Monday, January 16, 2017

DA SUBJETIVIDADE

DA SUBJETIVIDADE

A disputa em defesa de um novo projeto de sociedade, fundado em novos paradigmas, não pode olhar pelo retrovisor e buscar restaurar experiências anteriores.
por: Silvio Caccia Bava
Crédito da Imagem: Claudius
claudius
Solidariedade, acolhimento, pertencimento, respeito, dignidade, autonomia, liberdade são sentimentos que movem as pessoas. Ninguém se engaja em algo coletivo porque leu um livro e passou a entender melhor do assunto. A adesão passa pelo sentimento.
As formas de sociabilidade, a maneira como nos relacionamos com os outros, ou como os outros se relacionam conosco, vão conformando o espaço em que vivemos e nossas relações. Dialogamos com distintas formas de sociabilidade na família, no trabalho, no bairro em que moramos, na igreja, nas associações e sindicatos, na torcida de futebol, nos espaços que frequentamos. E essas relações vão moldando nossa vida em sociedade.
A sociedade repressiva, competitiva, individualista e violenta em que vivemos é uma proposta de sociabilidade. Essa proposta é uma construção, ela não está dada, e se justifica para manter e reproduzir a profunda desigualdade que beneficia uma pequena elite e impõe sobre a maioria um clima de vigilância, controle, pauperização e terror. O que é o extermínio dos jovens negros da periferia senão isso? O que é a discriminação que sofrem as mulheres senão isso?
Se todos os dias a televisão mostra uma sociedade em que o principal enredo é a perseguição pela polícia dos bandidos que roubam, matam e praticam toda sorte de violência, qual é a proposta de sociabilidade que está sendo apresentada? Não há outras notícias para divulgar?
Se faltam para as maiorias todos os serviços públicos essenciais para a vida nas cidades, se os salários não conseguem atender às necessidades básicas da família, se as jornadas de trabalho são extenuantes, se a repressão e o controle são onipresentes, o que o indivíduo e sua família podem esperar desta sociedade?
No momento atual que vivemos no Brasil, o medo ganhou da esperança. A hegemonia do pensamento neoliberal se impõe e as maiorias passam a aderir aos valores do capitalismo neoliberal e a criminalizar a pobreza. Meritocracia, empreendedorismo, competição, individualismo, falsas saídas individuais para uma crise que é social. Qual é o lugar do indivíduo nesta sociedade?
Houve um momento, nos anos 1970 e 1980, em que as pessoas encontraram abrigo nas comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. Aí, com a teologia da libertação, encontraram acolhimento, valorização, respeito, dignidade, pertencimento, vida em comunidade, esperança. E puderam se expressar coletivamente, mobilizadas em defesa da democracia, dos direitos sociais e políticos e de suas condições de vida.
Esse momento passou, e o que temos hoje é o crescimento das Igrejas neopentecostais, com sua teologia da prosperidade. E elas crescem porque também oferecem acolhimento, valorização, integração do indivíduo a uma comunidade. Nos bairros da periferia das grandes cidades vão conformando maiorias, vão difundindo seu pensamento conservador.
É o trabalho social junto à família, junto ao bairro, na vida comunitária, que vai construindo a hegemonia desse pensamento conservador. É claro que o apoio da televisão é fundamental – os meios de comunicação de massa tornaram-se essenciais numa sociedade complexa, metropolitana, onde se agrupam milhões de pessoas.
Mas há outros exemplos de trabalhos sociais junto aos indivíduos e na vida comunitária. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – o MST – também atua no território quando, por exemplo, convoca os trabalhadores que foram expulsos de suas terras, pessoas que estão isoladas, sem condições de trabalho, moradia e de sustento de si e da família. O trabalhador, antes isolado, se vê pertencendo a uma coletividade, a um movimento social de defesa de seus direitos, se vê acolhido, protegido, valorizado. O mesmo pode-se dizer dos movimentos sociais urbanos em defesa da moradia: eles cumprem esse papel de acolher, resgatar a dignidade das pessoas, oferecer-lhes uma alternativa, uma esperança.
Nossa sociedade é rica em formas organizativas populares. Os coletivos de jovens que se multiplicam nas periferias cumprem o papel que antes era atribuído às sociedades amigos de bairro, clubes de mães, associações e sindicatos. Eles operam no território e abraçam ideários autonomistas, anarquistas, recusam os partidos políticos e suas velhas doutrinas. E recusam o lugar que esta sociedade lhes atribui. As ocupações das escolas públicas por seus alunos são um exemplo disso.
A disputa em defesa de um novo projeto de sociedade, fundado em novos paradigmas, não pode olhar pelo retrovisor e buscar restaurar experiências anteriores. Ao reconhecer e valorizar o trabalho no território, ela deve incorporar os desafios dos novos tempos: a automação que substitui o emprego, o desafio da sustentabilidade ambiental, a necessidade da afirmação dos bens comuns, a refundação da democracia com ampla participação popular, novos meios de controle social sobre a máquina pública.

Silvio Cacia Bava, diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil

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