A professora e blogueira Lola Aronovich se tornou uma referência na internet para milhares de mulheres em temas relacionados a feminismo. No auge do seu blog, o Escreva Lola Escreva manteve uma média de 300 mil visitas por mês. A popularidade, a contundência e a natureza de seus textos despertaram muito ódio, tanto que foi alvo de mentiras e ofensas, além de ameaçada de estupro e morte. Mas não se calou, mesmo que várias vezes tenha pensado em parar. “Não consigo ficar sem escrever”, reconhece. “Acabar o blog passaria a mensagem de que eles venceram. E eles não podem vencer. Nem sabem o que é isso.”
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Lola afirma que se vive um processo constante de tentar educar a população. “A lei do feminicídio é recente e muitos não a entendem, não veem que várias mulheres (entre 10 a 15 por dia) são mortas por serem mulheres”, critica. Há agressões mais sutis também. Ela lembra que, quando se pretende xingar mulheres, são usadas palavras que se referem à sua sexualidade (vagaba, piranha, vaca, galinha, vadia, malcomida) ou à sua aparência (mocreia, dragão, baranga). “Esses termos não são unissex. Não existe piranho ou barango”, compara.
A violência contra as mulheres, em particular os feminicídios, contém uma grande dose de ódio. “E não é incomum que, em vários casos, a mulher seja estuprada antes ou depois de assassinada”, observa Lola. “Quando o agressor causa mutilações, ele geralmente escolhe órgãos que identificam a vítima como mulher, como seios e vagina.” O horror não tem limite. A professora conta que “homens que batem em mulheres também alvejam partes sexuais ou que geram filhos”. Conforme sua análise, “talvez a mulher, naquele momento, não esteja individualizada, mas represente todo o ódio que o agressor sente pelas mulheres”. Há uma constatação grave: “O homem crê que pode fazer com sua parceira ou ex o que quiser, inclusive matá-la”.
Lola Aronovich | Foto: Blog Escreva Lola Escreva
Lola Aronovich é uma blogueira feminista e pedagoga argentina naturalizada brasileira. Doutora e mestra em Literatura em Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, desde 2010 é professora da Universidade Federal do Ceará – UFC, no Departamento de Estudos da Língua Inglesa, suas Literaturas e Tradução. Suas pesquisas tratam de gênero, literatura e cinema. Todo semestre oferece o curso de extensão Discutindo gênero através de literatura e cinema. Em 2008, começou o Escreva Lola Escreva, um dos maiores blogs feministas do Brasil, com média de 400 mil visualizações por mês.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Além da agressão física, a violência de gênero se processa de outras formas, mas nem sempre elas são encaradas como tal. Quais são essas outras maneiras?
Lola Aronovich – Estamos em um processo constante de tentar educar a população. A lei do feminicídio é recente e muitos não a entendem, não veem que várias mulheres (entre 10 a 15 por dia) são mortas por serem mulheres. Ainda há muitos homens que não acreditam em uma mulher quando ela diz ter sido estuprada, e, no caso da violência doméstica, ainda impera a máxima da “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Ou seja, se mesmo em casos óbvios de agressão física há pessoas que não encaram essas agressões como violência de gênero, imagine outras que são mais sutis. Há atitudes que sequer são consideradas violências por grande parte da sociedade, mas que fazem parte do cotidiano e funcionam como agressões. Um termo que agora está ganhando espaço é o gaslighting, ou seja, desqualificar os sentimentos de uma mulher, chamando-a de louca, e fazer com que ela se sinta insana. Isso entra como violência psicológica. Outra expressão é a pornografia da vingança, ou revenge porn, que consiste em espalhar fotos e vídeos íntimos de uma mulher.
É a típica violência de gênero, porque as mulheres ainda são julgadas de uma forma totalmente diferente quando fazem o mesmo que os homens fazem – no caso, sexo. Pode ser enquadrada como um tipo de violência sexual. Dizer ou sugerir que uma mulher não tem competência para fazer determinada coisa, ou para ingressar em algum curso, também não deixa de ser violência de gênero. Podemos chamar isso de violência moral. Há ainda a violência patrimonial, como controlar o dinheiro ou propriedade de uma mulher. E, num país que condena mulheres, em especial as pobres e negras, à morte em decorrência de abortos clandestinos inseguros, o controle dos direitos reprodutivos vale como violência. Além disso, há atitudes que não são vistas como violências, mas não deixam de ser. Um exemplo é o jeito como a maioria dos homens se senta nos assentos do transporte público, com as pernas bem abertas, ocupando um espaço que não é seu. Ou o que chamamos de mansplaining, ou homexplicanismo, que é o hábito muito masculino de ter a autoestima tão elevada que pensa que é especialista em tudo quanto é assunto, e sente-se especialmente à vontade para “ensinar” mulheres sobre vários temas. Estou acostumada com homens que vêm ao meu blog e Twitter para me explicar o que é feminismo e até para cassar minha carteirinha.
IHU On-Line – Que estratégia uma pessoa pode adotar para identificar e não reproduzir a violência de gênero? Inverter os papéis para analisar a situação?
Lola Aronovich – Não é fácil, realmente exige todo um esforço de desconstrução. Às vezes inverter os papéis pode ser uma saída, mas há que se tomar cuidado para não cair nas falsas simetrias. Por exemplo, o caos que a pornografia da vingança pode causar na vida de uma mulher não é comparável à divulgação de um vídeo de um homem fazendo sexo. Porém, no caso das ofensas, tentar inverter os papéis pode funcionar. Por exemplo, acho que usamos e repetimos insultos sem pensar em como eles são genderizados. Quando queremos xingar mulheres, usamos termos que se referem à sua sexualidade (vagaba, piranha, vaca, galinha, vadia, malcomida) ou à sua aparência (mocreia, dragão, baranga). Esses termos não são unissex. Não existe piranho ou barango. Isso quer dizer que temos centenas de termos ofensivos para atacar a sexualidade e a aparência das mulheres, e a falta de termos masculinos indica que não julgamos ou condenamos homens por serem sexualmente promíscuos ou fora do padrão de beleza. É para se pensar também que, muitas vezes, quando queremos ofender um homem, xingamos a sua mãe (filho da puta, também relacionado à sexualidade dela). A maioria das pessoas mal pensa nisso. É só quando analisamos um discurso ou uma situação que podemos identificar a violência contida nesse discurso ou situação. Tenho um aluno na faculdade que disse que começou a identificar atitudes machistas nele depois que passei a ser sua professora. Ele não é machista, mas notou que costumava interromper mulheres e falar mais do que elas em rodas de conversa com amigos, por exemplo. Fiquei feliz quando a namorada dele, que não é minha aluna, disse que ele havia alterado pequenas atitudes, mas que fazem diferença.
IHU On-Line – Nos homicídios masculinos, o uso de arma de fogo ocorre em 73,2% dos casos; nos femininos, em 48,8%. A morte decorrente de estrangulamento/sufocação é a causa de 6,1% da morte de mulheres e 1,1% de homens (Mapa da Violência 2015). Esses dados evidenciam o quanto o ódio é fator presente na mortalidade feminina? Por que a mulher é tão odiada pelo agressor machista?
Lola Aronovich – Sim, a maior parte dos feminicídios contém uma grande dose de ódio. E não é incomum que, em vários casos, a mulher seja estuprada antes ou depois de assassinada. Quando o agressor causa mutilações, ele geralmente escolhe órgãos que identificam a vítima como mulher, como seios e vagina. Homens que batem em mulheres também alvejam partes sexuais ou que geram filhos. Talvez a mulher, naquele momento, não esteja individualizada, mas represente todo o ódio que o agressor sente pelas mulheres. Assim como uma mulher que finalmente arranja forças para se separar do marido em um relacionamento abusivo não está apenas rompendo com ele, mas com todo um modelo de vida que lhe foi ensinado (de que o mais importante na vida de uma mulher é ter um homem), o homem expõe toda a misoginia que aprendeu com a religião, com a mídia, com os pais, com a escola (que não aceita falar em questões de gênero), ao matar a esposa, namorada ou ex. Ele deixa claro que prefere a parceira morta a vê-la com outro homem.
IHU On-Line – Entre as mortes ocorridas em ambientes domiciliares, verifica-se uma maior incidência entre mulheres (71,9% dos casos) do que homens (50,4%). Esses dados se relacionam à autoria dos crimes: mulheres são mais agredidas por pessoas conhecidas, enquanto os homens, por estranhos. Ou seja, mulheres são as maiores vítimas da violência doméstica e familiar. A impunidade do homem agressor é um dos principais fatores que alimentam essas trágicas estatísticas?
Lola Aronovich – O dado mais alarmante que conheço, que aponta para uma pandemia, é o da ONU [Organização das Nações Unidas]: de todas as mulheres mortas no mundo, 38% são assassinadas pelo parceiro, atual ou ex. O parceiro que deveria amá-la e, sob a própria ótica do patriarcado, protegê-la (de outros homens), é o que a mata. O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídios no planeta, mas este é um massacre universal, que ocorre também em países ricos. Não sei se a impunidade do homem agressor é um dos principais fatores para explicar esses dados. Penso que, mais do que isso, é a visão que o homem tem da mulher como sua propriedade. O homem crê que pode fazer com sua parceira ou ex o que quiser, inclusive matá-la.
IHU On-Line – Que autoras são determinantes para se avançar na discussão de gênero e por quê?
Lola Aronovich – São tantas... Adoro autoras mais antigas que continuam relevantes, como Susan Faludi e Naomi Wolf. bell hooks [pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escrito em letras minúsculas], que prega um feminismo para todos e define o movimento como uma luta contra todas as opressões, incluindo as raciais e econômicas. Elisabeth Badinter ainda faz um bom debate sobre o mito do amor materno. Beatriz Preciado, por fazer provocações interessantes, Julia Serano, e também Berenice Bento, por serem referências no transfeminismo. Joan Scott e Donna Haraway, que pergunta como seria viver num mundo pós-gênero. Guacira Lopes Louro, por tratar de gênero na educação. Heleieth Saffioti e seu feminismo marxista. Sueli Carneiro, que foca no feminismo negro. Kimberlé Crenshaw e seu pioneirismo em relação à interseccionalidade. Jovens autoras negras, como Djamila Ribeiro, Roxane Gay, Chimamanda Ngozi Adichie, e tenho certeza que esqueci de um monte de gente.
IHU On-Line – Qual a importância do feminismo?
Lola Aronovich – Sem dúvida o feminismo é necessário e urgente. Uma das faces mais perversas do machismo é desqualificar a luta das mulheres. A quem interessa que as mulheres tenham vergonha em se declarar feministas e a lutar por direitos iguais? Vemos propostas no Senado que visam transformar acusações falsas de estupro em um crime tão hediondo quanto estupro. Vemos avançar um projeto que determina que a vida deve ser inviolável desde a concepção. Caso aprovada, ela abre brechas para proibir o aborto em todos os casos, até na gravidez decorrente de estupro e quando a gestante corre risco de vida (o projeto é tão retrógrado que pode acabar, por tabela, com inseminação artificial e pesquisas com células-tronco embrionárias). Em alguns sentidos, estamos regredindo. Hoje temos uma maior divisão de brinquedos por gênero, por exemplo, do que tínhamos meio século atrás. Os números de estupro e feminicídios não vêm diminuindo. Certamente estamos mais próximas hoje da reação conservadora dos anos 1980 do que das conquistas e revoluções das décadas de 1960 e 1970. Uma mulher ainda é estuprada a cada 11 minutos no Brasil, e isso se contarmos apenas os casos que são denunciados. Ainda temos uma representatividade política baixíssima no Congresso. Ainda ganhamos menos ao exercer a mesma função dos homens, mesmo que agora tenhamos maior escolaridade que eles. E, mesmo que tenhamos ocupado vários espaços, os homens ainda se recusam a fazer a sua parte nas tarefas domésticas e na criação dos filhos. Um dos meus sonhos é que o feminismo realmente se torne obsoleto um dia, mas sei que isso não acontecerá na minha vida.
IHU On-Line – A senhora mantém o Escreva Lola Escreva desde janeiro de 2008, considerado o maior blog feminista do Brasil. Como é quase impossível conter ofensas e mentiras na internet, e como seus textos denunciam o patriarcado e o machismo cotidiano, ele despertou muito ódio?
Lola Aronovich – Sim, despertou muito ódio e continua despertando. É inacreditável o tempo e esforço que alguns grupos empenham para me silenciar. Trolls apareceram desde o início do blog, e o perfil deles é sempre o mesmo: homens cis, brancos, hétero, de direita, conservadores e preconceituosos. Mas o número de trolls e haters foi crescendo à medida que o blog foi crescendo. Eu diria que há talvez três grupos que me atacam, bastante parecidos entre si. Um é o que chamo de “reaças zueros”, homens de extrema direita que fingem estar brincando e fazendo piada ao me xingar, inventar discursos que nunca fiz, criar montagens. Eu os chamo também de 4ª Série B, porque os insultos que eles proferem (gorda, feia, chata etc.) costumam passar quando a pessoa chega na 5ª série, e “B” porque a 4ª Série A demonstra mais maturidade.
O outro grupo também é de extrema direita e também usa “humor”, mas eles são mais organizados, parecem ser pagos (porque têm todo o tempo do mundo para ficar na internet atacando ativistas e pessoas de esquerda em geral) e capricham nos ataques sempre que eu menciono Jair Bolsonaro. Este grupo cria perfis fakes no Twitter diariamente só para me xingar e cria também perfis imitando o meu, para confundir. Além disso, cria contas em meu nome, com minhas fotos, em outras redes sociais, como o Curious Cat, e manda mensagens de cunho sexual no meu nome para crianças e adolescentes daquela rede. Faz isso incessantemente, por meses a fio, todos os dias.
O terceiro grupo é o de masculinistas, ou “mascus” (uma abreviação que criei), ou “ativistas pelos direitos dos homens” (Men’s Rights Activists, em inglês), ou simplesmente grupos organizados com ligações neonazistas que odeiam mulheres em geral e feministas em particular. Este é o grupo que me dá mais trabalho, já que, além de me ameaçar diariamente de morte e de estupro, de ligar para minha casa e oferecer recompensas para quem me matar, de atacar também meus familiares e leitoras, de tentar invadir minhas contas e derrubar meu blog inúmeras vezes, de criar um blog falso no meu nome dizendo, entre outras barbaridades, que eu realizei um aborto em uma aluna em sala de aula na minha universidade, de gravar vídeos dizendo que eu abusei sexualmente de um de seus integrantes e que eu sou mãe de outro e o abandonei para ser feminista, e por isso ele é tão revoltado – enfim, além de tudo isso (e este é só um ínfimo resumo do que eles vêm fazendo há quase sete anos), dois de seus membros estão me processando e pedindo indenização por danos morais, pois eu os denunciei. Esses dois foram presos em 2012 por criarem um site de ódio em que pregavam a legalização do estupro e da pedofilia, o estupro corretivo para lésbicas, ameaçavam pessoas (principalmente eu e o deputado federal Jean Wyllys), e prometiam um atentado terrorista na Universidade de Brasília – UnB (onde um deles havia estudado) para matar “o máximo de vadias e esquerdistas”. Foram julgados e condenados a 6,5 anos de prisão. Ao saírem da cadeia, em maio de 2013, pelo menos um deles voltou a fazer tudo de novo. Infelizmente, acabo gastando tempo demais com esses misóginos, tempo que poderia ser melhor empregado.
IHU On-Line – Quase uma década depois, e tendo recebido todo tipo de ofensa e até mesmo ameaças de morte, por que não silenciar? Por que manter o blog?
Lola Aronovich – Uma década é uma eternidade na internet, e claro que já pensei em parar várias vezes. A era dos blogs passou, muita gente migrou para o Facebook e para os vlogs, os comentários e o público certamente caíram. O auge do meu blog em termos de audiência foi em 2013, quando manteve uma média de 300 mil visitas por mês. Creio que com a maioria dos outros blogs não é diferente. Mas eu não consigo ficar sem escrever. Apesar de todos os ataques e ameaças, há muitas coisas boas: eu conheço pessoas (e, num blog tão antigo, algumas eu conheci quando tinham 13, 15 anos, e hoje estão na faculdade, várias estudando gênero), recebo carinho e apoio de quem conseguiu deixar o preconceito para trás e agradece meu blog por isso. Tento fazer um bom trabalho e ajudar as pessoas. Penso que poderia ter uma vida tranquila e mais tempo para lazer (e para a universidade) se eu parasse com o blog, mas, ao mesmo tempo, duvido que meus inimigos parariam de me atacar. E, sem o blog, sem voz, eu ficaria sem defesa. Além disso, acabar o blog passaria a mensagem de que eles venceram. E eles não podem vencer. Nem sabem o que é isso.
IHU On-Line – Na apresentação do seu perfil no Twitter, consta que a senhora é professora, feminista e “logicamente de esquerda”. Como a esquerda brasileira trata o feminismo? O surgimento da expressão “esquerdomacho” é sintoma de que os militantes de esquerda ainda têm muito a se desconstruir?
Lola Aronovich – A esquerda brasileira tem melhorado, procurado entender mais os movimentos sociais, deixando de vê-los como uma causa secundária que divide a esquerda. Mas, em geral, os blogs políticos de esquerda ainda são um Clube do Bolinha e, muitas vezes, não se interessam por pautas feministas. Mantêm-se bastante silenciosos na questão da legalização do aborto, por exemplo. Mas acho que houve uma evolução nos últimos anos e eles tentam se antenar um pouco com as reivindicações dos movimentos sociais. Ainda há mesas só compostas por homens brancos nos eventos que eles promovem, mas muito menos do que antes. O problema é que, quando algum deles é pego fazendo algo machista, como enviando “selfie de pau” não requisitado para inúmeras mulheres, uma ou outra até menor de idade, a “brodagem” muitas vezes fala mais alto e eles passam a atacar as feministas que os denunciaram. Nessas horas difíceis, eles se assemelham bastante aos reaças. Porém, o que eu vejo é que a direita tem orgulho de ser machista, racista e homofóbica, enquanto a esquerda, quando é preconceituosa, o faz meio sem querer e fica envergonhada. Particularmente não uso expressões como “esquerdomacho” ou “feministo” porque acredito que todos podem e devem ser feministas, homens também. Vejo os homens de esquerda como aliados de nós feministas. Seria bom se fossem mais aliados ainda.
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