Ao completar 110 anos do nascimento de Hannah Arendt, a revista "Humanitas" publica um retrato escrito por Paul Ricoeur que apareceu em 1987 em "Les Cahiers de philosophie", com a edição de Ilario Bertoletti. Eis aqui um trecho do artigo, publicado por Avvenire, 12-02-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ricoeur escreveu sobre Arendt em várias ocasiões que culminaram no ensaio "Pouvoir et violence", incluído na coletânea "Hannah Arendt. Ontologie et politique »(1989).
Eis o texto.
Se a filosofia – a despeito de todo historicismo, de todo evolucionismo, em suma, de toda superestimação da mudança na história da cultura, das instituições e das doutrinas – pode ter a ambição de fixar os traços duráveis da condição humana, é porque o político, como tal, é, aquém de sua perversão totalitária, um projeto de longo prazo. Da mesma forma que para Hannah Arendt quanto mais os fenômenos sócio-econômicos forem marcados pela mudança e pela variabilidade, tanto mais o político apresentará traços que podem ser chamados de trans-históricos, que permitem, por exemplo, aos leitores modernos reconhecer - no sentido forte de identificar novamente – conceitos como poder, soberania, violência como traços permanentes da tarefa para a estabilização da vida em comum dos seres mortais. Insisto nesse ponto: dos seres mortais que pensam a eternidade, mas não gozam da imortalidade, tais como são esses seres que, através de um projeto político, pleiteiam a única medida de imortalidade histórica que lhes é acessível. Mas o duradouro não tem encarnação mais elevada do que a instituição política, que é eminentemente frágil.
Essa conjunção do duradouro e do frágil constitui o caráter trágico do pensamento de Hannah Arendt. Percebi com maior clareza esse caráter trágico depois de ler o admirável livro de Martha Nussbaum, dedicado à relação entre tragédia e filosofia e intitulado A fragilidade do bem - A fragilidade específica ligada à intenção do bem ... Martha Nussbaum dedica pouco espaço para a reflexão política, embora os heróis da grandeza frágil sejam todos, em última análise, figuras políticas: Agamenon, Édipo, Creonte e Antígona. Onde está a fonte da fragilidade em uma tarefa prática que tem como alvo o que é duradouro na própria constituição do poder?
Se for verdade que a política é o domínio onde se conjugam o duradouro e o frágil, deve-se encontrar no político o próprio princípio da sua fragilidade e, portanto, também de sua corrupção. Acabamos de anunciar: o poder procede do agir em comum. Ora, a ação em comum existe apenas enquanto seus atores a sustentam. O poder existe quando os homens agem em conjunto; desvanece quando eles se dispersam. A violência é a exploração dessa fragilidade por um projeto instrumental de curto prazo. Mas, antes mesmo dessa perversão, que é uma inversão brutal, outra fonte ainda mais sutil de fragilidade reside no laço, acima evocado, entre o poder que está no povo e a autoridade que está no Senado. A autoridade, segundo a fórmula, introduz no campo da ação uma relação distinta que não é da força, menos ainda da violência: mas é a de mediação que, idealmente pensável como delegação, autonomiza-se como uma instância direta.
No ensaio intitulado Que é autoridade? Arendt percorre a história, desde os gregos até os nossos tempos, dessa instância ambígua em que se cristaliza a fragilidade do político.
A autoridade, de fato, tem esse traço paradoxal: só consegue mediatizar o poder indiviso - por meio de uma instância de governo distinta dos governantes, ou seja, través de uma instância hierárquica - apenas na medida em que essa autoridade provém de outro lugar, mais afastado e mais elevado que o próprio poder, mundo platônico das Ideias, fundação ancestral da cidade pelos romanos, potência eclesiástica que empunha os raios do inferno; ora - e esse é o incipit do ensaio – “A autoridade desapareceu do mundo moderno”. Aqui, esbarramos na acusação de nostalgia. Mas acredito que exista um engano. Se for verdade que a polis grega é sempre citada como referência, ela o é na medida em que, com Isócrates e seu princípio de isonomia, potencialmente contém os recursos para superar os fracassos das fontes tradicionais de autoridade. A polis grega não se construiu sobre a base da autoridade que Platão lhe atribui, nem sobre o modelo romano ab Urbe condita.
É justamente a delegação da autoridade a partir do poder que dá o que pensar. E é isso que Hannah Arendt encontra na revolução americana e em seu pensamento político: o modelo de uma experiência moderna que estabelece a ligação com o empreendimento, até esse momento abortado, de uma autoconstituição da cidade, na qual a autoridade deriva do poder do povo.
Então, Hannah Arendt é nostálgica? Quando ela avalia tudo o que desapareceu, o colapso de todas as bases extra ou suprapolíticas, Arendt simplesmente chega à nudez do político – o político posto à terra. Por meio de quais jogos de instituições livremente escolhidas a ação humana escapa à futilidade das obras (“salvar as ações humanas da futilidade decorrente do esquecimento”)? Restauração de um espaço político? Será que alguma vez isso existiu historicamente? Há um ponto em que a rememoração é ao mesmo tempo uma projeção para o futuro. Não é por acaso que o último recurso ao qual recorrem todos os artigos do período americano é a aliança entre a liberdade no sentido político, isto é, a adesão consensual com um corpo de instituições, e a liberdade na tradição judaica ou cristã, isto é, a possibilidade de começar algo no mundo.
Quanto a essa “infinita improbabilidade”- como ela afirma no ensaio Que é liberdade? - sobre a capacidade de interromper a fatalidade, repousa a aposta antitotalitária que conclui todos esses ensaios. Citarei apenas a conclusão apresentada em Que é liberdade? “São os homens que realizam os milagres, esses homens que, depois de ter recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer a sua própria realidade”.
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