OPOSITORES DE LULA E FHC tentaram iniciar processos de impeachments durante seus governos. Apresentando motivos estúpidos, não obtiveram sucesso em suas empreitadas. A sensação que muitos tinham, eu incluso, era que a democracia brasileira havia alcançado um estágio considerável de maturidade. Era praticamente um senso comum. O processo que desembocou no impeachment de Dilma provou que estávamos redondamente enganados. Uma maioria oposicionista formada no Congresso conseguiu, com suporte da grande imprensa, implementar uma política de desestabilização e isolamento do governo, ajudando a criar as condições materiais necessárias para transformar manobras fiscais em motivo razoável para derrubar uma presidenta eleita. Depois de sacramentado o golpe parlamentar, o novo presidente vem a público e admite – por duas vezes! – que os motivos que levaram ao impeachment foram outros, e não um crime de responsabilidade.
Enganou-se também quem achou que aquela ruptura institucional se encerraria ali. O que temos visto é uma sequência de graves violações das garantias do Estado democrático de direito que só faz aumentar.
O embate entre Lula e Sérgio Moro tem sido um caso emblemático. A coisa degringolou e atingiu um ponto em que a grande mídia brasileira trata com naturalidade o fato de este ser o duelo do século.
Há alguma coisa de muito errado em um país democrático que encara com naturalidade a existência de um confronto entre um juiz e um réu. Mas, sejamos realistas, as revistas relatam com fidelidade o que está acontecendo. Sérgio Moro subiu no ringue instalado pelos grandes grupos de mídia e se mostra bastante à vontade para atuar não como um julgador imparcial, mas como promotor do Ministério Público. Em suas atuações na Lava Jato, tanto dentro quanto fora dos tribunais, fica clara a necessidade do juiz em confirmar as hipóteses da acusação, e não em julgar com parcialidade os acontecimentos.
Chegou-se num ponto tão surreal, que o juiz-herói-celebridade não viu problema em gravar um vídeo pedindo para os fãs da Operação Lava Jato não comparecerem ao julgamento de Lula no próximo dia 10. Com o carisma de um lateral-direito reserva do Londrina Esporte Clube, Moro mandou este recado para os torcedores:
Parece que estamos na final de um campeonato e o ídolo do time está querendo acalmar sua torcida para não comprometer o bom andamento da partida. Quando até Reinaldo Azevedo – um crítico histórico de Lula – acusa Moro de orientar sua torcida, é melhor não duvidar:
“É evidente que não cabe a um juiz passar orientações a manifestantes, ainda que esteja falando aos seus. Se o faz, admite a existência de uma liderança que nada tem a ver com o poder que lhe confere a toga. (…) Juiz não orienta torcida. No máximo, a sua atuação pública, que tem de se pautar pela isenção e pela retidão, tem de inspirar a todos.”
Embriagado pela aura de herói, Moro tem se notabilizado por mandar às favas os ritos jurídicos na Lava Jato, chegando a cometer graves irregularidades em alguns casos. O de maior relevância foi o da autorização da divulgação de conversas telefônicas entre a ex-presidenta da República e Lula, além de outras conversas particulares que não eram de interesse público. Em meio ao processo de impeachment, um juiz de primeira instância cometeu uma ilegalidade e influiu decisivamente no jogo político-partidário. É grave, mas, com raríssimas exceções, a imprensa tratou o caso com a maior naturalidade do mundo. Mas, tudo bem, ele pediu “respeitosas escusas” para o STF e ficou por isso mesmo. Um herói é um herói, não é mesmo?
Recentemente, Moro determinou a condução coercitiva do blogueiro Eduardo Guimarães, que, ao chegar na delegacia, foi incitado pelos policiais a revelar a identidade de uma fonte sua – um claro constrangimento ilegal. Pior que isso: queriam apenas a confirmação, pois já haviam descoberto após quebrarem o seu sigilo telefônico, conforme revelou The Intercept Brasil. O motivo de tudo seria o fato de o blogueiro ter avisado a Lula, após receber um vazamento, sobre a condução coercitiva do ex-presidente. Tudo fica ainda mais ridículo quando lembramos da naturalidade com que representantes do Ministério Público convocaram uma coletiva de imprensa em off para vazar ilegalmente nomes de políticos delatados que seriam investigados pelo STF, mesmo havendo uma lei que determina o sigilo das delações enquanto não houver denúncia.
Advogados de Lula reinvidicaram junto ao STJ o afastamento de Moro do processo da Lava Jato por “total falta de imparcialidade”. É impossível discordar. Mas com o Estado de Direito sendo espancado em praça pública diariamente, quem ousará confrontar o grande herói criado pela imprensa e endeusado por boa parte da população? Para boa parte da opinião pública contaminada pelo ódio, toda e qualquer crítica a Sérgio Moro será sinônimo de defesa da corrupção. Qualquer defesa da democracia, do Estado de Direito, também será confundida com a defesa de Lula. É esse o clima instaurado no país. O juiz sabe disso e trabalha muito bem com esse dado.
Nesse ambiente de vale-tudo, outros juízes já também não fazem nenhuma questão de parecer imparcial. A juíza Diele Dernadin Zydek, da 5ª Vara da Fazenda Pública do Paraná, aceitou pedido do prefeito de Curitiba, Rafael Greca (PMN), e proibiu que caravanas de militantes acampem em qualquer lugar da cidade. Não vamos entrar no mérito da decisão, mas vamos ao Facebook da juíza:
Assim que os prints caíram nas redes, a juíza tirou seu Facebook do ar. Mas Diele não é uma caso isolado. Ela é apenas uma das camadas mais recentes da bola de neve. Lembremos de Catta Preta e diversos outros juízes que ignoraram um princípio sagrado da Justiça: o de não ser apenas imparcial, mas parecer imparcial.
Para a questão levantada nesta coluna, não interessa se Lula é culpado ou não. O que está em jogo é que tipo de democracia que estamos construindo. Desejamos que nossos adversários políticos sejam julgados com a mesma imparcialidade dos nossos aliados? Vamos aceitar que juízes travem confrontos com os réus mediados pela imprensa? Continuaremos andando para trás no processo civilizatório? Não são os direitos de um político que estão em risco, mas os de todos nós.
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