Tuesday, June 09, 2020

Miguel: breve simbologia de um país que não mudou

Miguel: breve simbologia de um país que não mudou

O passeio com os cachorros, o menino que fica com a patroa Corte Real. A empregada paga com dinheiro público. A manicure. O condomínio de luxo construído em área de patrimônio histórico. Em uma morte, resumo da tragédia brasileira
Por Simone Paz
Miguel Otávio Santana da Silva tinha 5 anos e caiu do nono andar de um condomínio conhecido como as “torres gêmeas”, em Recife, na última terça-feira (2/6), enquanto a sua mãe, Mirtes Renata Souza, trabalhava passeando o cão da patroa, Sarí Côrte Real.
A história é simples: Sarí não liberou a empregada Mirtes em tempos de pandemia — apesar de serviço doméstico não ser atividade essencial. Então, Miguel, com aulas suspensas na creche por causa da quarentena, precisou ir com a mãe para o trabalho dela, como acontece com muitas crianças e muitas mães precarizadas no Brasil.
Mirtes Renata e seu filho Miguel
Sarí estava com sua manicure (outra atividade não essencial), fazendo as unhas, quando mandou a mãe de Miguel passear os cachorros e ficou na responsabilidade de cuidar do menino, no apartamento.
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Mas Miguel sentiu falta da mãe e começou a chorar. Coisa comum em crianças de cinco anos. Sarí deve saber que crianças não podem andar em elevadores desacompanhadas, afinal de contas, ela também é mãe de duas crianças, de três e seis anos, respectivamente.
Sarí deve saber que elevadores apresentam inúmeros riscos. Mas, quando Miguel fugiu do apartamento à procura da mãe, ela, irritada, em vez de descer com ele até o térreo para aguardar a volta de Mirtes, ou oferecer ligar para ela, o deixou sozinho no elevador e apertou o botão de outro andar mais alto — como comprovam as câmeras do prédio.
Sari Corte Real e Sérgio Hacker
Todos sabemos o desespero e estranhamento que causa descer num andar desconhecido e inesperado, ao sair de um elevador. Miguel, que já estava aflito, acabou caindo do nono andar, onde foi parar por causa da patroa de sua mãe.
O caso junta uma série de símbolos e fatores que tornam ele ainda mais grave e emblemático, ao acumular todas as aberrações possíveis e cabíveis — inclusive os clichês que pareciam datados de tempos passados, e que muitos acreditam não existir mais nos tempos atuais:
  1. O sobrenome da patroa Sarí é Corte Real. Parece ironia, mas não é. Além disso ela é primeira-dama do município de Tamandaré, que fica a 104 quilômetros da capital de Pernambuco, no litoral sul.
  2. O marido de Sarí, Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré, pagava um salário mínimo a Mirtes, no valor de R$1.015,24, com dinheiro público: a doméstica está cadastrada na prefeitura de Tamandaré no cargo de Gerente de Divisão (as informações foram obtidas pelo site noticiapreta.com.br e podem ser verificadas no Portal de Transparência da Prefeitura de Tamandaré).
  3. A mãe de Mirtes, e avó de Miguel, Marta Santana, também trabalhava para a família. Tanto Mirtes como Marta pegaram Covid-19 de seus patrões, e mesmo assim não foram liberadas do trabalho (confira na matéria da Pública).
  4. A patroa delega o passeio de seu próprio cachorro, mesmo não tendo que trabalhar, já que no momento ela não estava num call de trabalho ou cuidando de seus outros filhos. Fazia as unhas, um símbolo caricato da superficialidade, expondo mais uma trabalhadora em tempos de pandemia.
  5. As empregadas e o menino Miguel são negros. A patroa é branca e loira. A morte de mais uma criança negra ocorre em meio a um momento incendiado por protestos em defesa das vidas negras e de denúncia do racismo estrutural no mundo inteiro.
  6. O caso ocorreu em um condomínio de luxo que envolveu uma disputa judicial, iniciada pelo Ministério Público Federal para barrar a edificação das chamadas “torres gêmeas”, na época de sua construção. O motivo: estar em uma área de patrimônio histórico. As obras dos edifícios com 41 andares e 134 metros de altura, intitulados Pier Maurício de Nassau e Pier Duarte Coelho, ficam próximos de vários prédios tombados pelo Iphan. Em 2016, no filme Aquarius, Kleber Mendonça Filho retirou as torres gêmeas digitalmente da paisagem.
  7. Sarí responde em liberdade, por homicídio culposo, após pagar uma fiança de apenas R$ 20 mil. Tanto a Polícia Civil de Pernambuco como o delegado do caso, decidiram proteger a identidade de Sarí e manter suas informações em sigilo, sem confirmar se se trata efetivamente dela. As razões são óbvias: ela é rica e primeira-dama. Se fosse o oposto, “a empregada negligente e culpada” teria seu rosto estampando noticiários, sem sequer direito a fiança e defesa.
Edifício de luxo apelidado “torres gêmeas”, em Recife
O horror que é o Brasil de todo dia pareceria surreal ou “exagerado” se retratado num filme de ficção.
Uma síntese do Brasil pôde ser feita, com todos seus símbolos colonialistas e escravocratas, nos rápidos acontecimentos de uma terça-feira de outono, em pleno século XXI.

O grande apagão no ministério da Saúde

O grande apagão no ministério da Saúde

Incapaz de coordenar qualquer combate nacional à pandemia, e sem titular efetivo há duas semanas, pasta agora dedica-se a maquiar os números da covid-19. E mais: Wizard, fundamentalista bilionário, deixa o governo antes de assumi-lo
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APAGÃO ESTATÍSTICO

Primeiro foram os atrasos: como dissemos na semana passada, a partir da última quarta-feira os números atualizados da covid-19 no Brasil começaram a ser divulgados às 22h, e não mais às 19h como acontecia desde o início de maio. Os balanços feitos em entrevistas coletivas às 17h, que ocorriam quando Luiz Henrique Mandetta comandava o Ministério da Saúde, ficaram para trás há muito tempo.

A pasta argumentou que a divulgação tardia evitaria subnotificação e inconsistências. O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, foi mais explícito: “Acabou matéria no Jornal Nacional“, disse na sexta-feira, referindo-se à impossibilidade de números divulgados tão tarde entrarem no telejornal. A Globo não se fez de rogada. Deve ter provocado algumas quedas do sofá quando interrompeu a novela das nove com a vinheta do plantão de emergência. Então William Bonner entrou ao vivo, informando que os números do dia haviam acabado de sair – eram 1.005 mortes nas 24 horas anteriores, totalizando 35.026.

Naquela mesma noite veio o verdadeiro apagão. O portal do ministério que traz as informações consolidadas saiu do ar, sem explicações, e só voltou no sábado à tarde. Porém, estava… diferente. Não trazia mais o acumulado de casos e mortes registrados no país, mas apenas o total das últimas 24 horas. O número de óbitos sob investigação (que até quinta-feira era de 4.159) também desapareceu. O Brasil até chegou a sumir do ranking da Universidade Johns Hopkins, que tem sido referência em estatísticas globais na pandemia, porque as informações eram puxadas direto do site do Ministério.

Jair Bolsonaro confirmou que, dali pra frente, seria sempre assim. Justificou, ao publicar no Facebook uma nota do Ministério: é que os dados acumulados não estavam “retratando o momento do país”

Não bastasse a mudança surreal, ontem à noite o governo divulgou dados divergentes em relação à pandemia. Por volta das 20h30, soltou um balanço informando 1.382 mortes nas 24 horas anteriores, o que seria o maior número já registrado em um domingo. Mas às 22 horas, depois que a notícia já tinha circulado, esse número saiu e foi substituído por outro: 525. Uma diferença de nada menos que 857 vítimas. O número de casos, por outro lado, subiu. No primeiro balanço eram 12.581 novos registros e, no segundo, 18.912. 

Com esse inacreditável fim de semana, outro episódio de estatísticas camufladas veio à memória de muitos: entre 1971 e 1974, durante a ditadura civil-militar, uma epidemia de meningite assolou o país, especialmente São Paulo. Mas, para o governo, o melhor remédio era ignorar o problema, evitando que as mortes manchassem o ‘milagre econômico’. As autoridades sanitárias e a imprensa ficaram proibidas de falar a respeito. Mesmo após junho de 1974, quando o acúmulo de doentes tornou impossível escondê-los, a liberdade de informar sobre a epidemia não durou muito: “logo em seguida, julho ou agosto, se proibiu a divulgação de dados estatísticos a respeito da doença para ‘não alarmar a população’. O assunto era considerado de segurança nacional“, lembra, numa antiga entrevista ao Viomundo, o epidemiologista José Cássio de Moraes, um dos especialistas que tentou alertar para o problema na época.

ESFORÇO CONJUNTO

Segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, a intenção do governo não é a de esconder os dados, “Basta você somar com o dia anterior“, simplificou ontem, em entrevista.

É óbvio que as somas estão sendo feitas. Com o apagão, iniciativas que já estavam lidando com dados da pandemia no país, como Brasil.io e MonitoraCovid-19, começaram a trabalhar com os dados das secretarias estaduais. Ontem, o Conass lançou um painel próprio. O TCU, em parceria com os tribunais de contas dos estados, também deve produzir e divulgar consolidados.

Aliás… O erro nos primeiros dados divulgados pelo Ministério ontem à noite já havia sido pescado pelo pessoal do Brasil.io. Segundo Álvaro Justen, um dos integrantes da iniciativa, os números de óbitos de Roraima e Bahia divulgados inicialmente pela pasta eram muito maiores do que os registrados pelas secretarias de saúde, possivelmente devido a erros de digitação.

De acordo com o Brasil.io, o Brasil tem hoje 693.041 casos confirmados de covid-19 e 36.498 mortes. Quase 80% dos municípios já registraram infecções.

Só que a responsabilidade por divulgar informações corretas, claras e atualizadas deve ser do governo. Desde a sexta-feira, várias iniciativas no sentido de cobrar isso estão na mesa. Parlamentares da Rede Sustentabilidade, do PCdoB e do PSOL entraram com uma ação no STF pedindo que todos os dias, até as 19h30, sem adivulgados os números de casos, óbitos e pacientes recuperados das últimas 24 horas, além dos dados acumulados. No sábado, a Defensoria Pública da União entrou com um pedido de liminar com a mesma reivindicação.

E um órgão ligado à Procuradoria-Geral da República, a Câmara de Direitos Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral do MPF, abriu um procedimento extrajudicial para investigar os atrasos e omissões. A Câmara quer que o ministro interino, general Eduardo Pazuello, dê em 72 horas detalhes sobre a decisão. Além disso, a imprensa internacional deu destque à notícia absurda.

Pode ser que a pressão tenha funcionado. Ontem à noite, o Ministério da Saúde divulgou uma nota afirmando que está finalizando uma plataforma que vai trazer os números detalhados da pandemia e que “vem aprimorando os meios para a divulgação da situação nacional”… Para quem diz buscar aprimoramento, a ordem dos eventos está um pouco confusa. Se a plataforma anterior não tivesse sumido, talvez desse até para acreditar. 

RECONTAGEM DE MORTOS

Para completar, o apagão pode não ficar “apenas” na omissão dos números acumulados. O futuro (agora ex-futuro, como veremos a seguir) secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério), Carlos Wizard, disse ao Globo que o governo pretende recontar os mortos que já entraram para as estatísticas. De acordo com ele, os números que a pasta divulgava eram “fantasiosos ou manipulados”, e estados e municípios estavam inflacionando casos e mortes para receber mais recursos. “Temos uma equipe de militares trabalhando nisso, sob o comando do general Pazuello. Estamos levantando os dados e fatos. Levaremos à esfera competente”, completou, no dia seguinte, em entrevista ao Estadão.

Como não poderia deixar de ser, a fala foi imediatamente criticada. “Fico me perguntando como vai ser uma contagem retroativa de mortos. Não existe um banco de dados formal no Brasil: fora do DataSus, não há nada. Como o governo vai dizer que na linha A23 da tabela a pessoa não morreu de covid? Quais são as métricas?”, questiona Marcelo Mendes Brandão, pesquisador do Laboratório de Biologia Integrativa e Sistêmica da Unicamp, no Estadão.

Os secretários de saúde, diretamente acusados por Wizard de inflar números, defenderam-se. “Sua declaração grosseira, falaciosa, desprovida de qualquer senso ético, de humanidade e de respeito, merece nosso profundo desprezo, repúdio e asco”, escreveu Alberto Beltrame, presidente do Conass.

No fim das contas, não sabemos se o plano diabólico de Wizard vai seguir adiante, porque ontem à noite ele anunciou seu desligamento total do Ministério. Em nota, afirmou que deixaria o cargo que já ocupava como conselheiro da pasta, e que desistiu também de assumir a Secretaria, da qual tomaria posse hoje. “Peço desculpas por qualquer ato ou declaração de minha autoria que tenha sido interpretada como desrespeito aos familiares das vítimas da Covid-19 ou profissionais de saúde que assumiram a nobre missão de salvar vidas” escreveu.

A verdade é que o bilionário estava prestes a sentir no bolso o resultado de suas trapalhadas, desde a defesa apaixonada da cloroquina até a recontagem de mortos. Os nomes de das empresas de que ele é dono ou acionista, como Mundo Verde, Rainha e Pizza Hut, começaram a circular nas redes, impulsionando um movimento de boicote.

AOS PÉS DE TRUMP

Donald Trump, sabemos, tem lidado tragicamente com a covid-19 nos Estados Unidos. Em certo momento, chegou a dar uma perturbante declaração, afirmando que se o país tivesse 100 mil mortes, teria feito um bom trabalho. Até agora são 110 mil e, embora o número diário de mortes tenha caído, a situação ainda não é confortável. Mas, para sorte do presidente, há outro líder pior que ele, e bem perto. Trump, que já havia criticado Bolsonaro, foi mais incisivo nessa sexta-feira: “Se você olha para o Brasil, eles estão num momento bem difícil. E, falando nisso, continuam falando da Suécia. Voltou a assombrar a Suécia. A Suécia também está passando por dificuldades terríveis. Se tivéssemos agido assim, teríamos perdido 1 milhão, 1,5 milhão, talvez 2,5 milhões ou até mais”, disse.

Mais tarde, Bolsonaro faria mais uma tentativa de aproximar-se de sua fonte de inspiração: disse que o Brasil também pode deixar a OMS. “Ou a OMS deixa de ser uma organização política, partidária até vou assim dizer, partidária, ou nós estudamos sair de lá”, afirmou ele. Perguntado sobre o cutucão de Trump, esquivou-se: “[Trump]  É meu amigo, é meu irmão. Falei com ele essa semana, foi uma conversa maravilhosa, um abraço, Trump. O Brasil aí quer cada vez mais aprofundar nosso relacionamento”,

SUSPENSAS, SÓ QUE NÃO

O ministro Edson Fachin, do STF, determinou na sexta-feira a suspensão de operações policiais nas favelas do Rio enquanto durar a pandemia. Elas só poderão ocorrer em “hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro” e, caso deflagradas operações, a polícia deve tomar “cuidados excepecionais” para não colocar em risco a população, os serviços de saúde e a ajuda humanitária.

Mesmo com as brechas, foi uma vitória. Durou pouco, porém. Na noite seguinte, moradores do Complexo do Alemão já foram surpreendidos com um tiroteio. Eram PMs  participando de uma incursão. Questionado, o governo do Rio disse apenas que ainda não havia sido  notificado pelo STF sobre a suspensão.

DIA DE PROTESTOS

Conforme havia sido anunciado, ontem vários protestos contra Jair Bolsonaro aconteceram no país, com a defesa das vidas negras como principal grito. Houve manifestações em pelo menos 11 estados e no Distrito Federal, segundo informações da Folha. A maior delas, em São Paulo, terminou com bombas e 32 pessoas detidas.

Ontem, um editorial do Financial Times apontou Bolsonaro como alguém que “acendeu o medo” na democracia brasileira e disse que há risco crescente de uma virada autoritária. “É improvável que o Exército apoie um golpe militar para instalar Bolsonaro como um autocrata. Mas outros países devem observar: os riscos para a maior democracia da América Latina são reais e estão crescendo”, afirma o texto. E também: “Isso pode soar exagerado. Mas poucos presidentes eleitos atenderiam e contemplaria protestos nos quais os manifestantes pedem pelo fechamento do Congresso e da Suprema Corte, sendo substituídos por uma lei militar. Ainda assim, isso é o que o Sr. Bolsonaro fez – não uma, mas várias vezes. No fim de semana passado ele apareceu em uma dessas manifestações montado a cavalo”

Neste fim de semana, entretanto, não houve clima para aparições chocantes nem grandes sorrisos do presidente. Atos em favor dele também aconteceram em Brasília, em São Paulo e no Rio, mas muito mais tímidas. O próprio Bolsonaro havia pedido a seus apoiadores que não fossem às ruas no domingo, mas mesmo assim é inevitável comparar o volume de manifestantes. A multidão que ocupou avenidas ontem, apesar da pandemia, é bem maior. Fora das ruas, o presidente recebeu ainda na sexta um grupo de líderes evangélicos que oraram contra a “baderna” e o “quebra-quebra”. Disseram que quem escolhe e retira as autoridaes públicas é “Deus”. “Que Deus livre o Brasil dessa praga e dessa pandemia, que esse espírito de morte seja repreendido da nossa nação”, rogou Silias Malafaia.

Em tempo: mundo afora, multidões continuam marchando em atos antirracistas. Uma das grandes cenas do domingo veio de Bristol, na Inglaterra, onde manifestantes derrubaram uma estátua de mais de cinco metros do traficante de escravos Edward Colston. Jogaram no rio.

NO MUNDO E NOS EUA

O número de mortos por covid-19 no mundo ultrapassou a marca de 400 mil, e os infectados já passam de sete milhões. A cada quatro mortes, uma aconteceu nos Estados Unidos, que já tem mais de 110 mil óbitos e quase dois milhões de infectados.

Há um receio de que as manifestações desencadeadas pelos protestos contra o assassinato de George Floyd provoquem um novo aumento nos casos. O virologista Trevor Bedford, do Centro de Pesquisa de Câncer Fred Hutchinson, estima que cada dia de protesto resulte em cerca de três mil novas infecções. E, dadas as disparidades raciais observadas até agora na pandemia, ele acredita que as novas mortes também serão desproporcionalmente maiores entre os negros. “O benefício social de protestos contínuos deve ser pesado contra impactos substanciais em potencial à saúde”, afirma.

A reportagem do New York Times diz que manifestantes de várias cidades já relatam terem contraído o vírus. Porém, diante de um provável aumento nos casos nos próximos dias, vai ser muito difícil saber de onde eles vieram, porque os protestos acontecem ao mesmo tempo que flexibilizações do isolamento.”Você não pode colocar tudo na conta dos protestos”, afima o epidemiologista Jeffrey Shaman, da Universidade de Columbia.

Aliás, o aumento nos casos já está começando por lá. Em 23 dos 50 estados do país, houve na semana passada um aumento de pelo menos 10% em relação à média de casos semanais registrados. E o percentual é menor nos estados que começaram depois e relaxaram primeiro as medidas de isolamento.

NOVAS ORIENTAÇÕES

A OMS atualizou ontem suas orientações sobre o uso de máscaras. A principal novidade é a incusão das máscaras de tecido para a população em geral. Segundo a entidade, elas devem ter pelo menos três camadas de tecidos diferentes: a externa deve ser de tecido impermeável, como poliéster; a de dentro precisa ter um tecido que absorva água; a intermediária deve ser de um material que atue como fltro. Essas máscaras devem ser usadas em locais onde há muitos infectados, caso não seja possível manter distanciamento físico. Mas a orientação é de usar máscaras cirúrgicas (e não de pano) para quem está nos seguintes grupos: profissionais de sáude, cuidadores infectados, pessoas com 60 anos ou mais, doentes crônicos e pessoas com sintomas de covid-19.

PERSEGUIÇÃO

Falamos aqui sobre uma nota técnica do Ministério da Saúde que tratava da garantia, durante a pandemia,  de acesso a métodos contraceptivos e a aborto nos casos previstos em lei. O documento foi retirado do ar por pressão de Jair Bolsonaro, mas não foi só isso: o ministro interino, Eduardo Pazuello, exonerou dois dos três técnicos que assinavam a nota: Flávia Andrade Nunes Fialho, da coordenação de Saúde das Mulheres, e de Danilo Campos da Luz e Silva, da coordenação de Saúde do Homem. Entidades da saúde publicaram notas de repúdio.

Doze dias que abalaram os Estados Unidos

Doze dias que abalaram os Estados Unidos

Como a luta antirracista sacudiu a arrogância e planos da ultradireita. As frestas na cúpula do poder. As multidões pacíficas e o ataque a símbolos do sistema. Negros e brancos juntos nas ruas. Trump, emblema de um capitalismo sociopata
Por Richard Greeman, no Counterpunch | Tradução de Antonio Martins Simone Paz Hernández
Deflagrados pelo assassinato de George Floyd pela polícia e alimentados pela relutância das autoridades de Minneapolis em prender e processar os três cúmplices do assassino, os protestos de multidões varreram os estados Unidos como intensidade inédita desde os anos 1960. Em mais de 150 cidades, os afro-americanos e seus aliados encheram as ruas, enfrentando a pandemia de covid-19 e a violência da polícia. Desafiaram séculos de desigualdades de raça e classe, exigindo liberdade de justiça para todos e colocando em xeque uma estrutura de poder racista e corrupta, baseada em repressão violenta.
1. Brechas nas defesas do sistema:
Depois de dez dias seguidos na ruas, a indignação popular contra a injustiça sistemática abriu diversas brechas no muro de defesa do sistema. As autoridades legais do estado de Minnesota, onde Floyd foi morto, foram forçadas a prender e indiciar todos os policiais envolvidos, por homicídio de segundo e terceiro graus. Surgiu uma divisão na cúpula do poder nacional, onde secretário de Defesa e diversos generais do Pentágono divergiram de seu comandante-em-chefe, Donald Trump, que tentou mobilizar o exército contra os manifestantes.
Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>>
Protesto em Nova York, em 3/6/2020
O levante histórico é um transbordamento da raiva acumulada dos negros, em décadas de assassinatos policiais. Ele articula o luto acumulado de famílias e comunidades, o ultraje diante da impunidade de policiais assassinos tanto no Norte quanto no sul do país. Reflete a ira diante da traição do “sonho” de Martin Luther King de uma revolução não violenta e o horror diante da volta de uma era de linchamentos públicos, estimulada por Trump. A revolta demanda, com impaciência, que os EUA enfim cumpram seus alegados ideais democráticos. Nas palavras de um manifestantante negro, William Achukwii, de 28 anos, de São Francisco: “Nossa Declaração de Independência fala de vida, de liberdade e de busca da felicidade. Agora, estamos tratando da parte que diz respeito à vida. É o primeiro passo. Mas é por liberdade que muitas pessoas estão marchando”.
2. Violência e Não Violência:
Não foi nenhuma surpresa que autoridades locais e estaduais, em todo o país, reagissem a protestos muito majoritariamente pacíficos e espontâneos desencadeando uma espiral de violência policial militarizada [1]. Há muitos anos, a Casa Branca oferece silenciosamente, aos governos locais, enormes volumes de material militar excedente – inclusive tanques de guerra. Os chefes de polícia ansiavam por brincar com seus novos brinquedos letais, concebidos para liquidar a contra-insurgência em lugares como o Afeganistão. Tanto sob presidentes republicanos (Bush e Trump) quanto sob democratas (Clinton e Obama), o Estado armou as forças da ordem para uma contrarrevolução preventiva. É a isso, precisamente, que se referiu Trump, quando pediu “controle completo”, por meio de repressão militar, detenções em massa e longas sentenças de prisão em nome da “lei e da ordem”. Graças à determinação das multidões de manifestantes, quase sempre não violentos, os militares dividiram-se e Trump não foi capaz de executar sua ordem.
A respeito da violência, temeu-se no início que os numerosos incidentes de incêndios, destruição de vitrines e saques – especialmente à noite, quando as grandes multidões de manifestantes haviam voltado para casa – pudessem de alguma maneira distorcer o levante e oferecer u pretexto para a supressão violenta de todo o movimento. E o que pediu Trump, que culpou um imaginário grupo terrorista chamado ANTIFA (abreviação de “anti-fascismo”, na verdade uma rede decentralizada). Ao mesmo tempo, relatos de gangues de racistas brancos usando chapéus MAGA (“Make America Great Again – Faça os EUA grandes de novo”) e cometendo atos de vandalismo; ou de “aceleracionistas” atiçando fogo em comunidades negras para “provocar a revolução; ou de provocadores violentos da polícia não podem ser menosprezados totalmente.
Protesto em Boston, em 31/5/2020
Tais ações jogam água no moinho de Trump. Contudo, as vocês mais sensatas das centenas de milhares de manifestantes não violentos, porém irados, talvez não tivessem sido ouvidas pelas autoridades se não houvesse, nas bordas, a ameaça da violência. Em vez de incendiar suas próprias comunidades, com ojá aconteceu em rebeliões passadas,os militantes de agora estão atingindo estrategicamente símbolos da repressão estatal e do capitalismo. Incendeiam e destroem aparatos da polícia, jogam lixo nas lojas de corporações bilionárias e chegam a pressionar as cercas da Casa Branca. De qualquer forma, já que se falou de “saques”, a porta-voz dos Black Lives Matter lembrou, no funeral de George Floyd, que brancos saqueiam a África e os afroamericanos há séculos. Reparações são há muito necesssárias.
3. Convergência de Antirracistas Negros e Brancos:
O mais notável e comovente, ao ver as faces apaixonadas dos manifestantes, em fotos, vídeos e relatos da TV e dos jornais, é perceber que ao menos metade dos que gritavam “Black Lives Matter” eram brancos. Também aqui, abriu-se uma imensa brecha no muro de racismo estrutural e institucionalizado que permitiu por décadas, à classe dominante norte-americana, dividir e submeter as massas trabalhadores. Ela aprendeu a jogar os escravos, e seus descendentes discriminados, contra os escravos assalariados brancos, numa corrida competitiva pra baixo. Agora, os oprimidos estão se unindo para lutar por justiça e igualdade. Também é notável o papel de liderança das mulheres, especialmente negras, tanto na fundação do movimento #BlackLivesMatter quanto na Marcha das Mulheres diante da posse de Trump. A participação de jovens e velhos, de LGBTs e de portadores de deficiência também dev ser destacada.
Manifestantes em Nova York, em 2/6/2020
Esta convergência de lutas pela liberdade, em meio a divisões étnicas profundamente enraizadas promete abrir novas avenidas, assim que os movimentos sociais emergirem do confinamento pela pandemia. Ainda mais notáveis, embora limitados, foram os casos de policiais que se desculparam individualmente pela violência policial, abraçando vítimas e se ajoelhando diante dos manifestantes. Autoridades como o prefeito de Los Angeles foram obrigadas também a se encontrar com os que estavam nas ruas e se desculpar por declarações racistas. Mais ainda: como veremos a seguir, surgiram divisões importantes na unidade dos militares norte-americanos, tanto em sua base – que é composta em 40% de negros – quanto entre os altos escalões. É enorme a potência deste movimento inter-racial, auto-organizado e massivo, que exige “liberdade e justiça para todos”, citando as belas palavras do Juramento de Fidelidade à República.
4. Divisões no interior do regime:
Depois de dez dias em que os protestos cresceram sem parar, tanto numericamente quanto na profundidade de seus sentidos, começaram a surgir divisões na defesa da classe dos bilionários. Elas chegaram à Casa Branca, onde Donal Trump, governante auto-iludido, ignorante e mentiroso patológico, foi finalmente desafiado por seus próprios assessores de segurança.
Vale dizer que a classe governante bilionária tem, em Trump, o representante que merece; e a inépcia do presidente, visível para todos, é simbólica da incapacidade desta classe para manter o direito a governar. A personalidade cindida e autocentrada de Trump encarna os estreitos interesses de classe do 0,1%, que concentram mais de metade da riqueza do país. Seu egoísmo óbvio expressa o dos bilionários que ele representa (e entre os quais finge figurar. Do alto de sua ignorância intencional, Trump fala de uma classe capitalista corporativa indiferente às consequências sociais e ecológicas de sua ânsia sem limites em acumular, seu desprezo à verdade, à justiça – e, ao final de contas, à própria vida humana.
Manifestantes na Carolina do Norte, em 30/5/2020
O governo patético de Trump embaraça o próprio Estado. Primeiro, veio o espetáculo pueril do homem mais poderoso do mundo agachado no bunker do porão da Casa Branca e determinando que as luzes fossem apagadas (para que ao manifestantes não pudessem enxergar o lado de dentro?). Em seguida, veio a ordem de atacar manifestantes pacíficos com armas químicas, para “limpar terreno” a sua caminhada até a “Igreja do Presidente” (à qual ele nunca comparece, e cujo pastor ele não se dignou a consultar), para que o fotografassem agarrado a uma Bíblia branca e enorme (que, muito provavlemente, ele nunca leu).
Trump, cujo único êxito alcançado na vida foi o prolongado reality-show “O Aprendiz”, aparentemente imaginou esta pirueta publicitária bizarra para entusiasmar sua base política de cristãos de direita e mostrar quão “religioso” é. Mas o tiro saiu pela culatra quando o bispo de Washington lembrou que Jesus pregou por paz e amor, não por guerra e vingança. No dia seguinte, até mesmo demagogos como Pat Robinson e a Coalizão Cristão, de ultradireita, falaram contra ele, enquanto o New York Times, anti-Trump, destacava em triunfo: “Popularidade de Trump cai onde ele não pode perdê-la: entre os evangélicos”.
Vale, em pausa, notar que a cristiandade, como todos os outros aspectos da civilização americana, é um nó de contradições, todas enrizadas no problema fundamental da “linha de cor”. Embora a direita cristã – conservadora e pró-Israel – tenha sido central no apoio a Trump, a Teologia da Libertação e a Igreja Negra são há muito base do Movimento pelos Direitos Civis, em favor da igualdade. Na verdade, George Floyd, o afro-americano assassinado (conhecido como Big Floyd e Gigante Gentil) era, ele próprio, um apaziguador comunitário, motivado pela religião. Também o são muitos dos manifestantes, negros e brancos, que entoam: No Justice, No Peace.
Os falsos gestos populistas de Trump podem ter ajudado a catapultá-lo ao poder em 2016 (graças a um sistema eleitoral fraudado pelos republicanos e apesar de ter recebido três milhões de votos a menos que sua adversária). Mas, como Abraham Lincoln certa vez notou, “é possível enganar parte do povo, o tempo todo; e todo o povo, parte do tempo – mas não é possível enganar o povo todo, o tempo inteiro”. Agora, o tempo de Trump acabou.
Manifestantes em Minneapolis, em 28/5/2020
5. Polícia, os cães ferozes da burguesia:
Para mim, a imagem mais emblemática dos protestos é a de um Donald Trump auto-iludido, agachado (como Hitlher) no seu bunker subterrâneo, com as luzes da Casa Branca desligadas, tremendo de medo e de raiva diante dos manifestantes do lado de fora e ameaçando atirar “cães ferozes (puramente imaginários) contra eles. Trump tem a mentalidade de doberman de um proprietário de ferro-velho no Queens. Ele é o descendente espiritual do capitão do mato Simon Legree, nos calcanhares da escrava Eliza, com seus cães, em Uncle Tom’s Cabin).
Cães ferozes da burguesia. É o que a polícia é paga para ser. (Mesmo que alguns políciais possam converter-se em pastores alemães amistosos, como aqueles que ajoelharam com os manifestantes). Seus caninos são os dentes afiados do Estado norte-americano. Junto com o exército, os policiais são a essêncial do Estado profundo real, que Marx definiu como “corpos especiais de homens armados, tribunais, prisões, etc”. (Opondo-os ao “povo armado” em guerrilhas democráticos).
Embora subserviente ao Estado burguês, este aparato policial, como a Máfia – com o qual muitas vezes se entrelaça – tem uma identidade corporativa, baseada na omertà, ou lealdade a um grupo estrito. Esta lei não escrita, de um notório “Muro Azul de Silêncio” [orig,: “Blue Wall of Silence”], evita que policiais, ao presenciarem abusos de seus “irmãos”, falem ou testemunhem contra eles. O muro azul garante a impunidade policial, e é organizado por meio de “sindicatos” policiais que, embora filiados à AFL-CIO, são violentamente reacionários, anti-trabalhadores e pró-Trump. O presidente do Sindicato Internacional de Policiais foi filmado usando um chapéu “Make America Great Again” e apertando a mão de Trump num encontro político, enquanto os manifestantes em Minneapolis exigem a remoção de Bob Kroll, o presidente do sindicato local de policial, amplamente criticado por sua apoio inabalável a colegas acusados de abusos.
O Muro Azul de Silêncio estende-se a uma rede que inclui promotores e mesmo prefeitos progressistas, como Bill Di Blazio, em Nova York. Ele defendeu policiais que atiraram seus carros sobre uma multidão de manifestantes, embora sua própria filha, mestiça, tenha sido presa por manifestar-se! Di Blazio, como seu antecessor reacionário, Rudy Giuliani, hoje conselheiro de Trump, sabe que seu futuro político depende da boa vontade do sindicato policial (até mesmo proprietários de ferro-velhos têm medo de seus cães ferozes).
Este acobertamento contumaz da polícia atingiu mesmo a cobertura inicial do New York Times sobre os violentos ataques da polícia contra a imprensa em Minneapolis e outras cidades. Em seu relato, o jornal escondeu-se por trás de uma estranha noção de “objetidade” (acuse ambos os lados) para evitar acusar policiais, observando o “muro azul de silêncio”, mesmo quando os repórteres foram vítimas. (Até agora, mais de mil ataques assim foram registrados). Usando a voz passiva, ao invés de nomear os abusadores reais (policiais racistas brutais), o jornal comparou um incidente isolado, em que um grupo de manifestantes atacou jornalistas da rede pró-Trump FOX, com ataques sistemáticos e generalizados da polícia contra membros da mídia [2].
Uma semana depois, este sacrossanto Muro Azul está começando a ruir. O governador de Minnesota foi forçado a ampliar as acusações contra Derek Chauvin, o assassino de George Floyd, para assassinato em segundo grau (por que não primeiro?) e a prender três de seus colegas cúmplices. Agora, eles começaram a se acusar mutuamente. Ameaçado por uma sentença de 40 anos de prisão e uma multa de ao menos US$ 750 mil, Tomas Lane e J. Alexander Kueng, ambos novatos, estão acusando Chauvin, o oficial sênior presente à cena, enquanto Tou Thao, o outro ex-oficial encarregado do caso, teria cooperado com as investigações antes da prisão de Chauvin [3].
Manifestante grita a policiais na frente da Casa Branca, em Washington, em 31/5/2020
6. Raça e Classe na história dos EUA
A sociedade estadunidense tem enfrentado inúmeras contradições desde o início, e essas contradições, enraizadas na raça e na classe, ainda hoje são disputadas nas ruas de mais de 150 cidades dos EUA. As revoltas atuais, interraciais desde o início, expressam a frustração popular de que, mesmo após séculos de luta contra a escravidão, depois de uma Guerra Civil sangrenta e fratricida em 1860 e de uma “Segunda Revolução Americana”, mesmo depois do movimento pelos Direitos Civis e das manifestações de rua dos anos 60, a vida dos descendentes de escravos negros ainda não seja segura no primeiro país que proclamou o direito humano à “vida, liberdade e busca da felicidade”.
Manifestantes cruzam ponte em Nova York, em 4/6/2020
A Revolução Americana do século XVIII adotou o princípio universal, conforme expresso na Declaração de Independência de 1776, de que “todos os homens são criados iguais e dotados de certos direitos inalienáveis”. No entanto, essa igualdade prometida foi simultaneamente contraditória ao incluir cláusulas na Constituição dos EUA que não apenas institucionalizaram a escravidão negra na República Americana, como também garantiram a predominância permanente dos estados escravistas do Sul no governo federal.
O sistema eleitoral criado pela Constituição dos EUA, com base nas populações masculinas relativas de vários estados, permitiu que os sulistas incluíssem seus escravos como “três quintos de um homem” (!). Assim, essa minoria de proprietários de escravos do Sul poderia superar o Norte, que era mais populoso, e dominar a União. Esse “compromisso” hipócrita foi o preço da unidade nacional em uma nação “meio livre, meio escrava”. Do mesmo modo, dez dos doze primeiros presidentes americanos eram proprietários de escravos, e sucessivos “compromissos” favoráveis aos interesses dos proprietários de escravos foram introduzidos à medida que novos estados foram adicionados à União, espalhando o império de escravos do Sul cada vez mais a oeste. Esta União Federal, precária e desigual, com base no domínio sulista, se manteve até 1860.
Memorial a George Floyd, em Minneapolis
No entanto, quando Abraham Lincoln, um moderado do Norte, se tornou presidente em 1861, a maioria dos estados escravocratas se separou da União, formou uma Confederação rebelde e declarou uma guerra nos Estados Unidos, buscando reconhecimento da Grã-Bretanha, principal cliente de algodão escravo da Confederação. Com frequência, ouvimos o argumento de que a guerra civil norte-americana — que durou quatro anos e registrou taxas de vítimas mais altas até do que a Primeira Guerra Mundial — não “dizia respeito à escravidão”. Mas dizia. Para esconder essa verdade vergonhosa, os sulistas brancos ainda a chamam de “Guerra entre os Estados”. No entanto, a guerra foi precipitada por abolicionistas brancos como John Brown, que ajudaram e provocaram rebeliões de escravos. Além disso, o grande número de jovens agricultores e mecânicos que se voluntariaram e até se alistaram para lutar pelo Norte sabia que estavam lutando pela liberdade humana, como indicava sua correspondência com as famílias e os jornais da cidade.
De fato, a Guerra Civil, esse impasse longo e sangrento, só foi vencida pelo Norte depois que Lincoln liberou o poder de luta dos escravos negros do Sul, ao declarar, enfrentando muita resistência, a Proclamação de Emancipação. Os escravos fugiram das fazendas e uniram-se aos exércitos da União, privando o sul branco de grande parte de sua força de trabalho negra. O Exército da União os alimentou, colocou-os para trabalhar de imediato e depois os matriculou em regimentos negros que lutaram com bravura e eficácia para derrotar a escravidão. De que maneira isso “não diz respeito à escravidão”?
Enquanto isso, na Inglaterra, os trabalhadores têxteis contrários à escravidão vinham boicotando a Confederação, exportadora de algodão. Karl Marx, em favor desse movimento, enfatizou a base de classe para uma expressão idealista da solidariedade inter-racial proclamando: “O trabalho na pele branca nunca poderá ser livre enquanto o trabalho na pele negra for marcado”. Os trabalhadores afro-americanos nos EUA não são mais “marcados” como seus ancestrais escravizados, mas até hoje a cor de sua pele os marca e torna vítimas de opressores, como chefes, proprietários e bancos, além da violenta polícia racista que, até agora, tinham assumido que poderia maltratar, e até matá-los, com total impunidade.
Manifestantes em Minneapolis, em 29/5/2020
Assim, enquanto a polícia continua atacando os manifestantes e enquanto Trump e seus seguidores pedem a militarização do país em nome da proteção à propriedade, lei e ordem, está claro que foi aberta uma brecha no Muro Azul do Silêncio. Ela protege os privilégios da classe bilionária contra o poder das massas trabalhadoras, que hoje enfrentam não apenas uma crise política, mas também a crise de uma pandemia em curso — a crise da pobreza e do desemprego em massa e a iminente crise climática da qual o Covid é um precursor sintomático.
Como os trabalhadores britânicos nos dias de Marx, os manifestantes brancos “privilegiados” de hoje, vítimas em menor grau do capitalismo americano, sabem em seus corações que eles “nunca poderão ser livres” e nunca estarão a salvo da violência do Estado até que as Vidas Negras realmente importem e as peles pretas não sejam mais “marcadas”. Eles sabem que “Negros e Brancos unidos na luta” (Black and White Unite and Fight) é a única maneira possível de frear o governo autoritário, de impedir o fascismo, estabelecer a democracia, instituir a igualdade de classes e enfrentar o futuro.

Notas de rodapé:
1) https://www.nytimes.com/2020/05/31/us/police-tactics-floyd-protests.html Diante de protestos contra o uso da força, a polícia responde com mais força. Vídeos mostram policiais usando cassetetes, gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha em manifestantes e espectadores. 
2) O grito de um repórter na TV ao vivo: “Estou sendo baleado! Estou sendo baleado!”
https://www.nytimes.com/2020/05/30/us/minneapolis-protests-press.html?
“De uma equipe de televisão agredida por manifestantes a um fotógrafo atingido nos olhos, os jornalistas se viram atacados nas ruas dos EUA. Linda Tirado, uma fotógrafa freelancer, ativista e escritora, foi baleada no olho esquerdo na sexta-feira enquanto cobria os protestos de rua em Minneapolis. Tirado é uma de tantos jornalistas em todo o país que foram atacados, presos ou ameaçados — algumas vezes pela polícia, outras por manifestantes — durante a cobertura dos levantes que ocorreram em todo o país após a morte de George Floyd em Minneapolis. Certos de que a mídia se atrasaria em reportar os casos, jornalistas foram atingidos.” 

Militares, ciências, Educação Popular.

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