais tão distante.
Principalmente, consideradas essas premissas, é a própria distinção entre governantes e governados que, pelo menos potencialmente, tende a diminuir. Tudo é comum, inclusive o poder: e o governo vai se modificando em autogoverno, embora com gradações distintas de acordo com os diversos autores. Mesmo ali onde ainda persistem magistrados, funcionários e oficiais, os princípios de elegibilidade, sorteio, rotação dos cargos são objetivados para garantir uma igual distribuição da faculdade decisória em todo o tecido social. Mas o ponto limite permanece o da eliminação total de toda separação na gestão do poder. Atenção, não se trata tanto da transferência saint-simoniana do governo dos homens à administração das coisas, mas de uma soldagem perfeita entre forma de vida e regras que desabilita qualquer dispositivo de autorização. Na futura Inglaterra de Morris, as “regras [...] substituíram o governo. [...] Já são cento e cinquenta anos que vivemos mais ou menos dessa forma e entre nós foi se desenvolvendo uma tradição ou, melhor dizendo, um sistema de vida que nos incentiva a agir para o melhor” [25]. O monstruoso corpo sem cabeça temido por Vives torna-se aqui uma “realidade” paradoxal.
4.- Como já mencionei, essa é apenas uma parte da história: uma linha de tendência, uma virtualidade quase sempre destinada a permanecer como tal. O ponto é que aquele primeiro movimento desterritorializante, cujos efeitos conceituais tentamos esboçar acima, resulta na maioria dos casos propedêutico a um novo movimento de reterritorialização. O sujeito é subtraído à esfera do proprium apenas para ser entregue a um proprium mais autêntico, mais originário. A metafísica proprietária é substituída por outra metafísica, igualmente letal: a metafísica da comunidade. O comum já não desempenha mais o papel de multiplicador de diferenças e de incubador de subjetividades móveis, mas ao contrário serve para garantir a fusão indiferenciada dos indivíduos em uma comunhão imediata, absoluta, totalizante. Por sua vez, essa comunidade substancializada constitui-se em poder separado que transcende o corpo social e atribui, a cada um, tarefas e papeis em nome de uma finalidade coletiva. Os bens comuns reduzem-se ao unum de um bem comum que, apesar de ser em base diferente, restabelece a verticalidade da classificação hierárquico-funcional [26].
O texto platônico da República - que como se sabe representa um dos mais importantes pontos de referência dos textos utópicos – exibe essa dinâmica com extraordinária evidência. Basta lembrar que a forma de vida comum da kallipolis não diz respeito a todos os seus membros, mas apenas à classe dos guardiões. Contudo, mesmo nesse âmbito de aplicação restrito, estão claros os objetivos que ela é chamada a desempenhar. Trata-se, principalmente, de instituir aquela “comunhão de prazer e dor” que interliga a cidade até sua assimilação “à condição de um único homem”[28]. O problema do possível atrito entre os interesses privados e da sua eventual composição é resolvido eliminando totalmente a dimensão do idiosis (privacidade), na tentativa de obter uma comunidade depurada de todo o viés conflitual que ocorre quando todos repetem em uníssono “meu” e “não meu”: “Isso os torna completamente alheios àqueles motivos de conflito que afligem os homens que possuem riquezas, filhos, parentes” [29]. Para ser sua expressão adequada, até mesmo o poder que esse tipo de comunidade exerce sobre si mesma e sobre os outros deve ser submetido a um análogo processo de expropriação. O desafio a ser respondido é aquele lançado por Trasímaco: “Tu pensas que os pastores e os vaqueiros procuram o bem do rebanho ou dos bois e os engordam e tratam tendo em vista outra coisa que não seja o bem dos seus patrões e deles mesmo. E, assim, também os governantes das cidades [...]” [30]. O comum serve então para trazer novamente o governo “pastoral” dos guardiões à sua verdade, transformando esses últimos de lobos famintos em cães fieis ao serviço da polis. Sem bens ou afetos familiares próprios, nenhuma utilidade pessoal intervém para distrair os governantes dos seus deveres: “Assim se salvarão e salvarão a cidade. Ao contrário, logo que sejam proprietários de terra, casas e dinheiro, de guardas que eram transformar-se-ão em mercadores e lavradores e, de aliados, em déspotas inimigos dos outros cidadãos” [31]. A ruptura da equação riqueza/poder esvazia o político de seu conteúdo social ou econômico, elevando-o assim a uma transcendência que desalinha o comum da trajetória imanentista e captura-o dentro de outra linha genealógica, a do “serviço público”[32]. Apenas eliminando propriedade e interesse pessoal pode-se esperar tornar “magistrados, grandes de uma República, monarcas [...] simples ministros designados a cuidar da felicidade” dos seus povos [33].
Por fim, essa reconfiguração dos acordos de poder permite a quem governa desempenhar da melhor forma seu officium: atribuir a cada membro da máquina comunitária uma posição e uma função, não mais em base ao censo ou à classe, mas em virtude exclusiva da inclinação, do talento, do mérito. O encargo principal do rei-filósofo é o de reconhecer as qualidades naturais dos seus concidadãos – o ouro, a prata, o bronze – e harmonizá-las num tableau vivant no qual cada um desempenha uma e apenas uma função, tendo em vista sempre o fim maior do bem comum da cidade [34]. No âmago dessa operação de repartição e classificação funcional, o comum exerce um papel duplo de veridicção: do lado dos governantes, garante que seu juízo não seja desviado por simpatias ou interesses pessoais, reduzindo ao máximo a possibilidade de erros; pelos dos governados, permite que cada natureza mostre-se em sua verdade, livre do véu fictício das diferenças sociais. Como talvez seja perceptível, a força centrípeta desse dispositivo teórico não sofre redução, mas sim amplificação pela extensão da “comunidade de vida” para todo o corpo social. Vamos tomar como exemplo, na outra ponta da literatura utopista, a Icária de Cabet. Novamente o comum é um veículo de reductio ad unum comunitário e não de singularidades móveis: “A Comunidade não apresenta os inconvenientes da Propriedade; nela desaparecem o interesse particular para alçá-lo a interesse público, [...] o individualismo e o particularismo para abrir espaço à associação ou ao socialismo, à devoção e à unidade” [35]. Mais uma vez, ele se constitui em poder transcendente que se dobra sobre a sociedade para governá-la, organizá-la, potencializá-la: “Senhora de tudo, [a Comunidade] centraliza, concentra, reduz tudo à unidade; pensa, combina, dirige todas as coisas; e ao fazer isso, somente ela pode obter a incomensurável vantagem de evitar as duplas funções e desperdícios, para realizar plenamente a economia, [...] desenvolver continuamente a perfectibilidade do homem” [36]. Mais uma vez, finalmente, essa administração centralizada atribui a cada um o papel a desempenhar no seu plano de racionalização econômica: "Sem dúvida, a Comunidade impõe necessariamente vínculos e obrigações; porque a sua principal missão é produzir riqueza e felicidade" e, para que ela possa executar essa função “precisa submeter todas as vontades e todas as atividades à sua regra, à sua ordem, à sua disciplina” [37]. A lição é particularmente clara: cada vez que o comum toma o caminho metafísico da comunidade, a singularidade é sacrificada ao totem/totum do interesse público, o plano de imanência subsumida sob a verticalidade da organização. O corpo novamente tem uma cabeça.
5.- Para concluir: o que os textos utópicos pensam e possibilitam pensar é o comum entendido como princípio de subjetivação alternativo ao de proprietário. Essa é a ”hipótese comunista” que eu acredito seja importante recuperar, colocando-a no coração de uma reinvenção e transformação do projeto existente. O comum deve produzir os seus sujeitos. Só que essa produção ativa-se sempre à beira de um paradoxo: uma vez libertados da gaiola de ferro da propriedade, os indivíduos ainda correm o risco de serem jogados de volta para a imobilidade de um proprium que retorna na forma de pertencimento comunitário, (re) tornando-se “os proprietários de seu comum” [38]. É o fantasma da comunidade que transforma as cidades ideais em pesadelos totalitários. É essa a origem da tensão entre pressuposto igualitário e êxito hierárquico do comunismo histórico [39], da “captura burocrática do comum” no socialismo real [40]. Se então o benicomunismo quer permanecer fiel à sua vocação “estratégica” e autenticamente revolucionária, é entre o Cila da propriedade e o Caríbdis da comunidade que deve continuamente navegar. A conceitualidade do comum difere daquela de seus termos rivais privado e público, assim como a imanência da transcendência, o compartilhamento de saber/poder da separação dos aparelhos tecnocráticos e a mobilidade nômade distingue-se da fixação em papéis estáveis e estabelecidos. A tarefa dos benicomunistas deve ser defender o primeiro momento contra as pretensões do segundo, sempre preservando a abertura e tornando-se o gabarito para uma reescrita radical da sociedade e suas instituições. Nesse sentido, algumas propostas concretas já podem ser adiantadas: o direito à movimentação e circulação, a renda básica desvinculada da obrigação de trabalhar, a criação de espaços de autogoverno em nível local, o repensamento na ótica federalista das estruturas políticas nacionais e supranacionais. São apenas títulos de um programa obrigatoriamente mais amplo, e que precisamente no comum poderia ter o seu ponto de articulação. Um programa que, para concluir sem concluir, gostaria de colocar sob o signo do jovem e “indisciplinado” Béasse de Vigiar e punir:
O Presidente — Deve-se dormir em casa. Béasse — Eu tenho um em casa? — O senhor vive em perpétua vagabundagem. — Eu trabalho para ganhar a vida. — Qual é a sua profissão? — Minha profissão? Em primeiro lugar, tenho trinta e seis; mas não trabalho para ninguém. Já faz algum tempo, estou por minha conta. Tenho minhas ocupações de dia e de noite. Assim, por exemplo, de dia distribuo impressos grátis a todos os passantes; corro atrás das diligências que chegam para carregar os pacotes: dou o meu show na avenida de Neuilly; de noite, são os espetáculos; vou abrir as portas, vendo senhas de saída; sou muito ocupado. — Seria melhor para o senhor estar colocado numa boa casa e lá fazer seu aprendizado. — Ah, é sim, uma boa casa, um aprendizado, é chato. Mas esses burgueses resmungam sempre e eu fico sem a minha liberdade. — Seu pai não o chama? — Não tenho mais pai. — E sua mãe? — Também não, nem parentes, nem amigos, livre e independente [41].
Notas
[1] TOCQUEVILLE, A. de. Una rivoluzione fallita. Ricordi del 1848-1849. Bari: Laterza, 1939, p. 9.
[2] Detalhadamente cartografados em MEZZADRA, S. e NEILSON, B. Confini e frontiere. La moltiplicazione del lavoro nel mondo globale. Bologna: il Mulino, 2014. Também cf. SACCHETTO, D. e TOMBA, M. (org.) La lunga accumulazione originaria. Politica e lavoro nel mercato mondiale.Verona: ombre corte, 2008.
[3] Cf BOYLE, J. The Second Enclosure Movement and the Construction of the Public Domain. “Law and Contemporary Problems”, n. 66, 2003, p. 33-74.
[4] Cf. SPANÒ, M. Who’s the Subject of the Commons? An Essay in Genealogy. In: BAILEY, S. FARRELL, G. e MATTEI, U. (Org.) Future Generations and the Commons. Strasbourg: Publications of the Council of Europe, 2013, p. 44-59.
[5] Cf. MATTEI, U. Beni comuni. Un manifesto. Roma-Bari: Laterza, 2011; e Id. Il benicomunismo e i suoi nemici. Torino: Einaudi, 2015.
[6] DARDOT, P.e LAVAL, C. Del Comune, o della Rivoluzione nel XXI secolo. Roma: DeriveApprodi, 2015, p. 21.
[7] Em relação ao conceito de altermodernidade vide HARDT, M. e NEGRI, A. Comune. Oltre il privato e il pubblico. trad. it. Milano: Rizzoli, 2010, p. 75-124.
[8] Por motivo de concisão, não poderei aqui me aprofundar na espinhosa questão da definição do gênero “utopia”, profusamente debatida no âmbito dos chamados Utopian Studies, nem poderei alongar-se sobre as relevantes diferenças de contexto histórico e político que separam as obras das quais tratarei. Em ambos os pontos limito-me a remeter a LEVITAS, R. The Concept of Utopia. New York-London: Philip Allan, 1990; e a CLAEYS, G. (Org.) The Cambridge Companion to Utopian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
[9] DURKHEIM, É. Il socialismo. Definizioni, origini, la dottrina saintsimoniana. Milano: Franco Angeli, 1973, p. 211. Em sua reconstrução do comunismo pré-marxista, Dardot e Laval (Del comune, cit., p. 52-60) substancialmente fazem uma leitura durkheimiana, acrescentado eventuais ajustes.
[10] MORELLY, É.-G. Naufrage des isles flottantes, ou Basiliade du célèbre Pilpai. Messina: 1753, vol. I,p. 5.
[11] CAMPANELLA, T. Questione quarta sull’ottima Repubblica. In: Id. La città del Sole. Milano: Rizzoli, 2007, p. 119.
[12] FONTENELLE, B. de La République des philosophes, ou Histoire des Ajaoiens. Genève: 1768, p. 51.
[13] MORELLY, É.-G. Codice della Natura. Torino: Einaudi, 1952, p. 54.
[14] ____. p. 53.
[15] MORO, T. L’Utopia. Roma-Bari: Laterza, 2010, p. 134.
[16] ANDREAE, J.V. Descrizione della repubblica di Cristianopoli e altri scritti. Napoli: Guida, 1983, p. 170.
[17] MORO, L’Utopia. cit., p. 134.
[18] VIVES, J.L. De communione rerum ad Germanos inferiores. Köln 1535, fol. A 2v.
[19] ____. fol. B 7r.
[20] ____. fol. B 3r e v.
[21] MORRIS, W. Notizie da nessun luogo ovvero un’epoca di riposo. Napoli: Guida, 1978, p. 168.
[22] ANDREAE. Descrizione della repubblica di Cristianopoli. cit., p. 115.
[23] MORELLY. Naufrage des isles flottantes. cit., p. 28. Aqui abordamos, tangencialmente, um dos aspectos mais problemáticos do comunismo utópico: a comunidade das mulheres, traço recorrente em quase todos os autores e presente nas duas principais fontes da literatura utópica (a República de Platão e o Decretum de Graciano). Seria interessante estudar a persistência da ordem simbólica patriarcal também naqueles textos que tentam imaginar uma alternativa radical em relação à organização social dominante: mas tal discurso demandaria um tratamento a parte que aqui, por razões de espaço, preciso sacrificar. Para isso cf. FERNS, C.S. Narrating Utopia. Ideology, Gender, Form in Utopian Literature. Liverpool: Liverpool University Press, 1999.
[24] CAMPANELLA. La città del Sole. cit., p. 65.
[25] MORRIS, Notizie da nessun luogo. cit., p. 179. Sobre a indistinção entre regra e forma de vida trata G. AGAMBEN em Altissima povertà. Regole monastiche e forme di vita. Vicenza: Neri Pozza, 2011. Não por acaso, como já foi possível notar, o cenobitismo monástico constitui um dos modelos recorrentes do comunismo utópico.
[26] Relativo à distinção bens comuns/bem comum cf. MARELLA, M.R. Bene comune. E beni comuni: le ragioni di una contrapposizione. In: ZAPPINO, F., COCCOLI, L. e TABACCHINI, M. (org.) Genealogie del presente. Lessico politico per tempi interessanti. Milano-Udine: Mimesis, 2014, p. 25-39.
[27] Sobre “comunismo” na República platônica, e em geral sobre todo o pensamento grego antigo, cf. DAWSON, D. Cities of the Gods. Communist Utopia in Greek Thought. New York-Oxford: Oxford University Press, 1992.
[28] PLATONE. La Repubblica. V, 462b4 e c9, Milano: Rizzoli, 2007, p. 677.
[29] _____. V, 464e1-2, p. 687.
[30] _____. I, 343b1-5, p. 305.
[31] ______. III, 417a6-b1, p. 535.
[32] Cf. nesse tópico NAPOLI, P. Indisponibilità, servizio pubblico, uso. Concetti orientativi su comune e beni comuni. In: Politica & Società. n. 3, 2013, p. 403-426.
[33] MORELLY. Codice della Natura. cit., p. 103.
[34] Essa é, segundo Rancière, a injunção que rege a República e que fornece sentido ao comunismo platônico: que cada um faça a sua parte e atenha-se rigidamente ao seu papel. Estamos aqui aos antípodas daquele comum “nômade” de que tratamos acima. Cf. RANCIÈRE, J. Les philosophe et ses pauvres. Paris: Flammarion, 2007, em especial p. 15-85.
[35] CABET, É. Voyage en Icarie. Paris, 1845, p. 397.
[36] _____. p. 398.
[37] _____. p. 403.
[38] ESPOSITO, R. Communitas. Origine e destino della comunità. Torino: Einaudi, 2006, p. IX.
[39] Cf. RANCIÈRE, J. Comunisti senza comunismo? In: DOUZINAS, C. e ŽIŽEK, S. (Org.) L’idea di comunismo. Roma: DeriveApprodi, 2011, p. 191-201.
[40] Cf. DARDOT e LAVAL. Del Comune. cit., p. 50-75.
[41] FOUCAULT, M. Sorvegliare e punire. Nascita della prigione. Torino: Einaudi, 1993, p. 321-322. (trad. port. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 288p.).
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