Os acontecimentos políticos recentes têm deixado os brasileiros cada vez menos esperançosos em relação ao sistema atual. Para tentar entender os caminhos da democracia em tempos de incerteza, a revista Galileu conversou com o filósofo Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP.
A entrevista é de Nathan Fernandes, publicada pela Revista Galileu, 18-05-2017.
Eis a entrevista.
Depois da revelação de que o presidente Michel Temer deu aval para comprar o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha, acha que existe um sentimento de arrependimento generalizado da parte de quem apoiou seu governo?
Acho muito impressionante ter havido quem o apoiasse, porque nada disso é surpresa para quem conhece a história desse grupo político. Essas práticas são corriqueiras. É um governo que, em um ano, teve sete ministros afastados e oito indiciados na Lava Jato. Isso demonstrou muito claramente a ingenuidade de certos atores que apostaram nesse governo como uma possibilidade. Ou mostrou como, de fato, eles estavam pouco ancorados em um desejo real de moralidade ética.
Me parece que esses grupos tiveram um uso estratégico do discurso da moralidade. Isto é, eu uso esse discurso contra você, mas aqueles que estão vinculados ao meu interesse passam ilesos. Acho que eles imaginaram que poderiam se salvar, mas uma hora isso não é mais possível.
Seria uma moralidade conveniente?
A característica fundamental dos meios morais é que eles são incondicionais, são universais. Ou seja, valem de fato para todos e não são feitos tendo em vista algum interesse específico. Acho que o Brasil precisa aprender um pouco isso para vermos quem está realmente interessado em moralidade.
Da mesma forma, acha que existe um sentimento de revanche de quem nunca apoiou o governo Temer?
Existem aí três posições: tem aqueles que utilizaram o discurso moral do impeachment como uma arma. Veja bem, estamos falando de um ocupante da presidência da república, Michel Temer, que já tinha sido pego no tráfico de influência, no caso do ministro Geddel. Foi o primeiro governante do tipo a ter sido pego de forma direta em um crime do tipo. Nunca vi isso acontecer. Normalmente, os presidentes tercerizam esse tipo de prática. Ele não. Então, tem esse grupo que não quis ver o que estava acontecendo.
Teve outro grupo que também foi desqualificando os julgamentos morais, dizendo que eles estavam sendo utilizados politicamente, o que é verdade, mas tendo em vista não levar em conta aquilo que o governo anterior tinha feito no que diz respeito à corrupção pública. Esse outro grupo também cometeu um erro simétrico, que é desqualificar a importância dos julgamento morais no interior do campo político.
E você teve um outro grupo que ficou meio sem poder falar, insistindo que esses julgamentos teriam que ser universalizados ao máximo. Espero que agora eles possam ter um pouco mais de voz.
Para os brasileiros, as piadas são sempre frequentes em momentos de crise. Isso não é nada novo, mas ganhou uma cara modernizada com os memes da internet. Como você avalia essa irreverência em relação a assuntos sérios?
É a ironia contra o poder, né? Você usa a ironia para mostrar o caráter completamente fascista do poder. Mas eu diria que a população brasileira não está fazendo só memes, ela está se mobilizando também. Manifestações estão acontecendo de maneira espontânea e devem continuar a acontecer. São mobilizações que ocorrem desde 2013 de maneira constante, tanto de um lado quanto de outro. Isso mostra que você tem forte mobilização, o que não se tem mais são atores políticos que consigam representar essas mobilizações, articulá-las num campo político eleitoral. Esse é o problema. Ninguém consegue traduzir isso em alternativas.
Isso abriria caminho para pessoas de fora da política, os outsiders?
Isso abre caminho para tudo: para reconstituir o campo dos atores políticos, para pensar o campo de outra forma. Eu gostaria que esse tipo de fato servisse para a sociedade brasileira se perguntar o que aconteceu com a experiência política do Brasil. Por que a gente chegou nesse ponto? Isso não acontece do nada. Chegamos num ponto de degradação da estrutura partidária, de degradação da estrutura institucional que demonstra que a experiência da democracia brasileira foi uma experiência fracassada. Em vez de ficar procurando quem vai se aproveitar disso, devemos começar a se perguntar como conseguimos fracassar na experiência democrática.
Através desse reconhecimento o melhor seria pensar em uma forma de melhorar a democracia ou pensar em uma alternativa a ela?
Poderíamos começar a pensar mais claramente, afinal de contas, o que é a experiência política no Brasil. Porque, para que uma coisa dessas ocorra, você tem uma degradação da classe política. Você tem uma classe que ganhou uma autonomia em relação à sociedade. Ela é intocável, é uma classe que está aí desde a ditadura militar.
Vivemos em um país que não conseguiu aprofundar a participação popular dentro do processo de política institucional. Conseguimos criar uma situação em que a estrutura política é completamente autista em relação à pressão popular. Você conseguiu criar uma “partidocracia”, que bloqueou a possibilidade da constituição.
Até em democracias liberais, o processo é mais ou menos o seguinte: se você perde as eleições, você sai. Isso é impossível no Brasil. Tem partidos, como o PPS, que é o partido do Roberto Freire há uns 30 anos. Você tem uma casta que nunca se renova.
No geral, sentimos que a sociedade está perdida, sem saber o que fazer. Esse tipo de debate é uma forma de aliviar ou resolver esse sentimento?
O primeiro passo para conseguir sair do problema é reconhecer a extensão dele. Não adianta querer diminuir o que está acontecendo. Só para ter uma ideia mais clara: desde 2004, quando começou a explodir o escândalo do mensalão, já estava muito evidente que se tratava de uma questão que tocava o sistema político como um todo. Não tocava somente um governo, era o sistema. Um governo montou em cima do modelo de financiamento de campanha do outro. Mas o que aconteceu desde então?
Esse debate está há treze anos paralisado, ele não ocorreu em nenhum momento. Não é só uma discussão sobre reforma política, não adianta discutir o tempo de mandato de senadores, de deputados, não é essa a questão. A questão é que a gente tem uma estrutura política que é impermeável ao processo de decisão popular. Você tem um sistema distorcido de representação. Você percebe que tem uma coisa oligárquica na democracia brasileira, é muito evidente. Isso, sim, são questões importantes para se debater.
Já é possível perceber que, depois de uma onda de governos conservadores, políticos como Trump e Temer enfrentam crises. Como um governo deste tipo consegue se sustentar nos tempos de hoje em que as informações circulam mais livremente?
Eles conseguem se sustentar a partir da gestão social do medo: a criação de inimigos, sejam imigrantes, terroristas, ou situações de exceção. Quando você impõe suas políticas econômicas, fica muito evidente que essas políticas conseguem criar um processo de concentração de renda e de empobrecimento social. Só que é um processo que é vendido como um mal necessário, como um remédio diante da crise. Mas perceba que a crise nunca passa. A economia mundial está em crise desde 2008, são quase dez anos e não há um horizonte de melhora. Ela virou permanente. Se transformou num modelo de governo.
Neste processo, sacrificam a população brasileira, mas, em nenhum momento, discutem, por exemplo, o caráter injusto do processo tributário de um país no qual a maior taxa de imposto de renda é de 27,5%. É uma taxa menor até do que em nações ricas. Isso num pais em que o sistema financeiro [os bancos] tem lucros recordes, enquanto a economia está em frangalhos. Eu queria que alguém me explicasse como isso é possível. Tem um problema aí. E a única forma de fazer com que ninguém perceba a distribuição desigual dos sacrifícios é colocando em pauta outros problemas, como os ligados à segurança pública. É assim que eles governam.
Mas podemos dizer que esse modo de governar está falhando?
Acho que sim, por uma razão muito simples: a pobreza fala mais alto. Você percebe que você está empobrecendo, que o discurso não modifica sua situação. Peguemos a situação francesa, por exemplo, em que os candidatos da extrema esquerda e da extrema direita conseguiram juntos 40% dos votos. Ou seja, esses extremos estão entendendo que a população se sente ameaçada do ponto de vista de sobrevivência econômica e cada um dá a sua resposta para isso. A tendência é que esses extremos cresçam mundialmente, tanto de um lado quanto de outro.
Da mesma forma, como é possível que a esquerda se sustente nos dias de hoje?
É interessante lembrar que essas pessoas que estão no governo agora, estão lá porque um governo dito de esquerda se colocou no horizonte da negociação política. Temer era vice da Dilma, Henrique Meirelles foi presidente do Banco Central no governo Lula, etc... Como você pode, de fato, se colocar como uma alternativa se o que está sendo colocado em questão é o fracasso do seu modo de governar? A esquerda acreditou ser uma espécie de ator fundamental em um processo de grande conciliação nacional, que agora mostra claramente seus resultados.
Essa política econômica que está sendo aplicada agora pelo Temer começou para valer no segundo governo Dilma. Ele não é muito diferente do que seria a continuidade do governo Dilma — talvez com um pouco menos de intensidade. Mas, do ponto de vista da sua lógica, isso não se modifica muito. Então, fica uma questão muito simples: se é para apresentar o mesmo, só que com um rosto mais humano, para que existe a esquerda? O melhor é nem ter.
Qual é a importância de usar as ferramentas que a filosofia nos oferece para refletir sobre o momento atual?
Estamos em um momento em que vários esgotamentos estão se demonstrando. O que está acontecendo no Brasil não é desligado do mundo. Nós temos uma tendência de achar que o Brasil é a maior ilha do mundo, esquecemos como seus processos são ressonâncias de processos globais. Esses processos globais estão mostrando que o que entendíamos por democracia não consegue mais criar adesão social. As pessoas não acreditam mais. E talvez elas tenham boas razões para isso.
Elas estão percebendo que, independente de quem governa, as políticas econômicas e sociais são mais ou menos as mesmas. Nessas horas, o importante é perguntar: afinal de contas, o que era exatamente a democracia? O que está por trás deste significante que mobilizou tantas lutas através dos séculos e atravessou mais de 2 mil anos como uma promessa de emancipação social, uma promessa de liberdade, de justiça? O que estava por trás disso? São questões que não devem ser feitas só por políticos, porque ela exige uma mobilização de toda uma história de reflexão que produziu alguns dos textos mais importantes da nossa tradição. É hora de voltar a esse debate.
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