Existe algo além de energia nos mais de 7.000 megawats de potência instalada das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, ambas no rio Madeira, em Rondônia. Se comprovadas as delações feitas por ex-diretores e executivo da empreiteira Odebrecht, a construção das duas usinas é um caso raro. Não pelo ilícito cometido: a Operação Lava Jato revelou que o pagamento de propinas em troca de contratos com o poder público é regra e não exceção. Mas por unir interesses políticos opostos. Separadas por pouco mais de 100 km de distância, são prova concreta do ecumenismo da corrupção.
Vista aérea da usina hidrelétrica Santo Antônio no rio Madeira, em Rondônia. Maio 2014. Foto: Divulgação. Fonte: Ministério Planejamento
A reportagem é de Gil Alessi e publicada por El Pais, 02-06-2017.
Desde o processo licitatório das duas obras, iniciado em 2007 e 2008, respectivamente, se seguiu um turbilhão de repasses ilegais, caixa 2 e subornos que abasteceram lados antagônicos. Deputados ruralistas e índios, petistas e tucanos, sindicalistas ligados ao PT e de oposição ao partido. O rio Madeira é o segundo maior rio da Amazônia, e seu potencial gerador de energia despertou o interesse do Governo de Lula em 2007. À época o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) dispunha de recursos abundantes e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social oferecia linhas de financiamento vantajosas para as empreiteiras.
Em 2007 a Odebrecht venceu a licitação para a construção da usina de Santo Antônio. O patriarca do clã Odebrecht tornado delator, Emílio, diz em seu depoimento que logo de cara pressionou o então presidente Lula para que não houvesse atraso na contratação e desembolso do financiamento para a construção da hidrelétrica junto ao BNDES. O empreiteiro também teria cobrado do petista agilidade nas concessões das licenças ambientais necessárias para que a obra tivesse início. O ex-presidente já é réu em cinco processos, sendo dois no âmbito da Lava Jato.
Burocracias e pressão política à parte, os verdadeiros problemas da empreiteira começaram em 2008. O consórcio Tractebel Suez derrotou a Odebrecht e venceu a licitação para a usina de Jirau. Emílio afirma que houve “favorecimento” da companhia por parte da então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. De acordo com ele, o projeto apresentado pela Tractebel violava o edital ao não levar em conta o melhor lugar possível para a construção das barragens no rio de modo a maximizar o potencial de geração elétrica. “A Tractebel que já havia perdido [a licitação de] Santo Antônio pra gente, entrou em Jirau contra a gente, mas feriu o edital: colocou a barragem a 10 ou 15 km [do local ideal]. Ela infringiu o edital mas (...) teve apoio da Dilma pleno”, afirma.
A empreiteira derrotada então se valeu de sua proximidade com o presidente Lula para cobrar uma solução. “Fui ao presidente, só não movemos ação judicial porque não convinha naquele momento (...) não valia a pena brigar com a potencial próxima presidente da República [Dilma]”. Segundo Emílio, o petista se mostrou sensível às reivindicações da Odebrecht. “O ex-presidente Lula chegou a se comprometer comigo que se buscaria reverter o resultado do leilão de Jirau depois que mostrei os dados a ele. Ele entendia que a proposta havia sido irregular”, diz o empreiteiro. Mesmo mexendo seus pauzinhos, a Odebrecht não conseguiu derrubar o leilão. “Contudo [Lula] preferiu não contrariar Dilma. Até hoje tenho dificuldade de entender as razões que levaram Dilma e equipe a atuar em benefício da Tractebel. Isso foi 2008”, conclui. O empreiteiro diz que apresentou a Lula todos os documentos que comprovavam o erro na proposta da empresa rival.
Tanto a Tractebel quanto a Odebrecht doaram para a campanha de Dilma em 2010. A ex-presidenta divulgou nota pouco após a divulgação do conteúdo das delações, na qual disse que "vem sendo vítima de vazamentos seletivos e direcionados há meses, sem que sequer saiba do que está sendo acusada". Lula não se manifestou sobre a menção.
No parlamento a empreiteira também se empenhou para defender seus interesses no rio Madeira. O petista Arlindo Chinaglia, então presidente da Câmara, teria cobrado propina de 10 milhões de reais para azeitar as relações da empreiteira com o Governo Federal e favorecer a empresa na licitação da hidrelétrica. Chinaglia, apelidado de "Grisalho", foi citado pelo delator Henrique Serrano do Prado Valladares. A defesa do petista afirma que ele "está determinado a buscar, junto ao Supremo Tribunal Federal, todas as informações para que a verdade prevaleça".
Mas ao mesmo tempo em que a Odebrecht pressionava o presidente e outros petistas para conseguir vantagens – ou reverter uma desvantagem – em seus negócios no Madeira, a empresa também atuava na outra margem do rio: o PSDB. Os delatores afirmam que foram pagos 50 milhões de reais ao então governador de Minas Gerais, o tucano Aécio Neves. Em contrapartida, ele se comprometeria a defender os interesses da empresa na construção das usinas. Afastado do senado após as delações dos irmãos Batista, da JBS, Aécio, que é investigado em ao menos seis inquéritos da Lava Jato, sempre negou qualquer ilícito.
O herdeiro do império Odebrecht, Marcelo, explica em seu depoimento ao Ministério Público Federal as razões do pagamento. “No início do Governo Lula, o PSDB – não apenas o Aécio – tinha uma forte influência no setor elétrico. Furnas [Furnas Centrais Elétricas S.A] continuava sob controle deles”, diz. A Companhia Energética de Minas Gerais S.A.(Cemig) estava nas mãos do partido. Tanto Furnas quanto a Cemig são sócias da Odebrecht no consórcio que venceu Santo Antônio.
O delator Henrique Valladares contou à Justiça como foi feito o acerto com o tucano: “Na saída do encontro [com Aécio], o governador me disse: ‘Henrique, o Dimas [ex-diretor da hidrelétrica Furnas, instalada em Minas Gerais, e interlocutor do tucano], nosso amigo em comum, ele vai lhe cobrar”. Depois Marcelo Odebrecht afirma a Valladares que “tinha acertado com o governador um valor de 50 milhões a serem pagos”. O valor era repassado ao tucano “em pagamentos feitos em contas no exterior”.
O PMDB não ficou de fora da cascata de propinas da Odebrecht nas usinas do rio Madeira. Após a derrota na licitação da hidrelétrica de Jirau, a empreiteira teria pago 5,5 milhões de reais ao ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão (PMDB) para tentar anular o processo. As informações constam no depoimento do delator Henrique Serrano do Prado Valadares. Apelidado de "Esquálido" nas planilhas da construtora, o peemedebista “sinalizava que iria nos ajudar, e que precisava de nossa ajuda, de propina (...) e o Marcelo [Odebrecht] acreditou nisso”, afirma Valadares. O dinheiro teria sido pago em 2008, via caixa 2. Em nota, Lobão afirmou que “repudia mais uma vez o reiterado vazamento de informações sigilosas e esclarece que está buscando o devido acesso legítimo e oficiais a tais documentos perante o STF".Completa a bancada da propina do PMDB no âmbito das duas hidrelétricas o então deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que teria recebido 20 milhões, e o senador Romero Jucá (PMDB-RR), destinatário de 10 milhões. O primeiro já foi condenado por Sérgio Moro na primeira instância, e o segundo é alvo de vários inquéritos na Lava Jato.
Índios e ruralistas, CUT e Força Sindical
Outros atores antagônicos também foram destinatários da propina da empresa. Para azeitar a relação com as diversas etnias indígenas na região do rio Madeira, a Odebrecht teria feito pagamentos diversos para duas lideranças indígenas – Antenos Karitiano e Orlando Karitiano – e para a Associação dos Karitianos. Ao que tudo indica, os valores não superaram 10.000 reais, valor irrisório quando comparado ao que foi repassado ao senador ligado à bancada ruralista, Valdir Raupp (PMDB-RO). Sob o codinome Alemão, ele teria recebido valores que podem chegar a 20 milhões de reais. O delator Valladares afirma que os pagamentos eram feitos “a título de ter uma boa convivência, pela importância que ele tem”. O parlamentar já é réu em uma ação da Lava Jato, e afirma que os repasses foram legais e declarados à Justiça Eleitoral.
Para evitar greves e distúrbios nos canteiros de obra das usinas, a empreiteira recorreu a pagamentos feitos para líderes sindicais de duas das maiores centrais do país: a Central Única dos Trabalhadores (CUT), pró-PT, e a Força Sindical, de oposição ao partido. Com o apelido de Barbudos nas planilhas da empresa, um representante da CUT junto ao sindicato dos trabalhadores da construção pesada em Porto Velho recebeu pagamentos. “O pessoal da CUT costumava cobrar, de fato, pedágios mensais para eles não apoiarem greves, não apoiaram atos de violência, esse tipo de coisa. Era preciso pagar a CUT”, afirma Valladares, sem especificar os valores ou o nome do destinatário.
Já por parte da Força Sindical o interlocutor da empreiteira foi o deputado federal Paulinho da Força (SD-SP). Em 2012 ele teria recebido 1,2 milhão de reais via doações legais e caixa 2 para ajudar a construtora a resolver problemas com trabalhadores grevistas no rio Madeira. “Nós tínhamos um interesse específico [na doação ao deputado], porque estávamos no meio de uma discussão (...) e dificuldades bastante expressivas nas usinas do rio Madeira: teve quebra-quebra, incêndio, e a Força Sindical era a central que comandava aquela região”, narra o delator Alexandrino de Alencar. O episódio mencionado ocorreu em março de 2012, e obrigou a empresa a paralisar temporariamente as obras no local após uma greve dos mais de 20.000 trabalhadores da usina.
De acordo com as palavras do ex-diretor da empreiteira a atuação de Paulinho “atenuou bastante a situação” nos canteiros. O parlamentar afirmou que todas as doações recebidas foram legais e declaradas à Justiça Eleitoral.
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