“No Código, como sabemos, as mulheres não são iguais em direitos aos homens; nem os leigos são iguais aos clérigos; nem os presbíteros têm os mesmos direitos que os bispos; nem os bispos se igualam aos cardeais”, escreve José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 25-02-2107. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Uma teologia da desigualdade – nunca definida, mas claramente aplicada – encontra-se bem formulada no vigente Código de Direito Canônico da Igreja católica.
No Código, como sabemos, as mulheres não são iguais em direitos aos homens; nem os leigos são iguais aos clérigos; nem os presbíteros têm os mesmos direitos que os bispos; nem os bispos se igualam aos cardeais. E conste que não falo dos poderes inerentes ao governante, mas dos direitos que são próprios das pessoas. Já sei que tudo isso necessitaria de uma série de precisões jurídicas e teológicas, que aqui não tenho espaço para explicar. Para o que quero indicar nesta reflexão, vale o que segue como uma simples introdução à teologia da desigualdade na Igreja.
Como ponto de partida, não esqueçamos que a religião é geralmente aceita como um sistema cujas características implicam dependência, submissão e subordinação a superiores invisíveis (W. Burkert). Superiores que se tornam visíveis em hierarquias que fazem cumprir os rituais de submissão, de acordo com as diversas religiões e suas estruturas correspondentes. No caso da Igreja, durante os três primeiros séculos, as comunidades evangélicas primitivas foram se transformando em um “sistema de dominação”, com as consequentes desigualdades que todo sistema de dominação produz e que foi estabelecido na Antiguidade Tardia (J. Fernández Ubiña, ed.).
Este sistema, como é do conhecimento de todos, atingiu o auge da sua predominância, em sua expressão máxima, na “potestade plena” (séculos XI a XIII). Um poder exercido conforme a normativa do Direito Romano (Peter G. Stein), que não reconheceu a igualdade “em dignidade de direitos” de mulheres, escravos e estrangeiros.
Como é lógico, este sistema, já não mais baseado nas “diferenças”, mas nas “desigualdades”, sofreu o golpe mais duro mais duro, que podia suportar, nas ideias e nas leis produzidas pelo Iluminismo, concretamente na Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, aprovada pela Assembleia francesa, em 1789, documento que foi denunciado e rejeitado pelo Papa Pio VI. Ela está na base do duro confronto entre a Igreja e a cultura da Modernidade. Um confronto que durou mais de um século e meio, até depois da Segunda Guerra Mundial.
Naturalmente, esta legislação e esta forma de entender a presença da Igreja na sociedade tinham que ser justificadas com uma determinada teologia. A teologia da desigualdade, que o Papa Leão XIII recolheu de uma tradição de séculos, para rejeitar os ensinamentos dos socialistas, que, na opinião daquele papa, “não deixam de ensinar... que todos os homens são iguais por natureza” (Encíclica Quod Apostolici. ASS XI, 1878, 372). Quando, na realidade, para Leão XIII, “a desigualdade, em direitos e poderes, emana do próprio Autor da natureza”. E tem que ser assim, “para que a razão de ser da obediência seja fácil, firme e o mais nobre possível” (ASS XI, 372).
Assim, o papado daqueles tempos quis aplicar à sociedade civil o princípio determinante do sistema eclesiástico, que foi formulado pelo Papa Pio X, em 1906: “Só na Igreja residem o direito e a autoridade necessária para promover e dirigir todos os membros ao fim da sociedade; quanto à multidão, essa não tem outro dever senão o de se deixar conduzir e, rebanho dócil, seguir os seus Pastores” (Encíclica Vehementer Nos, II-II. ASS 39 (1906) 8-9). A teologia da desigualdade ficou bem formulada desde Gregório VII (século XI) e afiançada por Inocêncio III (séculos XII-XIII).
Um dos componentes determinantes da cultura é a religião. Por isso, uma cultura como é o caso do que aconteceu no Ocidente durante tantos séculos, a teologia da desigualdade marcou a mentalidade, o Direito, a política, os costumes e as convicções da cultura ocidental, muito mais do que certamente nós imaginamos.
O contraste com esta teologia está no Evangelho. Jesus quis, a todo custo, a igualdade em dignidade e direitos de todos os seres humanos. Por isso, colocou-se do lado dos mais fracos, dos mais desprezados, dos mais desamparados. Dito isso, eu me pergunto: por que há tantas pessoas da religião – ou muito religiosas – que não dissimulam sua rejeição e até seu confronto com o Papa Francisco?
Mais ainda: eu me pergunto também se o profundo mal-estar, e inclusive a indignação, que se vive neste momento na Espanha, não teria algo (ou muito) a ver com a teologia da desigualdade e seus defensores, os clérigos de alta categoria. Mais, eu me atrevo a perguntar se a Espanha está preparada para suportar uma mudança tão radical, em nossas leis, juízes e promotores, que quem deveria ficar com medo não são os “ladrões de galinhas”, mas os mais altos dirigentes da política e da economia.
A teologia da desigualdade é ou não importante? Em todo caso, eu não tenho soluções. Nem é essa a minha tarefa na vida. Limito-a fazer perguntas que nos obriguem a pensar.
No Código, como sabemos, as mulheres não são iguais em direitos aos homens; nem os leigos são iguais aos clérigos; nem os presbíteros têm os mesmos direitos que os bispos; nem os bispos se igualam aos cardeais. E conste que não falo dos poderes inerentes ao governante, mas dos direitos que são próprios das pessoas. Já sei que tudo isso necessitaria de uma série de precisões jurídicas e teológicas, que aqui não tenho espaço para explicar. Para o que quero indicar nesta reflexão, vale o que segue como uma simples introdução à teologia da desigualdade na Igreja.
Como ponto de partida, não esqueçamos que a religião é geralmente aceita como um sistema cujas características implicam dependência, submissão e subordinação a superiores invisíveis (W. Burkert). Superiores que se tornam visíveis em hierarquias que fazem cumprir os rituais de submissão, de acordo com as diversas religiões e suas estruturas correspondentes. No caso da Igreja, durante os três primeiros séculos, as comunidades evangélicas primitivas foram se transformando em um “sistema de dominação”, com as consequentes desigualdades que todo sistema de dominação produz e que foi estabelecido na Antiguidade Tardia (J. Fernández Ubiña, ed.).
Este sistema, como é do conhecimento de todos, atingiu o auge da sua predominância, em sua expressão máxima, na “potestade plena” (séculos XI a XIII). Um poder exercido conforme a normativa do Direito Romano (Peter G. Stein), que não reconheceu a igualdade “em dignidade de direitos” de mulheres, escravos e estrangeiros.
Como é lógico, este sistema, já não mais baseado nas “diferenças”, mas nas “desigualdades”, sofreu o golpe mais duro mais duro, que podia suportar, nas ideias e nas leis produzidas pelo Iluminismo, concretamente na Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, aprovada pela Assembleia francesa, em 1789, documento que foi denunciado e rejeitado pelo Papa Pio VI. Ela está na base do duro confronto entre a Igreja e a cultura da Modernidade. Um confronto que durou mais de um século e meio, até depois da Segunda Guerra Mundial.
Naturalmente, esta legislação e esta forma de entender a presença da Igreja na sociedade tinham que ser justificadas com uma determinada teologia. A teologia da desigualdade, que o Papa Leão XIII recolheu de uma tradição de séculos, para rejeitar os ensinamentos dos socialistas, que, na opinião daquele papa, “não deixam de ensinar... que todos os homens são iguais por natureza” (Encíclica Quod Apostolici. ASS XI, 1878, 372). Quando, na realidade, para Leão XIII, “a desigualdade, em direitos e poderes, emana do próprio Autor da natureza”. E tem que ser assim, “para que a razão de ser da obediência seja fácil, firme e o mais nobre possível” (ASS XI, 372).
Assim, o papado daqueles tempos quis aplicar à sociedade civil o princípio determinante do sistema eclesiástico, que foi formulado pelo Papa Pio X, em 1906: “Só na Igreja residem o direito e a autoridade necessária para promover e dirigir todos os membros ao fim da sociedade; quanto à multidão, essa não tem outro dever senão o de se deixar conduzir e, rebanho dócil, seguir os seus Pastores” (Encíclica Vehementer Nos, II-II. ASS 39 (1906) 8-9). A teologia da desigualdade ficou bem formulada desde Gregório VII (século XI) e afiançada por Inocêncio III (séculos XII-XIII).
Um dos componentes determinantes da cultura é a religião. Por isso, uma cultura como é o caso do que aconteceu no Ocidente durante tantos séculos, a teologia da desigualdade marcou a mentalidade, o Direito, a política, os costumes e as convicções da cultura ocidental, muito mais do que certamente nós imaginamos.
O contraste com esta teologia está no Evangelho. Jesus quis, a todo custo, a igualdade em dignidade e direitos de todos os seres humanos. Por isso, colocou-se do lado dos mais fracos, dos mais desprezados, dos mais desamparados. Dito isso, eu me pergunto: por que há tantas pessoas da religião – ou muito religiosas – que não dissimulam sua rejeição e até seu confronto com o Papa Francisco?
Mais ainda: eu me pergunto também se o profundo mal-estar, e inclusive a indignação, que se vive neste momento na Espanha, não teria algo (ou muito) a ver com a teologia da desigualdade e seus defensores, os clérigos de alta categoria. Mais, eu me atrevo a perguntar se a Espanha está preparada para suportar uma mudança tão radical, em nossas leis, juízes e promotores, que quem deveria ficar com medo não são os “ladrões de galinhas”, mas os mais altos dirigentes da política e da economia.
A teologia da desigualdade é ou não importante? Em todo caso, eu não tenho soluções. Nem é essa a minha tarefa na vida. Limito-a fazer perguntas que nos obriguem a pensar.
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