Inflação e
corrupções
ROBERTO ROMANO - O ESTADO DE S.PAULO
29 Março 2015 | 02h 03
"A corrupção é senhora idosa que age em toda parte." A frase é
verdadeira, mas incompleta. A provecta ladrona não age sozinha. Ela foi
superada por trêfegas meninas que renovam as técnicas de assalto. Se a avozinha
subtraía milhões, as netas embolsam bilhões. Ocorre com a rapinagem algo
análogo à inflação. Elias Canetti, emMassa e Poder (Inflação
e massa), mostra a ruína ética trazida pela moeda apodrecida. As peças
metálicas, nas mãos dos trabalhadores, davam um sentimento dignificador. Se o
corpo é gratificado, a alma sente segurança. Na confiabilidade da moeda reside
a sua marca principal.
As notas impressas diminuem o peso do dinheiro. A inflação humilha quem
vive de salário. Com ela "nada mais é seguro, nada permanece no mesmo
local durante uma hora; mas em virtude da inflação o homem diminui. Ele mesmo,
ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada.
Todos o possuem. Mas cada um é nada". Milhões não compram pão, empregos
somem, o ressentimento exaspera. Conclusão de Canetti: os nazistas agiram
contra os judeus como num processo inflacionário. "Primeiro eles (os
judeus) foram atacados como maus e perigosos, inimigos; depois foram cada vez
mais desvalorizados; como já não se tinha judeus em número suficiente, eles
foram coletados nos países vencidos; e, no final, eles eram vistos literalmente
como insetos que podiam ser exterminados aos milhões." Os fanáticos de
Goebbels "dificilmente poderiam ter chegado tão longe, se poucos anos
antes não tivessem passado por uma inflação na qual o marco valia um
bilionésimo do valor original. E foi esta inflação como fenômeno de massa que
eles descarregaram sobre os judeus".
A nossa política está em via de unir dois sistemas inflacionários. O
primeiro é a degradação da moeda. Quem tem mais de 30 anos recorda os anos
Sarney e Collor. O Brasil namorou o fascismo, persistente em suas entranhas
históricas. Recordo os "fiscais do Sarney" que invadiam supermercados
com bandeiras do País, prendiam gerentes, ameaçavam funcionários. Tais
linchamentos surgiram com o descontrole monetário. Agora vem a inflação do
mercado corrupto. Muitos líderes políticos estão unidos aos assaltos, antes
cifrados em milhões. Atingimos o patamar dos bilhões. Humilhação e desespero,
trazidos pela crise da moeda, surgem em plano profundo. O ressentimento contra
as instituições representativas e democráticas, a desvalorização experimentada
pela cidadania ante os corruptos, conduz a massa aos primitivos desejos de um
ditador que salve a Pátria, um benefactor.
Milhões de pessoas, no golpe de 1964, apoiaram o veto à subversão e à
corrupção. Os pretensos subversivos foram torturados, mortos, exilados,
cassados. Mas retornaram à sociedade. Os corruptos continuam nas instituições
de Estado porque garantem o acesso dos governos às regiões dominadas. Oligarcas
que garantiram os donos do poder continuam no regime civil. Eles dominam a Nova
República com José Sarney, visto ao lado da presidente Rousseff quando ela
recordava aos manifestantes do 15 de Março sua luta contra a ditadura. Só
faltou à chefe de Estado dirigir o dedo indicador rumo ao fidalgo (Lula o
considera um "homem incomum") que, na cadeira próxima, tudo ouvia
sorrindo. Ele presidiu a Arena, "o maior partido do Ocidente",
segundo Francelino Pereira.
Mas não somos campeões mundiais de corrupção. Já na França do século 19,
diz um autor hoje pouco lido, a pilhagem do Estado se dava em grande e pequena
escala. "As relações entre a Câmara dos Deputados e o governo eram
multiplicadas sob os tratos entre diferentes administrações e diferentes
empresários. (…) A Câmara coloca nas costas do Estado os gastos maiores e
garante às aristocracias especuladoras e financeiras o maná de ouro. Todos
recordam os escândalos na Câmara dos Deputados quando se descobriu, por acaso,
que todos os membros da maioria, inclusive uma parte dos ministros, eram
acionistas das empresas, a quem eles conferiam a seguir, como legisladores, a
execução das estradas de ferro, tudo por conta do Estado". De te fabula
narratur… Mas ainda não atingimos o ponto descrito por Marx em As
Lutas de Classes na França.
A reforma política, uma quimera, tem como pressupostos a lei do lobby e
a democratização dos partidos. Sem a primeira parlamentares encobrem, com a
autoridade do cargo, atos em defesa de anônimos interesses econômicos, sociais,
culturais, religiosos. E sem democracia interna nos partidos os corruptos
continuam intocados. Na atual forma partidária, dirigentes ficam nos cargos por
décadas. Dominam alianças, candidaturas e, last but not least, os cofres.
Roberto Macedo escreveu neste espaço, e muito bem, sobre as emendas
parlamentares que sugam os cofres públicos. S. Exas. aumentaram de modo
pantagruélico o Fundo Partidário. Sem renovação dos dirigentes e controle dos
partidos pelos afiliados, sem eleições primárias, a dinheirama oficial reforça
a ditadura partidária dos oligarcas.
Quais são as diferenças entre tiranos e bons governantes? A pergunta é
de Jean Bodin em Os Seis Livros da República. "Um busca
manter os governados em paz e união; outro os divide para os arruinar e
engordar os confiscos. Um aprecia ser visto às vezes e ouvido pelos dirigidos;
outro deles se esconde, como inimigos. Um prefere o amor dos governados; outro,
o medo. Um só teme pelos liderados; outro tem medo deles. Um pede impostos na
quantia mínima e para a necessidade pública; outro chupa o sangue, rói os
ossos, suga o tutano dos governados para os enfraquecer. Um procura as melhores
pessoas de bem para empregar nos cargos públicos; outro só emprega no governo
os piores ladrões, para deles se servir como esponjas."
Pelos critérios clássicos da ética e do direito, não vivemos em
democracia plena, mas no tirânico regime em que o poder é benéfico para os que
legislam em causa própria. Falei das inflações monetárias e da corrupção.
Convenhamos, temos no Brasil a deflação da vergonha na cara.
*Roberto
Romano é professor da Unicamp e autor de 'Razão de Estado e outros estados da
razão' (Perspectiva)
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