Tuesday, March 31, 2015

“Assistimos ao começo do fim. O PT tende a virar um arremedo do PMDB”. Entrevista com Frei Betto

“Assistimos ao começo do fim. O PT tende a virar um arremedo do PMDB”. Entrevista com Frei Betto

Um mês depois de ser reeleita, a presidente Dilma Rousseff recebeu Frei Betto (foto) e o Grupo Emaús, da Teologia da Libertação, no Palácio do Planalto. Durante uma hora e vinte minutos, também na presença do chefe da Casa Civil,Aloizio Mercadante, ouviu uma série de críticas e sugestões para que o governo continuasse “implementando o projeto que tanto beneficia a sociedade brasileira, principalmente os mais vulneráveis”.
 
Fonte: http://goo.gl/OYzcf0 
A conversa, de acordo com ele, foi ótima. “Só que, de repente, vem o Joaquim Levy com um ajuste fiscal penalizando, sobretudo, os mais pobres. Quem assistiu ao filme Adeus, Lenin! pode fazer o seguinte paralelo: se um cidadão brasileiro, disposto a votar na reeleição da Dilma, tivesse entrado em agonia no início de agosto de 2014 e despertasse agora, neste mês de março, no hospital e visse o noticiário, certamente estaria convencido de que o Aécio havia vencido a eleição”.
Frei Betto – que, com as comunidades eclesiais de base, ajudou a fundar o PT e, como assessor especial do ex-presidente Lula, coordenou o programa Fome Zero – diz que o que falta ao governo, desde 2003, é “planejamento estratégico”. Segundo ele, que é amigo do ex-presidente Lula há mais de 30 anos e conhece a presidente Dilma desde a infância – “somos da mesma rua em Belo Horizonte” –, em doze anos de governo, oPT não conseguiu tirar do papel nenhuma reforma de estrutura prometida em seus documentos originais e, ao chegar ao governo, “trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder, escanteou os movimentos sociais” e ficou “refém desseCongresso, dependendo de alianças espúrias”.
“Agora, seu grande aliado, o PMDB, se rebela e cria – com o perdão da expressão – uma cunha renana para asfixiar o Poder Executivo”.
Qual a saída? “O PT ser fiel às suas origens. Buscar a governabilidade pelo estreitamento de seus vínculos com os movimentos sociais. Fora disso, tenho a impressão de que estamos começando a assistir ao começo do fim. Pode até perdurar, mas o PT tende a virar um arremedo do PMDB”, sentencia ele, que é autor de 60 livros, entre eles A Mosca Azul (“uma reflexão sobre a história do poder e a história doPT no poder”) e Calendário do Poder (“um diário do Planalto”), ambos editados pela Rocco.
A seguir, os principais trechos da conversa com Frei Betto, que recebeu a coluna no Convento Santo Alberto Magno, no bairro de Perdizes, onde mora.
A entrevista é de Thais Arbex, publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, 30-03-2015.
Eis a entrevista.
Como o senhor avalia o atual momento do País?
O Brasil está vivendo um momento de crise política e econômica. Prevejo quatro anos de governo Dilma com muita turbulência, manifestações, greves, impasses. E me pergunto se, em 2018, o PMDB apoiará o candidato do PT. Como bom mineiro, desconfio que não e não me surpreenderei se o PMDB lançar um candidato próprio, com apoio do PSB e outros pequenos partidos. A questão é que tivemos 12 anos de governo do PT que, na minha avaliação, apesar de todos os pesares – e põe pesares nisso –, foram os melhores da nossa história republicana, sobretudo no quesito social. Efetivamente, 36 milhões de pessoas deixaram a miséria. Hoje, os aeroportos deixaram de ser um espaço elitista. Se vamos em um barraco de favela, lá dentro tem TV a cores, micro-ondas, máquina de lavar, fogão, geladeira, telefones celulares, talvez um computador e, possivelmente, no pé do morro, um carrinho que está sendo comprado em 60, 90 prestações mensais. Porém, essa família continua no barraco, sem saneamento, em um emprego precário, sem acesso a saúde, educação, transporte público e segurança de qualidade. O governo facilitou o acesso dos brasileiros aos bens pessoais, mas não aos bens sociais.
O que faltou?
Não tivemos, em doze anos, nenhuma reforma de estrutura, nenhuma daquelas prometidas nos documentos originais doPT. Nem a agrária, nem a tributária, nem a política. E aí poderíamos acrescentar nem a da educação, nem a urbana. Em suma, o que falta ao governo – e desde 2003 – é planejamento estratégico.
Como assim?
Governa-se na base dos efeitos pontuais, da administração de crises ocasionais, porque o PT trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder. Permanecer no poder se tornou mais importante do que fazer o Brasil deslanchar para uma nação justa, livre, soberana e igualitária. Como é que um governo que pretende desenvolver a nação brasileira cria um ministério que eu qualifico de coral desafinado? O que tem a ver Joaquim Levy com Miguel RossettoKátia Abreucom Patrus AnaniasJosé Eduardo Cardozo com George Hilton?
Em artigo publicado pouco antes das eleições, o senhor listou 13 razões para votar na Dilma. Agora, escreveu novo artigo, A Farra Acabou, com críticas ao governo. O que mudou?
O que mudou é que, infelizmente, aquelas 13 razões não foram abraçadas no segundo mandato de Dilma. A presidente montou um ministério esdrúxulo, que não conseguiu nem sequer ter um projeto de Brasil minimamente emancipatório, como era o Fome Zero. Aliás, o próprio governo que o criou o matou, substituindo-o por um programa compensatório chamado Bolsa Família – que é bom, mas não tem caráter emancipatório. Todo o governo opera agora em função de um detalhe, não de um projeto histórico, que é o ajuste fiscal. E penalizando os mais pobres, não o capital. Todas as bases desse ajuste estão em cima da redução do seguro-desemprego, do abono salarial, do imposto sobre o consumo. E nada em termos das grandes heranças, dos royalties que saem do País, das grandes transferências de dinheiro, dos brasileiros que têm dinheiro nos paraísos fiscais. A conta vai ser paga por aqueles que já lutam com dificuldade.
O senhor quer dizer que estamos em um caminho sem volta?
O grave do governo do PT – tendo sido construído e consolidado pelos movimentos sociais – foi, ao chegar ao Planalto, ter preferido assegurar sua governabilidade com o mercado e com o Congresso e escantear os movimentos sociais. Hoje, eles são tolerados ou, como no caso da UNE e da CUT, manipulados, invertendo o seu papel. Com isso, o PT ficou refém desse Congresso, dependendo de alianças espúrias. Agora, o seu grande aliado, o PMDB, se rebela, cria – com o perdão da expressão – uma cunha renana para asfixiar o Executivo. Se alguém me pergunta “qual é a saída”? É o PTser fiel às suas origens. Buscar a governabilidade pelo estreitamento de seus vínculos com os movimentos sociais. Ou seja, o segmento organizado, consciente e politizado da nação brasileira. Fora disso, tenho a impressão de que estamos começando a assistir ao começo do fim. Pode até perdurar, mas o PT tende a virar um arremedo do PMDB. Creio que cabe hoje, ao governo, fazer uma autocrítica séria.
Por meio dos movimentos sociais é que seria possível recuperar a imagem do partido?
Exatamente. O PT precisa sair da posição de bicho acuado em que se colocou. O partido, até hoje, não declarou se os envolvidos no mensalão são inocentes ou culpados; o partido, até hoje, não declarou se ele, que governa o Brasil e, portanto, a Petrobras, tem ou não responsabilidade na devassa que está sendo feita na maior empresa brasileira. O partido se afastou das bases sociais. Onde estão os núcleos populares que, nos anos 80, encantavam todas as pessoas que chegavam na zona leste de São Paulo, em uma favela, e a dona Maria, orgulhosamente, mostrava um barracão que era a sede do núcleo do PT? Onde está o trabalho de base, de formação política? Embora não tenha sido militante doPT, mas como ajudei a construir o partido por meio do trabalho pastoral, hoje me pergunto: onde estão os líderes do PTque, aos fins de semana, voltam para as favelas e periferias? Onde estão os líderes do PT que não tiveram um assombroso aumento de seu patrimônio familiar durante esses anos, a ponto de não se sentirem mais à vontade em uma assembleia de sem-teto, em uma aldeia indígena, em um fim de semana em um quilombola? Onde estão eles? Existem. São raros. Não vou citar nomes, mas tenho profundo respeito por militantes e dirigentes do PT que são muito coerentes com aquele PT originário. Mas, infelizmente, eles são exceção.
Como disse recentemente a senadora Marta Suplicy, “ou o PT muda ou acaba”.
É como já disse, o PT tem de mudar no sentido de voltar às suas origens e às suas bases sociais. Acabar não vai, porque tem tantos oportunistas que ingressaram no PT como rampa de acesso às benesses do poder, que o partido tende, inclusive, a inchar de gente que não tem nada a ver com as suas origens. Dou um exemplo: curiosamente, coincidindo com o dia em que a presidente entrega à nação um pacote anticorrupção, no estado do Rio um prefeito é flagrado na corrupção. O que esse cidadão tem a ver com a história de um partido que, ao nascer, se afirmou por três capitais: ser o partido ético na política brasileira, ser o partido dos pobres e ser o partido que, a longo prazo, construiria uma alternativa ao País, com uma sociedade socialista? O PT abandonou os três capitais. Esse pessoal que não tem a ver com o PT viu que, sendo do partido, o maná cai do céu. Fico me perguntando quantos outros exemplos não devem existir por esse Brasil afora?
Poderíamos apontar um culpado por esse rumo diferente que o partido tomou? O ex-presidente Lula?
Jamais, na minha análise – isso é um princípio – personalizo os acontecimentos. Porque não acredito que a história humana seja feita por meio de salvadores da pátria. É feita de movimentos e processos sociais. É preciso que haja uma luta interna no PT muito acirrada para que o partido seja minimamente coerente com suas origens e propostas.
O senhor é a favor do “volta, Lula”? Ele poderia “salvar” o governo desta atual crise?
Minha avaliação é que Lula só não será candidato à presidência em 2018 se morrer. Fora isso, tenho absoluta segurança de que ele será candidato. Não foi ele que me disse isso, é apenas da minha cabeça. Mas a questão não é “com o Lulavoltando, as coisas vão se resolver”. O problema é o rumo que o partido tomou e imprimiu ao governo do Brasil. Há coisas extremamente positivas, mas a expectativa era muito maior. Governo se faz com luta interna, aprendi isso nos dois anos em que estive lá. Governo é como feijão, só funciona na panela de pressão. Aquilo é um caldeirão em fervura permanente. Mas é preciso que haja alguns segmentos dentro do governo capazes de elaborar uma proposta estratégica a longo prazo, que sirva de norte para as políticas. E isso não existe hoje.
O que existe?
Um pacote de propostas pontuais. A falta de horizonte histórico no projeto do governo, agravada pelo fim das ideologias libertárias desde a queda do muro de Berlim, é o que explica por que o debate político hoje desceu do racional para o emocional. É como briga de casal. Quando se perde um projeto amoroso ou da família, emoções afloram, insultos, ofensas, sentimento de ira e vingança, porque não se tem horizonte. Quando esse horizonte histórico existe, quando se tem projeto estratégico, o debate democrático fica no nível da racionalidade, não da emocionalidade. Mas essa fúria nacional que perpassa todos os ambientes só vai terminar se houver alguma força política que aponte um projeto histórico.

A minha crítica à razão laicista. Artigo de Jürgen Habermas

A minha crítica à razão laicista. Artigo de Jürgen Habermas

universalismo do Iluminismo político não deve estar em contradição com as sensibilidades particulares de ummulticulturalismo bem entendido. Em uma ideia de sociedade inclusivista, a igualdade política e a diferença cultural podem se harmonizar entre si.
A opinião é do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, em artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 27-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Para poder se definir como pós-secular, uma sociedade deve primeiro ter sido secular. Portanto, a expressão só pode se referir às sociedades europeias ou a nações como CanadáAustráliaNova Zelândia, cujos cidadãos viram continuamente (às vezes, depois da Segunda Guerra Mundial, até mesmo drasticamente) afrouxar os seus vínculos religiosos. Nesses países, a consciência de viver em uma sociedade secularizada se difundiu de forma mais ou menos geral.
Por isso, podemos definir a consciência pública europeia como "pós-secular" no sentido de que, ao menos por enquanto, ela aceita a persistência de comunidades religiosas dentro de um horizonte cada vez mais secularizado.
Até agora, adotei a perspectiva externa do observador sociológico. Mas, se adotarmos a perspectiva do participante, então a pergunta se torna outra, de tipo normativo. Como devemos nos entender como membros de uma sociedade pós-secular?
Porém, antes de abordar o núcleo filosófico, deixem-me desenhar mais claramente o ponto de partida aceito por todos: o princípio da separação entre Igreja e Estado. O Estado constitucional moderno só pode garantir a liberdade religiosa contanto que os seus cidadãos deixem de se fechar como uma ostra dentro dos horizontes integralistas das suas respectivas comunidades religiosas.
As subculturas devem deixar livres os seus seguidores para se reconhecerem reciprocamente na sociedade civil como cidadãos do Estado. Essa nova constelação – entre "Estado democrático", "sociedade civil" e "autonomia das subculturas" – torna-se, agora, a chave para entender as duas "razões" que hoje, em vez de se colocarem de acordo, estão irracionalmente fazendo uma guerra.
De fato, o universalismo do Iluminismo político não deveria estar em contradição com as sensibilidades particulares de um multiculturalismo bem entendido.
Mas o que eu gostaria de ressaltar, nesse contexto, é uma ideia de sociedade inclusivista em que possam se harmonizar entre si a igualdade política e a diferença cultural. Exceto que os partidos em luta não veem, justamente, essa complementaridade.
O partido dos multiculturalistas, ao proteger as identidades coletivas, acusa a sua contrapartida de "fundamentalismo iluminista", ao passo que os secularistas insistem em integrar as minorias na cultura política já existente, acusando a sua contrapartida de "culturalismo anti-iluminista".
Os chamados multiculturalistas gostariam de desenvolver e de diferenciar o sistema jurídico para adequá-lo às exigências de "igualdade de tratamento" propostas pelas minorias religiosas. Eles denunciam o risco da assimilação forçada e do desenraizamento.
No lado oposto, os secularistas lutam por uma inclusão colorblind de todos os cidadãos, independentemente da sua origem cultural e do seu pertencimento religioso. A partir desta perspectiva laicista, a religião deveria permanecer como uma questão exclusivamente privada. A versão radical do multiculturalismo muitas vezes se apoia na convicção – totalmente equivocada – de que visões de mundo, "discursos" e sistemas teóricos são incomensuráveis entre si.
Nessa concepção "contextualista", as várias culturas se apresentam como universos semanticamente fechados, acompanhados por critérios de racionalidade/verdade incomparáveis entre si. Cada cultura seria uma totalidade semanticamente selada, à qual é bloqueado todo entendimento discursivo com as outras.
Com base nessas premissas, toda pretensão universalista de verdade – por exemplo, aquela proposta pela democracia e pelos direitos humanos – é apenas uma máscara ideológica que serve para esconder o imperialismo da cultura dominante.
Deve-se dizer, porém, que, mesmo no zelo excessivo dos guardiões da ortodoxia iluminista, escondem-se premissas filosóficas bastante discutíveis. Na sua perspectiva antirreligiosa, a religião deveria se retirar completamente da esfera pública e se restringir à esfera privada, pois seria uma figura historicamente superada pelo espírito.
A tese do laicismo radical é uma tese filosófica, completamente independente do fato empírico de que as religiões podem oferecer contribuições importantes para a formação política da opinião e da vontade. Do ponto de vista dos secularistas, os conteúdos do pensamento religioso, em todo o caso, são cientificamente desacreditados e inadmissíveis.
Aqui, eu gostaria de fazer uma distinção entre laico e laicista, entre secular e secularista. A pessoa laica, ou não crente, se comporta com agnóstica indiferença em relação às pretensões religiosas de validade. Os laicistas, ao contrário, assumem uma atitude polêmica em relação àquelas doutrinas religiosas que (embora cientificamente infundadas) têm grande relevância na opinião pública.
Hoje, o secularismo se apoia frequentemente em um naturalismo "hard", justificado em termos cientificistas. Pergunto-me se – para os fins da autocompreensão normativa de uma sociedade pós-secular – uma mentalidade laicista hipoteticamente generalizada não acabaria sendo igualmente pouco desejável em comparação com um desvio fundamentalista dos crentes.
Na realidade, o processo de aprendizagem deveria ser prescrito não só para o tradicionalismo religioso, mas também para a sua contrapartida secularizada. Certamente, a autoridade estatal, à qual são reservados os instrumentos da violência legítima, nunca deverá se deixar arrastar nas lutas religiosas, para não correr o risco de se tornar o órgão executivo de uma maioria religiosa que amordaça a oposição.
Todas as normas do Estado constitucional devem ser formuladas e justificadas em uma linguagem acessível a todos. Mas a neutralidade ideológica do Estado não proíbe que se admitam conteúdos religiosos na esfera pública política.
Duas ordens de motivos apoiam essa abertura liberal. Em primeiro lugar, mesmo aqueles que não sabem ou não querem dividir os seus vocabulários e as suas convicções em uma componente profana e em uma religiosa devem poder participar na sua linguagem religiosa para a formação da vontade política.
Em segundo lugar, é preciso que o Estado não reduza preventivamente a complexidade polifônica das diversas vozes públicas. Se, em relação aos seus concidadãos religiosos, as pessoas laicas tivessem que pensar que não podem levá-los a sério – como autênticos contemporâneos da modernidade – por causa da sua atitude religiosa, então se deslizaria de volta para o plano do mero modus vivendi e se perderia aquela "base do reconhecimento" que é constitutiva da cidadania.
Portanto, as pessoas laicas não devem excluir a priori o fato de que podem descobrir conteúdos semânticos dentro das contribuições religiosas; às vezes, eles podem até encontrar aí ideias já intuídas por eles mesmos e, até aquele momento, não totalmente explicitadas.
Tais conteúdos podem ser utilmente traduzidos no plano da argumentação pública. Na hipótese mais feliz, ambas as partes deverão se comprometer, cada uma do seu próprio ponto de vista, para interpretar a relação fé/saber de tal maneira que promova uma convivência reflexivamente iluminada.

Uma advertência aos palacianos de todos os matizes


Uma advertência aos palacianos de todos os matizes

Roberto Romano/Unicamp.

As manifestações de massa interessam a todos os regimes, da ditadura à democracia. Existe um saber acumulado sobre o fenômeno, com várias explicações para ele. O fato ocorre desde que os homens se reúnem em coletividades. Ele se notabiliza na democracia de Atenas e nas revoltas da plebe romana contra os aristocratas. Na Idade Média, após a prisão dos pobres nos feudos (laicos ou da Igreja),  multidões se espalham pela Europa. A única fuga dos que viviam sob os nobres era a peregrinação aos santuários, que recebem milhares de peregrinos. É o caso de São Tiago de Compostela e das catedrais dedicadas à Virgem Maria. Os camponeses deixam os domínios feudais, apreciam as estradas, as periferias urbanas renascentes, as feiras. E não retornam ao lugar de servidão. “O ar das cidades liberta”.  Como as corporações citadinas  só empregam os filhos e apadrinhados dos seus integrantes, falta emprego para os que fogem dos campos. Eles se dedicam a tarefas ilegais como o roubo, sequestro, assassinato, etc. As cidades se tornam  perigosas para a vida comum e para o comércio. Nos séculos 13 e 14 os frades mendicantes (franciscanos e dominicanos sobretudo), servem como “pacificadores” de rebeliões, afastam as vinganças dos que têm familiares mortos, assaltados, etc.

No moderno Estado absolutista a massa (a Mob…) causa revoltas e atentados contra os governantes. Entre os teóricos políticos se retoma a ojeriza contra a plebe, o povo perigoso e inculto. Povo e ralé são identificados e os movimentos populares contra os abusos dos aristocratas e reis são esmagados. É o que ocorre com a revolta dos camponeses alemães, sufocada pelos exércitos principescos com as bençãos de Martinho Lutero, de um lado, e da hierarquia católica de outro.

No século 17 inglês a Revolução puritana derruba o rei, corta a sua cabeça e instaura a igualdade legal dos cidadãos.  Milton, o poeta do “Paraíso Perdido”, republicano convicto, redige o clássico “The Tenure of Kings and Magistrates”, onde  defende a liberdade de imprensa e o dever, para as autoridades, de prestar contas ao povo soberano das finanças e dos recursos humanos do Estado. Não por acaso o partido plebeu que conduz a mudança rumo à democracia chama-se “Os Niveladores” (The Levellers). “Accountability” é o nome dado para a prestação de contas, nas democracias instauradas no século 18 nas colônias inglêsas da América. Na França a mesma exigência foi estabelecida para os governantes.  

No Brasil, os partidários do regime democrático foram esmagados pelo poder colonial português e pelo Império. Aqui os seguidores de Francis Bacon, John Locke, Voltaire, Diderot e outros luminares das Luzes, foram exterminados nas várias revoltas liberais que surgiram de Norte a Sul nos séculos 18 e 19. As massas, bem ao modo absolutista, continuaram a ser vistas com desconfiança e horror pelos operadores do Estado. Era a “gente ordinária de vestes”. Ordinária porque no Antigo Regime certas cores de vestimentas, certos tecidos, etc, eram privilégios dos nobres e clérigos.

Embora esmagadas pela repressão, as massas expressam seu inconformismo contra a autocracia estatal. Durante a ditadura de 1964 tivemos as manifestações pelas diretas, pela anistia. Depois veio o movimento contra Collor e  as demonstrações, em 2013, de repulsa às péssimas políticas públicas brasileiras, transporte, água e esgoto, segurança, saúde, educação, etc. Elas também impediram atrocidades planejadas pelos parlamentares como a abolição da lei da Ficha Limpa, a máxima atenuação da Lei de Improbidade Administrativa, o emasculamento do Ministério Público na PEC 37. Agora as multidões mostram sua indignação contra os corruptos de todos os partidos e poderes, exigem responsabilidade (accountability) dos governantes.

 Ver perigo no povo reunido é próprio de mentes contrárias à república e à democracia. Os ideológos e palacianos que se limitam a definir as massas com suas carcomidas etiquetas (“esquerda”, “direita”) devem pensar em vez de distribuir slogans. A má fé grassa quando eles dizem que na Paulista existiu coro unânime em prol do retorno dos militares. A mentira salta aos olhos:  basta ter seguido de fato as manifestações, usar o juízo sem recorrer às tolices partidárias. Basta ser honesto intelectualmente.  Resta dizer aos parasitas do Estado que habitam os palácios, desprezam ou temem a cidadania : “respeitem e prestem contas ao povo soberano!”.


Inflação e corrupções

Inflação e corrupções
ROBERTO ROMANO - O ESTADO DE S.PAULO
29 Março 2015 | 02h 03
"A corrupção é senhora idosa que age em toda parte." A frase é verdadeira, mas incompleta. A provecta ladrona não age sozinha. Ela foi superada por trêfegas meninas que renovam as técnicas de assalto. Se a avozinha subtraía milhões, as netas embolsam bilhões. Ocorre com a rapinagem algo análogo à inflação. Elias Canetti, emMassa e Poder (Inflação e massa), mostra a ruína ética trazida pela moeda apodrecida. As peças metálicas, nas mãos dos trabalhadores, davam um sentimento dignificador. Se o corpo é gratificado, a alma sente segurança. Na confiabilidade da moeda reside a sua marca principal.
As notas impressas diminuem o peso do dinheiro. A inflação humilha quem vive de salário. Com ela "nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; mas em virtude da inflação o homem diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada". Milhões não compram pão, empregos somem, o ressentimento exaspera. Conclusão de Canetti: os nazistas agiram contra os judeus como num processo inflacionário. "Primeiro eles (os judeus) foram atacados como maus e perigosos, inimigos; depois foram cada vez mais desvalorizados; como já não se tinha judeus em número suficiente, eles foram coletados nos países vencidos; e, no final, eles eram vistos literalmente como insetos que podiam ser exterminados aos milhões." Os fanáticos de Goebbels "dificilmente poderiam ter chegado tão longe, se poucos anos antes não tivessem passado por uma inflação na qual o marco valia um bilionésimo do valor original. E foi esta inflação como fenômeno de massa que eles descarregaram sobre os judeus".
A nossa política está em via de unir dois sistemas inflacionários. O primeiro é a degradação da moeda. Quem tem mais de 30 anos recorda os anos Sarney e Collor. O Brasil namorou o fascismo, persistente em suas entranhas históricas. Recordo os "fiscais do Sarney" que invadiam supermercados com bandeiras do País, prendiam gerentes, ameaçavam funcionários. Tais linchamentos surgiram com o descontrole monetário. Agora vem a inflação do mercado corrupto. Muitos líderes políticos estão unidos aos assaltos, antes cifrados em milhões. Atingimos o patamar dos bilhões. Humilhação e desespero, trazidos pela crise da moeda, surgem em plano profundo. O ressentimento contra as instituições representativas e democráticas, a desvalorização experimentada pela cidadania ante os corruptos, conduz a massa aos primitivos desejos de um ditador que salve a Pátria, um benefactor.
Milhões de pessoas, no golpe de 1964, apoiaram o veto à subversão e à corrupção. Os pretensos subversivos foram torturados, mortos, exilados, cassados. Mas retornaram à sociedade. Os corruptos continuam nas instituições de Estado porque garantem o acesso dos governos às regiões dominadas. Oligarcas que garantiram os donos do poder continuam no regime civil. Eles dominam a Nova República com José Sarney, visto ao lado da presidente Rousseff quando ela recordava aos manifestantes do 15 de Março sua luta contra a ditadura. Só faltou à chefe de Estado dirigir o dedo indicador rumo ao fidalgo (Lula o considera um "homem incomum") que, na cadeira próxima, tudo ouvia sorrindo. Ele presidiu a Arena, "o maior partido do Ocidente", segundo Francelino Pereira.
Mas não somos campeões mundiais de corrupção. Já na França do século 19, diz um autor hoje pouco lido, a pilhagem do Estado se dava em grande e pequena escala. "As relações entre a Câmara dos Deputados e o governo eram multiplicadas sob os tratos entre diferentes administrações e diferentes empresários. (…) A Câmara coloca nas costas do Estado os gastos maiores e garante às aristocracias especuladoras e financeiras o maná de ouro. Todos recordam os escândalos na Câmara dos Deputados quando se descobriu, por acaso, que todos os membros da maioria, inclusive uma parte dos ministros, eram acionistas das empresas, a quem eles conferiam a seguir, como legisladores, a execução das estradas de ferro, tudo por conta do Estado". De te fabula narratur… Mas ainda não atingimos o ponto descrito por Marx em As Lutas de Classes na França.
A reforma política, uma quimera, tem como pressupostos a lei do lobby e a democratização dos partidos. Sem a primeira parlamentares encobrem, com a autoridade do cargo, atos em defesa de anônimos interesses econômicos, sociais, culturais, religiosos. E sem democracia interna nos partidos os corruptos continuam intocados. Na atual forma partidária, dirigentes ficam nos cargos por décadas. Dominam alianças, candidaturas e, last but not least, os cofres. Roberto Macedo escreveu neste espaço, e muito bem, sobre as emendas parlamentares que sugam os cofres públicos. S. Exas. aumentaram de modo pantagruélico o Fundo Partidário. Sem renovação dos dirigentes e controle dos partidos pelos afiliados, sem eleições primárias, a dinheirama oficial reforça a ditadura partidária dos oligarcas.
Quais são as diferenças entre tiranos e bons governantes? A pergunta é de Jean Bodin em Os Seis Livros da República. "Um busca manter os governados em paz e união; outro os divide para os arruinar e engordar os confiscos. Um aprecia ser visto às vezes e ouvido pelos dirigidos; outro deles se esconde, como inimigos. Um prefere o amor dos governados; outro, o medo. Um só teme pelos liderados; outro tem medo deles. Um pede impostos na quantia mínima e para a necessidade pública; outro chupa o sangue, rói os ossos, suga o tutano dos governados para os enfraquecer. Um procura as melhores pessoas de bem para empregar nos cargos públicos; outro só emprega no governo os piores ladrões, para deles se servir como esponjas."
Pelos critérios clássicos da ética e do direito, não vivemos em democracia plena, mas no tirânico regime em que o poder é benéfico para os que legislam em causa própria. Falei das inflações monetárias e da corrupção. Convenhamos, temos no Brasil a deflação da vergonha na cara.
*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de 'Razão de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva


Wednesday, March 25, 2015

A autocracia palaciana do século XXI e a crise do Estado Democrático

A autocracia palaciana do século XXI e a crise do Estado Democrático

De acordo com Roberto Romano, os políticos tornaram-se marionetes a serviço do poder econômico

Por: Andriolli Costa e Ricardo Machado

As semelhanças entre o Palácio do Planalto e os palácios da modernidade não se restringem à nomenclatura. As práticas políticas, em ambos os casos, ainda que separados por séculos, são ainda evidentes na atual política nacional, como sugere Roberto Romano. “O núcleo duro (do governo) é a miragem criada pela mídia para explicar o inexplicável. Em vez de falar de cortesãos e palacianos, surge uma figura retórica que não descreve de fato o exercício governamental”, critica Roberto Romano, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Quanto ao povo, embora nominalmente soberano, nada pode dizer na condução das políticas públicas. Os proprietários do Estado no Executivo, Legislativo, Judiciário exercem um regime que não é o democrático, pois todos agem como autocratas”, sustenta.
Ao analisar a crise vivida pelo Partido dos Trabalhadores, Romano mostra que há razões internas e externas que explicam a atual conjuntura. “As segundas têm origem na crise mundial do Estado, que leva à quase falência da política como atividade legítima de representação popular. As primeiras residem no crescimento abrupto da agremiação em poucos anos. Como ela não tinha unidade sólida em termos programáticos e doutrinários, a sua chegada ao governo federal a levou, também por carência de quadros, à perene coalizão na qual o Executivo é refém de oligarquias que controlam o Congresso”, esclarece.
Além desses desafios, no sentido mais amplo, vivemos um momento de fragilização e extinção das lideranças, resultado de um processo histórico mais longo. “Na crise de governabilidade enfrentada pelo nosso país, faltam lideranças. Durante bom tempo, após os regimes totalitários que dominaram a Europa no século XX, houve uma grande resistência às lideranças, sobretudo as carismáticas. Era o temor de ver repetido o espetáculo genocida de massas lideradas por Egocratas”, destaca o entrevistado. Em meio a este cenário, complexo e difícil, Romano considera que até mesmo a esquerda parece ter perdido o rumo. “A opção preferencial da esquerda, hoje, é o Estado, não a sociedade. Se pelo menos houvesse da sua parte um equilíbrio entre compromissos de poder oficial e formas de lutas sociais, ela teria mais gente ao seu lado. Resulta que a direita assume lugares de mando, no Congresso e nos executivos (no Judiciário ela é importante). E a esquerda pouco tem a dizer para as grandes massas”, pondera.
Roberto Romano cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França, e é professor de Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Escreveu, entre outros, os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009) e Razão de Estado e outros Estados da razão - Coleção Debates – Filosofia (São Paulo: São Paulo: Perspectiva,)
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as razões e raízes centrais da crise vivida pelo PT atualmente?
Roberto Romano - Antes de mencionar a crise do Partido dos Trabalhadores, importa aclarar o próprio conceito de partido político. Este último é a reunião de um número ponderável de pessoas que propõem à sociedade mais ampla certo projeto de Estado e de organização coletiva. Assim, um agrupamento conservador que considere as instituições sociais, políticas e jurídicas desprovidas de controle e disciplina, avança ideias moldadas em projetos de ordem e atenuação das liberdades. Uma reunião progressista que julgue certa sociedade excessivamente centrada nos privilégios de setores econômicos, propõe que o Estado acentue os direitos coletivos, atenue ao máximo as vantagens de alguns cartéis, classes, dirigentes do Estado. Tais exemplos, muito abstratos, evidenciam, no entanto, a profundidade exigida para chegar à fundação de um partido. Os integrantes do novo organismo fazem um diagnóstico da vida societária, pesam as vantagens e as desvantagens do sistema atual e propõem novas estruturas de produção, economia, cultura, até mesmo de religião. O programa partidário é o projeto, uma espécie de maquete do novo Estado e da nova sociedade. Se o partido se limita a agir dentro do Estado e da ordem existente, ele pode ser dito defensor de reformas. Caso ele julgue que todas as estruturas sociais e de Estado devem ser substituídas, ele será dito revolucionário. Pode ocorrer que um partido reformista faça eclodir revoluções. Mas também pode ocorrer que partidos revolucionários no início passem ao reformismo, ou mesmo reacionarismo. Não é preciso rígida coerência lógica no programa, mas é tarefa inútil dele apresentar um amálgama desconexo em termos políticos, jurídicos, econômicos, sociais, etc. 
Há um limite para a bricolagem de conceitos, ideologias, formulações sociais, etc. Quanto mais setores de pensamento e de origem diversa possui um partido, mais difícil é seu trato interno, mais árduo o seu convívio no plano externo. Explicar para a sociedade um programa socialista, liberal, conservador, reacionário é mais claro do que expor um programa sincrético, onde elementos diversos são unidos mais pela tática conjuntural do que pela estratégia de longo prazo. 
A crise vivida pelo Partido dos Trabalhadores tem raízes endógenas e externas. As segundas têm origem na crise mundial do Estado, que leva à quase falência da política como atividade legítima de representação popular. As primeiras residem no crescimento abrupto da agremiação em poucos anos. Como ela não tinha unidade sólida em termos programáticos e doutrinários, a sua chegada ao governo federal a levou, também por carência de quadros, à perene coalizão na qual o Executivo é refém de oligarquias que controlam o Congresso. 
Na origem do partido encontram-se três formações diversas e, não raro, conflitantes. A católica imaginava conseguir com o PT o seu partido nacional. Nunca houve, na plenitude, um partido católico no Brasil, apenas ensaios naquele sentido. O Partido Democrata Cristão, por exemplo, integrado por pessoas retas como Plínio de Arruda Sampaio , foi pouco relevante. A Ação Popular (AP) foi outra esperança dos católicos de esquerda. O movimento tinha fundamentos socialistas e se nutria de noções hauridas em Teilhard de Chardin  e nos conceitos hegelianos  que marcaram o labor intelectual do Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ . Com a repressão que sucedeu o golpe de 1964 e a virada de parte da Ação Popular  para o marxismo ateu, os católicos perderam de novo a oportunidade de contar com um partido. O PT, fundado no Colégio Sion de São Paulo, representou uma esperança para os religiosos de esquerda.
No setor irreligioso, lideranças trotskistas sem massas entraram para o PT e serviram como contraponto aos setores católicos e aos oriundos da esquerda tradicional, como os egressos do Partido Comunista, acostumados ao realismo político. Algumas alas trotskistas foram alijadas do trato interno partidário, dele saíram ou foram levadas a sair. Outras alas da mesma linha conviveram bem com a corrente hegemônica do partido, comandado por Luiz Inácio da Silva. Vários de seus integrantes ocuparam cargos importantes nos governos do PT. Finalmente, eram importantes os grupos sindicais que tinham grandes massas atrás de si, organizados em termos hierárquicos e burocráticos, o que garantia os seus núcleos dirigentes. Boa parte destes últimos ocupou ministérios no primeiro governo federal petista.
Querela das duas camisas
Um episódio hoje pouco recordado, mas significativo, é a querela das “duas camisas” logo nos primeiros tempos do PT. Setores sindicais católicos acusavam os movimentos da esquerda irreligiosa de possuírem duas camisas, a de sua organização real e a do PT. A réplica que receberam foi que também os religiosos tinham duas camisas, a do PT e a da Igreja. Tal fato, embora superado e pequeno, mostra que a acomodação interna sempre foi tensa. Em momentos graves, quando o PT foi acusado de corrupção, como nos inícios da Ação 470  chamada de processo do mensalão, o mal-estar das hostes religiosas era grande.
Intelectuais
Um setor relevante que integrou o partido é o formado por intelectuais. De modo geral, eles representam várias posições filosóficas, ideológicas, religiosas ou laicas. O nascimento do PT coincide quase integralmente com a dissolução da URSS e de seus Estados. Assim, o ideal programático do socialismo não podia seguir formas ortodoxas, enleadas nos erros daquelas instituições. O conceito de socialismo, no programa original do partido é bastante fluido e sua diferença face ao marxismo criticado geralmente, residiu no adjetivo “democrático” que lhe foi aposto. Os intelectuais foram de pouca valia no aclaramento e solidificação lógica do programa. Eles ajudaram mais a racionalizar atos dos dirigentes ou tendências, do que apresentar novos rumos teóricos ao debate. Claro, em todo agrupamento social existem exceções. Mas elas não foram suficientes para abrir novas sendas no terreno do pensamento inovador. Muito foi dito sobre o PT ser “o novo na política”. Pouco foi proposto para chegar a tal realidade. O fascínio da agremiação entre universitários foi grande, sobretudo entre os jovens estudantes. Não havia, nem há, pensamento hegemônico neste campo. Acadêmicos católicos, protestantes, ateus, unem-se na defesa de uma visão pouco homogênea de esquerda, com bases em teorias marxistas ou heterodoxas em relação ao marxismo (como é o caso de Antonio Gramsci , G. Lukács , Michel Foucault , teologia da libertação , em variadas versões, todas ameaçadas pela Cúria de João Paulo II  e José Ratzinger , Claude Lefort  e outros). 
Líder
O líder inconteste de todas essas correntes é Luiz Inácio da Silva. Formado na escola sindical, com prática de negociação entre patrões e peões, aquele político conhece os segredos da diplomacia no trato interno e com outros partidos. Sabe quando ceder e quando impor linhas de ação. A elasticidade de sua prática extra corporis que incluiu alianças com tradicionais inimigos da esquerda e do PT, como é o caso de Antonio Carlos Magalhães , José Sarney  e Paulo Maluf , para falar apenas dos mais proeminentes, é reforçada por sua maestria interna, sempre à busca da coesão das alas, até que a ruptura seja inevitável. A sua liderança é uma espécie de cimento que permite a instável unidade do partido. Ele é a única liderança nacional, não apenas do PT mas de todo o país. Dentro da agremiação se destacam líderes regionais: Jacques Wagner  na Bahia, Tarso Genro  no Rio Grande do Sul, Tião  e Jorge Viana  no Acre, Fernando Pimentel  em Minas e uma poeira de pequenas lideranças em São Paulo. Não existe possibilidade de reverter tal status e deixar o ex-presidente fora do comando nacional.
A carência de lideranças políticas nacionais não é um problema apenas do PT, mas de todos os partidos que merecem o nome. Há uma grande quantidade de siglas nanicas sem lideranças, submetidas a proprietários que vendem acordos e apoios nos Parlamentos. Tais lojinhas de compra e venda de votos não são partidos, pois lhes falta visão e programa de sociedade e de Estado. 
Oligarquização
A oligarquização dos partidos nacionais e do petismo segue a lógica já enunciada por Max Weber  e Robert Michels : o controle do partido pelas cúpulas burocratizadas, sem real participação dos militantes nas decisões vitais. O fenômeno também ocorre no PSDB e no PMDB. A cada dia a juventude se afasta dos partidos, o que concorre para o estancamento das lideranças nacionais. O movimento estudantil, que servia como celeiro de lideranças, hoje é refém de algumas organizações partidárias de esquerda ou extrema esquerda que disputam as máquinas sem vida dos centros acadêmicos, diretórios, União Nacional dos Estudantes - UNE. Ele não forma novos líderes, mas cumpridores de ordens partidárias. Antes da ditadura existiam movimentos nacionais e internacionais que preparavam lideranças, como é o caso da Jec , da Juc  e da Joc  entre católicos e Juventude Comunista, além dos jovens quadros trotskistas. Um erro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB foi coonestar a repressão contra a Ação Católica juvenil, o que levou a Juc e a Jec a se autodissolverem. Vozes heroicas como a de Dom Cândido Padim , que de interventor se fez defensor daquela juventude, foram poucas na Hierarquia. Com o fim daqueles movimentos, católicos ou laicistas, não temos entre nós formadores coletivos de lideranças, o que se reflete nos partidos. Quando vejo retratos da juventude deste ou daquele partido nos jornais e revistas, vem-me aos lábios um sorriso melancólico. Muitos “jovens” mostrados nas fotos têm os cabelos mais brancos do que os meus.
Crise de governabilidade
Na crise de governabilidade enfrentada pelo nosso país, faltam lideranças. Durante bom tempo, após os regimes totalitários que dominaram a Europa no século XX, houve uma grande resistência às lideranças, sobretudo as carismáticas. Era o temor de ver repetido o espetáculo genocida de massas lideradas por Egocratas. Este termo foi usado por Claude Lefort em seu livro Un homme en trop (Paris: Seuil, 1986) sobre Soljenitsine e o Gulag. Ele define bem o culto da personalidade com Hitler , Stalin , Mussolini  e depois com os arremedos de tirania como na Coreia do Norte. O desastre motivou a preferência pela direção política colegiada. No entanto, semelhante técnica sofre críticas, dado que as lideranças colegiadas são frágeis e facilitam o surgimento de lideranças contrárias à democracia, com o reforço de movimentos ligados à extrema direita xenófoba. Seria importante refletir sobre o papel dos líderes democráticos nos partidos políticos ou na sociedade. O caso Luiz Inácio da Silva evidencia a carência de lideranças nacionais, o que precisa suscitar pesquisas, análises, sugestões para além da crise atual. Embora não concorde com tudo o que ele diz, recomendo o livro bem urdido de Jean-Claude Monod : Qu’est-ce qu’un chef en démocratie? (Paris, Seuil Ed.). Ali, o autor analisa as noções de liderança, carisma, fenômenos totalitários e crises dos partidos políticos. Ele põe os leitores diante de escolhas: democracias falidas que não garantem conquistas populares, ou democracias nas quais lideranças respondem de fato e de direito aos seus eleitores? O caso de governos de esquerda que, ao chegar aos palácios aderem às teses neoliberais e contrárias aos direitos dos trabalhadores é conhecido devido à sua frequência e constância. Se a liderança de Luiz Inácio da Silva não for considerada como a mais a correta, a verdade é que não temos no Brasil muitas outras opções à esquerda ou à direita.

IHU On-Line - A figura de Lula ainda exerce centralidade na ideia de refundação do partido? O que significa falar em “crise do lulismo”? A “crise do lulismo” reflete no governo Dilma? De que modo? 
Roberto Romano - Luiz Inácio da Silva tem papel único no Partido dos Trabalhadores e na política nacional, sobretudo no Palácio do Planalto. Pode haver uma refundação do partido. Desde a Carta aos Brasileiros , sugiro aos poucos amigos que me restaram no PT um congresso nacional para rever o programa do partido, pesar o que pode e deve ser mantido e o que precisa ser atualizado, com presença hegemônica da militância de base como instância decisória suprema. Não existiu tal ação, as alianças, as candidaturas, enfim, as ações do PT passaram gradativamente a ser ditadas pelas cúpulas e assumidas por Luiz Inácio da Silva, que arcou sempre com o bônus e o ônus das candidaturas, sobretudo as majoritárias. Ele garantiu a aprovação dessa política junto às diversas bases militantes. O ritmo eleitoral sobrepujou ações para encaminhar problemas sociais. Prejuízos grandes foram causados em campos explosivos, como o dos direitos humanos. A situação indígena, insisto, é um exemplo gritante de semelhante perda. Sou bastante cético diante da possível refundação do PT, também porque os portadores de mando, na agremiação petista, estão presos a compromissos vários de ordem econômica, política, governamental, as famosas alianças, e não podem aventurar uma empreitada que romperia tais laços. Políticos que ocupam postos no Legislativo e Executivo dificilmente aceitarão o desafio. Se as bases do petismo ainda tiverem força para obter tal façanha, o setor liderado por Luiz Inácio da Silva será estratégico. Não creio que exista uma “crise do lulismo”. Como enunciei acima, a crise é do Estado democrático e dos partidos. O que se convencionou chamar de lulismo é apenas um dos problemas que integra a incógnita mais complexa e de árdua resolução.
Os procedimentos e formas de falar e agir do chamado lulismo podem capitanear um novo governo? A questão, hoje, me parece imprudente. A pergunta a ser feita é a seguinte: caso a economia desande, a inflação volte aos números do período Sarney/Collor, os movimentos sociais não se conformem com as receitas neoliberais em favor do capital financeiro, a repressão policial siga o modus operandi aplicado nas manifestações de 2013 e da Copa, problemas gravíssimos como a questão indígena chegarem ao genocídio (sinais precursores se apresentam, na pouco santa aliança de ruralismo e Palácio do Planalto), haverá governo petista ou de esquerda estável?

IHU On-Line - Em nome de uma Realpolitk, o governo abre mão de princípios para buscar a governabilidade por meio de coalizões e parcerias. Como você encara estas relações do ponto de vista da ética na política?
Roberto Romano - O realismo é uma forma oportunista de política abjeta. No caso dos realistas, temos o belo e pungente artigo de Jean-Paul Sartre , “O que é um colaborador?”. Os que ajudaram os nazistas na Europa e na França eram bons calculadores. Eles fizeram suas contas e ajuizaram que servir aos fortes do momento seria mais lucrativo porque salvaria suas vidas, as de suas famílias, manteria empregos, cargos, etc. Mas o seu cálculo era imperfeito. Não entrou nele o poderio militar norte-americano, a força bélica e ideológica dos soviéticos, a resistência de setores importantes da população à tirania. Eles ganharam migalhas do poder e perderam no todo da guerra. O mesmo ocorre com os realistas. Eles calculam ganhar dinheiro de empresas, bancos, ruralistas e usam como moeda de troca os direitos da população. Eles ganham, mas seu cálculo é imperfeito. A indignação que atravessa o Brasil, hoje, prenuncia o fim dos calculadores canhestros. José Genoino , no início do primeiro governo Luiz Inácio da Silva disse algo verdadeiro: “chegamos ao governo, mas não ao poder”. O poder, hoje, é representado pelo Ministro da Fazenda que promete cortes orçamentários nas políticas públicas, incluindo aí o âmbito social e, mesmo, o Ministério de Ciência e Tecnologia. Devido às contradições entre partidos e interesses oligárquicos, o governo não consegue executar as ordens do poder verdadeiro, emanadas do Financial Times e outros porta-vozes da violência contra os trabalhadores.

IHU On-Line - Qual é o núcleo duro do governo hoje? O que ele representa?
Roberto Romano - O governo está sem planos e ação tática ou estratégica seguras. O núcleo duro é a miragem criada pela mídia para explicar o inexplicável. Em vez de falar de cortesãos e palacianos, surge uma figura retórica que não descreve de fato o exercício governamental. Os políticos (poucos) que cercam a Presidência da República não têm nada de duro e pouco significam na política de massas. São arrogantes marionetes nas mãos de interesses econômicos, políticos ou supostamente religiosos. Todos os realistas compareceram ao ato que inaugurou o “templo de Salomão”, máquina de arrecadar dinheiro para os donos da Igreja que é, ao mesmo tempo, raiz de um partido político. Eles se acostumaram a dizer “sim” ao ocupante da cadeira presidencial e a ele apresentar um relato róseo da realidade. Nada que não seja conhecido na imensa literatura sobre a bajulação que instrui o mundo ocidental, de Plutarco  a Erasmo de Rotterdam . O livro mais necessário, para quem assume governos no Brasil é o clássico de Plutarco: Quomodo adulator ab amico internoscatur (Como distinguir o amigo do bajulador). Infelizmente o volume não está posto na cabeceira dos nossos mandatários.

IHU On-Line - Como se estabelecem as relações de poder entre um Estado desenvolvimentista, a burguesia progressista e o povo no novo governo?
Roberto Romano - Os elos entre Estado desenvolvimentista e burguesia nacional foram expostos num programa veiculado pela CEPAL  nos anos 60 do século passado. O governo Dilma apostou em parte naquele programa. Mas esqueceu que o patrimonialismo rege a prática de número significativo de nossos empresários. Aqui, empresas abrem falência, mas seus proprietários perdem muito pouco. Se tivéssemos de fato uma política desenvolvimentista — com todos os prejuízos que ela traz para a vida social, ecológica, etc. —, haveria uma aplicação estratégica em Ciência e Tecnologia. Os dados sobre o ministério encarregado do assunto são eloquentes. Como primeiro passo dos cortes orçamentários em operação, as universidades federais têm recursos retidos. É uma resposta aos reitores realistas que, contra a lei, assinaram manifestos em prol da candidatura Dilma. A resposta é dura, merecida pelos gabinetes de suas Magnificências, mas lesiva aos interesses nacionais. Luiz Inácio da Silva prometeu, no início de seu primeiro mandato, que ao final de quatro anos cerca de 4% do PIB seria aplicado em Ciência e Tecnologia. A consulta aos dados mostra uma promessa não cumprida. 
Fala-se muito em inovação tecnológica, mas o único programa coerente, no campo, é o dirigido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp. A FINEP, que possui quadros de comprovada excelência na sua direção atual, anuncia grandes inversões no programa de inovação. Com os cortes, cuja radicalidade ainda é desconhecida, tais anúncios podem girar no vazio. 
Não temos uma política desenvolvimentista plena, nem uma política neoliberal plena, nem uma política econômica plena: temos retalhos de política sem coerência, com empresários e administradores a quem falta visão do país e do mundo. Na costumeira postura de nossos proprietários, eles querem lucros imediatos sem inversão de capital próprio, mas do governo. 
Este último, por sua vez, não proporciona estabilidade jurídica, muda regras de instante a instante, ajudado pelas autoridades judiciais. Quais são os frutos jurídicos dos assaltos aos bolsos dos cidadãos, gerados pelos planos Cruzado, Collor, etc.? Procrastinação dos tribunais, para não prejudicar bancos, eis o que é efetivo. Quanto ao povo, embora nominalmente soberano, nada pode dizer na condução das políticas públicas. Os proprietários do Estado no Executivo, Legislativo, Judiciário exercem um regime que não é o democrático, pois todos agem como autocratas. 

IHU On-Line - Frente a este cenário, qual o lugar dos ideais de esquerda hoje no Brasil?
Roberto Romano - A esquerda sofre uma série de mazelas, umas curáveis, outras não. A primeira já mencionei acima. Trata-se da confusão entre planos pessoais ou grupais de poder e de escalada social, que atinge parte considerável dos partidos e rompe programas alardeados. Na praça, como diz Norberto Bobbio , a esquerda promete liberdade, igualdade, fraternidade. No palácio, a liberdade é concedida ao capital financeiro e suas “lições de casa”, a igualdade se limita aos poderosos do mercado e da política, a fraternidade é com os milhões de moedas que garantem vitória em processos eleitorais. A crônica não é apenas brasileira, ela se repete na França dos “socialistas”, na Itália, em Portugal, na Alemanha, etc. 
Uma lição pode ser haurida na imprensa de esquerda. Anos atrás o jornal Libération fez uma pesquisa no chamado “cinturão vermelho” de Paris, onde moram líderes operários de esquerda. Chamou minha atenção a entrevista de antiga líder socialista que lutou na Resistência e sempre se manteve firme no apoio à esquerda. O espantoso é que ela iria votar... em Jean-Marie Le Pen . O jornalista, assustado, perguntou as razões da anomalia. A resposta deve servir como advertência para todos os que se dizem de esquerda: “nós lutamos por eles (os socialistas no poder). Eles, no governo, se uniram aos empresários e banqueiros. Tiraram nossos salários e nossos empregos. Pedimos para falar com eles. Nunca fomos recebidos. Fizemos greve. Eles mandaram a polícia nos reprimir. Eles aplicam uma política de direita, se dizendo de esquerda. Mentem e batem. Como, diga, podemos dar-lhes novamente confiança? Le Pen promete salvar empregos franceses. É ruim, mas é bem mais do que os ditos socialistas fazem”. Raciocínio similar foi feito por muitos operários alemães diante do enrijecimento burocrático e autocrático da Social Democracia. À repressão patrocinada por ela, a única resposta dos desempregados e antigos aderentes da esquerda foi votar nas extremas direitas, a nazista entre outras. A confiança e o apoio da população é a única arma da esquerda. Quando, por “realismo”, ela abraça líderes de direita, adota planos de “estabilidade” que prejudicam a população, tal arma se torna inexistente. Em entrevista ao excelente programa Faixa Livre, ao ser perguntado por Paulo Passarinho  sobre o novo perfil conservador do Congresso, respondi: “Quem semeia ACM, Sarney, Barbalho, Maluf, colhe Bolsonaro”. Na crise, os donos do mercado não apoiam seus parceiros de esquerda, preferem condutores de direita para o governo e a economia.
Além do realismo, outra mazela da esquerda encontra-se nos ideários obsoletos. Num país onde índios são mortos como mosquitos por capangas de fazendeiros, onde mulheres são mortas e batidas, onde crianças são violentadas, onde os direitos dos trabalhadores sofrem graves cortes, onde a violência policial destrói vidas e esperanças, os programas de esquerda são focados na obtenção de lugares nos parlamentos, nos executivos, etc. A opção preferencial da esquerda, hoje, é o Estado, não a sociedade. Se pelo menos houvesse da sua parte um equilíbrio entre compromissos de poder oficial e formas de lutas sociais, ela teria mais gente ao seu lado. Resulta que a direita assume lugares de mando, no Congresso e nos executivos (no Judiciário ela é importante). E a esquerda pouco tem a dizer para as grandes massas.
Os movimentos de 2013, no Brasil, não tiveram continuidade justamente porque os setores de esquerda, adoecidos de estatismo, foram percebidos como integrantes dos palácios e recusados pelos manifestantes. Mas sem organização partidária as massas seguem para a violência e se perdem no cotidiano. Um alvo estratégico seria unir os manifestantes brasileiros aos que, no mundo (o Podemos  é um deles apenas) se levantam contra a política tradicional. Na falta do elo entre esquerdas e movimentos, a propaganda oficial, a repressão bruta, o doutrinamento pelas novelas e programas como o Big Brother, anestesiam a opinião pública. A grande esquerda e a centro-esquerda (situadas no PT, no PSDB, no PDT) têm massas eleitorais, mas não massas de luta diária pelos direitos. A esquerda mais radical (o PSOL, o PCB e outros) não tem massas, simplesmente. Discorri sobre o problema em longa entrevista à Rádio e Televisão da Unicamp, vídeo que pode ser acessado no seguinte endereço: rtv.unicamp.br, programa Palavras Cruzadas, “O Brasil em perspectiva, depois dos indignados de junho de 2013”. 

IHU On-Line - Estamos vivendo uma crise ética generalizada nas instituições de Estado? De que forma isso incide na vida da população?
Roberto Romano - Os nossos parlamentares, executivos, magistrados, representam um Estado anacrônico que ainda hoje é símbolo da Contrarrevolução do século XIX. Nela, a soberania popular foi afastada ao máximo. E foram estabelecidos prerrogativas e privilégios dos agentes estatais contrários à república e à democracia. Estamos em regime pior do que o Absolutismo. Nele, o rei comprava o apoio dos nobres e do clero com privilégios. Mas nunca existiu o seguinte fato: o Estado manter as carruagens dos duques e cardeais. Estes últimos deveriam arcar com aquelas despesas. Aqui, do vereador ao senador, passando por ministros, secretários, juízes, todos têm sua carruagem paga pelo “povo soberano”. Além disso, enquanto não for normatizado o lobbie, nossos políticos nada mais são do que lobistas na pele de representantes populares. Quando se ouve dizer em “bancada X ou Y”, sabe-se de antemão que se trata de lobbies destinados a defender acima de tudo interesses econômicos, políticos, religiosos. O costume de legislar em causa própria já se transformou em hábito (ética...) dos que ocupam cargos no Estado. Temos muito a mudar para chegarmos ao direito de nos definir como república federativa democrática. Se quisermos democracia no Poder Judiciário, devemos lutar para que os juízes e promotores sejam eleitos pelo povo soberano. 
Os erros e as qualidades das eleições para os cargos de juiz podem ser analisados com a experiência de outros países, como os EUA. Insuportável é a existência de uma corporação que despreza “os leigos” e se julga acima dos “cidadãos comuns”. Insuportável é o modo pelo qual hoje são escolhidos os integrantes do STF. A sabatina no Senado é menos do que pro forma. É um insulto dirigido aos cidadãos. Todos se recordam do exame senatorial em que uma juíza foi elogiada... por sua elegância no vestir e não pelo que tinha no cérebro. Há um site norte-americano  que examina com profundidade as eleições para juízes. Antes de avançar juízos temerários de valor do seguinte calado: “se os juízes forem eleitos, haverá interferência política na escolha”, é preciso bem analisar os fatos que definem os elos entre nossos poderes. As atuais maneiras de indicar magistrados têm muito a ver com a política, a mais eivada de autocratismo e antidemocrática. 

IHU On-Line - Tendo em vista nossa conjuntura, que Brasil teremos nos próximos quatro anos?
Roberto Romano - Haverá alguma estabilidade nos próximos quatros anos? No futuro, dizia um teórico importante, todos estaremos mortos. Que Deus nos proteja.

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