À esquerda e à direita, o desenvolvimento de um projeto para o Sistema Único de Saúde – SUS ficou “no meio do caminho” e ele é incluído “obrigatoriamente” nas plataformas eleitorais como um programa “de ações assistenciais para os pobres”, que são definidos como aqueles que “não podem pagar”, avalia Lígia Bahia, médica sanitarista, na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line.
Num momento em que o país todo assiste às denúncias e desdobramentos da Operação Lava Jato e às irregularidades ocorridas entre o setor público e o setor privado nos casos de corrupção, Lígia pontua que “os investimentos que seriam essenciais para adequar e modernizar a rede pública foram mínimos, racionados e alocados segundo critérios muitas vezes não estratégicos. A construção de unidades novas e o sucateamento das tradicionais justifica-se antes pela lógica das necessidades das empreiteiras e das inaugurações político-partidárias do que pelas de saúde”.
Apesar do atual cenário de degradação do SUS, Lígia Bahia esclarece que a crise não é consequência somente da falta de investimento dos últimos anos, ao contrário, a crise do SUS encontra suas raízes já na “aprovação do SUS na Constituição”, porque desde aquela época, diz, “nunca houve planejamento” para o desenvolvimento desse Sistema. “O subfinanciamento, a eleição do Collor, a pesadíssima oposição à Seguridade Social, inclusive enunciada pelo Sarney, impuseram outra lógica à política de saúde, saiu de cena a esfera federal que teria capacidade estratégica de orientar os rumos de um sistema nacional e ficaram como protagonistas os prefeitos e governadores”, informa.
Infelizmente, avalia, nos últimos anos os governos “mais do que incentivaram, agradeceram a existência” dos planos de saúde e “decretaram que sem os planos privados o Brasil estaria em um beco sem saída na saúde”. Com isso, ressalta, “fizeram um imenso desfavor para a saúde pública ao considerá-la assessória ao setor privado. Os governantes ignoram propositalmente todo o conhecimento acumulado sobre o tema e, sustentados no senso comum, terminam por acreditar que o SUS original é uma bobagem de uns tantos sanitaristas”. Entre as consequências dessa política, frisa, houve a “constituição de grandes grupos econômicos no setor assistencial, financeirização da saúde e até a corrupção e a perda de quadros sanitaristas para o setor privado. Houve liberação de créditos, empréstimos e políticas públicas que alavancaram grandes negócios e em troca de financiamento de campanhas”.
Lígia Bahia | Foto Leonor Calazans/USP
Lígia Bahia é graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a atual situação do SUS no Brasil?
Lígia Bahia - O SUS ficou no meio do caminho, tornou-se um consenso, setores à direita e à esquerda o incluem obrigatoriamente em suas plataformas políticas e eleitorais. Mas o consenso não é em torno do SUS constitucional e sim de ações assistenciais para os pobres (definidos como os que não podem pagar). Esse consenso, contudo, tem matizes. Por exemplo, medicamentos caros devem ser gratuitos para ricos e pobres. E os serviços de excelência da rede SUS também devem admitir ricos, inclusive aqueles que podem passar à frente na fila. Portanto, uma metáfora sobre a situação do SUS é a de um abrangente e generoso projeto que ficou de pé, porém foi destituído dos conteúdos universalistas e democráticos originais.
IHU On-Line - Quando se trata de discutir melhorias e investimentos no SUS, que questões fundamentais devem ser consideradas?
Lígia Bahia - Todas, literalmente todas. Não houve investimentos propriamente ditos no SUS. O SUS ficou para trás, tanto no que se refere às inovações tecnológicas (seja em produtos e em processos) e também na necessária e incontornável potência para lidar adequadamente com a angústia, a dor, o medo dos pacientes e seus familiares. Os investimentos que seriam essenciais para adequar e modernizar a rede pública foram mínimos, racionados e alocados segundo critérios muitas vezes não estratégicos. A construção de unidades novas e o sucateamento das tradicionais justifica-se antes pela lógica das necessidades das empreiteiras e das inaugurações político-partidárias do que pelas de saúde.
IHU On-Line - No início deste ano o Brasil assistiu à crise da saúde pública no Rio de Janeiro, que se manifestou na paralisação de funcionários do Hospital Estadual Getúlio Vargas, em atrasos salariais e no funcionamento de unidades com apenas 30% do efetivo de médicos considerado necessário. Qual é a situação do SUS no Rio de Janeiro e por que se chegou a esse cenário?
Lígia Bahia - A primeira parte da pergunta diz respeito ao fato de que o Rio de Janeiro, especialmente o antigo estado da Guanabara, hoje cidade do Rio de Janeiro, foi sede de grandes unidades públicas de saúde. Para que essa rede continuasse a funcionar plenamente e se adequasse ao SUS, seria imprescindível que o projeto SUS original se efetivasse. A transição do modelo seguro social para o de sistema universal, especialmente na cidade que abrigou a sede dos institutos de aposentadorias e pensões, teria que ser muito bem planejada.
Mas, desde a aprovação do SUS na Constituição, nunca houve planejamento. O subfinanciamento, a eleição do Collor, a pesadíssima oposição à Seguridade Social, inclusive enunciada pelo Sarney, impuseram outra lógica à política de saúde. Saiu de cena a esfera federal que teria capacidade estratégica de orientar os rumos de um sistema nacional e ficaram como protagonistas os prefeitos e governadores.
A segunda parte da questão refere-se à situação atual da saúde pública do Rio de Janeiro, que enfrenta dificuldades específicas com a decretação de falência do Estado. O problema é particularmente grave porque se sobrepõe ao contexto desfavorável crônico. É como se fosse a agudização de uma doença crônica, que é perigosa porque ocorre em um paciente que já está debilitado. Mas é importante lembrar que a falência do Estado incide sobre todas as áreas sociais e que talvez seu efeito mais dramático não seja sobre a saúde e sim sobre a educação. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro e suas unidades de ensino, inclusive sua escola de ensino fundamental, só agora retomaram as atividades acadêmicas.
IHU On-Line - Recentemente foi publicada uma notícia de que 1.158 novas unidades do SUS estão fechadas por falta de verba de custeio ou falhas no planejamento dos governos. Como avalia que tem se dado a gestão e o planejamento do SUS ao longo dos últimos anos? Quais são as falhas ou equívocos no planejamento? Como o fechamento dessas unidades compromete o atendimento nos grandes hospitais?
Lígia Bahia - Exatamente, inaugurar unidade de saúde pode ser mais problema do que solução. Mas para se contrapor à racionalidade das inaugurações, é preciso ter muita competência técnica e apoio político. Infelizmente os dois fatores raramente estiveram conjugados nas distintas gestões da saúde tanto na esfera federal quanto nas subnacionais. Sobre a relação entre unidades ambulatoriais e hospitalares, existe um certo equívoco.
O que aconteceu ao longo do tempo é que antigas estruturas como aquelas responsáveis pelo combate a endemias, como malária, foram extintas
A ideia segundo a qual o atendimento ambulatorial funciona como um anteparo para as demandas por assistência hospitalar é errônea. Na medida em que mais pessoas forem atendidas e houver diagnósticos precoces, pode até aumentar a necessidade de internações. O equilíbrio só ocorre se houver oferta adequada tanto de consultas e exames quanto de leitos, inclusive de terapia intensiva. Ou seja, o ambulatório não elimina a necessidade de hospitais, o que deveria acontecer é que o perfil de atendimentos fosse adequado a cada tipo de instituição.
Mas é claro que se unidades fecharem, a população recorrerá àquelas que estiverem funcionando, inclusive em busca de orientação para assuntos como: onde se vacinar contra a febre amarela; como fazer para o “dia de trabalho” não ser descontado etc.
IHU On-Line - Há uma crítica de que os últimos governos incentivaram mais os planos de saúde privados do que investiram no SUS. Concorda com essa crítica? Por que isso ocorre e quais suas consequências?
Lígia Bahia - Mais do que incentivaram, agradeceram a existência, decretaram que sem os planos privados o Brasil estaria em um beco sem saída na saúde. Ou seja, fizeram um imenso desfavor para a saúde pública ao considerá-la assessória ao setor privado. Os governantes ignoram propositalmente todo o conhecimento acumulado sobre o tema e, sustentados no senso comum, terminam por acreditar que o SUS original é uma bobagem de uns tantos sanitaristas. Daí a estimular objetivamente o setor privado é um pulo.
As consequências são tenebrosas, vão desde a constituição de grandes grupos econômicos no setor assistencial, financeirização da saúde e até a corrupção e a perda de quadros sanitaristas para o setor privado. Houve liberação de créditos, empréstimos e políticas públicas que alavancaram grandes negócios e em troca de financiamento de campanhas. Um processo avassalador que carrega consigo a perspectiva de melhores salários do que os praticados no setor público e, portanto, sequestra não apenas quadros técnicos, mas também influencia o modo de pensar e as práticas da saúde pública”.
Um detalhe que não deve ser negligenciado é o atendimento de autoridades públicas em dois hospitais privados localizados em São Paulo. A existência de unidades de saúde exclusivas para ricos, com tão alto grau de segregação, não é uma jabuticaba, mas é uma característica de países de renda baixa com regimes autoritários.
IHU On-Line - Recentemente a senhora declarou que o Poder Executivo é muito centralizador em relação ao orçamento e à normatização da saúde. Quais são os problemas que evidencia nesse sentido e de que modo o Executivo deveria atuar?
Lígia Bahia – O Poder Executivo deveria ser o órgão planejador e não executor. O que aconteceu ao longo do tempo é que antigas estruturas como aquelas responsáveis pelo combate a endemias, como malária, foram extintas. De acordo com as diretrizes de regionalização e descentralização, essas atividades deveriam ser planejadas pelo nível central e por estados e municípios e executadas por autoridades sanitárias regionais. Mas, o processo posterior foi diferente do proposto pela Constituição. O Ministério da Saúde absorveu mal antigos programas verticais, criticáveis pela fragmentação, incapacidade de adequação às necessidades locais e superposição de atividades e ainda criou outros como o da AIDS. Além disso, passou também a intervir de modo extremamente centralizador na oferta de ambulâncias e até unidades de urgência como as UPAS. Consequentemente, o que era para ser um processo de conformação de regiões de saúde, tomou rumos diversos. O Ministério da Saúde assumiu o papel de comprador de serviços de secretarias de saúde. Ao invés de planejar, passou a controlar o fluxo de repasses financeiros.
Durante mais de vinte anos a luta por mais recursos para a saúde foi a bandeira sob a qual se abrigaram desde sanitaristas até empresários. Mas fomos derrotados em 2012, durante o governo Dilma
IHU On-Line - Que percentual do orçamento brasileiro deveria ser destinado ao SUS para de fato atender a sua proposta? Nesse sentido, em que consistiria um financiamento adequado para o SUS? Alguns defendem a criação de uma nova contribuição para financiar o setor. Como vê essa ideia?
Lígia Bahia - Durante mais de vinte anos a luta por mais recursos para a saúde foi a bandeira sob a qual se abrigaram desde sanitaristas até empresários. Mas fomos derrotados em 2012, durante o governo Dilma. Uma derrota muito séria, especialmente considerando as jornadas de 2013 e suas demandas por um SUS de qualidade. Estivemos juntos nessa batalha, mas sabíamos que o Brasil gasta mais de 8% do PIB com saúde, proporção similar à do Reino Unido. Portanto, o problema não se situa apenas no volume de gastos e sim na natureza das fontes e usos. A maior parte das despesas com saúde no Brasil é privada. Ou seja, temos um sistema universal e um padrão de financiamento incompatível com as promessas de saúde para todos. Essa é uma sinuca de bico porque para que o SUS seja efetivado é preciso desprivatizar a saúde e isso contraria interesses dos grandes grupos econômicos setoriais. Estamos diante de um nó que tem que ser desatado. É ingênuo supor que mais recursos para a saúde é uma bandeira apenas da esquerda. O setor privado também reivindica mais recursos públicos, mas para finalidades nem sempre sinérgicas com a construção de um sistema universal.
Sobre a criação de uma fonte específica e tributos adicionais, não é simples. A carga tributária é relativamente elevada, especialmente se considerarmos que os contribuintes não têm direitos sociais plenos. Nossos estudos sugerem fortemente que antes do aumento de contribuições e impostos sobre o trabalho, deveria haver a revogação das renúncias fiscais diretamente relacionadas com a saúde. Essa alternativa baseada na equidade fiscal teria o mérito de reverter os gastos públicos com ações nos segmentos de maior renda e desestimular a privatização.
IHU On-Line - Quais medidas seriam adequadas para resolver a crise do SUS?
Lígia Bahia - A primeira é um posicionamento político claro e coerente favorável ao SUS constitucional. A segunda é a desprivatização, por meio da efetiva supressão de estímulos simbólicos e financeiros públicos para empresas privadas. A terceira, uma gestão voltada à saúde, incluindo desde a formação de recursos humanos, inserção profissional baseada nas boas condições de trabalho e remuneração até uma burocracia estável e profissionalizada. A quarta, uma comunicação correta com a população sobre problemas de saúde e atendimento. O uso e abuso da “marketagem” em uma área tão séria e sensível como a saúde é um problema em si. Quem lembra do IDSUS, prazos para atendimento, rede cegonha, entre outros, lançados em estilo propaganda cara como “a solução” para a melhoria da qualidade? E por fim, mas não menos importante, retomar o conceito ampliado de saúde, o que significa objetivamente articular as políticas de saúde com todas as áreas envolvidas, com as condições de vida e trabalho.
IHU On-Line - Quais as implicações da PEC 55 para o SUS?
Lígia Bahia - As consequências da PEC 55 serão desastrosas, agravará a recessão, na medida em que imporá gastos adicionais com saúde aos já minguados orçamentos familiares. O SUS já subfinanciado oferecerá ações de saúde ainda mais racionadas e de pior qualidade e não haverá para onde correr porque os planos privados tampouco garantem coberturas abrangentes. Adicionalmente é importante lembrar que a PEC 55 penaliza também políticas públicas essenciais para a saúde como as de transporte, moradia, saneamento entre outras. Como todos sabemos, a principal política social é a garantia de trabalho digno, que foi completamente desfigurada com a aprovação da reforma trabalhista e será ainda mais destruída se for aprovada uma reforma da previdência como a que está tramitando no Congresso Nacional. Além do desemprego, das ameaças ao emprego minimamente protegido e redução da renda, ainda haverá cortes em áreas estratégicas para a saúde como ciência e tecnologia.
IHU On-Line - Nas manifestações de 2013, uma das pautas presentes foi justamente a saúde. Qual sua leitura dessas manifestações e dessa reivindicação em particular?
Lígia Bahia - Estive em várias manifestações em 2013 no Rio de Janeiro e me parece que havia, entre muitas expressões de posicionamento político e identitário, a predominância das reivindicações por políticas públicas, especialmente saúde e educação universais. A pauta anticorrupção estava plenamente explicitada, mas não era a única a galvanizar a mobilização dos milhares de jovens que foram às ruas e ocuparam escolas, havia uma pressão pela priorização de políticas sociais cidadãs. Me parece que essa pressão difusa foi muito mal interpretada pelo governo Dilma. A resposta para as demandas por um SUS de qualidade foi a edição de mais um programa vertical, o “Mais Médicos”, que, embora portador de méritos inquestionáveis, tem caráter focalizado e verticalizado.
É ingênuo supor que mais recursos para a saúde é uma bandeira apenas da esquerda. O setor privado também reivindica mais recursos públicos, mas para finalidades nem sempre sinérgicas com a construção de um sistema universal
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Lígia Bahia - Não poderíamos deixar de comentar que o Ministro Ricardo Barros declarou explicitamente sua discordância com o SUS universal. Sua proposta de planos baratos, posteriormente alcunhados por algum marqueteiro ou comunicólogo de acessíveis não tem nenhuma sustentação técnica. É diretamente extraída da errônea ideologia pró-mercado, da acepção errônea da competição como passe de mágica para resolver tudo.
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