Thursday, April 28, 2016

A admissibilidade do impeachment e o pragmatismo evangélico. Entrevista especial com Magali Cunha

A admissibilidade do impeachment e o pragmatismo evangélico. Entrevista especial com Magali Cunha

“A crise política e a decorrente crise econômica que geraram a perda de credibilidade da Presidente durante o ano de 2015, provocando todos os protestos e fortalecendo a campanha pró-impeachment que permeou toda a discussão política neste ano, só fizeram ressaltar o pragmatismo entre os políticos evangélicos e as lideranças de suas igrejas, a ponto de a Igreja Universal do Reino de Deus, até então grande apoiadora, retirar-se do governo por meio da saída do PRB da base aliada”, afirma a pesquisadora.
Foto: Revista Fórum
O “pragmatismo” e o “jogo de interesses” se impõem na composição da Frente Parlamentar Evangélica - FPE, que fez campanha “a favor da abertura doprocesso de impeachment na bancada, revelando até mesmo antes da sessão apoio ao vice-presidenteMichel Temer”, diz Magali Cunha à IHU On-Line. Segundo ela, depois de a FPE ter apoiado o governoLula e o primeiro mandato da presidente Dilma, hoje está mais próxima do vice-presidente e já declarou “apoio formal” a um possível governo Temer, “apagando a memória de que estes mesmos religiosos conservadores fizeram campanha contra a chapa de Dilma Rousseff em 2010, acusando-a de ‘satanista’”. A postura da FPE, afirma, demonstra sua investida para “estar ao lado de quem se revela fortalecido, como de quem, certamente, favorecerá aspautas conservadoras tão caras aos evangélicos que se sentem à vontade hoje, no parlamento, para trabalhar retrocessos”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Magali informa que, segundo dados divulgados pela FPE, 91 nomes foram apresentados na lista dos apoiadores e contrários ao impeachment da presidente Dilma. Contudo, frisa, tal lista deve ser “denominada ‘mista’, pois há nela muitos católicos, inclusive praticantes, ligados à Renovação Carismática, e muitos deputados eleitos com apoio de igrejas evangélicas, por conta de compromissos regionais, mas não são vinculados a elas”.
Segundo ela, “a lista registrada na Câmara diz muito em termos das alianças que os deputados evangélicosconseguiram formar em torno de suas propostas: são signatários aqueles que se unem aos deputados evangélicos em suas pautas apesar de não professarem sua fé. E aí o número é bem significativo: são 199 deputados e quatro senadores. É um número de peso numa votação na Câmara, levando-se em conta que apenas sete votaram contra o impeachment. Se considerarmos os que são evangélicos de fato, já seria um número a fazer diferença, caso a bancada fosse contrária à admissibilidade do processo”.
Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Atualmente é professora da Universidade Metodista de São Paulo, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, onde está integrada à Linha de Pesquisa Comunicação Midiática nas Interações Sociais.
Confira a entrevista.
Foto: http://www.pavablog.com/
IHU On-Line - Qual foi o peso dos religiosos de modo geral e da Frente Parlamentar Evangélica - FPE na votação da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados? Caso a bancada votasse contra a admissibilidade, isso teria feito diferença em termos de números?
Magali Cunha - É sempre bom registrar que há muita controvérsia quando tratamos a "Bancada Evangélica" em termos de números, especialmente quando se aborda "Bancada Evangélica" como sinônimo de "Frente Parlamentar Evangélica". Eu prefiro, nas minhas pesquisas, distinguir as duas, apesar de, quando criada e registrada em 2003, a FPE fosse composta de deputados esenadores de igrejas evangélicas, identificados com a fé evangélica.
O levantamento que fiz de eleitos em 2014 com este perfil (não considerados os suplentes e os que se declararam evangélicos em momento posterior às eleições) revelou 72 nomes (publicados na época pela IHU-On Line).
No entanto, após o Ato da Mesa da Câmara, n. 69, de 10/11/2005, que formalizou a existência de Frentes Parlamentares para que pudessem fazer uso de recursos da Câmara, a FPE do Congresso Nacional registrada, em 2015, para a 55ª Legislatura (2015-2018), é composta por 203 signatários, conforme informação oficial da Câmara dos Deputados.
É interessante que a própria FPE, quando divulgou listas de apoiadores e contrários ao impeachment da PresidenteDilma Rousseff como campanha para que os evangélicos pressionassem os indecisos, apresentou 91 nomes. Fato é que na lista registrada na Câmara, a frente deveria ser denominada "Mista", pois há nela muitos católicos, inclusive praticantes, ligados à Renovação Carismática, e muitos deputados eleitos com apoio de igrejas evangélicas, por conta de compromissos regionais, mas não são vinculados a elas.
No levantamento mais recente que fiz, pesquisando em páginas eletrônicas e redes sociais digitais dos deputados e das igrejas indicadas como vinculação nestas listas, cheguei a 94 nomes (contando os licenciados e suplentes em exercício) - cinco deles não considerados na lista da FPE (votaram contra o impeachment).
De qualquer forma, creio que a lista registrada na Câmara diz muito em termos das alianças que os deputados evangélicos conseguiram formar em torno de suas propostas: são signatários aqueles que se unem aos deputados evangélicos em suas pautas apesar de não professarem sua fé. E aí o número é bem significativo: são 199 deputados e quatro senadores. É um número de peso numa votação na Câmara, levando-se em conta que apenas sete votaram contra o impeachment. Se considerarmos os que são evangélicos de fato, já seria um número a fazer diferença, caso a bancada fosse contrária à admissibilidade do processo.

“É notar uma mudança na atuação da bancada evangélica com a defesa de pautas conservadoras e reacionárias a avanços sociais alcançados, especialmente aqueles no campo dos direitos sexuais e de gênero

IHU On-Line – Na última semana, muito se disse em relação à postura dos deputados brasileiros na votação da admissibilidade do impeachment na Câmara, que não apresentaram argumentos para a votação. Neste ponto, como se posicionaram os religiosos e a FPE?
Magali Cunha - A postura foi a mesma: superficial, vazia. Ao se estudar cada um dos discursos que precederam o voto, eles são dedicações "à família" ou a nomes de pessoas da família, às cidades de vinculação, a Deus, às igrejas a que pertencem, aos cristãos em geral, até mesmo à Nação de Israel (!). Menos de uma dezena fez alguma menção ao processo, de que existe crime de responsabilidade, sem, no entanto, se explicitar qual.
IHU On-Line - Como tem se dado a atuação política dos religiosos e da FPE nos últimos anos? Que pautas eles têm defendido?
Magali Cunha - Desde a legislatura 2011-2014, é possível notar uma mudança na atuação da bancada evangélica com a defesa de pautas conservadoras e reacionárias a avanços sociais alcançados, especialmente aqueles no campo dos direitos sexuais e de gênero. Como encontraram eco nesse discurso com a parcela conservadora da sociedade brasileira, incomodada com as mudanças, foram fortalecidos nestas pautas.
O episódio da indicação do deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados em 2013 foi mais um fator que potencializou esta força que a bancada estava adquirindo, o que motivou o lançamento da candidatura do Pastor Everaldo (PSC) à Presidência da República em 2014, como “candidato dos evangélicos”. Tudo isto tornou possível a reconfiguração da bancada evangélica como uma força conservadora no Congresso Nacional. Junto com isto, soma-se o fato de que o corpo parlamentar eleito em 2014 tem o perfil mais conservador desde a ditadura civil-militar.

Então, nesta legislatura, vemos a bancada evangélica avançando para além das pautas da clássica moralidade religiosa, de controle dos corpos, para apoiar explicitamente e até mesmo liderar pautas como a diminuição damaioridade penal, a PEC “Ruralista” 215, da Demarcação das Terras Indígenas, a terceirização do trabalho, entre outras. Este é um fenômeno muito novo, amplificado pela eleição do deputado evangélico Eduardo Cunha à Presidência da Câmara, já que ele foi o facilitador destas pautas.
IHU On-Line - Como os religiosos e a bancada se relacionaram com os governos Lula e Dilma?
Magali Cunha - Em geral, a relação dos evangélicos com os governos é definida por um forte pragmatismo. Se Lula em 1989 era interpretado e disseminado nas igrejas como representante do mal e perseguidor de cristãos, com os ventos soprando outros ares em 2002, Lula foi eleito com amplo apoio da Igreja Universal do Reino de Deus - que passou a ocupar o partido fundado pelo então vice-presidente da República José de Alencar, o PRB -, de parcelas daAssembleia de Deus e de muitos segmentos evangélicos mais progressistas. Houve afagos dos governos Lula e Dilmaaos evangélicos, como a indicação de ministros do PRB ligados à Igreja Universal, e o amplo acesso de lideranças religiosas a segmentos governamentais.
No entanto, os avanços sociais que tocaram em temas caros às lideranças evangélicas, predominantemente conservadoras, aqueles da moralidade cristã em relação ao corpo, que Lula evitou ressaltar, vieram à tona com força na campanha de Dilma Rousseff em 2010. E isto foi o pano de fundo para uma articulação conservadora naquela mesma campanha de 2010, que, a partir do reforço da bancada na nova legislatura, descrito aqui, ganhou fôlego nacampanha de 2014, atingindo em cheio o segundo governo Dilma, eleito já com dificuldade.
crise política e a decorrente crise econômica que geraram a perda de credibilidade da Presidente durante o ano de 2015, provocando todos os protestos e fortalecendo a campanha pró-impeachment que permeou toda a discussão política neste ano, só fizeram ressaltar o pragmatismo entre os políticos evangélicos e as lideranças de suas igrejas, a ponto de a Igreja Universal do Reino de Deus, até então grande apoiadora, retirar-se do governo por meio da saída doPRB da base aliada. O mesmo ocorre com a parcela da Assembleia de Deus que vinha no apoio ao governo.

“A bancada evangélica não representa os evangélicos

 
IHU On-Line – É possível identificar qual é a posição política dos religiosos e da bancada evangélica hoje?
Magali Cunha - Estão muito fortalecidos como um bloco conservador que articula pautas. Fizeram uma campanha forte pelo voto a favor da abertura do processo de impeachment na bancada, revelando até mesmo antes da sessão apoio ao vice-presidente Michel Temer, e tiveram sucesso no resultado. E ainda têm o amplo apoio dasgrandes mídias que reforçam suas posições e de seus apoiadores, como é o caso da acreditação do Pastor Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo) como porta-voz dos evangélicos, tendo farto espaço no noticiário para opinar sobre as situações que envolvem as disputas políticas.
É uma investida interessante, pois ela se contrapõe à postura dos eleitores evangélicos quando se trata de cargos majoritários. Vide o fracasso da candidatura do Pastor Everaldo, e a vitória de Dilma Rousseff apesar de toda a campanha de oposição. Isso também pode ser percebido em outros níveis, como a não eleição de Marcelo Crivella ao governo do Rio de Janeiro e de Celso Russomano à prefeitura de São Paulo. A bancada evangélica não representa os evangélicos, mas pela falta de discussão mais pública/acessível sobre isto, é justamente o oposto o que esses políticos usam em suas campanhas.
IHU On-Line - O que deve mudar num eventual governo Temer em termos de pautas? Como deve ser a relação deles, que já estão mais próximos do vice-presidente?
Magali Cunha - Já estão próximos e já declararam apoio formal, apagando a memória de que estes mesmos religiosos conservadores fizeram campanha contra a chapa de Dilma Rousseff em 2010, acusando-a de “satanista”. É o pragmatismo e o jogo de interesses que fala mais forte, sempre, tanto do ponto de vista de se estar ao lado de quem se revela fortalecido, como de quem, certamente, favorecerá as pautas conservadoras tão caras aos evangélicos que se sentem à vontade hoje, no parlamento, para trabalhar retrocessos.
Por Patricia Fachin

Feitiçaria, golpe e fim de ciclo

Feitiçaria, golpe e fim de ciclo

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160427-Ritual
Como em certos rituais indígenas, sistema político busca, pelo impeachment, purgar seus fantasmas… e se acomodar com isso. Mas tal farsa só é possível porque um projeto político está esgotado
Por Ricardo Cavalcanti-Schiel | Imagem: Coppo di Marcovaldo,Inferno (1260-70)

O Brasil tem vivido nas últimas semanas uma intensa guerra discursiva. Na noite do último dia 17 teve lugar seu primeiro desenlace. Por impressionantes 25 votos além dos dois terços necessários do plenário, a Câmara dos Deputados aprovou a continuidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, que vai agora para o Senado, casa que, conforme a Constituição, tem a “competência privativa” para julgar os presumidos “crimes de responsabilidade” imputados à presidente e destituí-la do cargo em consequência disso. No entanto, trata-se de um julgamento político, no qual o reconhecimento desses “crimes” poderia não demandar una estrita definição jurídica, como recentemente chegou a insinuar o STF, cujo presidente dirigirá a sessão de julgamento do Senado. Disso se trata a guerra discursiva, pois o casuísmo de todo o processo o torna muito próximo de um simples golpe de Estado.
Algo similar ocorre em algumas sociedades indígenas, com o fenômeno que os antropólogos chamamos de “acusação de feitiçaria”. Não se trata, nesse caso, de comprovar a feitiçaria em si, como encadeamento causal objetivo, mas, uma vez tomada ela como pacífica, põem-se em movimento outros mecanismos sociais (outros encadeamentos lógicos) que especificarão a figura do feiticeiro, atribuindo-a a alguém em particular, seja por conta de seus defeitos éticos seja simplesmente por conta da fragilidade da sua posição social. A partir daí, vários destinos podem aguardar os eventuais feiticeiros, inclusive (como em uma das sociedades em que trabalhei) sua morte a golpes de facão. A acusação de feitiçaria é quase sempre uma maneira (talvez a mais contundente) de uma sociedade se purgar dos seus fantasmas… e se acomodar com isso. Evidentemente que a ausência de objetividade intrínseca, no caso da acusação de feitiçaria, conspira contra a episteme jurídica moderna, daí a que os ocidentais muitas vezes chamarem procedimentos dessa classe de “medievais”. Mas… e na política? pode-se tudo? inclusive em casos em que se trata de uma irremediável imbricação com a lógica jurídica, da qual um processo qualquer extrai seu próprio fundamento de legalidade?
Mais que fragilidade, o governo Dilma parece ter chegado ao ápice da sua nulidade. Sem iniciativa política, encastelado no mito tecnocrata da suficiência da gestão, perdendo-se em iniciativas equivocadas, abraçando programas que traem tudo o que prometeu nas eleições, caçoando, enfim, dos seus próprios eleitores, o atual governo do Partido dos Trabalhadores (PT) não se parece em nada com o programa histórico que alentou essa sigla em suas duas primeiras décadas de existência. Reflexo pálido do “lulismo”, de seu programa de conciliação de classes e de uma inclusão via consumo ― sem mover uma palha nos termos da regulação da cidadania, conforme a lógica pré-existente do privilégio―, o governo Dilma pretendeu ser a governanta de una casa política em processo de ruína, uma vez ido abaixo o boom das commodities. Estabeleceu-se com ministérios provavelmente os mais inexpressivos de toda a história política brasileira e não soube (tanto quanto não quis) estabelecer canais de entendimento, seja com os movimentos sociais seja com os setores produtivos (exceto o agronegócio latifundiário ―para desespero dos ambientalistas e defensores dos direitos indígenas). Para culminar, abraçou toscamente o austericídio neoliberal e lançou o país na maior recessão econômica dos últimos cem anos.
Por outro lado, o programa político do lulismo, sua opção maximizada pelo consumo e sua escusação da cidadania por meio da pretensa suficiência dos expedientes assistenciais, engendraram uma forma de antipolítica que esvaziou não apenas a antes pujante mediação organizativa da representação social, como também os valores do coletivo e da participação, em nome do individualismo das “oportunidades”. A miragem do lulismo consistiu na ideia de que a gestão da máquina governativa e seus programas cosméticos de distribuição seriam suficientes para proporcionar uma inclusão social que não precisaria se traduzir em ampliação de direitos e em nos valores de uma sociabilidade não excludente. A miragem do lulismoexpressou-se, em último termo, como uma recusa da política, uma recusa da dimensão coletiva e da representação. A reificação da “gestão”, na figura de Dilma Rousseff, é apenas a lapidação lógica dessa miragem.
resultado, por fim, foi a eleição, junto com o segundo mandato de Dilma, do parlamento mais conservador desde o final da ditadura; um parlamento fragmentado em 28 partidos, mas que, na prática, é dominado por um grupo de 120 deputados pessoalmente fieis ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, inimigo encarniçado da presidente, e sobre quem, há 25 anos, pesam consistentes acusações judiciais por corrupção. A renúncia do PT em fazer política por meio da mobilização social produziu esse mesmo Congresso que no último domingo assestou um pesado golpe contra o mandato da presidente.
Ao se absolutizar o processo de impeachment como julgamento político, o que os fatos desse domingo propiciariam seria a caução da absoluta fragilidade do governo no Executivo diante da Câmara ― presumidamente, esta, uma representação mais “capilarizada” da sociedade: os representantes do povo “no varejo”. De maneira que, simbolicamente, o julgamento sobre o mandato da presidente já chegaria ao Senado em condições de desvantagem para ela. Mais uma vez, estamos em plena guerra discursiva: se se trata de uma confrontação de legitimidades ou se se trata de um golpe de força, pura e simplesmente.
Se as acusações de feitiçaria prosperam, em parte, por conta da fragilidade daquele sobre quem é posta a carapuça de feiticeiro, por outra parte, a própria feitiçaria precisa ser pressuposta como dada, que é o que torna eficaz e inexorável a imputação. Aqui entra o discurso reducionista e messiânico sobre a corrupção, sua mágica de servir como explicação suficiente e totalizadora para a muita saúva e pouca saúde do país, como também a midiática mágica seletiva de tornar o PT o padrinho da corrupção no Brasil, silenciando, oportuna e concertadamente, sobre a aritmética óbvia que lembraria que a recente Operação Zelotes apurou, sob a forma de sonegação de impostos por bancos e grandes empresas, um desvio de 3 vezes o valor apurado como desvios da Petrobrás, e que o caso Banestado desviou para o exterior, durante os governos FHC (sobretudo em propinas da privatização das teles), entre 15 e 20 vezes o valor apurado no mesmo caso Petrobrás. Não é difícil suspeitar que até hoje as offshores tucanas financiem suas campanhas, comprem fábrica de sorvete e sabe-se lá o que mais.
No que respeita à guerra discursiva, o esforço da direita por caracterizar, a posteriori, as manobras de compensação orçamentária do Executivo federal, usualmente praticadas pelos governos anteriores, como crime, consumando uma tentativa de retroatividade legal, impossibilita que, objetivamente, se reconheça a existência de crime de responsabilidade. Juridicamente, ninguém comete crime quando não existe reconhecimento legal do crime. A retroatividade da lei foi um recurso largamente utilizado pelo Estado nazista para culpabilizar tanto os seus indesejáveis quanto a resistência dos países ocupados, como nos lembra Costa-Gavras no clássico “Sessão Especial de Justiça” (1975). Nossos ilustres deputados, no dantesco espetáculo de mediocridade proporcionado no domingo, recusaram-se a sustentar seus votos sobre qualquer argumento processualmente objetivo. Tratava-se apenas de manejar os códigos de uma acusação de feitiçaria, na qual, curiosamente, “Deus”, tal como em processos análogos séculos atrás, foi chamado a ser um dos principais partícipes. Torna-se bastante óbvio que o processo de impeachment, sobre as bases em que se desenrola, configura um golpe de força por parte da direita, a saber, tão apenas um golpe de Estado.
Nessa guerra, o argumento da defesa da democracia animou a oposição ao impeachment a ocupar um patamar discursivo mais universal, o da defesa de princípios elementares da convivência política, congregando toda a esquerda e a cidadania íntegra, e recusando o particularismo de uma estrita defesa do “governo Dilma” (ainda que muitos petistas, tão empedernidos quanto obtusos, assim o queiram entender); governo que hoje, claramente e por todos os seus méritos, não é defensável senão por algo como 9% da população.
A direita, como sempre, não está nem um pouco preocupada com esses escrúpulos. Como é usual, quando se trata da lógica do privilegio, os caprichos oligárquicos não se pautam por outra coisa senão… seus caprichos mesmos. Essa sempre foi sua pragmática implacável. Aplicá-la nunca foi uma questão de necessidade ou de sobrevivência, mas meramente uma questão de oportunidade. Os governos do PT sempre estiveram cegos para isso; foram tão arrogantes em suas ingênuas verdades “republicanas” que desprezaram irresponsavelmente o inimigo. Neste momento, com seus recursos institucionais, econômicos e midiáticos, é a direita que está na dianteira. Mas a eficácia da acusação de feitiçaria que ela arremeteu não seria possível sem um Congresso venal e cínico e, sobre tudo, sem os erros e a recusa da política por parte do lulismo e da tecnocracia autoritária de Dilma Rousseff.
É possível que o eventual (e até provável) impeachment de Dilma, dada a crescentemente flagrante ilegitimidade desse processo (aí incluída sua repercussão na imprensa internacional), acabe, por ironia, por colocar Lula, o patrimônio carismático maior do PT, em excelentes condições para fazer frente às próximas eleições presidenciais, caso não seja antes alcançado pela caçada judicial que já se espera que a direita lançará contra ele. Não obstante, a novidade de tudo isso é que, por conta do seu crônico esgotamento político, o PT se mostre incapaz de capitalizar a indignação gerada no âmbito dessa guerra discursiva, exatamente no patamar mais universal em que agora está posta ― tal como outrora, na década de 80, pôde fazê-lo ―; uma indignação que vem também lastreada como reação ao discurso de ódio propalado pela direita, a mesma que deixou escapar seus mais íntimos fantasmas: aqueles que têm como fantasia erótica dar cabo de todos os feiticeiros esquerdistas a golpes de facão.
A esperança que resta ao PT, portanto, parece ser, cada vez mais exclusivamente, Lula; o que dobraria a aposta e a expectativa em um populismo tout court. Ou então, o que se poderia vislumbrar, a partir da esquerda, seria o começo da gestação de algo para além do progressismo petista, tal como ele se instalou, e que não parece, na atual conformação de referências, de forma alguma representado por um insípido marinismo oportunista que se basta em permanecer à espreita, alheio à guerra discursiva e às contingências que ela instaura.
Por diferentes meios e diferentes modos, o progressismo latino-americano parece estar em refluxo nos espaços de governo (não necessariamente equivalentes a espaços do poder) que vem ocupando no continente, seja através de eleições, golpes parlamentares ou crises intermináveis. O que parece comum a todos os casos não é a existência ou legitimidade de projetos alternativos ― a direita, de sua parte, não tem outra alternativa que não reinstaurar a plenitude institucional e regulatória da lógica do privilegio ―, mas sim os impasses a que conduziram suas próprias insuficiências.

A raiva sadia da sociedade civil brasileira

A raiva sadia da sociedade civil brasileira

“O que está acontecendo no Brasil é uma epifania da sociedade, que hoje está convencida de que o país representado por aqueles que elegeu não é o que hoje escolheria, e grita: “Fora todos eles!”, escreve Juan Arias, jornalista, em artigo publicado por El País, 27-04-2016.
Eis o artigo.
O mundo está olhando para o Brasil. A imprensa internacional se pergunta se é verdade que o colosso da América Latina está quebrado.
Olhava para o país antes, quando era visto como a nova Meca, e o analisa hoje, quando parece que os deuses o abandonaram.
Durante o milagre, até meus amigos espanhóis queriam correr para trabalhar e viver aqui. O Brasil era um sonho.
Hoje o país vive uma de suas maiores crises, não só econômica, mas até de identidade, de ética e estética, como escreve Eliane Brum em sua magnífica coluna Tupi or not to be.
Talvez o Brasil então nem tivesse chegado ao ápice, nem hoje se precipitou irremediavelmente no inferno de uma crise sem esperança.
Talvez nos anos dourados de Lula, sob a magia da caravana de milhões de pobres resgatados da miséria, faltaram as grandes reformas estruturais que impedissem a crise no futuro.
E hoje, talvez, aqueles que acreditam que o Brasil está rodando para o abismo não consigam ver que a crise poderia marcar o tempo das reformas (começando pela do Estado) que ninguém até agora foi capaz de enfrentar e que agora se tornaram indispensáveis e urgentes para resgatar o país da crise.
O grande protagonista do possível resgate do Brasil é hoje, sem dúvida, a sociedade civil com seu despertar (até mesmo agressivo), sua rejeição unânime aos corruptos e sua falta de piedade com a classe política, que com maior ou menor responsabilidade paralisou e apequenou o país.
Há quem acuse a sociedade de ter permanecido adormecida enquanto a classe política mergulhava na corrupção. E talvez essa letargia, que retardou o nascimento dos indignados, também teve sua parcela de responsabilidade.
Hoje, no entanto, essa sociedade ainda conservadora, mas indignada, com raiva, dividida entre as possíveis saídas para a crise, a favor ou contra a destituição presidencial (impeachment), é o que existe de mais vivo neste país.
Uma sociedade que descobriu que os representantes que elegeu para o Congresso se assemelham mais a um circo do que a um Parlamento, com uma boa maioria de congressistas envolvida na corrupção, alheia às reformas que o país necessita.
O que está acontecendo no Brasil é uma epifania da sociedade, que hoje está convencida de que o país representado por aqueles que elegeu não é o que hoje escolheria, e grita: “Fora todos eles!”
É um pleonasmo, mas retrata que o tecido social não é hoje, como foi no passado, o espelho da mediocridade dos políticos.
O assombro que hoje produz nos brasileiros a corrupção, os privilégios de seus governantes, o luxo dos gastos públicas e a dor daqueles que começam a sentir na carne os frutos amargos de crise econômica é a primeira luz em meio a tantas sombras.
Melhor uma sociedade com raiva, inclusive asperamente dividida em suas opiniões, que uma apática, passiva ou sem vontade de lutar, perigosamente embalada no popular: “Fazer o quê?”, que era o melhor cheque em branco para os governantes.
Hoje a sociedade está acordada, discute, se irrita. É uma sociedade que talvez ainda não saiba bem o que quer, mas que está começando a saber o que já não quer.
Você acha pouco?

Tupi or not to be. Em nome de Deus e do New York Times, a disputa do impeachment e dos Brasis

Tupi or not to be. Em nome de Deus e do New York Times, a disputa do impeachment e dos Brasis

“A disputa do impeachment aprofundou o que já havia sido exposto nas manifestações de 2013: a crise da imprensa brasileira não é apenas de modelo de negócios, mas de credibilidade. Como acontece com os partidos políticos, a da imprensa é também uma crise de representação, já que parcelas significativas da população não se reconhecem na cobertura. Neste sentido, o olhar do outro, aqui representado pela imprensa internacional, devolve algo sem o qual não se faz jornalismo que mereça este nome: devolve o espanto, lugar de partida de quem deseja decifrar o mundo que vê”, escreve Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista, em artigo publicado por El País, 25-04-2016.
Segundo ela, “é de 2013 que ainda se trata hoje, e se tratará por muito tempo. Do que já não pode ser contido, do que reivindica novas palavras para poder ser dito. Não mais como discurso, como nos movimentos da modernidade, mas como fragmentos, ou como discurso contra discurso, em nossa principal irrupção estética de pós-modernidade”.
Eis o artigo.
O 17 de abril de 2016 tornou explícito que esta não é apenas uma crise política e uma crise econômica. Mas também uma crise de identidade, de ética e de estética. Os holofotes lançados sobre a Câmara dos Deputados, em transmissão ao vivo pela TV, iluminaram o horror. E iluminaram o horror mesmo para aqueles que torciam pela aprovação da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. No dia seguinte, algo também revelador aconteceu: a disputa foi levada ao território “estrangeiro”. Não uma disputa qualquer, mas a disputa sobre como nomear o acontecido. Vale a pena seguir essa pista.
A imprensa internacional aponta para o Brasil e diz, com variações, que o espetáculo é ridículo, o que aconteceu foi umcirco. A presidente Dilma Rousseff e o PT vão disputar lá fora o nome da coisa: é um golpe – ou um “coup”. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), despacha dois enviados especiais para garantir outra narrativa: oimpeachment é legítimo, as instituições brasileiras funcionam, tudo está dentro das normas. Vozes se erguem para acusar Dilma Rousseff de expor o Brasil no “exterior”, prejudicando a imagem do país, reduzindo-o a uma “republiqueta de bananas”. Na ONUDilma recua da palavra “golpe” e escolhe, para oficialmente representá-la, outra palavra, uma que não constitui quebra: “retrocesso”. Não é ali que se dá a disputa. A guerra está no território dos narradores. E os narradores contemporâneos encontram-se em grande parte (ainda) na imprensa.
A disputa do impeachment aprofundou o que já havia sido exposto nas manifestações de 2013: a crise da imprensa brasileira não é apenas de modelo de negócios, mas de credibilidade. Como acontece com os partidos políticos, a da imprensa é também uma crise de representação, já que parcelas significativas da população não se reconhecem na cobertura. Neste sentido, o olhar do outro, aqui representado pela imprensa internacional, devolve algo sem o qual não se faz jornalismo que mereça este nome: devolve o espanto, lugar de partida de quem deseja decifrar o mundo que vê.
E, a partir do espanto, busca compreender como uma presidente democraticamente eleita por 54 milhões de votos, sem crime de responsabilidade comprovado, tem a abertura de seu processo de impeachment comandado por um réu do Supremo Tribunal Federal, numa Câmara em que parte dos deputados é investigada por crimes que vão de corrupção ao uso de trabalho escravo, num espetáculo que desvela pelo grotesco as fraturas históricas do país.
A narrativa construída por uma parte da imprensa brasileira sobre o momento mais complexo da história recente do país, a forma como essa parcela da mídia ocupa seu papel como protagonista, assim como as consequências dessa atuação, merecem toda atenção. Possivelmente muitos livros serão escritos sobre esse tema, as perguntas recém começaram a ser feitas. Nesse artigo, porém, quero seguir uma outra pista, que considero fascinante demais para ser perdida. Também não se trata aqui de analisar o que a imprensa de outros países disse de fato – e que está longe de ser homogêneo como se quer vender. Não se trata aqui “deles”, mas de “nós”.
Se não conseguimos construir uma narrativa em nome próprio, como construir um país?
A pista que investigo aqui parte da interrogação sobre o que significa levar a disputa narrativa ao território simbólico do grande outro, “o estrangeiro”. E não qualquer estrangeiro, mas o que fala principalmente inglês, depois alemão e francês e espanhol (da Espanha, não da América Latina). E o que significa dar a essa entidade, chamada “imprensa estrangeira”, a palavra para nomear o que aconteceu – e acontece – no Brasil.
O que é o horror, este que nos persegue desde o domingo 17 de abril? O horror é a impossibilidade da palavra. O horror é também uma infância que nunca acaba. É tudo menos banal que num dos momentos mais ricos de sentidos da história recente faltem palavras para narrar o Brasil. Em parte porque elas foram barradas pelos muros de um lado e outro, interditando o diálogo. E palavras que não atravessam produzem silenciamento. Em parte porque as palavras foram distorcidas, violadas e esvaziadas. E isso produz apagamento.
Mas há mais do que isso. É tudo menos banal que as palavras que faltam sejam procuradas em outro lugar. Porque, se não conseguimos construir uma narrativa em nome próprio, como constituir um país?
Este é o abismo, como sabiam os modernistas de 22. Ou este ainda é o abismo. Que ainda o seja vai demandar que nos lancemos na tarefa imperativa de encontrar as palavras que agora faltam. Ou de inventá-las. Não na língua de Camões, mas “nas línguas que roçam a de Camões”, como cantou Caetano Veloso.
Que em vez disso nos lancemos em busca de que o outro nos nomeie, de que o outro diga o nome da coisa que se passa aqui, é bem revelador. Agora menos a Europa e mais os Estados Unidos, agora menos Paris e mais Nova York, agora menos Le Monde e mais New York Times. Como se diante da cena ainda por decifrar não fôssemos capazes de falar em nome próprio.
E aqui, sempre vale a pena sublinhar, não se trata de nenhuma invocação de nacionalismos ou de purismos aos moldesAldo Rebelo. É bem o contrário disso. O outro, seja ele quem ou o quê for, pode e deve falar sobre nós. É importante que fale. Mas a interrogação aqui é outra: é por que delegamos a ele a palavra que não somos capazes de encontrar – ou de criar. E que diz respeito ao próprio jogo de identidade/desidentidade essencial à construção de uma pessoa – e também de um país. E como isso está na própria raiz da crise.
O Brasil, este que nasce pela invasão dos europeus e promove primeiro o genocídio indígena, depois o dos negros escravizados – ambos ainda em curso, vale dizer –, nasce com a carta do português Pero Vaz de Caminha. Parte da nossa trajetória é narrada pelo olhar de viajantes notáveis, como o francês Auguste de Saint-Hilaire. O que se diz do Brasil, e que portanto o constitui como narrativa, é dito em língua estrangeira, como todo país que nasce da usurpação do corpo de um outro.
O Brasil, estrangeiro a si mesmo, já que o que aqui existia em 1500 não era Brasil, é constituído pelo conflito, pela dominação e pelo extermínio expressado também na construção da língua. A língua portuguesa, ainda que tenha se imposto junto com seus falantes, foi tomada ela mesma pelos invadidos e pelos escravizados. Ou pelas línguas indígenas primeiro, pelas africanas depois. Não fosse essa contra-invasão pela palavra, a resistência dos invadidos e dos escravos, não seria possível existir um país em nome próprio. Persiste e resiste nas curvas do corpo da língua portuguesa a vida dos mortos.
Essa construção é um campo de conflitos permanente. Basta lembrar as batalhas ocorridas nos últimos anos entre a tal norma culta do português e as variações do português brasileiro, consideradas pelas elites como indesejáveis e menores – “erradas”. Basta escutar as línguas criadas nas periferias urbanas e na floresta amazônica, as línguas vivas que disputam o nome próprio do Brasil. Que no momento em que se disputa a narrativa sobre a coisa que aqui acontece, ou sobre o nome da coisa que aqui acontece, ela seja levada à língua do “estrangeiro”, talvez seja “a nossa mais completa tradução”.
Que uma parcela da imprensa e das elites seja agora achincalhada em inglês é uma ironia das mais interessantes
Há muitas razões e significados. Mas talvez exista também uma nostalgia do colonizador. Uma demanda de paternidade. Ou de autoridade. Digam vocês, os que sabem, o que acontece aqui. Deem-nos um nome.
Nossas elites, como se sabe, são jecas. Primeiro cortejavam a França, agora é tudo em inglês. Americano, de preferência. Os Estados Unidos como a colônia que conseguiu virar metrópole e, por fim, a grande potência mundial. Que uma parcela da imprensa e das elites seja agora achincalhada em inglês é uma ironia das mais interessantes.
Com a ascensão de Lula ao poder, o primeiro presidente que não pertencia às elites, a expectativa de alguns, entre os quais me incluo, era a da fundação de uma nova ideia de país. Dito de outra forma, que o Brasil fosse menos um imitador e mais um criador. E isso também na economia.
Eduardo Viveiros de Castro coloca bem essa perspectiva numa entrevista dada ao Outras Palavras, em 2012, quando já se sabia que essa possibilidade tinha sido perdida, pelo menos no governo Lula: “Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses têm 5.000 anos de história cultural praticamente contínua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste história de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elites políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV”.
Lula, como bem sabemos, adotou um modelo de desenvolvimento que ignorava o maior desafio desse momento histórico, a mudança climática. E Dilma Rousseff mostrou-se uma governante com pensamento cimentado no século 20, às vezes no 19. Mas é na produção simbólica que fica claro como ainda se tratava de “vencer” no campo do outro. Ou de ser reconhecido “pelos grandes” – ou “pelos adultos”.
Lula termina seu segundo mandato festejado na Europa e nos Estados Unidos como aquele que incluiu dezenas de milhões de brasileiros no mundo do consumo. A “invenção” do Brasil era deveras interessante: tirar pessoas da pobreza sem mexer na renda dos mais ricos. Com esse milagre made in BrazilLula só poderia ser “o cara de Obama”. “This is my man, right there. I love this guy”, disse o presidente americano em 2009. “The most popular politician on Earth”.
O que ficou encoberto no meio da festa é que a “mágica” obedecia a uma receita velha: exportação de matérias-primas, como o Brasil fazia desde os primórdios. Também esquecia-se de dizer que essa “criação” era feita na base da destruição do meio ambiente, como sempre foi desde 1500. A novidade não era tão nova assim. E tão logo o encanto se desfez, os mais ricos, em cuja renda os governos do PT não tocou, se voltaram contra Dilma Rousseff.
Dois eventos para o mundo ver provariam que o eterno país do futuro finalmente havia chegado a um glorioso presente
O destinatário da produção de símbolos revela-se na escolha dos acontecimentos que deveriam mostrar, de forma definitiva, que o eterno país do futuro finalmente havia chegado a um presente glorioso. Dois eventos internacionais, dois eventos para o mundo ver: a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.
Há um sujeito confuso nessa narrativa. Um sujeito sujeitado. Quando se joga no campo do outro, segundo os termos do outro, se perde por 7X1. A Olimpíada é assombrada por um mosquito, vilão arcaico que denuncia velhas mazelas como a falta de saneamento básico. E a nova ciclovia do Rio desaba matando duas pessoas no mesmo dia em que a tocha olímpica é acesa na Grécia. A construção, tanto a simbólica quanto a concreta, não para em pé. Lost in translation.
Será sempre lost in translation enquanto não se encontrar o nome próprio. Enquanto o Brasil não falar em nome próprio. Enquanto o Brasil seguir insistindo em ser descoberto quando o que precisa é se inventar. Essa realidade é o cenário da extraordinária peça de Felipe Hirsch e Os UltralíricosA Tragédia Latino-Americana, em que os blocos são construídos para em seguida desabarem e serem rearranjados para logo depois virarem ruínas e tudo então ser mais uma vez reconstruído para desabar de novo e de novo e de novo.
Sobre esses blocos em permanente construção e dissolução, Pero Vaz de Caminha recita sua carta, agora narrada em inventiva prosa pelo escritor Reinaldo Moraes. Para parodiar o português, o brasileiro invade a língua do invasor. “Antão dizia eu que antes de alguém ter tempo de dizer chupa! Já saltávamos aos cangotes daquelas fêmeas naturaes, feitos javalis resfolegantes de animalesco e represado d’sejo, e elas viram o que era bom pa tosse, pá. E às vezes que por qualquer razão já não queriam mais ter seus urifícios frequentados brutalmente pela nossa nobre gente, dávamos-lhes uns cascudos, mor d’elas calarem as matracas, e nelas mandávamos grosso fumo, pá, refodidas vezes, e era pimba na pombinha e peroba na peladinha! Aquilo era um vidão, pá”.
É de 2013 que ainda se trata, e se tratará por muito tempo. E 2013 reivindica novas palavras para poder ser dito
Criar o que pode ser chamado de um “em nome próprio” foi o desafio dos principais movimentos culturais do século 20, dos modernistas de 22 ao Cinema Novo e à Tropicália. Não por coincidência, processos interrompidos por ditaduras. Em 2013, o novo voltou a ocupar as ruas com enorme potência, para ser reprimido pelas bombas de gás da Polícia Militar e pela violência da palavra “vândalos”, usadas pela imprensa conservadora para silenciar o que não queria escutar ou o que não era capaz de interpretar.
É de 2013 que ainda se trata hoje, e se tratará por muito tempo. Do que já não pode ser contido, do que reivindica novas palavras para poder ser dito. Não mais como discurso, como nos movimentos da modernidade, mas como fragmentos, ou como discurso contra discurso, em nossa principal irrupção estética de pós-modernidade.
O Brasil não é pátria nem mátria, mas fátria, como cantou Caetano. Para encontrar as palavras com que construiremos a narrativa do hoje é preciso olhar para Oswald de Andrade, para Villa-Lobos, para Glauber Rocha, para Zé Celso Martinez Corrêa, para Davi Kopenawa e Ailton Krenak, para Mano Brown e Emicida, para Eliakin Rufino, paraSérgio Vaz, para Laerte, para Mundano. Para tantos. Para o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro. Para a literatura de Carolina Maria de Jesus. Para a Comissão da Verdade. A dos crimes da ditadura. E a dos crimes da democracia.
Para o funk das que não são recatadas e que comandam seus próprios lares. Para as famílias que têm dois homens e nenhuma mulher e as que têm uma mulher e outra mulher, para as que tem três padrastos e nenhuma madrasta, para as de uma mulher só. E para as mulheres que antes foram homens. Para os deuses que se recusam a ser vítimas de estelionato no microfone do parlamento.
Para refundar o Brasil é preciso perceber que as periferias são o centro. Que nossa capital simbólica não é São Paulo, mas Altamira.
Inevitável lembrar de Terra em transe (1967), filme de Glauber Rocha.
Diz o jornalista, depois de descobrir que as palavras são inúteis:
– Não é possível esta festa de bandeiras, com guerra e Cristo na mesma posição. Não é possível a potência da fé, não é possível a ingenuidade da fé. (...) Não assumimos a nossa violência, não assumimos nossas ideias, o ódio dos bárbaros adormecidos que somos. Não assumimos nosso passado. (...) Não é possível acreditar que tudo isso é verdade.... Até quando suportaremos, até quando além da fé e da esperança suportaremos...
Diz o político que se corrompeu:
– Aprenderão! Aprenderão! Nominarei essa terra. Botarei essas histéricas tradições em ordem. Pela força. Pelo amor da força. Pela harmonia universal dos infernos chegaremos a uma civilização!
O que fazer diante do horror? Retomar a palavra, a que atravessa os muros. Enfrentar o desafio de construir uma narrativa, necessariamente polifônica, sobre o momento, em todos os espaços. Não desviando das contradições, para evitar que elas manchem a limpidez do discurso. Ao contrário. Abraçando-as, porque elas criam o discurso.
O nome da coisa é a palavra que precisamos encontrar para inventar o Brasil.

Militares, ciências, Educação Popular.

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