Friday, June 16, 2017

Gastos com proteção social na esfera internacional: combatendo os mitos com fatos

Gastos com proteção social na esfera internacional: combatendo os mitos com fatos

Milko Matijascic[1]

Agradeço o convite da Plataforma Política Social para participar do debate sobre gastos com proteção social. Essa é uma oportunidade para esclarecer a questão, os limites da argumentação, contestar mitos e desfazer equívocos.

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26 de março de 2017 o colunista Samuel Pessôa critica Laura Carvalho em questões relativas à reforma da previdência. O colunista comete sérios equívocos e não ajuda a promover um debate rigoroso. A coluna afirma que os gastos com previdência são elevados demais, representando 13% do PIB – Produto Interno Bruto. O argumento requer muitos reparos.

A coluna não lançou mão de informações públicas, transparentes e abertas a todos. Ninguém conhece a fonte de dados ao afirmar que o Brasil gasta 13% do PIB com previdência. O artigo ignora que as bases de dados da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – não falem em previdência. A base de dados da OCDE classifica as políticas de proteção social, assim:

  • idade avançada (falaremos em idade nas tabelas);
  • sobreviventes, que recebem pensões por morte do segurados titular;
  • incapacidade para o trabalho (temporária ou permanente e parcial ou integral);
  • foco em famílias, transferindo recursos àquelas em situação de vulnerabilidade;
  • desemprego;
  • saúde;
  • habitação;
  • políticas ativas de reinserção no mercado de trabalho; e,
  • outras (podem haver políticas específicas em cada país da OCDE).

Além disso, os programas podem ser públicos ou privados e, neste último caso, de filiação compulsória ou de adesão voluntaria. Para tratar do tema, segundo a tradição brasileira, selecionamos as seguintes políticas: idade, pensões por morte, incapacidade e famílias. Não estamos falando apenas em previdência, pois existem questões assistenciais, como a focalização dos gastos em famílias vulneráveis. Como os detalhes técnicos são muitos, aqueles que queiram se aprofundar na temática podem se reportar a Matijascic (2016).

Existem várias fontes de informação pública e no Brasil o BEPS – Boletim Estatístico da Previdência Social – apresenta indicadores que para o RGPS – Regime Geral de Previdência Social – gerido pelo INSS – Instituo Nacional do Seguro Social representando 6,5% do PIB em 2013; 7,6% em 2015 e 8,2% em 2016. Esses indicadores associam os gastos com aposentadorias, pensões e auxílios e aqueles destinados a idosos e pessoas com incapacidade atendidos pela assistência social. O BEPS é publicado mensalmente, utilizando informações com uma defasagem de até dois meses. No entanto, o AEPS – Anuário Estatístico da Previdência Social publicou no final de 2016 informações para 2015 e para os dois anos anteriores apresentou resultados diferentes devidos às correções de praxe e a diferenças metodológicas que requerem atenção. O problema central se refere às diferenças dos resultados da contabilidade (capítulo 42 do AEPS) e àqueles dos benefícios emitidos (capítulos 8 a 13 do AEPS). A tabela 1[2] apresenta os dados segundo as duas metodologias.

Tabela 1 – Gastos com benefícios do tipo cash transfer no Brasil
em 2013 e 2015 no INSS como proporção do PIB – em %
AnoModalidadeIdadeIncapacidadePensão por MorteFoco nas famíliasTotal
2013Contábil3,41,30,80,66,2
Emitidos3,31,11,51,16,9
2015Contábil3,41,40,80,76,2
Emitidos3,61,21,61,27,6
Fontes: AEPS, Edição de 2015 (capítulos 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 42)

A tabela 1 revela que as diferenças entre as modalidades contábil e a de benefícios emitidos são grandes. Em 2013 as diferenças representaram 0,7% do PIB e, em 2015, 1,4%. Essa diferença não é banal, pois 1,4% representa o triplo do que é gasto com o PBF. Essa diferença se explica pelo fato de os indicadores baseados na contabilidade incluírem os dados devidos ao ano específico ao passo que os indicadores com base nos benefícios emitidos se referirem a tudo o que foi pago num ano, sem discernir se esse pagamento se refere a esse ano ou a anos anteriores. O pagamento referente a anos anteriores é devido a processos administrativos ou judiciais para repor perdas passadas ou à liberação de pedidos de benefícios que foram retidas por formalidades legais[3].

Com base nos argumentos técnicos da base de dados da OCDE, os indicadores sobre gastos com proteção social deveriam seguir a norma contábil, pois ela adota o regime de competência, ou seja, o que se refere a 2013 fica em 2013. É por isso que os dados são divulgados com defasagem no caso da OCDE, pois as correções são necessárias, conforme ocorreu no Brasil.

As informações sobre os regimes previdenciários próprios dos servidores públicos são poucas e fragmentadas, o que representa um sério problema para a transparência do debate. Isso gera problemas com a accountability, segundo a conceituação aplicada pela escola institucionalista. Os dados publicados foram expostos na tabela 2.

Tabela 2 – Gastos com benefícios do tipo cash transfer no Brasil em 2013 e 2015
nos regimes próprios de previdência dos servidores públicos das três esferas
de governo como proporção do PIB – em %
AnosIdadeIncapacidadePensão por MorteFoco nas famíliasTotal
20130,90,11,12,1
20151,10,11,42,7
Fontes: BEP – Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais dos servidores públicos federais (Edição de Dezembro de 2016) <http://www.planejamento.gov.br/assuntos/gestao-publica/arquivos-e-publicacoes/BEP> e AEPS, Edição de 2015 (capítulo 46).

A tabela 2 segue o mesmo padrão que a anterior, mas não discerne dados em contábeis e benefícios emitidos, pois o capítulo 46 do AEPS não mencionou a sistemática adotada. É provável que a metodologia seja similar à dos benefícios emitidos, ou seja, baseado no regime de caixa, com todas as imperfeições que dele decorrem, podendo, portanto, inflar os valores efetivos referentes ao ano.

As fontes de dados na tabela 2 são oficiais. Não existem dados organizados e desagregados relativos a modalidades de benefícios, concessão, manutenção e cessação para os regimes próprios de previdência de servidores públicos, conforme ocorre para o INSS[4]. Esse é um grave problema no Brasil, pois os regimes próprios das três esferas de governo representam uma parcela importante dos gastos públicos. Decorre daí que uma maior disponibilidade de informações incrementaria a accountability e governance. (Vide Pierson, 2000; para lidar com esses conceitos).

Os dados oficiais indicam que os gastos com os regimes próprios representam cerca de um terço ou um quarto dos gastos do INSS, dependendo da escolha via abordagem contábil ou a referente a benefícios emitidos, sendo que os beneficiários representam a décima parte do contingente do INSS, ao adotar as informações existentes no AEPS. Assim, os regimes próprios ajudam a concentrar a renda no Brasil. Os gastos com pensões por morte são elevados, é bom notar. Os gastos com incapacidade foram considerados como uma porcentagem de 15,1% das aposentadorias concedidas aos servidores da União e esse mesmo número foi atribuído a estados e municípios, o que pode ser errôneo, mas não existem dados específicos publicados para lidar com o tema.

Os resultados da tabela 3 para o Brasil refletem as modalidades de contabilização apresentadas na tabela 1, ou seja, contábil e a baseada nos benefícios emitidos. Os resultados e diferenças já foram explicados na análise da tabela 1.

Tabela 3 – Gastos com benefícios do tipo cash transfer em países selecionados da OCDE para 2013 e Brasil em 2013 e 2015 como proporção do PIB – em %
Países SelecionadosIdadePensões por morteIncapacidadeFoco nas FamíliasTotal
Chile  2,40,60,70,6  4,3
Alemanha  8,21,91,31,112,5
Itália13,62,61,60,818,7
México  0,00,00,00,4  0,4
Portugal12,11,91,90,716,6
Suécia7,30,42,11,411,2
Estados Unidos6,30,71,40,1  8,5
OCDE – Total  7,21,01,71,211,1
Brasil (Contabilidade) – 2013  4,61,41,50,6  8,2
Brasil (Contabilidade) – 2015  4,81,51,70,7  8,6
Brasil (Emitidos) – 2013  4,51,22,21,1  9,0
Brasil (Emitidos) – 2015  5,11,32,51,210,0
Fontes: OCDE <http://stats.oecd.org/Index.aspx?datasetcode=SOCX_AGG> , BEP (Edição de Dezembro de 2016) e AEPS (Edição de 2015, capítulos 8, 9, 10, 11, 12, 13, 42 e 46).

Para fins de comparação internacional, é preciso selecionar países com critérios e não apenas escolher aqueles que sejam interessantes para formular argumentos ideológicos. A presente seleção tem limites, pois os dados se restringem aos países da OCDE e ao Brasil, onde os procedimentos metodológicos se adequaram aos da OCDE. Nenhuma comparação com países desenvolvidos deve excluir os Estados Unidos, Alemanha e Suécia. De acordo com Esping Andersen e Myles (2007), são esses os países paradigmáticos do welfare state, representando, respectivamente, os modelos liberais, conservadores e socialdemocratas. A Itália é um país do modelo conservador e, como Portugal, apresenta características culturais importantes em matéria de similaridades para estudar o caso brasileiro. Chile e México são os países da América Latina que integram a OCDE. Outros países vizinhos ou dos BRICS não foram selecionados por não constarem nessas bases de dados da OCDE.

De acordo com a tabela 3, os gastos brasileiros são relevantes e crescentes. Isso requer atenção. Mas, utilizando os indicadores oficiais brasileiros, não é possível afirmar que o país é um dos campeões mundiais de gastos, ao considerar os benefícios por idade, pensões por morte, incapacidade e familiares, que integram a cobertura via seguro social e assistência via benefícios pagos em dinheiro do tipo cash transfer. Os indicadores brasileiros são menores que os da OCDE e dos países europeus, mesmo nas hipóteses mais elevadas que se referem a benefícios emitidos no ano de 2015. Outro problema é comparar dados de 2015, ou de 2016, segundo o procedimento adotado Samuel Pessôa com os de anos anteriores, embora ele não reconheça isso no artigo.

Os últimos dados disponíveis com a desagregação necessária para os países da OCDE são os de 2013. Isso explica a apresentação de dados de 2013 para o Brasil. Escolher anos posteriores para comparar com anos anteriores é um problema, pois a conjuntura econômica é volátil e pode elevar ou diminuir o PIB, o que, diminui ou aumenta os gastos previdenciários ou assistenciais nessa comparação, em contrapartida. Muitas das diferenças apuradas entre 2013 e 2015 para os gastos brasileiros se devem à crise econômica que afeta o Brasil, cujos resultados provocaram uma profunda queda no PIB. Essa queda se traduziu em aumentos da participação dos gastos com benefícios sobre o PIB, pois eles se elevaram com o aumento do número de beneficiários e com a relativa manutenção do poder de compra do salário mínimo. Em 2016 o problema foi pior, pois a crise se agravou. Para reverter o problema, ao menos em parte, seria necessário que a economia voltasse a crescer. As projeções disponíveis são frágeis, haja vista as diferenças entre os seus resultados e os contábeis, metodologicamente mais rigorosos.

Ao observar os indicadores da tabela 3, o leitor pode ser levado a pensar que o alinhamento com os Estados Unidos, Chile ou o México seriam desejáveis. Isso requer vários reparos, pois os Estados Unidos possuem uma parcela imensa de gastos privados que complementa o gasto público, conforme apontaram Esping Andersen e Myles (2007) No Brasil o problema é muito diferente, pois o gasto público detém uma parcela maior do total, considerando que a maioria da população não possui ganhos suficientes para aderir à previdência privada. O Chile e o México optaram por modelos de previdência privada com fundos capitalizados baseados em contas individuais. Essa opção se revelou problemática, pois, no Chile, muitos idosos não conseguem se tornar elegíveis às aposentadorias e entre os elegíveis muitos somente conseguem receber um piso previdenciário ao contar com as suplementações pagas pelo Estado chileno. Essa penúria financeira vem gerando muitos protestos e a busca de alternativa para reverter esses problemas. O México apresenta problemas similares aos do Chile e o país é marcado por um contexto de baixíssima proteção aos idosos, adotando uma opção oposta à brasileira, ao considerar os preceitos constitucionais brasileiros, cuidadosamente apontados por ANFIP e DIEESE (2017).

Outra observação interessante, ao contrário do que foi afirmado por Samuel Pessôa, os gastos brasileiros com as políticas expostas na tabela 3 são inferiores aos da Bélgica e da Noruega. No Brasil, em 2013 o gasto seria de 9% e em 2015 de 10%, considerando apenas a modalidade baseada nos benefícios emitidos, a mais cara delas. Segundo os dados da OCDE, esse total equivalia a 16,3% do PIB em 2013 na Bélgica e a 14,6% para a Noruega. Isso reforça a necessidade de emitir opiniões com base em estudos com maior fundamentação empírica, para evitar erros tão graves.

O foco do presente estudo foi o de chamar a atenção para a necessidade de lidar com uma documentação sólida e fundamentada em estudos sérios para participar do debate público. Os indicadores devem ser rigorosos, baseados em informações de caráter oficial e que estejam disponíveis para toda a sociedade. Embora Samuel Pessôa tenha lançado mão de sua argumentação em artigo de jornal, a falta de referências a estudos, conforme pressupõe um contexto democrático, não é aceitável. Acreditamos ter esclarecido a opinião pública com o presente estudo, respeitando as normas democráticas de um debate sério, honesto e civilizado.

REFERÊNCIAS
ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil e Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos Previdência: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da previdência social brasileira – Brasília: ANFIP/DIEESE; 2017 212p.
ESPING-ANDERSEN, G.; MYLES, J. The welfare State and redistribution. 2007. Disponível em: <https://goo.gl/27keZl>.
MATIJASCIC, M. (2016). Previdência Pública Brasileira em uma Perspectiva Internacional: custeio, benefícios e gastos. Brasília, Texto para Discussão, nº 2.188. Brasília: Ipea.
PIERSON, P. Coping with permanent austerity: welfare State restructuring in affluent democracies – The new politics of the welfare State. London: Oxford University Press, 2000.
[1] Milko Matijascic é Técnico em Planejamento e Pesquisa do IPEA e Doutor em Economia pela UNICAMP. Os argumentos apresentados são de responsabilidade exclusiva do autor.
[2] A coluna idade das tabelas 1, 2 e 3 congregam as aposentadorias por tempo de contribuição e as por idade. As pensões por morte incluem os benefícios previdenciários e os acidentários. Isso também vale para os benefícios por incapacidade, que somam as aposentadorias por invalidez e todos os auxílios. Por fim, os benefícios com foco na família incluem o BPC – Benefício de Prestação Continuada e os do PBF – Programa Bolsa-Família.
[3] Para facilitar o entendimento segue um exemplo. Se um cidadão pede um benefício em maio de 2011 e os problemas para medir a sua devida elegibilidade são resolvidos apenas em fevereiro de 2013, os benefícios emitidos considerarão que todos os gastos se referem a 2013 Já a metodologia contábil atribuirá a 2013 apenas a parcela dos meses de 2013, atribuindo as demais a 2011 e 2012, segundo o regime de competência e não o de caixa, conforme ocorre com os benefícios emitidos.
[4] Vale notar que de 5.593 municípios no Brasil segundo o AEPS, 3.382, ou seja 60,5% adotam o INSS para prover previdência. Em geral, esses municípios são do interior e de menor porte.

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