RESISTÊNCIA E PROJETO
O NOVO MUNDO QUE TARDA A NASCER
A situação atual parece desesperadora. A ofensiva das direitas e das extremas direitas ocupa o espaço e as mentes. Ela se exibe nos meios de comunicação e pretende expressar a direitização das sociedades. Contudo, o jogo ainda está sendo jogado. As sociedades resistem e as contradições estão atuando; são elas que determinam o futuro
12 de fevereiro de 2017
Para compreender a conjuntura atual, vamos partir novamente da citação de Antonio Gramsci em Cadernos do cárcere: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.
Nesse contexto, a estratégia dos movimentos sociais que querem carregar um projeto de emancipação deve articular uma resposta às demandas urgentes com a construção de um projeto alternativo de futuro. Eles devem ao mesmo tempo lutar contra os monstros e se inscrever na construção de um mundo novo.
Nesse contexto, a estratégia dos movimentos sociais que querem carregar um projeto de emancipação deve articular uma resposta às demandas urgentes com a construção de um projeto alternativo de futuro. Eles devem ao mesmo tempo lutar contra os monstros e se inscrever na construção de um mundo novo.
O velho mundo morre
Os choques financeiros de 2008 confirmam a hipótese do esgotamento do neoliberalismo. O aquecimento climático, a diminuição da diversidade e as poluições globais confirmam o desgaste do produtivismo. Hipóteses são aventadas sobre o esgotamento do capitalismo como modo de produção hegemônica. Entenda-se que aquilo que sucederia ao capitalismo não seria forçosamente um modo justo e equitativo; a história não é escrita e não é linear.
No Fórum Social Mundial de Belém, em 2009, uma convergência de movimentos – de mulheres, camponeses, ecologistas e dos povos da Amazônia – expressou fortemente um novo ponto de vista. Eles afirmaram que, se a questão é redefinir as relações entre a espécie humana e a natureza, não se trata somente de uma crise do neoliberalismo ou do capitalismo, mas de uma crise da civilização, aquela que há cinco séculos colocou em primeiro lugar a modernidade ocidental e levou a algumas das formas da ciência contemporânea.
A situação é marcada pela permanência das contradições. A crise estrutural articula cinco contradições principais: econômica e social, com as desigualdades sociais e as discriminações; ecológica, com a destruição dos ecossistemas, a limitação da biodiversidade, a mudança climática e a colocação em perigo do ecossistema planetário; geopolítica, com as guerras descentralizadas e a ascensão de novas potências; ideológica, com o questionamento da democracia, as arremetidas xenófobas e racistas; e política, com a corrupção nascida da fusão do político e do financeiro, que alimenta a desconfiança em relação ao político e acaba por abolir sua autonomia. A direita e a extrema direita encampam uma batalha pela hegemonia cultural desde o final dos anos 1970, contra os direitos fundamentais e particularmente contra a igualdade e a solidariedade, pelas ideologias de segurança e pela desqualificação ampliada pós-1989 dos projetos progressistas. Elas realizaram ofensivas contra o trabalho por meio da precarização generalizada; contra o Estado social por meio da mercantilização, da privatização e da corrupção generalizada das classes políticas; e pela subordinação do digital à lógica da financeirização.
Os choques financeiros de 2008 confirmam a hipótese do esgotamento do neoliberalismo. O aquecimento climático, a diminuição da diversidade e as poluições globais confirmam o desgaste do produtivismo. Hipóteses são aventadas sobre o esgotamento do capitalismo como modo de produção hegemônica. Entenda-se que aquilo que sucederia ao capitalismo não seria forçosamente um modo justo e equitativo; a história não é escrita e não é linear.
No Fórum Social Mundial de Belém, em 2009, uma convergência de movimentos – de mulheres, camponeses, ecologistas e dos povos da Amazônia – expressou fortemente um novo ponto de vista. Eles afirmaram que, se a questão é redefinir as relações entre a espécie humana e a natureza, não se trata somente de uma crise do neoliberalismo ou do capitalismo, mas de uma crise da civilização, aquela que há cinco séculos colocou em primeiro lugar a modernidade ocidental e levou a algumas das formas da ciência contemporânea.
A situação é marcada pela permanência das contradições. A crise estrutural articula cinco contradições principais: econômica e social, com as desigualdades sociais e as discriminações; ecológica, com a destruição dos ecossistemas, a limitação da biodiversidade, a mudança climática e a colocação em perigo do ecossistema planetário; geopolítica, com as guerras descentralizadas e a ascensão de novas potências; ideológica, com o questionamento da democracia, as arremetidas xenófobas e racistas; e política, com a corrupção nascida da fusão do político e do financeiro, que alimenta a desconfiança em relação ao político e acaba por abolir sua autonomia. A direita e a extrema direita encampam uma batalha pela hegemonia cultural desde o final dos anos 1970, contra os direitos fundamentais e particularmente contra a igualdade e a solidariedade, pelas ideologias de segurança e pela desqualificação ampliada pós-1989 dos projetos progressistas. Elas realizaram ofensivas contra o trabalho por meio da precarização generalizada; contra o Estado social por meio da mercantilização, da privatização e da corrupção generalizada das classes políticas; e pela subordinação do digital à lógica da financeirização.
Os novos monstros
A partir de 2011, os movimentos quase insurrecionais de ocupação das praças testemunham a resposta dos povos à dominação da oligarquia. A partir de 2013, a arrogância neoliberal fica novamente por cima e confirma as tendências que emergiram desde o final dos anos 1970. As políticas dominantes, de austeridade e de ajuste estrutural, foram reafirmadas. A desestabilização, as guerras, as repressões violentas e a instrumentalização do terrorismo se impõem em todas as regiões. Correntes ideológicas reacionárias e populismos de extrema direita são cada vez mais ativos. Os racismos e os nacionalismos extremos alimentam as manifestações contra estrangeiros e migrantes. Eles assumem formas específicas, como o neoconservadorismo libertário nos Estados Unidos, as extremas direitas e as diversas formas de nacional-socialismo na Europa, o extremismo jihadista armado, as ditaduras e as monarquias do petróleo, o hinduísmo extremo etc. Mas, a médio prazo, o jogo ainda está sendo jogado.
É preciso interrogar-se sobre esses monstros e as razões de sua emergência. Eles se apoiam em medos em torno de dois vetores principais e complementares: a xenofobia e o ódio aos estrangeiros; e os racismos em suas diferentes formas. É preciso destacar uma ofensiva em especial que as formas de islamofobia assumem; depois da queda do Muro de Berlim, o “islã” tendo sido erigido como inimigo principal no “choque das civilizações”.
Essa situação resulta de uma ofensiva conduzida com constância há quarenta anos pelas direitas extremas para conquistar a hegemonia cultural. Ela se detém principalmente em dois valores. Contra a igualdade, afirmando de início que as desigualdades são naturais; e pelas ideologias de segurança, considerando que apenas a repressão e a restrição das liberdades podem garantir a segurança.
O endurecimento das contradições e as tensões sociais explicam o surgimento das formas extremas de enfrentamento. Tal endurecimento começa pelo da luta de classes e se estende a todas as relações sociais. O bilionário Warren Buffet declara tranquilamente que “alguns duvidam da existência de uma luta de classes; com certeza existe uma luta de classes, e é a minha que a está vencendo”. A financeirização aprofundou as desigualdades, e a casta dos muito ricos ficou mais restrita. As chamadas classes médias incharam, mas a precarização atinge uma parte delas e a torna insegura.
O desejo de acumulação de riquezas e de poderes é insaciável. Diante desse excesso, assistimos a um refúgio no retorno do religioso esperando que ele conseguirá amenizar as derivas insuportáveis. A confiança numa regulação pelo Estado é fortemente esperada. A classe financeira conseguiu subordinar os Estados. E o projeto de socialismo de Estado se afundou nas nomenclaturas e nas novas oligarquias. A situação é instável. Como acreditar que um mundo onde 62 pessoas, das quais 53 homens e nove mulheres, possuem o mesmo que 3,5 bilhões de indivíduos possa durar indefinidamente? A vontade de impor a reprodução da situação e o medo das revoltas se traduzem pelo crescimento da violência, por repressões e guerras.
No entanto, existe também outra razão para a situação: é o medo do nascimento de um novo mundo. Os novos monstros sabem que seu mundo está sendo questionado; para salvaguardar suas posições e seus privilégios, instrumentalizam o medo do futuro, o temor da perturbação das sociedades que vai marcar o futuro.
A partir de 2011, os movimentos quase insurrecionais de ocupação das praças testemunham a resposta dos povos à dominação da oligarquia. A partir de 2013, a arrogância neoliberal fica novamente por cima e confirma as tendências que emergiram desde o final dos anos 1970. As políticas dominantes, de austeridade e de ajuste estrutural, foram reafirmadas. A desestabilização, as guerras, as repressões violentas e a instrumentalização do terrorismo se impõem em todas as regiões. Correntes ideológicas reacionárias e populismos de extrema direita são cada vez mais ativos. Os racismos e os nacionalismos extremos alimentam as manifestações contra estrangeiros e migrantes. Eles assumem formas específicas, como o neoconservadorismo libertário nos Estados Unidos, as extremas direitas e as diversas formas de nacional-socialismo na Europa, o extremismo jihadista armado, as ditaduras e as monarquias do petróleo, o hinduísmo extremo etc. Mas, a médio prazo, o jogo ainda está sendo jogado.
É preciso interrogar-se sobre esses monstros e as razões de sua emergência. Eles se apoiam em medos em torno de dois vetores principais e complementares: a xenofobia e o ódio aos estrangeiros; e os racismos em suas diferentes formas. É preciso destacar uma ofensiva em especial que as formas de islamofobia assumem; depois da queda do Muro de Berlim, o “islã” tendo sido erigido como inimigo principal no “choque das civilizações”.
Essa situação resulta de uma ofensiva conduzida com constância há quarenta anos pelas direitas extremas para conquistar a hegemonia cultural. Ela se detém principalmente em dois valores. Contra a igualdade, afirmando de início que as desigualdades são naturais; e pelas ideologias de segurança, considerando que apenas a repressão e a restrição das liberdades podem garantir a segurança.
O endurecimento das contradições e as tensões sociais explicam o surgimento das formas extremas de enfrentamento. Tal endurecimento começa pelo da luta de classes e se estende a todas as relações sociais. O bilionário Warren Buffet declara tranquilamente que “alguns duvidam da existência de uma luta de classes; com certeza existe uma luta de classes, e é a minha que a está vencendo”. A financeirização aprofundou as desigualdades, e a casta dos muito ricos ficou mais restrita. As chamadas classes médias incharam, mas a precarização atinge uma parte delas e a torna insegura.
O desejo de acumulação de riquezas e de poderes é insaciável. Diante desse excesso, assistimos a um refúgio no retorno do religioso esperando que ele conseguirá amenizar as derivas insuportáveis. A confiança numa regulação pelo Estado é fortemente esperada. A classe financeira conseguiu subordinar os Estados. E o projeto de socialismo de Estado se afundou nas nomenclaturas e nas novas oligarquias. A situação é instável. Como acreditar que um mundo onde 62 pessoas, das quais 53 homens e nove mulheres, possuem o mesmo que 3,5 bilhões de indivíduos possa durar indefinidamente? A vontade de impor a reprodução da situação e o medo das revoltas se traduzem pelo crescimento da violência, por repressões e guerras.
No entanto, existe também outra razão para a situação: é o medo do nascimento de um novo mundo. Os novos monstros sabem que seu mundo está sendo questionado; para salvaguardar suas posições e seus privilégios, instrumentalizam o medo do futuro, o temor da perturbação das sociedades que vai marcar o futuro.
O novo mundo que tarda a nascer
Qual é esse novo mundo que tarda a nascer? Um novo mundo que pode amedrontar os ricos e que os movimentos sociais hesitam em perceber.
A proposta é estar atento às revoluções em curso. Há várias, mas elas estão inacabadas. E suas consequências são incertas. Nada permite afirmar que não serão esmagadas, desviadas ou revertidas. No entanto, elas sacodem o mundo; são também portadoras de esperanças e marcam o futuro e o presente. São revoluções de longa duração, cujos efeitos se inscrevem em várias gerações.
Para ilustrar essa proposição, vamos partir de cinco revoluções em curso, que estão, vale lembrar, inacabadas. Trata-se da revolução dos direitos das mulheres, da revolução dos direitos dos povos, da revolução ecológica, da revolução digital e da revolução do povoamento do planeta.
A revolução dos direitos das mulheres é a mais impressionante. Ela questiona relações milenares. As lutas pelos direitos das mulheres sempre existiram. O reconhecimento avançou enormemente nos últimos quarenta anos. Medimos progressivamente as turbulências que essa luta provoca. A revolução está inacabada e engendra resistências bastante violentas. Pode-se medir isso pela violência das reações de certos Estados a qualquer ideia de libertação das mulheres e pela resistência em todas as sociedades ao questionamento do patriarcado. A revolução dos direitos das mulheres já provocou grande mudança na estratégia dos movimentos; é a recusa a subordinar a luta contra a opressão das mulheres a outras. A recusa de considerar sua reivindicação uma contradição secundária foi retomada por todos os movimentos e traduz o reconhecimento da diversidade dos movimentos sociais e cidadãos.
A revolução dos direitos dos povos também é significativa. Ela está inacabada e envolvida com as tentativas de reconfiguração das relações imperialistas. A segunda fase da descolonização começou. A primeira, a da independência dos Estados, atingiu seu limite. A segunda é a da libertação dos povos. Ela coloca novas questões relativas aos direitos dos povos que assumem diferentes denominações; indígenas, primeiros, autóctones. Estas renovam a questão das identidades com a irrupção das identidades múltiplas, como as qualificou o poeta Édouard Glissant. Ela questiona a relação entre as liberdades individuais e as coletivas.
A revolução ecológica está em seu início. Ela já abala a compreensão das transformações e do senso da mudança e introduz a noção do tempo finito e a dos limites em relação ao crescimento ilimitado. Questiona todas as concepções do desenvolvimento, da produção e do consumo. Recoloca a discussão sobre a relação entre a espécie humana e a natureza. Discute os limites do ecossistema planetário. A revolução ecológica é uma revolução filosófica que abala as certezas mais bem estabelecidas.
A revolução do digital é parte determinante de uma nova revolução científica e técnica, combinada sobretudo com a das biotecnologias. Ela dá ensejo a fortes contradições sobre as formas de produção, de trabalho e de reprodução. Impacta a cultura começando a sacudir campos tão vitais quanto os da linguagem e da escrita. De momento, a financeirização conseguiu instrumentalizar as turbulências do digital, mas as contradições permanecem abertas e profundas.
A revolução do povoamento do planeta está em gestação. Todos os grandes abalos históricos têm consequências no povoamento do planeta. Considerar isso permite evitar qualificar as questões das migrações e dos refugiados como uma crise migratória que se poderia isolar e que acabaria por ser absorvida. As mudanças no povoamento do planeta prolongam as rupturas precedentes. A da urbanização e da estrutura urbana mundial, com a multiplicação dos bairros precários. A mudança climática não vai apenas acentuar as migrações ambientais. A elevação do nível da água do mar poderá chegar a 1 metro no final do século. Segundo as Nações Unidas, 60% das 450 áreas urbanas com mais de 1 milhão de habitantes em 2011 – ou seja, cerca de 900 milhões de indivíduos – estariam expostas a um risco natural elevado. A escolarização das sociedades modifica os fluxos migratórios. Os diplomados que partem permanecem em contato com sua geração por meio da internet. Os outros alimentam os desempregados diplomados, nova aliança entre as crianças das camadas populares e as das camadas médias. Os movimentos sociais tentam articular as lutas pelos direitos à liberdade de circulação e de instalação com aquelas pelo direito de permanecer, viver e trabalhar no país. Eles verificam que o desejo de ficar é indissociável do direito de partir. A própria noção de identidade é questionada pela evolução dos territórios e pela mestiçagem das culturas.
Qual é esse novo mundo que tarda a nascer? Um novo mundo que pode amedrontar os ricos e que os movimentos sociais hesitam em perceber.
A proposta é estar atento às revoluções em curso. Há várias, mas elas estão inacabadas. E suas consequências são incertas. Nada permite afirmar que não serão esmagadas, desviadas ou revertidas. No entanto, elas sacodem o mundo; são também portadoras de esperanças e marcam o futuro e o presente. São revoluções de longa duração, cujos efeitos se inscrevem em várias gerações.
Para ilustrar essa proposição, vamos partir de cinco revoluções em curso, que estão, vale lembrar, inacabadas. Trata-se da revolução dos direitos das mulheres, da revolução dos direitos dos povos, da revolução ecológica, da revolução digital e da revolução do povoamento do planeta.
A revolução dos direitos das mulheres é a mais impressionante. Ela questiona relações milenares. As lutas pelos direitos das mulheres sempre existiram. O reconhecimento avançou enormemente nos últimos quarenta anos. Medimos progressivamente as turbulências que essa luta provoca. A revolução está inacabada e engendra resistências bastante violentas. Pode-se medir isso pela violência das reações de certos Estados a qualquer ideia de libertação das mulheres e pela resistência em todas as sociedades ao questionamento do patriarcado. A revolução dos direitos das mulheres já provocou grande mudança na estratégia dos movimentos; é a recusa a subordinar a luta contra a opressão das mulheres a outras. A recusa de considerar sua reivindicação uma contradição secundária foi retomada por todos os movimentos e traduz o reconhecimento da diversidade dos movimentos sociais e cidadãos.
A revolução dos direitos dos povos também é significativa. Ela está inacabada e envolvida com as tentativas de reconfiguração das relações imperialistas. A segunda fase da descolonização começou. A primeira, a da independência dos Estados, atingiu seu limite. A segunda é a da libertação dos povos. Ela coloca novas questões relativas aos direitos dos povos que assumem diferentes denominações; indígenas, primeiros, autóctones. Estas renovam a questão das identidades com a irrupção das identidades múltiplas, como as qualificou o poeta Édouard Glissant. Ela questiona a relação entre as liberdades individuais e as coletivas.
A revolução ecológica está em seu início. Ela já abala a compreensão das transformações e do senso da mudança e introduz a noção do tempo finito e a dos limites em relação ao crescimento ilimitado. Questiona todas as concepções do desenvolvimento, da produção e do consumo. Recoloca a discussão sobre a relação entre a espécie humana e a natureza. Discute os limites do ecossistema planetário. A revolução ecológica é uma revolução filosófica que abala as certezas mais bem estabelecidas.
A revolução do digital é parte determinante de uma nova revolução científica e técnica, combinada sobretudo com a das biotecnologias. Ela dá ensejo a fortes contradições sobre as formas de produção, de trabalho e de reprodução. Impacta a cultura começando a sacudir campos tão vitais quanto os da linguagem e da escrita. De momento, a financeirização conseguiu instrumentalizar as turbulências do digital, mas as contradições permanecem abertas e profundas.
A revolução do povoamento do planeta está em gestação. Todos os grandes abalos históricos têm consequências no povoamento do planeta. Considerar isso permite evitar qualificar as questões das migrações e dos refugiados como uma crise migratória que se poderia isolar e que acabaria por ser absorvida. As mudanças no povoamento do planeta prolongam as rupturas precedentes. A da urbanização e da estrutura urbana mundial, com a multiplicação dos bairros precários. A mudança climática não vai apenas acentuar as migrações ambientais. A elevação do nível da água do mar poderá chegar a 1 metro no final do século. Segundo as Nações Unidas, 60% das 450 áreas urbanas com mais de 1 milhão de habitantes em 2011 – ou seja, cerca de 900 milhões de indivíduos – estariam expostas a um risco natural elevado. A escolarização das sociedades modifica os fluxos migratórios. Os diplomados que partem permanecem em contato com sua geração por meio da internet. Os outros alimentam os desempregados diplomados, nova aliança entre as crianças das camadas populares e as das camadas médias. Os movimentos sociais tentam articular as lutas pelos direitos à liberdade de circulação e de instalação com aquelas pelo direito de permanecer, viver e trabalhar no país. Eles verificam que o desejo de ficar é indissociável do direito de partir. A própria noção de identidade é questionada pela evolução dos territórios e pela mestiçagem das culturas.
O necessário pensamento estratégico
Os movimentos sociais e cidadãos devem adaptar sua estratégia à nova situação. Todo pensamento estratégico se constrói sobre a articulação entre a urgência e a construção de um projeto alternativo. A urgência é a resistência aos novos monstros. Mas, para resistir, um projeto alternativo se faz necessário.
O projeto alternativo começa a emergir. Desde 2009, no Fórum Social Mundial de Belém, ao qual nos referimos anteriormente, a proposta que emerge é a de uma transição ecológica, social, democrática e geopolítica. Essa proposta combina a tomada de consciência sobre as grandes contradições e a intuição em relação às grandes revoluções inacabadas em curso.
É preciso insistir na ideia de transição, que é com frequência utilizada contrariamente à lógica, como uma proposta de temporização. A proposta de transição não se opõe à ideia de revolução; ela está em ruptura com uma das concepções da revolução, a do limbo entre a velha e a nova sociedade; ela inscreve a revolução no tempo longo e descontínuo.
O projeto alternativo sublinha que novas relações sociais emergem já no mundo atual, como as relações sociais capitalistas emergiram, de maneira contraditória e inacabada, no período feudal. Essa concepção confere um novo sentido às práticas alternativas que são buscadas e que permitem, também de maneira inacabada, definir e preparar um projeto alternativo.
Uma das dificuldades deste período tem a ver com essa articulação entre a resistência e o projeto alternativo. A luta de classes é, sem contestação, o elemento determinante da resistência e da transformação. É preciso ainda redefinir a natureza das classes sociais, de sua relação e das lutas de classes. Na concepção dominante dos movimentos sociais, a revolução social deveria preceder e caracterizar as outras revoluções e liberações. A importância das cinco outras revoluções em curso questiona a revolução social, e o atraso da revolução social por sua vez questiona as outras revoluções.
Precisamos voltar à urgência e à resistência contra os monstros, sempre destacando a importância e a necessidade de construir um projeto alternativo. Não é de menor importância compreender como o medo de um novo mundo age sobre o surgimento dos monstros. Tomemos como exemplo um eleitor de Donald Trump, de classe média, branco, do interior dos Estados Unidos; olhando em torno de si, ele vê que os indígenas continuam lá, que os negros não suportam mais o racismo, que os latinos são cada vez mais numerosos e por vezes majoritários e que as mulheres não querem deixar de tomar posição. Ele acaba vendo que sua América sonhada não vai mais existir e está pronto a pegar em fuzis para atirar!
De fato, as sociedades resistem mais do que se pensa à direitização das elites e dos meios de comunicação. Podemos comprovar isso. Na Hungria, o referendo contra os estrangeiros não pôde ser validado, porque, apesar das pressões, apenas 37% dos húngaros foram votar na consulta. Na Polônia, as manifestações maciças fizeram recuar aqueles que queriam proibir qualquer tipo de aborto. Na França, dois terços se opuseram à revogação das leis para o casamento para todos. Uma pesquisa em cinco países europeus mostra que, dependendo da nação, 77% a 87% dos entrevistados são a favor de reforçar as leis contra as discriminações e que, apesar do delírio anti-imigrantes, 55% a 69% dos entrevistados são favoráveis à regularização daqueles que não têm documentação e disponham de um contrato de trabalho. Uma pesquisa da Anistia Internacional em 27 países mostrou que, apesar do discurso antirrefugiados, em vinte dos 27 países mais de 75% dos entrevistados são a favor de acolher os refugiados.
Quando elas podem se expressar, as sociedades são mais abertas e mais tolerantes do que o que querem fazer crer as correntes de extrema direita e os meios de comunicação que difundem suas ideias. Mas essa resistência não aparece, não se traduz por uma adesão a um projeto progressista, demonstrando a ausência de um projeto alternativo digno de credibilidade. É menos “a direita” que triunfa do que “a esquerda” que desmorona.
Precisamos, portanto, resistir no imediato, passo a passo, e aceitar se envolver a longo prazo. Essa resistência passa pela aliança mais ampla com todas aquelas e todos aqueles – e eles e elas são numerosos – que pensam que a igualdade vale mais que as desigualdades, que as liberdades individuais e coletivas devem ser ampliadas ao máximo, que as discriminações conduzem ao desastre, que a dominação leva à guerra, que é preciso salvar o planeta. Essa batalha sobre os valores passa pelo questionamento da hegemonia cultural do neoliberalismo, do capitalismo e do autoritarismo. Podemos demonstrar que resistir é criar. Para cada uma das revoluções inacabadas, por meio das mobilizações e das práticas alternativas, podemos lutar para evitar que sejam instrumentalizadas e sirvam para reforçar o poder de uma elite, antiga ou nova.
Os anos que estão por vir serão sem dúvida alguma muito difíceis, e as condições se mostrarão muito duras. Mas, na escala de uma geração, nada está jogado, tudo se torna possível.
Os movimentos sociais e cidadãos devem adaptar sua estratégia à nova situação. Todo pensamento estratégico se constrói sobre a articulação entre a urgência e a construção de um projeto alternativo. A urgência é a resistência aos novos monstros. Mas, para resistir, um projeto alternativo se faz necessário.
O projeto alternativo começa a emergir. Desde 2009, no Fórum Social Mundial de Belém, ao qual nos referimos anteriormente, a proposta que emerge é a de uma transição ecológica, social, democrática e geopolítica. Essa proposta combina a tomada de consciência sobre as grandes contradições e a intuição em relação às grandes revoluções inacabadas em curso.
É preciso insistir na ideia de transição, que é com frequência utilizada contrariamente à lógica, como uma proposta de temporização. A proposta de transição não se opõe à ideia de revolução; ela está em ruptura com uma das concepções da revolução, a do limbo entre a velha e a nova sociedade; ela inscreve a revolução no tempo longo e descontínuo.
O projeto alternativo sublinha que novas relações sociais emergem já no mundo atual, como as relações sociais capitalistas emergiram, de maneira contraditória e inacabada, no período feudal. Essa concepção confere um novo sentido às práticas alternativas que são buscadas e que permitem, também de maneira inacabada, definir e preparar um projeto alternativo.
Uma das dificuldades deste período tem a ver com essa articulação entre a resistência e o projeto alternativo. A luta de classes é, sem contestação, o elemento determinante da resistência e da transformação. É preciso ainda redefinir a natureza das classes sociais, de sua relação e das lutas de classes. Na concepção dominante dos movimentos sociais, a revolução social deveria preceder e caracterizar as outras revoluções e liberações. A importância das cinco outras revoluções em curso questiona a revolução social, e o atraso da revolução social por sua vez questiona as outras revoluções.
Precisamos voltar à urgência e à resistência contra os monstros, sempre destacando a importância e a necessidade de construir um projeto alternativo. Não é de menor importância compreender como o medo de um novo mundo age sobre o surgimento dos monstros. Tomemos como exemplo um eleitor de Donald Trump, de classe média, branco, do interior dos Estados Unidos; olhando em torno de si, ele vê que os indígenas continuam lá, que os negros não suportam mais o racismo, que os latinos são cada vez mais numerosos e por vezes majoritários e que as mulheres não querem deixar de tomar posição. Ele acaba vendo que sua América sonhada não vai mais existir e está pronto a pegar em fuzis para atirar!
De fato, as sociedades resistem mais do que se pensa à direitização das elites e dos meios de comunicação. Podemos comprovar isso. Na Hungria, o referendo contra os estrangeiros não pôde ser validado, porque, apesar das pressões, apenas 37% dos húngaros foram votar na consulta. Na Polônia, as manifestações maciças fizeram recuar aqueles que queriam proibir qualquer tipo de aborto. Na França, dois terços se opuseram à revogação das leis para o casamento para todos. Uma pesquisa em cinco países europeus mostra que, dependendo da nação, 77% a 87% dos entrevistados são a favor de reforçar as leis contra as discriminações e que, apesar do delírio anti-imigrantes, 55% a 69% dos entrevistados são favoráveis à regularização daqueles que não têm documentação e disponham de um contrato de trabalho. Uma pesquisa da Anistia Internacional em 27 países mostrou que, apesar do discurso antirrefugiados, em vinte dos 27 países mais de 75% dos entrevistados são a favor de acolher os refugiados.
Quando elas podem se expressar, as sociedades são mais abertas e mais tolerantes do que o que querem fazer crer as correntes de extrema direita e os meios de comunicação que difundem suas ideias. Mas essa resistência não aparece, não se traduz por uma adesão a um projeto progressista, demonstrando a ausência de um projeto alternativo digno de credibilidade. É menos “a direita” que triunfa do que “a esquerda” que desmorona.
Precisamos, portanto, resistir no imediato, passo a passo, e aceitar se envolver a longo prazo. Essa resistência passa pela aliança mais ampla com todas aquelas e todos aqueles – e eles e elas são numerosos – que pensam que a igualdade vale mais que as desigualdades, que as liberdades individuais e coletivas devem ser ampliadas ao máximo, que as discriminações conduzem ao desastre, que a dominação leva à guerra, que é preciso salvar o planeta. Essa batalha sobre os valores passa pelo questionamento da hegemonia cultural do neoliberalismo, do capitalismo e do autoritarismo. Podemos demonstrar que resistir é criar. Para cada uma das revoluções inacabadas, por meio das mobilizações e das práticas alternativas, podemos lutar para evitar que sejam instrumentalizadas e sirvam para reforçar o poder de uma elite, antiga ou nova.
Os anos que estão por vir serão sem dúvida alguma muito difíceis, e as condições se mostrarão muito duras. Mas, na escala de uma geração, nada está jogado, tudo se torna possível.
Gustave Massiah é membro do conselho internacional do Fórum Social Mundial e do Centro de Pesquisa e de Informação para o Desenvolvimento (Crid/França).
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