Tuesday, February 28, 2017

“É uma impropriedade inspirar a reforma brasileira em modelos de países igualitários”

“É uma impropriedade inspirar a reforma brasileira em modelos de países igualitários”

IN CAPARADAR
fagnani em entrevista fala sobre a reforma da Previdência
Em entrevista ao site da Anajustra, economista da Unicamp Eduardo Fagnani, afirma que regras atuais da Previdência são adequadas paras as condições de vida do brasileiro. “Manter as diferenciações atuais entre gêneros e entre rural e urbano e as regras vigentes para o BPC é questão de justiça social”
O documento ‘Previdência: reformar para excluir?‘ demonstra que direta e indiretamente (membros da família), a Previdência beneficia quase 100 milhões de brasileiros; e, a Seguridade beneficia mais de 140 milhões de brasileiros. Mais de 80% dos idosos estão protegidos. A Previdência fomenta a agricultura familiar, combate o êxodo rural, promove a economia regional e tem papel redistributivo nos municípios mais pobres. Ela reduz a desigualdade da renda do trabalho e a pobreza. Hoje apenas 0,5% dos idosos estão abaixo da linha de pobreza; com a PEC 287 mais de 50% estarão nessa condição.”
A reflexão acima é do professor do Instituto de Economia da Unicamp Eduardo Fagnani, feita em entrevista ao site da Associação Nacional dos Servidores da Justiça do Trabalho (Anajustra). Crítico da proposta de “reforma” da Previdência , ele destaca que é impossível comparar as condições do Brasil com a de outros países que serviriam de modelo para as alterações dispostas na PEC 287, já que as principais nações que servem de parâmetro estão em um grau de desenvolvimento econômico e social muito mais elevado.
“O Brasil é uma das sociedades mais desiguais do mundo. É uma impropriedade inspirar a reforma brasileira em modelos de países igualitários. Isso, porque há um abismo a separar o contexto histórico e as condições de vida daquelas nações e o contexto histórico e condições de vida vigentes no Brasil, sociedade com longo passado escravagista, de industrialização tardia e com incipiente experiência democrática; essas diferentes condições traduzem-se em profundas desigualdades socioeconômicas e demográficas”, argumenta.
Fagnani cita os índices de desigualdades regionais para justificar que não é possível igualar os desiguais. “Dos 5.565 municípios brasileiros, apenas 0,8% tem IDH semelhante ao das nações da OCDE (“Muito Alto”) e 34% tem IDH próximo da média nacional (‘Alto’). Os demais têm IDH ‘Médio’ (40% do total), semelhante ao verificado em Botsuana e Iraque; ‘Baixo’ (24,6%), padrão verificado no Congo e Nigéria; e ‘Muito Baixo’ (o, 5%), algo próximo do Senegal e Afeganistão”, exemplifica. “As regras atuais são adequadas para esse cenário de subdesenvolvimento. É justo tratar desigualmente os desiguais, como as mulheres e os trabalhadores rurais, onde se exige menor carência (idade e tempo de contribuição). É justo proteger os membros mais vulneráveis da sociedade (renda per-capita igual ou inferior a ¼ do salário mínimo), como faz o Benefício de Prestação Continuada (BPC).”
O economista contesta, mais uma vez, o conceito de “déficit” utilizado pelo governo para sustentar as mudanças propostas na PEC 287. “Se a Previdência ‘vai quebrar’; se precisamos ‘reformar hoje’ para ‘garantir o futuro’, por que o governo ampliou a DRU de 20 para 30%? Por que aprofunda a recessão que fragiliza as receitas da Seguridade Social (destruição de empregos, rebaixamento de salários e estagnação da atividade econômica)? Por que paga R$ 500 bilhões de juros pela manutenção de taxas sem precedentes na comparação internacional num cenário de queda do PIB de mais 7%, acumulada nos dois últimos anos? Porque concede renúncias fiscais de R$ 284 bilhões (mais de 50% incidentes sobre as receitas da Seguridade Social)? Por que não age contra a sonegação de impostos (R$ 500 bilhões)? Por que concede novo perdão de dívidas aos empresários inadimplentes com o fisco? O governo não estaria alimentando e intensificando a crise (da Previdência) que ele quer combater com a regressão de direitos?”, questiona.
Um outro mito contestado por Fagnani é o que atribui à previdência do servidor público parte da responsabilidade pelo suposto rombo previdenciário. “No caso da previdência dos servidores (RPPS) é preciso sublinhar em alto e bom som que a Reforma acabou de ser concluída. Desde fevereiro de 2013 passou a vigorar a Previdência Complementar dos Servidores Públicos, instituída pela Lei 12.618, de 30 de abril de 2012. O governo, por meio da Portaria 44, de 31 de janeiro de 2013, publicada no Diário Oficial da União de 04 de fevereiro de 2013, editada pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar, aprovou os planos de benefícios e o Convênio de Adesão da União à Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal.  Para os servidores que ingressam na carreira a partir de 2013 foi fixado o teto de aposentadoria de cerca de R$ 5 mil. Se quiser receber mais, tem de contribuir para a previdência complementar. Como usual, os efeitos financeiros dessa reforma serão sentidos daqui a 35 anos quando esses servidores poderão se aposentar. O ‘déficit’ atual (tradicionalmente coberto pelo Tesouro) reduzirá gradualmente com o esvaziamento do estoque de servidores que ingressaram antes de 2013.”
Confira a íntegra da entrevista aqui.
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Não existem mais as religiões de antigamente. Artigo de Giancarlo Bosetti

“A modernidade pluralista obriga a religião a não ser mais ‘naturalmente’ aquela do lugar e da família onde se nasceu, mas o resultado de uma escolha entre as muitas possíveis, incluindo a de não ter nenhuma fé, mas de se considerar agnóstico ou ateu.”

A opinião é do filósofo, jornalista e escritor italiano Giancarlo Bosetti, diretor da revista de cultura política Reset, cofundada com Norberto Bobbio, dentre outros. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 24-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O pluralismo não é um dos muitos elementos da modernidade secular. A convivência aproximada de diferentes visões de mundo, de diferentes escalas de valores na mesma sociedade, no mesmo vilarejo, no mesmo andar, no mesmo vídeo ou smartphone, na mesma família e também na mente do mesmo indivíduo em momentos diferentes do dia, tudo isso é a mudança que abalou a compacidade e a ordem “natural” da sociedade tradicional. É uma mudança que diz respeito tanto à consciência individual quanto à ordem das instituições. E propõe àqueles que creem um desafio duplo, o de conviver com realidades seculares e, ao mesmo tempo, o desafio diferente e ainda mais comprometedor de conviver com a multiplicação da oferta religiosa no mercado das fés. 

Peter L. Berger, aos 87 anos, volta à tona com um livro – I molti altari della modernità. Le religioni al tempo del pluralismo [Os muitos altares da modernidade. As religiões no tempo do pluralismo] (Ed. Emi) – que fala não só para a comunidade acadêmica da sociologia, mas também, com a vivacidade que lhe é própria, ao grande público.

O pluralismo produz uma situação em que a relativização torna-se uma experiência permanente, enquanto muitas perguntas da nossa sociedade – o que é um casamento? Em que você crê? Em que valores se deve educar as crianças? – saem da esfera das respostas automaticamente, aquelas que começam com “obviamente” e entrar na fileira daquelas às quais se deve acrescentar “talvez” e “até novo aviso”. 

Para se fazer entender, Berger gosta da história dos “três Cristos” de Ypsilanti (uma cidade de Michigan), onde se encontra um hospital psiquiátrico, no qual, a dois internados que acreditavam ser Jesus e que se davam bem, acrescentou-se um terceiro. Lá, foram postos juntos e, depois do choque, eles negociaram uma engenhosa teologia segundo a qual todos os três podiam manter o título de Cristo.

Longe de considerar blasfema a comparação entre a religião e a loucura, Berger utiliza esse exemplo clássico, estudado por Milton Rokeach, como um paradigma do “compromisso cognitivo” ao qual o fiel de qualquer confissão deve se preparar, diante do desafio dos “outros Cristos”.

Um tipo de contaminação que, evidentemente, relativiza qualquer absoluto e que se torna exercício permanente para qualquer forte convicção, não só religiosa. Os fundamentalistas, que são os portadores de um projeto de eliminação total da dúvida, isentam-se dela, mas podem fazer isso com a condição de suprimir o contato com as “outras” versões do mundo com ditaduras de tipo norte-coreano em escala estatal, ou em um segmento da sociedade, em uma subcultura, em uma seita. A censura das dissonâncias cognitivas ocorre mediante atos de autoridade (fatwa, acusações de blasfêmia, prisões, chicotadas), mas também com operações mentais que atuam censurando informações contraditórias, assim como os fumantes simplesmente omitem ler artigos sobre os dano do fumo e de “ver” os textos aterrorizantes nos maços de cigarro.

O pluralismo de qualquer tipo era incompatível com a autocompreensão católica pré-moderna; o Sílabo de Pio IX é um documento exemplar disso. A Igreja possuía a plenitude da verdade e, em princípio, os “erros” (as outras fés) não tinham direitos. O “erro LXXVII” sancionava a proibição da tese de que, “nesta nossa idade, não convém mais que a religião católica se considere como a única religião do Estado”. A própria liberdade religiosa é teologicamente problemática para a Igreja Romana, assim como para todas as confissões, começando pelo Islã. Apesar do Vaticano II, o documento Dominus Iesus do ano 2000, do cardeal Ratzinger, ainda representava uma tentativa de resistir ao “compromisso cognitivo”; em outras palavras, condenava as teologias pluralistas.

Berger, nascido em Viena, assim como muitos grandes intelectuais da diáspora austríaca (de Schumpeter a Popper), ligou o seu nome, desde 1966, à construção social da realidade, um dos textos mais influentes da sociologia do século XX, que ele escreveu junto com Thomas Luckman e que basta para lhe atribuir um lugar de grande destaque na história das ciências humanas. 

A tese é de que a linguagem, as instituições, os papéis sociais adquirem, na vida cotidiana, na qual crescemos e somos educados, uma objetividade que encontra uma confirmação na mente. Em outras palavras, nós aceitamos grande parte daquilo que encontramos como “nomos”, como um dado que damos por descontado: não precisamos reinventar ou redescobrir o sistema ferroviário todas as vezes em que tomamos um trem. 

A objetividade tem uma legitimidade estável própria, ela o tem no mundo que nos rodeia e também, por assim dizer, nas prateleiras da nossa mente, mas, atenção, apenas “até prova em contrário”: isto é, até que um serviço para de funcionar, quando os eventos forçam a reexaminar o “nomos”. Nesse ponto, tiramos a coisa das prateleiras das coisas óbvias e a deslocamos para a prateleira dos problemas a serem resolvidos.

É um processo que Berger define como “desinstitucionalização” e é tão desgastante quanto a comodidade de encontrar o problema resolvido na rotina. A modernidade pluralista também obriga a religião a passar por aqui, ao não ser mais “naturalmente” aquela do lugar e da família onde se nasceu, mas o resultado de uma escolha entre as muitas possíveis, incluindo a de não ter nenhuma fé, mas de se considerar agnóstico ou ateu, que teve os seus maiores sucessos na Europa.

Nas últimas décadas, a análise de Berger se voltou para a religião por vários motivos. O primeiro é que ele, assim como muitos outros sociólogos, inspirados em Max Weber, estava convencido, até perto do fim do século passado, da tese da secularização e “desencantamento” do mundo: o declínio da religião e das crenças na transcendência. E isso mesmo que ele, luterano, nunca tivesse dúvidas sobre a coexistência da modernidade com as crenças no sobrenatural: já era de 1969 o livro “Rumor de anjos”.

Mas, em 1999, com “A dessecularização do mundo”, a clássica tese weberiana lhe parece empiricamente insustentável. Com algumas exceções, que são a Europa e a comunidade intelectual internacional, o mundo é religioso como sempre.

Tudo isso para Berger não está, por si só, em contraste com a separação das instituições políticas das religiosas. Ao contrário, a dessecularização (fenômeno social, não jurídico) é perfeitamente compatível com aquela que nós chamamos de laicidade do Estado e que, em inglês, soa como “secularismo institucional”. É compatível mesmo que isso não signifique que a laicidade se realize na terra, como bem se vê nos países islâmicos e não só.

E, a propósito dessa separação ou “diferenciação”, Berger ressalta, na sua visão original, como ela deve passar não só pela Igreja, pelas mesquitas, pelo clero e pela política, mas também pela consciência, ou seja, deve se afirmar como “nomos”. Não basta traduzir em lei o equivalente da primeira emenda da Constituição estadunidense. Deve haver, deve se formar uma primeira emenda em miniatura na mente dos cidadãos individuais, razão pela qual nenhuma pessoa terá a ideia de colocar no governo um bispo ou um mulá.

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Um só homem no comando, diante do aplauso da multidão

Popularidade e solidão são os dois lados do atual pontificado, contraditório apenas na aparência.

A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Settimo Cielo, 25-02-2017. A tradução é de André Langer.

Uma enésima prova da popularidade do Papa Francisco foi sua visita, no dia 17 de fevereiro, à Universidade Roma Tre, diante da exultação de professores e estudantes, uma espetacular revanche à proibição que impediu, em 2008, que Bento XVI entrasse e falasse na outra universidade de Roma, a mais notável e antiga, a Sapienza [Sabedoria], por ser culpado de querer introduzir Deus e a fé no templo inviolável da deusa Razão.

Na Universidade Roma Tre Francisco falou, e muito, em um discurso improvisado, interrompido por dezenas de aplausos. Falou de diálogo e de multiculturalidade, de migrações e do desemprego juvenil, com tudo o que, segundo ele, deriva de tudo isso: “Dizem que as verdadeiras estatísticas dos suicídios juvenis não são publicadas; publica-se alguma coisa, mas não as verdadeiras”.

Mas, em 45 minutos de discurso sequer uma única vez pronunciou as palavras Deus, Jesus, Igreja, fé e cristianismo.

É a mesma neutralidade que Francisco adota quando expõe aos “movimentos populares” sua visão política altermundista e anti-globalização. Porque é no povo – “uma categoria mística”, assim o define – que se vê a gênese do resgate. E é ao povo, cristão ou não, ao qual o Papa apela quando denuncia os desmandos dos mercados mundiais, da economia que mata, dos poderes anônimos que se alimentam da guerra, assim como também das antiquadas, esclerosadas e impiedosas instituições eclesiásticas.

Mas, sua popularidade, de fato, é a de um Papa que se isola das instituições para poder criticá-las melhor, diante da aclamação do povo. Não é por acaso que elogie o populismo latino-americano, como fez em uma recente entrevista ao El País; ele, que na sua juventude era peronista.

No Vaticano, aloja-se na Casa Santa Marta, que é um hotel, precisamente para afastar-se o máximo possível dessa cúria que nunca amou e que tem muito pouca vontade de reformar estruturalmente.

Ele prefere escolher pessoalmente os seus colaboradores mais próximos. Trouxe um da Universidade Católica de Buenos AiresVíctor Manuel Fernández, seu teólogo predileto. Escolheu outro da revista La Civiltà Cattolica: o jesuíta Antonio Spadaro. Para não falar dos monsenhores Konrad KrajewskiFabián Pedacchio LeanizBattista Ricca e Marcelo Sánchez Sorondo: o primeiro é o seu “esmoleiro” e o segundo seu secretário pessoal.

Cada um, no entanto, ocupa-se de uma pequena parte do bloco de atividades do Papa e nenhum deles conhece o conjunto das mesmas. Jorge Mario Bergoglio sempre teve sua própria agenda pessoal, que só ele monta e consulta.

Quando funciona, a cúria não obstaculiza os Papas, ajuda-os. Ela modera os poderes absolutos com um “check and balance” análogo ao das democracias modernas.

Congregação para a Doutrina da Fé, em particular, deveria garantir que todos os atos do magistério sejam perfeitos, previamente controlados palavra por palavra. Era o que acontecia com João Paulo II e o então prefeito da CongregaçãoJoseph Ratzinger.

Mas, com Francisco este equilíbrio desapareceu.

É cada vez mais frequente que o atual Papa não pronuncie os discursos escritos e prefira improvisar. E quando tem que escrever uma encíclica ou uma exortação também age por conta própria, com a ajuda de seus escritores fantasmas Fernández e Spadaro, montando a seu gosto os materiais que lhe colocam à disposição.

Em seguida, envia o rascunho, como estabelece o costume, à Congregação para a Doutrina da Fé e esta o manda de volta com dezenas, e inclusive centenas, de anotações que ele, sistematicamente, ignora.

Isso aconteceu com a Evangelii Gaudium, o documento programático do Pontificado, e com a Amoris Laetitia, a exortação sobre o matrimônio e o divórcio que está dividindo a Igreja por causa das interpretações contrárias que suscitou.

Para descobrir, depois, que parágrafos inteiros da Amoris Laetitia tinham sido copiados de artigos escritos 10 ou 20 anos antes por Fernández, em quem Francisco continua a depositar a sua confiança.

Muito pelo contrário. Fernández é o crítico mais feroz do cardeal Gerhard L. Müller, o já supérfluo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a quem imputa a inaudita pretensão de querer “controlar” a teologia do Papa.

O dia em que o Papa foi para a Universidade Roma Tre e não falou de Deus

No caso desse debate sobre a "catolicidade" do Papa o que mais impressiona é a irrelevância que, para muitos católicos, mesmo cultos, assumiram os conceitos de misericórdia, de diálogo, de acolhimento, sempre recorrentes em seus discursos. 
Misericórdia, não-violência, paz, diálogo, unidade, acolhimento do estrangeiro, cuidado com os menos afortunados, não são valores evangélicos ontologicamente basilares da verdade cristã? No entanto, parece que hoje, para alguns católicos, se o Papa Francisco fala sobre eles e os encoraja em um ambiente laico, como uma universidade estatal, como aconteceu na sexta-feira 17 de fevereiro na Universidade de Roma Tre, está traindo o seu mandato.
A reportagem é de Fabio Colagrande, publicada por Vino Nuovo, 21-02-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Cabe perguntar quais seriam os temas que o Papa deveria abordar de acordo com esses críticos. Talvez voltar ao tema do diálogo entre fé e razão, já tão magistralmente abordado por Bento XVI em várias ocasiões? O tema que, em 2008, o próprio Ratzinger teria aprofundado em uma universidade laica caso lhe tivessem permitido entrar na Universidade La Sapienza de Roma? Mas presumir que todo Pontífice seja igual ao seu antecessor, parece realmente, com todo o respeito, um raciocínio mais afeito a um fã do que a um fiel consciente da riqueza dos carismas cristãos. E, acima de tudo, defender que Bento XVI não foi autorizado a falar em La Sapienza, porque o seu magistério era incomodo para a cultura secular, como vários fizeram na ocasião, é ignorar que o mundo político, econômico e civil está, hoje, em forte contraste com os valores sobre os quais falou Francisco na Universidade romana. Basta considerar a fraca repercussão midiática que tiveram suas palavras.
Nove anos atrás, Ratzinger, na Aula Magna da Universidade La Sapienza, tinha se proposto a realizar uma palestra refinada e complexa, de grande valor teológico e cultural. O texto foi publicado, apesar de Bento ter desistido da visita para não exacerbar os ânimos. Hoje, em um contexto universitário semelhante, Bergoglio escolheu o caminho do diálogo informal com os alunos. Dois estilos diferentes para dois homens de Igreja diferentes, que no fundo complementam-se e enriquecem-se mutuamente, mas que compartilham a mesma preocupação de anunciar o Evangelho em um ambiente laico. Hoje, em um contexto eclesial, cultural e social muito diferente daquele de 2008, o paralelismo entre os dois episódios - de um lado a contestação e do outro o acolhimento - é certamente interessante. Mas talvez mereça um pouquinho mais de honestidade intelectual.
Deve ser enfatizado que a oposição a Bento XVI por um grupo de docentes de La Sapienza foi apenas ideológica e construída sobre uma imagem fictícia, jornalística, do pontífice alemão, totalmente destoante da realidade de um Papa acadêmico, extremamente acostumado a dialogar com o mundo secular e avesso às tentações do proselitismo. E, ao mesmo tempo, deve ser lembrado que o Papa Francisco - que é criticado por não ter pronunciado a palavra Deus em Roma Três para agradar os alunos laicos - recentemente terminou de celebrar, por toda parte, um extraordinário Ano Santo, consagrado não à sociologia, à economia ou à migração, mas justamente à Misericórdia de Deus. Nem um único discurso, mas quase 12 meses em que o tema do amor de Deus pela humanidade foi o foco de vários eventos religiosos, culturais e sociais. Entre os sinais mais fortes, justamente a ‘sexta-feira da misericórdia’ em que o próprio Francisco realizou gestos simples de proximidade, solidariedade e consolo em diferentes contextos, não estritamente religiosos, nos confrontos de pessoas que sofrem e de quem se empenha em ajudá-las. Felizmente, ninguém aqui teve a coragem de acusá-lo de não ter feito isso explicitamente "em nome de Cristo".
No caso desse debate a respeito da "catolicidade" do Papa o que mais impressiona é a irrelevância que, para muitos católicos, mesmo cultos, assumiram esses conceitos de misericórdia, de diálogo, de acolhimento, sempre recorrentes em seus discursos. Eles tornaram-se, já há algum tempo, sinônimos de uma ‘benevolência neutra’, açucarada e despolitizada. Palavras com as quais o Papa Bergoglio proporia, por esse enfoque crítico, um cristianismo brando, mais "amigável" e até mesmo relativista.
Mas aqui está o ponto: temos certeza que propor os valores contracorrentes do Evangelho, ou seja, propor a Verdade signifique propor um cristianismo brando? Precisamos nos perguntar em que nos transformamos, nós católicos, se não reconhecemos mais a força antimundana, que não pretende ser nem agradável e nem popular, desses conceitos.
Basta olhar como foram recebidos os avisos de Bergoglio sobre a imigração, o liberalismo, o desarmamento, o meio ambiente: ignorados, quando não banalizados e ridicularizados. E não parece uma coincidência. São apelos que exigem encarnar essas palavras evangélicas, para que não fiquem apenas no papel. Surge a terrível dúvida de que, para nós, hoje, anunciar Cristo reduza-se a proferir palavras religiosas em contextos mundanos, sem necessidade de testemunhar isso na carne. No entanto, de acordo com o Evangelho, deveríamos ser reconhecidos especialmente pela forma como vivemos, pelos valores que defendemos e não pelo número de vezes que pronunciamos a palavra Deus em uma frase.

Monday, February 27, 2017

Capitalismo, dinheiro e excrementos

Capitalismo, dinheiro e excrementos

 
 
 
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Como Giorgio Agamben e Walter Benjamin releram as observações cristãs sobre o dinheiro. Por que a psicanálise o associa à matéria fecal, à “insuficiência de mim” e à guerra de todos contra todos
Por Mauro Lopes, editor do blog Caminho pra Casa Imagem: Mark Wagner
O filósofo italiano Giorgio Agamben, um dos relevantes protagonistas do pensamento crítico na virada do século XX para o XXI disse numa entrevista em 2012 que “Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro” (aqui). A afirmação de Agamben inspirou-se em outro filósofo, este um protagonista da primeira metade do século XX, um pensador fora da curva, Walter Benjamin. Em seu curto e denso “O Capitalismo como Religião”, de 1921 (aqui), Benjamin escreveu que o capitalismo é em si mesmo a religião mais implacável que já existiu, e promove um culto ininterrupto ao Dinheiro, “sem trégua nem piedade”, uma religião que não visa a reforma da pessoa, “mas seu o seu esfacelamento”.[1]
O filósofo alemão sugeriu uma comparação entre as imagens dos santos das religiões e as cédulas de dinheiro de diversos países –ele não imaginava, à época, que este Deus-dinheiro estaria diretamente louvado nas cédulas nos EUA (In God we Trust, em Deus Confiamos) e, desde 1980, no Brasil, onde lê-se em todas as notas a frase de adoração à moeda corrente: Deus seja louvado.
Ambos foram influenciados por um dito de Jesus, que está no centro da liturgia católica do 8º Domingo do Tempo Comum (26), às portas do período quaresmal que antecede a Semana Santa e a Páscoa: “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro.” O texto proclamado é do Evangelho de Mateus (Mt 6,24-34). A oposição entre Deus e o dinheiro é um tema central ao longo da história e, para Jesus, a relação de cada qual com o dinheiro é definidora de sua relação com as outras pessoas e a vida.
TEXTO-MEIO
Como essa questão aparece na vida das pessoas? A psicanálise procurou investigar a relação entre o ser humano e o dinheiro e chegou a conclusões que podem soar surpreendentes e inacreditáveis num primeiro momento. Como apontou o sacerdote jesuíta e teólogo espanhol Carlos Domingues Morano, dinheiro é um assunto crucial, apesar de muitas vezes escamoteado -como o sexo. Na verdade, o tema nunca é “só dinheiro”. As relações entre os homens/mulheres com o dinheiro comportam dimensões nem sempre lógicas, que extrapolam o discurso racional mais ou menos organizado –é sempre “algo mais” que dinheiro.[2] Na relação das pessoas com o dinheiro, revelou-nos a psicanálise, “está também implicada uma ‘questão de amor’; dito em termos mais freudianos, uma questão de ordem libidinal, inconsciente e com raízes na infância. Isso nos permite compreender, entre outras coisas, porque, assim como ocorre com a sexualidade, o dinheiro provoca tantas reações de dissimulação, falso pudor e hipocrisia.”[3]
Há uma questão oculta que Freud trouxe à tona –e causou enorme mal-estar: a intimidade entre nossa relação o dinheiro e a fase da libido anal, relacionando-o com os excrementos.
O valor nodal do dinheiro para os adultos é, descobriu Freud, análogo ao altíssimo valor que os excrementos possuem para as crianças. Outro psicanalista, Sandor Ferenczi, do grupo de Freud, demonstrou o caminho passo a passo pelo qual a criança efetua a sublimação do conteúdo anal até chegar, finalmente, à transmutação simbólica em dinheiro. “A matéria fecal vai passando por uma série de substituições, nas quais vai progressivamente distorcendo a  primitiva satisfação auto erótica relacionada com a defecação: o barro, a areia, a pedra, o jogo com bolinhas de gude e botões todos objetos que proporcionam tanta satisfação à criança que facilitam a substituição do fétido, duro, mole pelo inodoro, seco duro.”[4] O dinheiro ingressa nessa cadeia de sublimações por um caminho complexo até desvincular-se de toda a aparência com sua “fonte original” e permitir o surgimento da máxima de que o dinheiro não fede (pecunia non olet).
A relação entre as fezes e o dinheiro pode parecer um absurdo num primeiro momento. Mas, se observamos com mente aberta, veremos que são abundantes e recorrentes as imagens e símbolos que desnudaram ao longo da história relação que os homens estabelecem entre as fezes e o ouro ou o dinheiro. Uma delas é a figura do “cagador de ducados” que está representada nos portais de bancos alemães. São inúmeras as expressões populares que  consagram esta associação sem que nos demos conta disso. Quando uma pessoa tem muito dinheiro dizemos que está “podre de rica”; se o dinheiro tem origem suspeita, falamos em “dinheiro sujo” e, ao contrário, se a pessoa está sem dinheiro, dizemos que está “limpa”; ou que está “apertada”.
Esta relação foi capturada mais de mil anos antes de Freud numa intuição genial do bispo Basílio de Cesareia, em meados do século IV. São Basílio decretou: o dinheiro é o cocô do diabo. A expressão foi deixada de lado pelos cristãos séculos a fio até que São Francisco, no século XII, mencionou Basílio; agora, ela foi novamente posta á luz pelo Papa Francisco em fevereiro de 2015, apesar de ele preferir a palavra “esterco”, talvez menos crua. Clique e veja o vídeo em que o Papa menciona a expressão de Basílio (Francisco trata do assunto entre 1min50 e 2min30).
Como se dá esta articulação dinheiro-fezes? A psicanálise explorou as relações entre as dinâmicas de possessão, características da fase anal, e de propriedade, fundante da civilização ocidental e especialmente do capitalismo.
Quando uma criança perde suas fezes sente a dor de ter deixado escapar algo que lhe era tão essencial que estava dentro  de si, era parte de seu corpo, mas que não mais consegue por de volta; isto é a possessão. A propriedade refere-se a objetos externos, mas que deveriam me pertencer, “coisas que de fato estão fora, mas simbolicamente estão dentro”. São objetos revestidos de “qualidade do eu”. Para muitas pessoas, talvez a imensa maioria no capitalismo, o dinheiro reveste-se desta qualidade do eu. Isso origina processos intensos de defesa e projeção. Perder  dinheiro para essas pessoas é muito mais que perda de algo externo, exterior, “mas sim de algo que foi previamente in-corporado”, ou seja, algo que se tornou parte de mim. A posse e controle do dinheiro têm o mesmo papel que o controle da atividade defecatória para a  criança diante do mundo exterior. Uma “relação regressiva com o dinheiro ou com a propriedade de objetos” fica impregnada pela dimensão possessiva (retentiva) da fase anal.[5]
O resultado é avassalador: o amor ao dinheiro, quando extravasa suas funções de adaptação à realidade, acaba expressando uma dimensão infantil da afetividade, o que implica uma dominância do narcisismo, um desenvolvimento truncado da afetividade (da relação com o outro, da capacidade de amar e/ou odiar) e do autorrespeito e respeito pelo outro.[6] Esta infantilização narcísica dos ricos ou, dos “novos ricos”, numa expressão recorrentes de Basílio, é facilmente verificável na convivência com eles e espalha-se em ondas pela indústria do entretenimento, especialmente o cinema feito para o grande público.
Imagem: Mark Wagner
Imagem: Mark Wagner
Ter e reter dinheiro são tentativas continuadas de encobrir as carências internas e conquistar segurança. Lembro-me de uma conversa com um consultor de  investimentos sobre um casal, cliente do banco em que ele trabalhava. Eles haviam feito uma série de contas em planilhas (como se a vida pudesse ser contida em planilhas Excel) e concluído que quando tivessem R$ 20 milhões em aplicações financeiras (excluídos bens como casa e carros) poderiam finalmente “desestressar” e olhar com tranquilidade para a vida. Esta posição remetia-os a frequentes crises de insegurança e angústia extrema, pois como escreveu Erich Fromm, “se sou o que tenho e o que tenho se perde, então quem sou?”[7]
Ou, expressando Fromm de maneira complementar: se sou o que tenho e nunca tenho o que considero suficiente, sempre haverá uma “insuficiência de mim” que precisa ser coberta e recoberta com necessidade de acúmulo cada vez maior enquanto o fosso da insegurança aprofunda-se, na medida em que a possibilidade apavorante da perda de dinheiro para outro é um fantasma permanente. É uma vida em estado de guerra permanente para defender o que é “meu” contra aquele que deseja apropriar-se, podendo ser desde um competidor, políticas públicas de um governo que deixam de favorecer o crescimento de minha fortuna, os pobres que se mobilizam para tomar dinheiro do governo que a mim pertence “de direito”. Pois o capitalismo garante: tenho direito a possuir tudo e tudo reter para mim, sem limites.
Sim, o capitalismo é, numa linguagem popular, o encontro da fome com a vontade de comer. Nele, esta condição pulsional presente na vida de cada ser humano é organizada como um sistema social que alcançou, na expressão de Benjamin, a dimensão suprema de um culto organizado e sistemático.  O psicanalista austríaco Otto Fenichel demonstrou como, antes de tudo, a função real do dinheiro numa sociedade determina o alcance e a intensidade das tendências pulsionais de retenção.  Tais processos acontecem em sociedades determinadas com estruturas econômicas, sociais e culturais determinadas, com uma Igreja determinada e, portanto, alcançam dimensões que, levando em conta as escolhas e histórias individuais, situam-nas num contexto geográfico-temporal preciso.
Portanto, a “mobilização para a guerra” que garanta a cada indivíduo o seu “direito supremo à retenção” é o mantra do capitalismo e “mobiliza a hostilidade como tendência a despojar o outro, de modo a fazer com que o desejo de fraudar, explorar e frustrar os outros acabe se convertendo numa autêntica norma cultural.”[8] Essa hostilidade torna-se a base relacional que se reproduz em todas as relações, mesmo as mais íntimas: assim, por exemplo, o encontro com o outro ou a outra para a vida amorosa e o casamento converte-se numa série de cálculos e contratos e precauções para a possibilidade futura de separação e rompimento.
A dissonância absoluta entre o amor pelo dinheiro e o amor a Deus proclamada por Jesus e como ela atinge dimensões dramáticas no interior de um sistema que no qual o dinheiro ocupa o lugar de Deus. Trata-se de uma incompatibilidade radical, apesar de todos os esforços dos rigoristas e integristas católicos, dos neopentecostais e outros cristãos para amenizar as palavras de Jesus e relativizá-las: “Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão e a misericórdia e ao mesmo tempo amar o dinheiro, isto é, amar o tomar tudo para si, a acumulação que é a base de toda a injustiça e de todo o desamor: fome, guerra, exploração, morte etc.”[9]
É o que tem feito seguidamente o Papa Francisco. Uma das marcas de seu pontificado é a denúncia da submissão ao Deus-dinheiro.  A primeira vez em que explicitou sua postura foi dois meses depois de sua posse. Em maio de 2013, ele afirmou, num discurso que indicou a revolução nascente no Vaticano, que no capitalismo “criamos novos ídolos; a adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e impiedosa imagem no fetichismo do dinheiro e na ditadura da economia sem rosto nem propósito verdadeiramente humanos” e que a base deste culto ao Deus-dinheiro está “na relação que temos com o dinheiro, em aceitar o seu domínio sobre nós e sobre as nossas sociedades”. Três anos depois, numa entrevista, em agosto de 2016, o Papa acentuou: “No centro da economia mundial está o deus Dinheiro, e não a pessoa, o homem e a mulher”. Na mensagem para a Quaresma de 2017, período que se abre com a Quarta-feira de Cinzas Francisco foi taxativo: “A ganância do dinheiro é a raiz de todos os males”.
Se para os cristãos, o amor não é apenas um preceito, mas é o conteúdo sobre o qual o cristianismo está edificado, se é a “pedra angular”, o apego ao dinheiro, fonte de desamor, não se restringe a um problema ético, mas é um ataque direto à fé. A fidelidade a Deus fica interditada para aquele que não realiza a escolha por Ele e, por caminhos explícitos ou cheios de sombras e ilusões e autoengano, opta pela  adoração à coisa: o dinheiro.
Por isso as religiões estão profundamente abaladas em seu fundamento na contemporaneidade e, muitas delas, ou tendências poderosas em seu interior, como no caso da Igreja Católica, realizam explicita ou implicitamente operações de substituição de um culto pelo outro, colocando o dinheiro no lugar de Deus. Tornam-se promotoras da tendência pulsional identificada por Jesus e estudada à profundidade pela psicanálise e igrejas-sucursais da “religião oficial”: o capitalismo.
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[1] Benjamin, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo Editorial, 2013, p. 22
[2] Morano, Carlos Dominguez. Crer depois de Freud. 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2003, p.233
[3] Ibid. Morano, 2003, p. 234
[4] Ibid. Morano, 2003, p. 236
[5] Ibid. Morano, 2003, p. 239
[6] Ibid. Morano, 2003, p. 240
[7] In Morano, 2003, op cit., p. 240
[8] Ibid. Morano, 2003, p. 243
[9] Ibid. Morano, 2003, p. 246

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