Sunday, June 04, 2017

“A crise ainda está em pleno desenvolvimento”

“A crise ainda está em pleno desenvolvimento”





Thiago Secco
tsecco@jj.com.br


© FOTOS: ANTONINHO PERRI/ASCOM/UNICAMP

“O povo brasileiro, na sua totalidade, não é corrupto. Mas ele tem no dia a dia, como espelho, péssimos exemplos”


Brasília. A Capital Federal vive dias tensos, em clima de cabo de guerra, sem rumo e sem previsão de fim. Os embates – inclusive os físicos - acontecem dentro e fora das casas parlamentares. Era início da noite de quarta-feira, 17 de maio, quando tornou-se pública pelo jornal ‘O Globo’ uma bomba de efeitos ainda imprevisíveis, capaz de detonar os alicerces do governo do presidente Michel Temer (PMDB). Gravações revelavam amiúde malas endinheiradas, compra de silêncio do ex-deputado federal e agora detento, Eduardo Cunha (PMDB), e sepultava as pretensões políticas do senador afastado pelo Supremo Tribunal Federal e então presidente nacional do PSDB, Aécio Neves.

O esquema expôs, novamente, as entranhas de um modelo carcomido pelo compadrio e pelas relações nada republicanas envolvendo o poder público e as grandes corporações privadas - monopólios constituídos à base de dinheiro público via créditos do BNDES em governos petistas. Em paralelo a mais um escândalo político, a tímida retomada econômica, que parecia dar os primeiros sinais de trégua, está paralisada. As reformas trabalhista e previdenciária sucumbem a segundo plano, já que o governo tenta, agora, colar os cacos de sua base aliada no Congresso, que ainda não decidiu pela permanência ou desembarque do poder. Qual o horizonte possível num cenário de terra arrasada? O que esperar de 2018? Ao JJ Regional, o doutor em Filosofia e professor de Ética Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Roberto Romano, fala sobre os últimos acontecimentos e o que ainda pode estar a caminho. JJ Regional - O senhor acredita que essa é a maior crise política pela qual o Brasil já passou?
Roberto Romano - É preciso cautela com as determinações quantitativas. “Maior” ou “menor” exigem elementos de comparação. Na economia, política, religião, setores muito complexos porque incluem traços comuns e divergentes, não sabemos quais pontos poderão levar a consequências graves, ou de menor importância. Uma crise no mercado pode parecer pequena. Mas como se une à ordem social, política, ideológica ou mesmo religiosa, pode se alastrar. E uma crise que parece relevante, pode ser de pequena monta em prazo médio ou longo. A crise de hoje tem sinais de perigo institucional e preocupa quem possui responsabilidades pela sua família, emprego, cidade, país. Eu não colocaria o verbo no passado: a crise ainda está em pleno desenvolvimento, ainda não passou. Temos uma recessão econômica combinada com descontrole dos poderes. A presidência da república está acuada pelo Congresso Nacional e pela Justiça, o parlamento está sob suspeita da Justiça e da população, os partidos são frangalhos de organismos políticos, dominados por caciques mais preocupados com a própria sobrevivência do que em defender o País. A ideia de crise, que nos vem da medicina grega, indica que o organismo adoecido chegou a um instante limite no qual será decidida a vida e a morte. Ainda não atingimos o ponto final. Muito sofrimento do povo brasileiro ainda pode vir.
 
O modelo criado com a Constituição Brasileira de 1988 sobre representação política está fatigado?
Romano - O modelo anacrônico e fatigado é o que herdamos do absolutismo português, no qual todos os cargos do Estado eram distribuídos pelos favores, apadrinhamentos, compra de votos. No mesmo tempo em que a Europa e os Estados Unidos da América definiram formas de governo democráticas e responsáveis, nosso nascimento como país independente trouxe as marcas do privilégio de quem opera os poderes, em detrimento dos cidadãos que pagam impostos ou, na frase do futuro Dom João V, “da gente ordinária de vestes”. O modelo a ser discutido e mudado não reside imediatamente na Carta de 88, mas foi construído desde 1500 e piorado com o império e com a suposta república. A irresponsabilidade dos que administram o Estado se espraiou com a Carta de 88: o antigo privilégio do imperador hoje é partilhado pelos que recebem prerrogativa de foro. Um desaforo para com os que pagam impostos, “a gente ordinária de vestes”. Como o senhor vê estes inúmeros atos de corrupção, que incluem malas semanais de R$ 500 mil e interpretados pelos políticos como algo normal, cotidiano - como dito pelo presidente Temer em entrevista à Folha, afirmando que o deputado Loures é “pessoa de boa índole”?
Romano - Depende do que se entende por “normal”. A ética é uma pesquisa complexa que engloba muitas técnicas de análise. Ela não se limita a estudar atos e valores saudáveis e corretos, mas também analisa atos e valores incorretos, nocivos para os indivíduos e sociedades. Em coletivos dominados por valores péssimos temos uma ética nociva. E em tais aglomerados humanos, o “normal” se encontra o que há de pior. Em nossa sociedade, por exemplo, o “normal” é o motorista a pisar no acelerador quando alguém atravessa a pista dos pedestres. Normal é desobedecer aviso de vagas de idosos e deficientes (sobretudo se o desobediente possui um veículo de luxo). Normal é furar filas, vangloriando-se da esperteza. Normal é dar carteiradas, pervertendo o uso do cargo de parlamentar ou magistrado. Normal é praticar favores com o dinheiro público. Normal é legislar em causa própria, das Câmaras de Vereadores ao Senado. Dessa forma, uma pessoa “normal” em sociedade assim, só pode ser considerada de boa índole pelos seus iguais, ou seja, os que ostentam um caráter péssimo do ponto de vista moral ou ético.

Os brasileiros estão mais indignados diante dos atos de corrupção? O povo brasileiro também é corrupto? Seria Brasília um microcosmo social do que acontece por esse Brasil afora?
Romano - Sim, os brasileiros estão mais indignados. A diferença é que hoje eles começam a encontrar meios para lutar contra a corrupção. Leis conquistadas pelas lutas da população, como a de Responsabilidade Fiscal, da Ficha Limpa, da transparência e outras, começam a dar frutos positivos para a ordem política. Não, o povo brasileiro, na sua totalidade, não é corrupto. Mas ele tem no dia a dia, como espelho, o péssimo exemplo de elites políticas, sociais ou econômicas, que exibem privilégios trazidos pelo status social ou administrativo. E agora volto à sua primeira pergunta, sobre a magnitude de nossa crise. Muitos analistas e jornalistas afirmam, sem prudência, que somos a sociedade mais corrompida do planeta. Sempre respondo com a necessária ponderação do quantitativo: para ajuizar o grau de corrupção de uma sociedade, não bastam números absolutos, mas relativos. Uma sociedade pequena, como a da Suíça, guarda nos cofres de seus bancos o dinheiro sujo e maldito do narcotráfico, do terrorismo, da venda ilegal de armas, da corrupção política mundial. O próprio Vaticano foi, até o papa Francisco, leniente com o dinheiro da máfia e de outras organizações criminosas, nos seus cofres. A corrupção econômica e política na Europa e nos EUA é muitas vezes maior, considerando-se as somas roubadas ao erário público e aos particulares, do que a do Brasil. A diferença está no seguinte ponto: naqueles países, existem formas de atenuar o fenômeno, como a regulamentação do lobby. No Brasil, não por acaso, temos 11 projetos de lei para controle do lobby. Mas nada ocorre porque, se regulada aquela atividade, a maioria dos nossos políticos, que exercem o lobby em seus mandatos, teria de escolher entre ser lobista ou parlamentar, prefeito, governador e… Até mesmo magistrado. As famosas “bancadas” no Congresso são apenas grandes lobbies nada disfarçados.
 
O senhor teme o fortalecimento de uma saída populista em uma futura eleição? Os outsiders têm sobrevivência política?
Romano - Quando a democracia representativa perde legitimidade, resta apenas ao povo a via do populismo. O líder pode surgir de maneira direta do próprio povo, ou ser gerado pela propaganda política, como ocorreu com Fernando Collor de Mello. Preocupa saber que as novas gerações são mais favoráveis a governantes carismáticos e autoritários. As mais velhas ainda dão crédito à democracia. Há uma falta dramática, no mundo e no Brasil, de lideranças democráticas. A falência dos partidos, o seu controle por gerontocratas, explica em parte tal vazio de lideranças. Uma nova eleição vai resolver o problema da crise de representatividade política?
Romano - Não. A crise reside na estrutura do Estado brasileiro, na ausência de reais partidos políticos, na ausência de republicanismo de nossas elites e dirigentes.

Qual é a sobrevida de Temer, em sua opinião? As reformas ainda são viáveis em um governo esfacelado?
Romano - Só uma bola de cristal poderia dizer algo sobre a permanência do presidente no Esplanada. Reformas que não foram pactuadas com todos os interessados sempre são traumáticas. As propostas pelo governo Temer (que, aliás, surgiram nos governos Lula e Dilma) vieram de cima para baixo, como é o costume absolutista brasileiro. Elas teriam dificuldades para serem aprovadas, mesmo sem crises virulentas como a de hoje. Na crise, elas se tornaram ainda mais árduas de aprovação política e social. Por fim, há possibilidade de nos livrarmos da corrupção endêmica a médio prazo? Como? Qual o horizonte possível de vislumbrar até 2018?
Romano - Nenhuma sociedade está livre da corrupção. Tempos atrás, um jornalista me perguntava se o Brasil era o mais corrupto em plano mundial. Disse que não e indiquei: estava sobre a minha mesa um relatório de licitação fraudulenta de uma rodoviária na Suécia, país louvado em prosa e verso pela honestidade de seus políticos. Costumo sempre lembrar que, após a expulsão do Paraíso, os homens vivem perenemente nos limites do bem e do mal. Não por acaso Santo Agostinho afirma, na Cidade de Deus, que os Estados são grandes quadrilhas. E todos possuem tal marca. Alguns Estados, os mais próximos da democracia e da responsabilidade, proclamam leis (como a regulamentação já citada) que atenuam a corrupção. A ONU luta contra o fato, mas os resultados, até agora, são irrelevantes. O nosso remédio é lutar para que a política se torne mais controlada pelos cidadãos. E para tal fim, devemos recusar a recusa da política que nos foi inoculada desde longa data. Se a cidadania honesta não vigia a política e não age politicamente, os larápios dominam os cofres públicos e as instituições.

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