Não é a fé, mas sim a própria razão que explica que a bem-aventurança se encontra na busca do bem comum.
A opinião é do filósofo italiano Massimo Cacciari, ex-prefeito de Veneza, em artigo publicado por La Repubblica, 03-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A opinião é do filósofo italiano Massimo Cacciari, ex-prefeito de Veneza, em artigo publicado por La Repubblica, 03-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "o sábio não pode ser feliz senão buscando o bem comum, ou seja, o bem do outro, porque só assim ele o conecta a si mesmo, assim como reconheceu no seu próprio pensamento a unidade superior de todas as coisas. Não por qualquer “bom sentimento” ou porque no-lo impõe alguma Revelação superior, mas pela necessidade intrínseca do raciocínio, deveremos concluir que ser feliz significa ser como deuses uns para os outros, e que querer o mal do próximo, ou invejá-lo, ou mesmo ser espectadores dos seus sofrimentos sem agir para libertá-lo deles significa condenar a nós mesmos à infelicidade. À ignorância e à infelicidade".
Eis o artigo.
Bem-aventurados apenas os deuses? Só para eles “floresce perene o espírito e brilham os olhos de quieta, eterna clareza” (Hölderlin)? Não é, em vez disso, a dor conectada com a finitude do nosso ser? Conectada à experiência do seu desaparecer, mesmo que crêssemos que isso não envolve o seu anulamento?
A corrente da vida corre inexoravelmente, qualquer que seja o oceano aonde está destinada a acabar. No entanto, embora nos agitando dentro dessa corrente, a nossa própria natureza nos obriga a buscar a felicidade. Cada um não pode deixar de querer ser feliz e esperar de poder realmente sê-lo.
Desesperarmo-nos absolutamente nos é impossível, assim como é impossível não querer. Mas o que significa felicidade? Tornar-se bem-aventurados como os deuses? Que tolice! Deus se é, não se torna. Podemos, talvez, então, medir a nossa felicidade na distância que nos separa d’Ele. Quanto melhor soubermos imitá-Lo, mais seremos felizes. Em que imaginamos que consiste uma bem-aventurança divina? Na convergência em perfeita unidade de querer, saber e poder.
Deus conhece tudo, e aquilo que quiser, pode; entre potência e ato, não há distância para Ele. Não é o Deus do mito, que reconhece a supremacia da Necessidade, que não é, de fato, “schicksallos”, como acreditava o Hyperion de Hölderlin, mas certamente é a figura divina que emerge e se impõe na nossa civilização, na confluência entre filosofia e Revelação judaico-cristã.
No entanto, essa ideia de felicidade que coincide com o ser perfeitamente agentes, capazes de pôr em ato aquilo que se quer, ou pelo menos de não colocar outro limite à ação senão o nosso próprio poder, é realmente pensável sem contradição? Uma felicidade que consista no agir sem ócio nem pausa, no ultrapassar-se sempre, como poderia realmente dizer-se bem-aventurada? E, assim, um Deus sempre tencionado às vicissitudes dos seus mundos deveria necessariamente co-sofrer os seus tormentos.
Nada bem-aventurado, portanto; mas sim muito laborioso, e labor tem a mesma etimologia de labere, lapsus sum, isto é, da fadiga, da pena, da queda. Estranha felicidade, então, sempre mal contente, nunca em paz. Busca de felicidade, no máximo, não felicidade.
Chamaremos feliz, então, que, conquista o poder de se separar do labor, de se retirar do agir condenado sempre a depender de condições externas, a nunca realizar o fim que realmente o havia movido? Feliz quem habita a própria sabedoria interior, ou vive solitário ao lado de quem lhe é afim, no jardim da pura amizade? Mas mesmo apenas o olhar de cima a infelicidade alheia significa dela participar. Uma forma de política está inscrita na natureza do nosso gênero. Não nos é concedido viver apenas com o que amamos. Não pode haver felicidade exclusivamente individual.
Mas é concebível uma forma política dela? Aqui, os caminhos se bifurcam desde o início da nossa Era. A cidade terrena é contradição e conflito; as suas portas são as da mortalidade; qualquer regime seu, qualquer ordenamento seu nunca poderá edificar harmonias estáveis. Não, responde a outra voz, somos chamados justamente a isso, justamente a nossa natureza política exige que se pense em tal fim e que se queira persegui-lo: uma “Roma celeste”, um Paraíso na terra, Império ou República universal, Utopia de liberdade do indivíduo e do gênero finalmente unidos. A fé hoje dominante na imanente racionalidade política das potências técnico-científicas e econômicas é a última expressão dessas grandes ideias do espírito europeu.
Como está pavimentado de inferno o caminho para o Paraíso terrestre, pelo menos quando a sua ideia e as suas imagens se separam drasticamente daquela da Jerusalém celeste, que de modo algum é obra nossa e acontece para além da história e do tempo; o destino deveria ter nos ensinado isso tragicamente.
Isso envolve se despedir para sempre do pensamento de uma felicidade do nosso gênero, de uma felicidade do comum, universal intelecto? Relegar a sua ideia ao puro sentimento individual? Cabe a nós enfrentar os laboriosa bella da cidade terrena e buscar seus ordenamentos artificiais e caducos – só isso comanda a sóbria, desencantada razão? O exercício do intelecto não teria, então, nada a ver com a busca da felicidade, ou gozaria apenas de si, refletindo a si mesmo, pensamento de pensamento, sem qualquer referência àquilo que produz ou não produz na realidade comum a todos.
Mas quando poderemos chamar de feliz, no limite, o estado da nossa razão? Quando virmos a conexão de todas as coisas com o Todo e captarmos assim a necessidade. Quando nada mais nos parecer contingente e conseguirmos compreendê-lo “sob alguma espécie de eternidade”. Bem-aventurança apenas intelectual? No mesmo momento em que se vê “com luz mais clara do que a do meio-dia” (Spinoza) a conexão entre todos os entes, é impossível não buscar também a unidade essencial de cada indivíduo com o outro, a proximidade que conecta todos eles. Não só por utilidade, por natural amor próprio, devemos, então, realizar nos ordenamentos da cidade terrena a unidade do nosso gênero, mas porque a própria razão no-lo impõe.
O sábio não pode ser feliz senão buscando o bem comum, ou seja, o bem do outro, porque só assim ele o conecta a si mesmo, assim como reconheceu no seu próprio pensamento a unidade superior de todas as coisas. Não por qualquer “bom sentimento” ou porque no-lo impõe alguma Revelação superior, mas pela necessidade intrínseca do raciocínio, deveremos concluir que ser feliz significa ser como deuses uns para os outros, e que querer o mal do próximo, ou invejá-lo, ou mesmo ser espectadores dos seus sofrimentos sem agir para libertá-la deles significa condenar a nós mesmos à infelicidade. À ignorância e à infelicidade.
Não pode haver felicidade “escondido”, privada. Se conseguíssemos compreender isso e, portanto, ser felizes, satisfeitos e contentes com nós mesmos, justamente ao nos libertarmos da infelicidade, e ainda mais felizes quanto mais agentes ao longo desse caminho, o mundo não se tornaria o Paraíso, mas certamente deixaria de se assemelhar ao Inferno. Porque é na tragédia do mundo que devemos saber dizer a Alegria.
A corrente da vida corre inexoravelmente, qualquer que seja o oceano aonde está destinada a acabar. No entanto, embora nos agitando dentro dessa corrente, a nossa própria natureza nos obriga a buscar a felicidade. Cada um não pode deixar de querer ser feliz e esperar de poder realmente sê-lo.
Desesperarmo-nos absolutamente nos é impossível, assim como é impossível não querer. Mas o que significa felicidade? Tornar-se bem-aventurados como os deuses? Que tolice! Deus se é, não se torna. Podemos, talvez, então, medir a nossa felicidade na distância que nos separa d’Ele. Quanto melhor soubermos imitá-Lo, mais seremos felizes. Em que imaginamos que consiste uma bem-aventurança divina? Na convergência em perfeita unidade de querer, saber e poder.
Deus conhece tudo, e aquilo que quiser, pode; entre potência e ato, não há distância para Ele. Não é o Deus do mito, que reconhece a supremacia da Necessidade, que não é, de fato, “schicksallos”, como acreditava o Hyperion de Hölderlin, mas certamente é a figura divina que emerge e se impõe na nossa civilização, na confluência entre filosofia e Revelação judaico-cristã.
No entanto, essa ideia de felicidade que coincide com o ser perfeitamente agentes, capazes de pôr em ato aquilo que se quer, ou pelo menos de não colocar outro limite à ação senão o nosso próprio poder, é realmente pensável sem contradição? Uma felicidade que consista no agir sem ócio nem pausa, no ultrapassar-se sempre, como poderia realmente dizer-se bem-aventurada? E, assim, um Deus sempre tencionado às vicissitudes dos seus mundos deveria necessariamente co-sofrer os seus tormentos.
Nada bem-aventurado, portanto; mas sim muito laborioso, e labor tem a mesma etimologia de labere, lapsus sum, isto é, da fadiga, da pena, da queda. Estranha felicidade, então, sempre mal contente, nunca em paz. Busca de felicidade, no máximo, não felicidade.
Chamaremos feliz, então, que, conquista o poder de se separar do labor, de se retirar do agir condenado sempre a depender de condições externas, a nunca realizar o fim que realmente o havia movido? Feliz quem habita a própria sabedoria interior, ou vive solitário ao lado de quem lhe é afim, no jardim da pura amizade? Mas mesmo apenas o olhar de cima a infelicidade alheia significa dela participar. Uma forma de política está inscrita na natureza do nosso gênero. Não nos é concedido viver apenas com o que amamos. Não pode haver felicidade exclusivamente individual.
Mas é concebível uma forma política dela? Aqui, os caminhos se bifurcam desde o início da nossa Era. A cidade terrena é contradição e conflito; as suas portas são as da mortalidade; qualquer regime seu, qualquer ordenamento seu nunca poderá edificar harmonias estáveis. Não, responde a outra voz, somos chamados justamente a isso, justamente a nossa natureza política exige que se pense em tal fim e que se queira persegui-lo: uma “Roma celeste”, um Paraíso na terra, Império ou República universal, Utopia de liberdade do indivíduo e do gênero finalmente unidos. A fé hoje dominante na imanente racionalidade política das potências técnico-científicas e econômicas é a última expressão dessas grandes ideias do espírito europeu.
Como está pavimentado de inferno o caminho para o Paraíso terrestre, pelo menos quando a sua ideia e as suas imagens se separam drasticamente daquela da Jerusalém celeste, que de modo algum é obra nossa e acontece para além da história e do tempo; o destino deveria ter nos ensinado isso tragicamente.
Isso envolve se despedir para sempre do pensamento de uma felicidade do nosso gênero, de uma felicidade do comum, universal intelecto? Relegar a sua ideia ao puro sentimento individual? Cabe a nós enfrentar os laboriosa bella da cidade terrena e buscar seus ordenamentos artificiais e caducos – só isso comanda a sóbria, desencantada razão? O exercício do intelecto não teria, então, nada a ver com a busca da felicidade, ou gozaria apenas de si, refletindo a si mesmo, pensamento de pensamento, sem qualquer referência àquilo que produz ou não produz na realidade comum a todos.
Mas quando poderemos chamar de feliz, no limite, o estado da nossa razão? Quando virmos a conexão de todas as coisas com o Todo e captarmos assim a necessidade. Quando nada mais nos parecer contingente e conseguirmos compreendê-lo “sob alguma espécie de eternidade”. Bem-aventurança apenas intelectual? No mesmo momento em que se vê “com luz mais clara do que a do meio-dia” (Spinoza) a conexão entre todos os entes, é impossível não buscar também a unidade essencial de cada indivíduo com o outro, a proximidade que conecta todos eles. Não só por utilidade, por natural amor próprio, devemos, então, realizar nos ordenamentos da cidade terrena a unidade do nosso gênero, mas porque a própria razão no-lo impõe.
O sábio não pode ser feliz senão buscando o bem comum, ou seja, o bem do outro, porque só assim ele o conecta a si mesmo, assim como reconheceu no seu próprio pensamento a unidade superior de todas as coisas. Não por qualquer “bom sentimento” ou porque no-lo impõe alguma Revelação superior, mas pela necessidade intrínseca do raciocínio, deveremos concluir que ser feliz significa ser como deuses uns para os outros, e que querer o mal do próximo, ou invejá-lo, ou mesmo ser espectadores dos seus sofrimentos sem agir para libertá-la deles significa condenar a nós mesmos à infelicidade. À ignorância e à infelicidade.
Não pode haver felicidade “escondido”, privada. Se conseguíssemos compreender isso e, portanto, ser felizes, satisfeitos e contentes com nós mesmos, justamente ao nos libertarmos da infelicidade, e ainda mais felizes quanto mais agentes ao longo desse caminho, o mundo não se tornaria o Paraíso, mas certamente deixaria de se assemelhar ao Inferno. Porque é na tragédia do mundo que devemos saber dizer a Alegria.
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