"Parte da imprensa, ao invés de atuar para acalmar o estrago feito por certas páginas e perfis, abertos ou anônimos, reais ou fakes, nas redes sociais, que querem mais é ver o circo democrático pegar fogo", escreve Leonardo Sakamoto, jornalista e cientista política, em artigo publicado por seu blog, 10-05-2017.
Segundo ele, "espalha-se aos quatro ventos que a fórmula para sobreviver em meio à revolução digital é fazer bom jornalismo. Mas parece que ninguém que está dentro do sistema acredita muito nisso. E, seguindo um instinto de sobrevivência, tenta competir com o conteúdo deliciosamente tosco distribuído por contas anônimas em redes sociais. O que acaba por contribuir com escancaramento do circo armado no país".
"Sabe o que sobra no lixo deixado quando o circo vai embora? Baratas - conclui o jornalista. Baratas que podem se tornar referência política. Baratas que podem ser eleitas. Porque baratas são simples e resistentes. Estavam lá antes de nós chegarmos e estarão muito depois de todos irmos embora. E não estão nem aí para a liberdade de expressão, que conquistamos a duras penas e que, de forma tão boba, esquecemos no lixo do circo".
Eis o artigo.
Há pouca diferença entre a cobertura do depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao juiz Sérgio Moro, como parte dos desdobramento da Operação Lava Jato, nesta quarta (10), em Curitiba, e a de uma final de campeonato de futebol. Tem de tudo: dos apoiadores conscientes à turba alucinada, dos jornalistas responsáveis a comentaristas vazios e manipuladores, de cidadãos preocupados a torcedores fanáticos. Há até zona militarizada de isolamento da arena onde se dará o ”embate”.
Com a diferença de que, a partir do momento em que alguém assume que isso é uma disputa entre o ”bem” contra o ”mal”, independentemente de quem seja considerado o ”herói” e o ”vilão”, não temos vencedores. Apenas uma democracia que, já mal das pernas, sai espancada.
Defendo as manifestações a favor e contra Lula e Moro. Todas têm o direito de acontecer – e a mídia não deve se esquivar a falar sobre elas, mesmo que discorde delas. Da mesma forma, críticas aos dois, realizadas dentro dos limites da civilidade, não deveriam ser encaradas como declarações de guerra – sob o risco do livre pensamento ir para o vinagre. Mas o que discuto aqui é como a caixa de reverberação relata, analisa, reflete e divulga o depoimento e tudo em volta dele.
Parte da imprensa, ao invés de atuar para acalmar o estrago feito por certas páginas e perfis, abertos ou anônimos, reais ou fakes, nas redes sociais, que querem mais é ver o circo democrático pegar fogo, acaba por jogar mais gasolina para que o povo venha ver – seja para competir em audiência com o chorume da rede, seja para fazer valer sua versão dos fatos. Ou para queimar em praça pública o ”jogador” com a qual não concorda.
Nesse caminho, busca-se os mínimos detalhes para satisfazer a curiosidade do povo, cada vez mais escatológica. Neste momento, inebriado pelas cornetas e luzes que brotam de Curitiba, parte da plateia quer ver sangue, suor, urina e fezes, tudo junto e misturado. Sente repulsa e é atraída por aquilo ao mesmo tempo.
Quando um assunto traz audiência, inicia-se uma corrida para poder explorá-lo ao máximo e, dali, espremer mais audiência. Na falta de informações de interesse público para satisfazer os consumidores, eleva-se o banal à categoria de interesse público se isso trouxer mais expectadores, leitores, ouvintes, pageviews. O problema é que, na ânsia de divulgar mais e mais, não raro deixa-se de lado a análise e a reflexão sobre o conteúdo, agindo de fora irresponsável. Chora-se pela menina Eloá, mas matamos uma delas por dia em nome do espetáculo.
Ao mesmo tempo, quando passamos a comentar um momento político delicado como se estivéssemos discutindo de forma amadora uma partida de futebol (bons comentaristas esportivos são aqueles treinados para tal função), pitacos se tornam teorias. Teorias viram verdades. Verdades são difíceis de serem combatidas.
Sequestradas pelo vazio de pensamento da polarização violenta, pessoas estão ávidas por consumir todos os detalhes desse ”confronto” com pipoca e guaraná. O fato é que boa parte delas, não acostumada com a natureza do debate público, vai absorver o conteúdo produzido e disseminado com pressa e sem reflexão e utilizá-lo como ferramenta para decretar a ”vitória” de seu campo. Não estão interessadas em fatos, mas em tudo o que corrobore sua visão de mundo.
Esta não é uma crítica à imprensa como um todo – até porque, na minha opinião, no que pese o viés de muitos veículos, outros tantos vêm trazendo conteúdo de qualidade, que pauta o debate público. Isso sem contar que, com a crise pela qual passa o setor e suas constantes demissões, os colegas estão acumulando tanto trabalho que a reflexão se torna, não raro, um luxo. Mas um lembrete de que também há quem produza conteúdo baseado em fofocas mal-checadas ou faz um trabalho de assessoria de imprensa a juízes, procuradores e políticos.
Lula e Moro contribuem enormemente para esse cenário, sem dúvida. E alimentam esse processo, jogando para a torcida e construindo seus mitos através de suas redes. Mas a imprensa deve também se pautar e não viver a reboque. Mais investigação, menos fofoca, menos alinhamento automático. Isso é ser ”isentão”, palavra usada indiscriminadamente tanto para rotular aquele que evita a dar sua posição, mas também para aquele que se nega a cair no maniqueísmo fácil.
Espalha-se aos quatro ventos que a fórmula para sobreviver em meio à revolução digital é fazer bom jornalismo. Mas parece que ninguém que está dentro do sistema acredita muito nisso. E, seguindo um instinto de sobrevivência, tenta competir com o conteúdo deliciosamente tosco distribuído por contas anônimas em redes sociais.
O que acaba por contribuir com escancaramento do circo armado no país.
Sabe o que sobra no lixo deixado quando o circo vai embora? Baratas.
Baratas que podem se tornar referência política. Baratas que podem ser eleitas. Porque baratas são simples e resistentes. Estavam lá antes de nós chegarmos e estarão muito depois de todos irmos embora.
E não estão nem aí para a liberdade de expressão, que conquistamos a duras penas e que, de forma tão boba, esquecemos no lixo do circo.
Não vou dizer que isso faz de nós, cidadãos, palhaços. Porque eles ao menos são engraçados.
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