Tuesday, December 17, 2013

Roberto Romano, uma vida atravessada pela história

Vale a pena ler, pensar e pensar, pois são poucos que de fato tem coragem de escrever, agir e pensar:


- Roberto Romano, uma vida atravessada pela história
Roberto Romano nasceu na pequena cidade de Jaguapitã, no Norte do Paraná, próximo à divisa com São Paulo. Filho da comunhão de uma família paulista que ia em direção ao Sul e de uma família gaúcha que seguia em direção ao Norte, cresceu em uma região predominantemente rural. A aura de tranquilidade que cerca a vida no campo não se traduzia em realidade na pequena cidade na qual Romano nasceu e cresceu, onde desde a infância aprendeu a conviver com a violência. “A região onde vivia quando pequeno era muito violenta, com grilagem, bandidagem, etc., o que levou meus familiares a retornarem a São Paulo. Havia também muitas doenças, a principal delas chamada Moisés Lupion , que era governador do Paraná na época e que tratava muito mal os professores e muito bem as empreiteiras, como é o caso até hoje”, conta Romano, cuja mãe era professora.

Por: Márcia Junges e Ricardo Machado

De volta a São Paulo, Roberto Romano, juntamente com sua família, foi morar na cidade de Marília, no sudoeste do Estado, onde fez o ginásio, equivalente ao ensino médio, e entrou em contato com o professor e filósofo católico Ubaldo Pupi , que liderava as pessoas católicas de esquerda da região. “Entrei para a Juventude Estudantil Católica – JEC com 16 ou 17 anos, quando ocorreu a tragédia do Golpe Militar de 1964. Houve muita perseguição política na cidade, e o professor Ubaldo foi preso e perdeu o emprego na faculdade”, explica.

Regime Militar

O militarismo no Brasil começava a espalhar sua forma de governo sobre o país, e os efeitos de um dos períodos mais sombrios de nossa história começavam a emergir. Em Marília, o Bispo Dom Bressane de Araújo , apesar de conservador, nas palavras de Roberto Romano, era muito culto e não aceitava a campanha de perseguição contra os religiosos católicos de sua diocese. “Sempre que alguém ia delatar outrem na Igreja, o bispo dizia: Meu filho, faça uma declaração no cartório e depois me devolva”, relata Romano, e diz que depois de um tempo ninguém mais apareceu para fazer denúncias.



Dominicanos

Quando Romano estava às vésperas de completar 20 anos, muito identificado com a realidade dos dominicanos, considerou que tinha vocação religiosa e foi para Juiz de Fora, em Minas Gerais, no Convento dos Dominicanos, onde permaneceu até 1967. Depois disso retornou a São Paulo, para se preparar ao noviciado, quando fez vestibular para o Instituto de Filosofia e Teologia de São Paulo, iniciativa que tentou reunir as ordens em um curso de Teologia e Filosofia. “Não fiquei muito satisfeito com o curso de Filosofia. Havia dominicanos que faziam Filosofia na Universidade de São Paulo – USP. Aí pedi autorização para fazer vestibular lá”, esclarece.



Prisão e morte

O ano em que Romano fez vestibular para Filosofia na USP coincidiu com o assassinato de Carlos Marighella , em 1969. Na época os dominicanos eram muito próximos ao movimento Ação Popular , criado por Betinho , que se pretendia socialista. No entanto, após uma série de debates internos, parte do grupo decidiu-se por um tipo de postura marxista, o que levou os dominicanos a se aproximarem da Ação Libertadora Nacional - ALN, criada, justamente, por Marighella e que aceitava os religiosos.

“O Ivo Lesbaupin foi preso. Quando ele disse que ia para o Rio de Janeiro, o clima já estava pesado, pediu-me que caso ele não aparecesse em tantos dias era para ligar para seus pais”, conta. “Passaram os dias e ele não apareceu. Eu pedi ao superior do convento para ir até o Rio de Janeiro para saber notícias dele. O telefone do convento estava grampeado. Quando eu cheguei no Convento do Leme, chamei um colega para irmos até a casa do pai do Ivo, e na porta mesmo fomos presos pelo Centro de Informações da Marinha – Cenimar”, complementa.



Dias de escuridão

A relação de Romano com a ALN era muito tênue, como ele mesmo conta, resumia-se a ajudar as pessoas a fugirem, mas não tinha nenhum vínculo formal com o movimento. “Fui levado e interrogado, mas não tinha muito que dizer, pois não tinha trato com a ALN. Fui transferido do Rio de Janeiro para São Paulo, onde encontrei o Ivo na cela do Departamento de Ordem Política e Social - DOPS com o rosto totalmente esfacelado. Só o reconheci porque ele usava a mesma camisa xadrez canadense de quando saiu do convento. Quando o vi, pensei — Eu conheço essa camisa”, recorda Romano.



Repressão

Quando estava em São Paulo, Romano encontrou Frei Betto , que havia sido preso no Rio Grande do Sul e foi encaminhado ao Dops paulista. “Fiquei mais ou menos dois meses no Dops, depois fomos para o presídio Tiradentes . Meses depois, Frei Tito , que havia sido muito torturado, tentou suicídio. Até que houve uma greve de fome para diminuir o rigor da repressão”, recorda.



Desespero

A conjugação entre inexperiência, desespero e dor levou Roberto Romano a tentar suicídio. “A situação ficou de tal modo insuportável que eu, inexperiente e tolo, tentei suicídio. Fui socorrido por Dom Paulo Evaristo , a quem devo a vida”, relata. “Depois disso fomos ouvidos pela segunda auditoria militar, e o Ivo, o Fernando e o Betto foram transferidos para o presídio de Presidente Venceslau. E eu fui liberto em um regime em que a pessoa é solta, mas tem que assinar um livro toda semana. Aí voltei para a universidade e continuei o curso de Filosofia, ainda como dominicano”, explica. Após o julgamento, Romano foi absolvido por absoluta falta de provas, sendo que recentemente recebeu um documento em que o Estado brasileiro informa que lhe concedeu anistia e reconhece o regime de exceção praticado pelos governantes da época.



A Igreja e o Regime

Romano conta que ao final da ditadura militar passou-se a veicular que a Igreja como um todo resistiu e defendeu os direitos humanos. “Houve corajosíssimos cardeais, bispos, religiosos e leigos que agiram quase profeticamente em defesa dos direitos humanos e da fé cristã no sentido autêntico, Dom Paulo foi um deles, assim como Dom Tomás Balduíno ”, pondera.

Um dos exemplos lamentados por Romano foi um episódio ocorrido no presídio de Tiradentes, em que Dom Vicente Scherer foi visitar os dominicanos e junto com os religiosos havia um preso da ALN que tinha sido alvejado nas pernas por tiros de metralhadora. “Esse detento estava com a perna engessada e necrosando. Dom Scherer viu tudo. Quando ele foi embora, Frei Betto escreveu-lhe uma carta pedindo que intercedesse para que o preso fosse encaminhado ao hospital, e a resposta foi dramática: ‘não podemos fazer quase nada porque ele é terrorista, pegou em arma e tem que receber a punição necessária’. Esta é uma atitude que não é de um cristão, é uma atitude pesada”, considera.



Visitas

Segundo Romano, Dom Paulo nunca assumiu uma posição política, mas sempre esteve presente com os religiosos. Após a tentativa de suicídio, Dom Paulo visitava Roberto Romano com alguma frequência no presídio, até que um dia teve uma surpresa desagradável, quando outro monsenhor foi visitá-lo. “Eu estranhei quando Dom Paulo não veio, pois ele sempre vinha. Aí o monsenhor que veio me visitar disse: ‘nós decidimos que o Dom Paulo não pode vir’. Mas nós quem? Não tive resposta”, recorda.

Após o episódio de tentativa de suicídio, Romano foi internado no Hospital Militar. Dom Paulo o visitou várias vezes. “A ida de Dom Paulo ao hospital era muito significativa, pois era um claro recado de que ele sabia onde eu estava, com quem eu estava e como eu estava. Isso era um aviso direto para qualquer tentativa mais truculenta que existia na polícia naquela época.”



Insensibilidade eclesiástica

A instabilidade política e a falta de sensibilidade para entender a complexidade do momento histórico que o Brasil vivia levaram representantes da Igreja a posturas discutíveis. “Chegou a um ponto que Dom Agnelo estava de tal modo insensível ao que estava acontecendo que ele fazia campanha para desmentir a imagem do Brasil. Isso foi acentuando de tal modo que o Papa Paulo VI percebeu o erro e tomou uma posição; chamou o Cardeal para Roma e nomeou D. Paulo como arcebispo metropolitano de São Paulo”, conta Romano. “Se o Estado precisa da legitimidade para ser obedecido, a Igreja precisa muito mais para ser aceita, sobretudo aquilo que é fundamental à Igreja, que é servir às pessoas, o desejo de pacificar, consolar, proteger”, complementa.



Pena de morte

“Chamávamos o Frei Guilherme de Nery Pinto de ‘a revolução na cela’, porque ele estava a par de tudo o que acontecia na teoria e no mundo, sem mesmo sair do convento. Ficávamos horas conversando com ele e trocando ideias sobre tudo. Quando saiu o catecismo com João Paulo II ele dava margem à admissão de pena de morte, embora não fosse exatamente como a imprensa publicou na época, mas mesmo assim era uma coisa muito complicada do ponto de vista doutrinário”, relata Romano.

Na ocasião Frei Guilherme ficou muito bravo com o fato, pois em sua avaliação a possibilidade de anuir à pena de morte era um retrocesso muito significativo. Romano, então, sugeriu que ele escrevesse um texto para publicar no jornal Folha de São Paulo. Durante cerca de cinco meses Frei Guilherme e Roberto Romano escreveram o texto, que passou por muita reflexão e edição até que chegasse na versão a ser publicada. Romano levou, pessoalmente, o artigo ao editor do jornal, que preferiu não publicar. “O editor perguntou se o texto era importante e se Frei Guilherme era importante. Eu respondi que ele era um dos nomes mais importantes do Brasil, e mesmo assim ele não publicou. O que demonstra uma tolice jornalística”, descreve Romano, que depois acabou publicando o artigo em um jornal da periferia de São Paulo. “As pessoas dizem que os donos das grandes empresas jornalísticas são os piores, mas penso que a coisa é um pouco mais que isso. Além dos donos, há essas pessoas que decidem e que os donos nem sabem o que está acontecendo. Decidem sem o menor critério e sem a menor tentativa de entender o que está acontecendo. Quando se fala em liberdade de expressão, tem que saber quem se está defendendo; às vezes, a pauta do editor é pior que a do dono do jornal”, avalia.



Cotidiano

Os anos mais combativos contra o Estado na luta pelos direitos humanos deram lugar a um período mais ameno na vida de Roberto Romano, pelo menos no que tange às ações mais diretas. Nos últimos anos Roberto Romano tem dedicado seu tempo às atividades acadêmicas de aula e pesquisa. Atualmente vive em São Paulo, capital, no bairro Jardim Paulistano, que como ele mesmo define “não é rico como o Jardim Europa, nem pobre como os outros jardins”.

“Eu e minha mulher gostamos muito de ir ao cinema, ir ao teatro e visitar as pessoas. Agora que me aposentei, estamos com plano de passar um período em Boston, nos Estados Unidos”, conta. Casado com Maria Sylvia de Carvalho Franco , socióloga, autora do livro Os homens livres na ordem dos escravocratas (São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 1969) e egressa da turma de Florestan Fernandes . “Por ocasião do regime militar, ela foi transferida para a Filosofia na USP, onde ajudou a manter firme o Instituto”, destaca, orgulhoso. Roberto Romano tem dois enteados, Luíza Moreira, que é professora nos Estados Unidos, e Roberto Moreira, cineasta e professor na USP. Duas netas, uma de vinte anos e outra de sete, completam o núcleo familiar.

Por debaixo dos cabelos brancos de Romano há uma vida cheia de histórias, de luta e de resignação resistente, de estudos e de esforço compreensivo da realidade social, de passado e de presente. Aos 67 anos de idade, Roberto Romano atravessou boa parte de sua vida lutando contra violência, sem violência. Ele parece ser um daqueles exemplos vivos de que o presente só faz sentido quando visto pelas lentes do passado.



Leia mais...

- O governo do Brasil retoma a ética conservadora e contrária à democracia, o que exige da Igreja o papel vicário. Entrevista especial com Roberto Romano publicada nas Notícias do Dia, de 14-01-2008;

- De ditadores a imperadores com pés de barro. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line, edição 269; de 18-08-2008;

- Niilismo e mercadejo ético brasileiro. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line, edição 354; de 20-12-2010;

- Filosofia não é, necessariamente, sistema. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line, edição 379, de 07-11-2011;

- “Somos absolutistas anacrônicos. Vivemos sempre sob o regime do favor, dos privilégios, da não república”. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line nº 398, de 13-08-2012;

- A gênese golpista da Constituição. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line, edição 428, de 30-09-2013.

Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5335&secao=435

Saturday, December 14, 2013

"Não temos um Estado de Direito, mas um Estado de Polícia" Giuseppe Cocco

Veja a entrevista abaixo:

Estado de Polícia, o Brasil sem a máscara da “liberdade”
O sociólogo Giuseppe Cocco avalia a “queda de máscaras” da esquerda brasileira e a forma repressiva e autoritária com que os black blocs vem sendo retratados

Por: Luciano Gallas e Andriolli Costa

Para o sociólogo Giuseppe Cocco, todas as “máscaras” do Estado já caíram. Hoje, segundo ele, não temos um Estado de Direito, mas um Estado de Polícia, de repressão e perda das liberdades democráticas. “A forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas”, afirma ele. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Cocco critica a postura autoritária dos que se opuseram e se opõem às manifestações populares que ocorrem no Brasil, ainda que hoje com menos força, desde o meio do ano. “Em junho, os partidos tradicionais (de governo e de oposição) criticavam o movimento por não ter organicidade, lideranças e ‘projeto’. Caberia perguntar: quais são, hoje, a organicidade e os projetos dos partidos?”, provoca ele. “Que projeto tem esses ‘deputados e senadores’, que não seja a mera ocupação do aparelho de poder assim como ele é? E qual seria o projeto dos partidos de esquerda?” Para ele, é justamente na falta de organização formal e na multiplicidade das singularidades que jaz a força das manifestações, “sem lideranças e, por isso, mais potentes”.

Cocco questiona o papel assumido hoje pelos partidos, que “parecem funcionar como coalizões espúrias de estratégias personalistas, grupos de interesse econômico que formam bancadas bem pouco ‘republicanas’ a partir do peso de determinados lobbies (agronegócio, telecomunicações, evangélicos, etc.) que passam por cima das próprias instâncias partidárias”. Nesta crítica, o sociólogo manifesta especial surpresa sobre a postura assumida pelas esquerdas do país, especialmente o governo, que ou batem de frente e repreendem as manifestações, ou maquiam suas próprias ações para dar a entender que são provedores das liberdades democráticas, ocultando ocorrências como a “Chacina da Maré” ou abusos como o caso do pedreiro Amarildo. Independente a isso, para ele, o povo continua lutando. “É a multidão que está na frente, praticando e inovando nas formas de luta e voltando a dar credibilidade à política, em particular junto aos jovens”, pondera. “O melhor da juventude brasileira está na rua”.

Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).

Confira a entrevista.



IHU On-Line - O que as manifestações do chamado Outubro Brasileiro nos ensinam no que se refere às possibilidades efetivas da democracia direta?

Giuseppe Cocco - As manifestações de outubro são a continuidade e o desdobramento daquelas de junho. No conjunto elas ensinam muitas coisas, inclusive sobre as possibilidades efetivas de democracia direta. Antes de tudo, elas nos ensinam que a “democracia direta” só existe nos termos da radicalização democrática. O movimento não apenas nos diz que a separação da fonte (o povo) vis-à-vis do resultado (os representantes) é imoral, mas explícita, e torna visível que essa dimensão imoral do poder está baseada na violência de suas polícias. Ou seja, o movimento teve a capacidade de mostrar para o Brasil e para o mundo as dimensões perversas do monopólio estatal do uso da força no Brasil; um regime de terror de Estado que, por meio do regime discursivo sustentando pela mídia da elite neoescravagista, é tratado como se fosse “externo” e independente dos governos, até o ponto em que, no Rio de Janeiro, a solução seria seu aprofundamento por meio da chamada “pacificação”.

Seria irônico se não fosse o cúmulo do cinismo escravocrata. É que a forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas. Como sempre fez, desde junho, o poder multiplica os boatos sobre participação do narcotráfico nas mobilizações democráticas. Na senzala — ou seja, nas favelas, subúrbios e periferias — o terror anda a pleno vapor, quer a polícia seja do PSDB, do PT, do PSB ou do PMDB. É um terror estatal com vieses classistas e, sobretudo, racistas. Os ventos de junho continuam soprando (não apenas em outubro, mas também em novembro), e o outono já virou uma primavera que anuncia o carnaval. O levante de junho não foi uma explosão efêmera, mas uma potentíssima bifurcação dentro da qual ainda estamos. Nessa bifurcação, as possibilidades de democracia direta nos aparecem ao mesmo tempo potentes e ativamente bloqueadas, literalmente criminalizadas por um Ministro da Justiça que transforma em crime, com apoio entusiasta da imprensa hegemônica, os direitos constitucionais de manifestação e livre opinião. E isso com base em relatórios da Polícia Federal sobre atividades que não são crimes.

Ou seja, o Ministro da Justiça se transforma em Ministro de Polícia e o Estado faz cair sua máscara para aparecer explicitamente o que é: um Estado de Polícia. Confesso que fiquei espantado diante da “reação” (e quero enfatizar mesmo esse termo “reação”, pois é a raiz de outro termo: “reacionário”) da esquerda em geral, sobretudo da esquerda de governo, em particular do PT e de alguns dirigentes e até de alguns amigos. Meu espanto aumenta a cada dia. Se da Presidenta Dilma (que, como disse um viral na internet de um artista carioca, “Já foi Sininho e hoje virou Capitão Gancho ”) não esperava nenhuma sensibilidade, não digo “social”, mas sequer política, de outros esperava uma postura diferente, pelo menos progressista e esclarecida. O fato é que a esquerda de poder e o PT (que me interessa) não fizeram, e não fazem, nenhum esforço para abrir os governos que lideram à nova demanda de participação e de “democracia real já”. Ao contrário, assistimos a uma postura arrogante e reativa, nos moldes do Ministro da Justiça se transformando docilmente em Ministro de Polícia. Essa postura enfatiza o que já sabíamos: que as brechas de transformação dos governos Lula foram definitivamente fechadas pela Dilma; que as experimentações em termos de orçamento participativo não apenas foram encerradas faz tempo, mas foram totalmente sobrevalorizadas. O OP (Orçamento Participativo) não deixou rastros políticos de nenhum tipo.

Democracia produtiva

De toda maneira, apesar desse vazio político desanimador, hoje é o horizonte inovador de uma democracia produtiva que temos diante de nós. Podemos apreender suas dimensões em três grandes níveis: A) a ruptura — parcial e temporária, mas real — das dimensões totalitárias construídas em torno do consenso da “governabilidade”; B) a multiplicação de assembleias (muitas delas chamadas de “populares”) e ocupações de Câmaras e Assembleias Legislativas em muitíssimas cidades; e C) a forma produtiva do “movimento”.

As três dimensões fazem do levante de junho-outubro um momento constituinte. Num primeiro nível, pelo decreto de redução das tarifas de transportes (no caso do Rio Grande do Sul, o governo Tarso teve a coragem de promulgar o Passe Livre para os estudantes) e uma série de outros decretos da plebe. No Rio de Janeiro, tratou-se, sobretudo, do entorno do Maracanã e do recuo parcial do Prefeito (embora falso) nas políticas de remoções de favelas. No segundo nível, as ocupações de “parlamentos”, além de traduzir-se em decretos do tipo daqueles do primeiro nível (“recuos” pontuais dos governos) visaram transformar a crítica da representação no terreno concreto de um aprofundamento democrático, de invenção de novas instituições.

Recorrendo mais uma vez ao Rio de Janeiro, as sucessivas ocupações da Câmara dos Vereadores (e da praia do Leblon, em baixo da residência do Governador, sem contar o sem número de manifestações na frente do Palácio Guanabara, na frente da Alerj ou a breve ocupação na frente da residência do Prefeito Municipal) mostraram que o movimento de junho não era efêmero, mas capaz de abraçar as lutas mais difíceis como aquela contra a máfia dos ônibus (cobrando uma CPI transparente e democrática). Sendo que a luta contra a máfia dos ônibus não é apenas uma luta pela reforma urgente da gestão do sistema de transportes, mas também pela democracia: todo mundo sabe que esses “lobbies” se constituem nos maiores entraves ao sistema democrático, inclusive aquele representativo!

A ocupação da Câmara do Rio mostrou toda sua potência de novo terreno de luta democrática quando passou a ser usada e renovada pelos professores da rede municipal. Não é por acaso que foi duramente reprimida: o poder não pode com certeza tolerar que a democracia real se instale. Seria um exemplo insuportável.

Enfim, com o outono virando primavera, a persistência do movimento nos mostra as dimensões produtivas e, nesse sentido, constitutivas do horizonte democrático que ele define. As mobilizações praticamente diárias, que se sucederam em julho, agosto e setembro até se massificarem novamente nos dias 7 e 15 de outubro, são o terreno de uma multiplicidade de iniciativas: advogados da OAB, grupos de advogados ativistas, grupos de primeiros socorros, coletivo projetação, autoformação nas ocupações, músicos e bandinhas, uma multidão de mídias produzindo desde inúmeros streamings e documentários passando por todos os tipos de registros fotográficos. A democracia que o movimento desenha é constitutiva e é mesmo produtiva. O fato de um processo de subjetivação que mostra toda a potência das redes e das ruas.



IHU On-Line - A ausência de um projeto político unificador das pautas dos manifestantes levou à dispersão e à imobilidade? Foi isso o que ocorreu após a redução do preço das passagens, principal pauta das manifestações de junho em várias cidades brasileiras?

Giuseppe Cocco - Parece que foi exatamente o contrário o que aconteceu: não houve dispersão, mas difusão e multiplicação de manifestações, reivindicações, assembleias e reuniões. Pelo menos no caso do Rio, não houve sequer um dia de “imobilidade”, mas uma mobilização diária, modulada em escalas diferentes. A multidão passou a fazer-se pela multiplicação difusa de iniciativas de lutas novas e antigas. O movimento de junho teve a capacidade de colocar pautas que eram tão urgentes como inalcançáveis até então, como na questão dos transportes urbanos. Claro, os esforços dos jovens do Movimento pelo Passe Livre (MPL) estão na base disso, mas é a primeira vez que a luta sobre o preço das passagens e a qualidade dos transportes se consolida nas ocupações de Câmaras e Assembleias Legislativas para que todo o sistema de gestão seja objeto de democratização.

O movimento de junho foi se metamorfoseando numa constelação de movimentos e iniciativas, conectando entre elas as lutas mais diversas: desde aquelas dos favelados contra as remoções ou a violência policial, até aquelas dos usuários massacrados nos transportes todos os dias, passando pelos movimentos de categorias como a dos bancários, dos petroleiros e, sobretudo, dos professores. Os professores do Rio de Janeiro encontraram no levante de junho e, principalmente, em sua persistência a inspiração para lutar. Os professores experimentaram, nas misturas com o Ocupa Câmara e os jovens da tática Black Bloc, novas formas de luta e organização, de tipo metropolitano: a forma sindical (o SEPE) saiu extremamente enfraquecida (e até objeto de críticas violentas) ao passo que, em sua última fase, o movimento foi experimentando formas embrionárias de organização territorial, algo como novas Câmaras do Trabalho Metropolitano que chegaram a viver nas conexões entre as diferentes acampadas. Não dá para saber com quanto fôlego, mas as acampadas do Leblon e da Câmara foram retomadas nesses dias.

A greve dos professores municipais não foi mais a tradicional greve absenteísta do setor público, mas uma luta sensacional de ocupação e resistência, inclusive diante da repressão policial. É isso que levou, no dia 1º de outubro, a uma batalha campal de horas e horas no centro do Rio de Janeiro (sendo a repressão policial a única argumentação usada pelo governo PMDB-PT para “negociar” com os grevistas) e, no dia 7 de outubro, à volta da multidão na Avenida Rio Branco. Mais de 100 mil pessoas marcharam, numa repetição de junho que agora não tinha mais nenhum tipo de ambiguidade. Uma grande manifestação de esquerda, atravessada e enriquecida pelas diferenças e por milhares de jovens que aderiram — talvez pela primeira vez — à tática Black Bloc. No dia 15 de outubro, novamente dezenas de milhares de pessoas ocuparam a Rio Branco. A multidão está na rua e persiste em seu fazer-se. Não uma massa homogênea e manipulada (aquela que a mídia neoescravagista gostaria de ver na rua) e sequer a identidade categorial e corporativa que os sindicatos (pelegos ou supostamente “radicais”) conseguem colocar, mas uma multiplicidade de singularidades, sem lideranças e por isso mais potentes. É a multidão que está na frente, praticando e inovando nas formas de luta e voltando a dar credibilidade à política, em particular junto aos jovens.

Projetos dos partidos

Lembremos que, em junho, os partidos tradicionais (de governo e de oposição) criticavam o movimento por não ter organicidade, lideranças e “projeto”. Caberia perguntar: quais são, hoje, a organicidade e os projetos dos partidos? Por um lado, é difícil defender que os diferentes partidos de governo tenham alguma organicidade. Eles parecem funcionar como coalizões espúrias de estratégias personalistas, grupos de interesse econômico que formam bancadas bem pouco “republicanas” a partir do peso de determinados lobbies (agronegócio, telecomunicações, evangélicos, etc.) que passam por cima das próprias instâncias partidárias. Que projeto tem esses “deputados e senadores”, que não a mera ocupação do aparelho de poder assim como ele é? E, qual seria o projeto dos partidos de esquerda?

Aqueles que fazem oposição se confirmaram como fundamentais, em particular o PSOL do Rio de Janeiro. Contudo, a “esquerda de oposição” sai muito mal desses cinco meses de lutas. Quando ainda tem cidadania no movimento, isso não impede que o movimento os transponha totalmente. Por outro lado, é evidente que a “esquerda de oposição” não representa nenhuma alternativa eleitoral, e eu continuo convencido de que até o movimento mais radical precisa de algum momento eleitoral. Quanto ao PT, qual é seu projeto? Difícil dizer, pois não há nenhum, a não ser “continuar no governo”. É ainda pior se perguntamos: qual projeto a Presidenta Dilma implementou em seu mandato? Em termos de políticas públicas, não houve nenhuma inovação.

A marca da Dilma foi a volta do economicismo, e isso em torno de duas falácias: a primeira foi a aposta na economia material das commodities, dos megaeventos, das megaobras e dos global players (a grande indústria multinacional); a segunda — complementar a essa — foi a ideia de que a mudança de modelo econômico viria de cima para baixo, pela decisão-decreto de “baixar a taxa de juros”. Quando Dilma fala que gosta de engenheiros e não de advogados, ela está sendo muito sincera, nos faz entender que ela é mesmo autoritária. Não se trata apenas de “jeito”, do gosto pelos engenheiros que fazem os cálculos das barragens ou dos estádios, diante dos “chatos” dos advogados que ajudam os índios e os pobres a desconstruir essas equações para mostrar os impactos ambientais e sociais. Trata-se mesmo de uma maneira de pensar a política como uma engenharia social, uma teleologia do progresso a ser implementada, inclusive pela força (a polícia, sem esquecer que se trata da polícia brasileira, que mata oficialmente cinco pessoas por dia), como fizeram Lenin e Stalin com a “industrialização forçada”. Só que agora, o ridículo é que o totalitarismo é para permitir a qualquer custo que a Copa da FIFA aconteça nos moldes dos interesses da FIFA. O nacionalismo é sempre assim: em nome do interesse nacional, abrem-se avenidas para o neocolonialismo interno e, pois, externo.

Logo que foi eleita, Dilma mostrou a que veio: a destruição do Ministério da Cultura foi emblemática, mas também a afirmação de seu estilo autoritário, com a demissão de Pedro Abramovay , justamente por ter anunciado um elemento de projeto (a reforma — urgente e necessária — da política de repressão das drogas). Um episódio que mostra o caráter arrogante e autoritário da Presidenta e a submissão dócil de seus ministros — a começar pelo que deveria ter defendido o Pedro Abramovay, o Ministro da Justiça —, que praticamente não tomaram nenhuma iniciativa nestes três anos. Nada foi produzido pelos ministros. Imaginem o que teria acontecido com Tarso Genro quando tomou a corajosa decisão de conceder refúgio ao Battisti . O fato é que os elementos originais do governo Dilma foram desastrosos e apagaram o pouco que havia de “esquerda” no pragmatismo “lulista”: no plano das megaempresas, temos a falência de Eike Batista — que envolve BNDES, CEF e FGTS — e as dificuldades pesadas da Petrobras que levaram ao Leilão de Libra (e levarão ao aumento do preço da gasolina porque a produção dos poços tradicionais caiu); os megaeventos se mostraram como impopulares justamente em junho, durante a Copa das Confederações — como se faz para gastar bilhões em embelezamento (no Porto Maravilha) quando milhões de pessoas ao lado convivem com rios de esgoto a céu aberto? Só mesmo por meio do conluio com a tradicional política de terror, essa sim mascarada por trás da clivagem de raça e classe, que mantém a senzala em “seu lugar”.

No plano da nova política econômica (a manutenção dos subsídios à grande indústria e a tentativa de baixar os juros), esta acabou reforçando as tendências inflacionistas que já estavam presentes. O levante de junho foi, inicialmente, a afirmação de que só uma mobilização democrática é capaz de romper a ciranda mortífera que liga as duas inflações: a dos juros e aquela dos preços! Tornando-se primavera, o outono é também a base para reafirmação da própria noção de projeto. O “projeto” que interessa é aquele que não é unitário, mas múltiplo, aquele que é aberto a outro processo de produção de subjetivação, aquele que não se separa do processo de sua constituição: o único jeito de a “política” voltar a ser ética (e crível para os jovens) é de manter a fonte e o resultado juntos num processo continuamente aberto. O único projeto que interessa é justamente aquele que não é projeto, ou seja, onde não há nenhuma teleologia totalitária, mas o máximo de constituição democrática.



IHU On-Line - Que relação pode ser feita entre aquelas primeiras manifestações e as mais recentes, que passaram a ser identificadas pelos atos de violência? Trata-se da continuação de um mesmo fenômeno ou são situações isoladas uma da outra?

Giuseppe Cocco - Não há diferença entre as primeiras manifestações e aquelas que persistiram ao longo desses meses: por exemplo, as primeiras manifestações no Rio de Janeiro, no início de junho, tinham muita pouca gente e já eram caracterizadas pela determinação de uma nova geração de jovens em resistir aos ataques da polícia e dar às manifestações algum nível de efetividade. Contrariamente ao que a mídia e os intelectuais ligados ao governo afirmam hoje, foi essa característica marcante das manifestações que as massificou. Ao passo que os governos achavam que o “rodo” policial teria afugentado os manifestantes, em particular aqueles politizados de classe média que — segundo seus cálculos obsoletos — deviam constituir o núcleo duro das mobilizações. Não apenas isso não afugentou, mas massificou e, dentro da massificação, foi se construindo a capacidade de resistir e até de praticar ações diretas de tipo simbólico. Desde o início o poder da mídia e a mídia do poder tentaram impor a separação entre os manifestantes “ordeiros” e os “vândalos” e não funcionou. Não funcionou porque, apesar das mistificações seguidas da mídia, as práticas da autodefesa e das ações diretas respeitaram limites políticos precisos que não permitiram que a elas se colasse o discurso da violência e do medo. A maioria da população, sobretudo da população jovem e pobre, passou a enxergar nessas práticas uma brecha de luta efetiva. Trata-se, pois, de uma continuidade e de um amadurecimento, como vimos na volta da multidão para a Avenida Rio Branco nos dias 7 e 15 de outubro. Contudo, podemos e precisamos sistematizar a questão da violência em três momentos de reflexão: a violência já existe e a novidade foi a brecha democrática; a questão da tática Black Bloc; e a repressão.

A violência

A mídia e o poder sempre tentam dizer que a violência vem do protesto, ou seja, da manifestação democrática. Trata-se de uma operação sistemática de mistificação que assistimos em suas formas explícita e assassina nos últimos eventos de São Paulo — ao passo que alguns jovens estão em prisão preventiva com a gravíssima acusação de “tentativa de homicídio” de um policial (que não sofreu nenhum ferimento grave), os policiais que assassinaram friamente dois adolescentes (em momentos diferentes e logo depois) são indiciados por “homicídio culposo”. Pior, jornais como O Globo (que tem uma longa e mortífera história de apologia do arbítrio policial) chegaram a fazer manchetes que invertiam propositalmente o sentido dos fatos: “Protesto contra morte de jovem termina em violência”. Ou seja, a justa indignação popular contra a violência assassina do Estado sofre uma inversão grosseira, até ofensiva à inteligência do leitor. O que o movimento fez e faz não é praticar a violência, mas tornar explícita e visível a violência do poder e seus sistemas de (in)justiça, como do caso Amarildo, o pedreiro torturado, assassinado e feito desaparecer na sede da UPP da PM da Rocinha do Rio de Janeiro. A mesma coisa aconteceu com os mais de 10 moradores assassinados na favela da Maré em junho, durante o movimento, pela “Tropa de Elite” da PM do Rio e em relação à qual sequer existe um procedimento disciplinar. O movimento mostrou que os moradores da senzala não têm cidadania nem direito de lutar. A chacina da Maré foi um recado claro, genuinamente neoescravagista, aos pobres: vocês não têm direito de lutar e se lutarem serão mortos. Essa é a democracia que vivemos: não nos grotões do Brasil remoto, mas na metrópole olímpica, o Rio de Janeiro. E isso num governo estadual do PT e do PMDB.

A tática Black Bloc

Porém, milhares de jovens pobres descobriram, em junho, que havia uma brecha para lutar. O Brasil dos megaeventos, das Copas e das Olimpíadas não pode repetir nas ruas e praças o que faz nas favelas, periferias e subúrbios todo santo dia. Não é por acaso que isso aconteceu durante a Copa das Confederações. A luta foi contra, mas dentro: dentro e contra. Essa brecha é claramente democrática, pois por meio dela os jovens pobres (mesmo que na maioria sejam os mais dinâmicos — prounistas, reunistas, etc.) encontraram a possibilidade de lutar, fugindo ao duplo mecanismo racista e assassino que normalmente é usado para controlá-los: o arbítrio da polícia e aquele do narcotráfico, sendo que às vezes ele toma o nome de “milícia”. Ao mesmo tempo, os jovens que encontraram essa brecha não acreditam na representação e querem muito mais e melhor. Não querem nenhuma bandeira que não seja aquela que eles mesmos afirmam e produzem em sua luta. Além disso, me parece, esses jovens, e mais em geral os jovens que decidiram entrar para a política em junho, pensam que o único modo de fazê-lo é conseguir certo nível de efetividade, ou seja, ficando nas ruas nas maneiras mais autônomas e determinadas possíveis. Deve haver outras explicações que eu desconheço, mas olhando para o Rio de Janeiro, onde a tática Black Bloc se apresentou explicitamente (se eu não estiver errado) apenas no dia 30 de junho, nas manifestações de protesto durante a final da Copa das Confederações, creio que as bandeiras negras do anarquismo foram aquelas que a grande maioria desses jovens elegeu como sendo internas a uma luta que é, antes de tudo, uma luta contra a representação e afirma a necessidade de formas de organização radicalmente horizontais, sem liderança.

Eu nunca fui anarquista e não acredito no “anarquismo” porque penso que a luta é pela invenção de novas instituições. Mas não adianta querer que a “realidade” se encaixe nas nossas ideias. É preciso que as ideias se adéquem à realidade. A referência (global) à tática Black Bloc parece ter respondido ou correspondido a algumas inflexões totalmente brasileiras e cariocas. A primeira é a necessidade desses jovens oriundos das periferias e dos subúrbios de se mascarar para poder lutar (há como que uma inversão: não usam máscaras por serem Black Blocs, mas se chamam de Black Bloc para poderem usar as máscaras e chegar mascarados nas manifestações do mesmo modo que as bandeiras pretas da anarquia lhe parecem as únicas — mas não exclusivas — que afirmam a horizontalidade radical de sua luta). A explicitação da tática Black Bloc é também — e paradoxalmente diante do processo de criminalização do qual são objeto — a definição de uma ética da resistência e da ação direta, ou seja, de “limites” dentro dos quais manter essas duas práticas que o movimento de junho e seus desdobramentos, ao longo dos meses de julho, agosto, setembro e outubro, colocaram em pauta. A tática Black Bloc foi um sucesso midiático inesperado. São eles que chamam a atenção de todos os tipos de mídia. De onde vem esse “sucesso”? Da percepção de que nessa tática há uma brecha democrática capaz de colocar na rua a questão da paz e da justiça social: é essa tática que conseguiu dar o nome de Amarildo a todos os pobres sem nome massacrados arbitrariamente pelo Estado: cinco por dia, segundo as estatísticas publicadas pelo O Globo.

Contudo, parece que a tática Black Bloc tem uma dimensão estética que também pode funcionar como uma identidade e isso, a meu ver, é um problema. Em primeiro lugar porque pode servir para os desenhos da repressão que procura exatamente isolar fenômenos de organização que não existem. Em segundo lugar porque pode ingenuamente atribuir às dimensões estéticas da ação direta um peso político que na realidade não tem. Por exemplo, a quebra dos caixas eletrônicos se parece com a quebra dos relógios nas velhas revoluções do século XIX. Da mesma maneira que o proletariado industrial não conseguia com isso deter os ritmos do tempo do assalariamento, o proletariado metropolitano não conseguirá deter os fluxos das finanças quebrando os caixas eletrônicos dos bancos (aliás, nisso os Black Blocs estão sendo muito próximos da Dilma e de sua tentativa fracassada de deter as taxas de juros). Ficando nessa estética, a luta corre o risco de cair numa armadilha. Enfim, os adeptos da tática Black Bloc podem acabar “presos” nessa dimensão estética, repetindo-a sistematicamente e ingenuamente. Em suma, a dimensão estética corre o risco de sobredeterminar aquela política, e penso no mote de Walter Benjamin (o filósofo comunista alemão vítima do nazismo): a luta pela politização da arte continua atual.

A repressão

Chegamos assim à questão da repressão: o que está acontecendo — e em nível federal — é escandaloso. A Polícia Federal — a mando da Presidenta e do Ministro de Justiça — divulga na imprensa a existência de listas de “suspeitos” de praticarem atividades totalmente constitucionais: liberdade de opinião e de manifestação, articulações políticas e culturais internacionais. Não dá nem para acreditar.

Em junho, dirigentes do PT e do governo chamaram para o perigo do “golpe”, falaram de coxinhas e também de “fascismo e barbárie” nas manifestações. Tive um vivo debate com meu amigo Tarso Genro, na presença de Boaventura de Souza Santos , em Lisboa (em julho deste ano), durante o qual ele falava de fascismo e da “marcha sobre Roma”. Ora, o fascismo é um fenômeno estatal, nacionalista e identitário: totalmente o contrário dos discursos, das bandeiras e da estética destes garotos. Quem tem ares de fascismo é Vargas , ao qual Emir Sader comparou o Presidente Lula. Quem é ambíguo é o nacionalismo que circula na esquerda neodesenvolvimentista (inclusive, como vimos no Leilão de Libra, faz como o fascismo: retórica nacionalista e política entreguista). Fascismo e xenofobia é fazer demagogia nos vistos (bem-vindos) para os médicos cubanos e deixar irregulares os milhares de trabalhadores bolivianos em São Paulo. Enfim, fascistas são as polícias de qualquer estado do Brasil que podem matar e torturar a rodo sem que o senhor Ministro de Justiça constitua força tarefa nenhuma. Fascismo e barbárie são as condições das prisões no Brasil, para onde o próprio Ministro disse que não gostaria de ir.

O fascismo é um fenômeno estatal, organizado e estruturado em torno da radicalização dos valores tradicionais: a nação, a família e até a raça (e o anarquismo diante disso — quer a gente goste ou não dele — é uma contradição nos termos). O fascismo já está presente e dominante no Brasil e não precisa de nenhum golpe, a não ser aquele que o próprio governo está dando na democracia. Quem colocou o exército na rua foi o governo federal para proteger o leilão das reservas estratégicas de petróleo. A quebra do Estado de direito aconteceu por obra do Estado do Rio (e surpreendente aprovação do Cardozo) na prisão indiscriminada e em massa de 200 pessoas com o único critério de estarem na escadaria da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, exercendo o direito constitucional de manifestação. Essa operação sim é de “tipo” nazista: prisão indiscriminada, em massa, por retaliação.

Não se trata apenas de dizer que nenhuma força-tarefa foi constituída entre o Ministro da Justiça e os Secretários de Segurança do Rio e de São Paulo para deter os assassinatos sistemáticos de pobres (os “Amarildo”) pelas PMs de todos os estados. Há uma outra evidência, terrível, que somente Cardozo e Dilma não querem ver: no Rio de Janeiro, ao longo de cinco meses de mobilizações de rua e enfrentamentos, a PM — como o próprio Secretário de Segurança José Mariano Beltrame disse — se “segurou” e o uso das armas letais foi extremamente limitado (embora preocupante no dia 15 de outubro). O que isso significa? Que o uso sistemático do ato de resistência para matar, torturar e dar sumiço nos pobres é uma prática que vigora por meio de uma autorização de fato por parte dos governos. No caso das manifestações, para manter sua imagem externa e evitar também uma revolta generalizada, os governos conseguiram fazer passar o “recado” para sua PM e que não querem fazer passar no que diz respeito à sua atuação na Maré, na Rocinha, nos subúrbios do Rio e nas periferias de São Paulo. Só mesmo esse Ministro de Polícia para não ver a enorme brecha para a paz que haveria, e abrir mesas de negociação. Só mesmo a arrogância potencialmente totalitária da Presidenta e dos setores majoritários do PT de não fazer autocrítica sobre 10 anos de (não) políticas da juventude. O melhor da juventude brasileira está na rua. O que foi feito nos governos Lula e Dilma? Alguém sabe?



IHU On-Line - Disso decorreria que as manifestações recentes estão permeadas por uma cultura do ressentimento?

Giuseppe Cocco - O único ressentimento que eu vi (e vejo) é o que se encontra nas análises desses “acadêmicos” que estão paradoxalmente desarmados teoricamente para entender o que acontece e aconteceu. Descobrem que as categorias que usavam não servem para nada e tentam desqualificar o que acontece e tentam exorcizar os trabalhos teóricos que os anteciparam. O caso mais triste é o da Marilena Chauí. Numa entrevista na Revista CULT, ela faz uma série de considerações infundadas sobre o pensamento de Foucault , Agamben e Negri e começa declarando “ter levado um susto quando descobriu que os meninos do MPL tinha usado as redes para chamar pelas mobilizações”. Como se as redes fossem uma opção e não a nova base material do trabalho e das lutas, a condição ontológica dentro da qual vivemos. Esse descolamento entre o pensamento e a análise material (ou seja, o fato de que quando ela fala de “classes” mobilize uma mistura estranha de sociologia marxista ortodoxa com moralismo psicológico que pouco tem a ver coma teoria spinozista dos afetos) explica talvez o fato de que ela não tenha se tocado quando criminalizou os jovens que estão na rua, logo para a máquina mortífera que é a PM do Rio (em agosto).



IHU On-Line - Como este quadro se relaciona com o conceito de multidão, de Antonio Negri?

Giuseppe Cocco - Totalmente. Os conceitos de trabalho imaterial e de multidão se mostram totalmente adequados diante do que está acontecendo e confirmam a dimensão pioneira dessas teorizações. O que temos nas ruas, sociologicamente, é o trabalho imaterial metropolitano que luta sobre a mobilidade e a democracia ao mesmo tempo. E essas lutas “fazem” multidão, constituem uma multidão de singularidades que cooperam entre si, se mantendo tais. A “multidão” não é positiva em si (como diz de maneira infundada a historiadora da filosofia falando de Negri), mas é afirmação, constituição. Fora disso, o que observamos é a fragmentação social, a perda de direitos. O movimento de junho nos mostra que não precisamos voltar às grandes massas fabris para lutar. Pelo contrário, “nunca antes na história deste país” houve um movimento tão forte e tão autônomo, muito mais do que o novo sindicalismo do qual veio Lula.

Do mesmo jeito, quando publicamos, em 2005, GlobAL: biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), dizíamos que os novos governos eram interessantes na medida que seriam atravessados pelos processos de subjetivação — quer dizer, pelas lutas — capazes de construir uma alternativa ao neoliberalismo e ao neodesenvolvimentismo. Dessa maneira, Negri e eu antecipamos, por um lado, que as brechas do governo Lula teriam produzido essa nova subjetividade e que esta não teria se reduzido ao lulismo. Por incrível que pareça, o regime discursivo hegemônico no PT foi aquele de comparar Lula a Vargas e, de maneira totalmente bipolar, de reduzir a mobilização social à mobilidade estatística (a emergência de uma Nova Classe Média). Pelo visto, quem é chamado a preencher esse vazio da teoria e da política hegemônica no PT e no governo é a Polícia Federal.



Leia mais...

- Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles. Entrevista especial com Giuseppe Cocco, publicada nos Cadernos IHU Ideias nº 19 sob o título #VEMpraRUA - Outono brasileiro? Leituras;

- “Já saímos da sociedade salarial”. Entrevista com Giuseppe Cocco publicada na edição 216 da IHU On-Line, em 23-04-2007;

- Uma crise sistêmica do capitalismo flexível, globalizado e financeirizado. Artigo de Giuseppe Cocco publicado na edição 291 da IHU On-Line;

- O Império e a Multidão no contexto da crise atual. Entrevista com Giuseppe Cocco publicada na edição 293 da IHU On-Line, em 18-05-2009;

- Horizontes da crise: nova globalização e trabalho sem emprego. Artigo de Giuseppe Cocco publicado na edição 301 da IHU On-Line, em 20-07-2009;

- O devir-Brasil do mundo e o biopoder. Entrevista com Giuseppe Cocco publicada na edição 343 da IHU On-Line, em 13-09-2010;

- Commonwealth e o horizonte de uma alternativa pós-capitalista. Entrevista com Giuseppe Cocco publicada na edição 344 da IHU On-Line, em 21-09-2010.


Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5308&secao=434

"Ninguém nunca viu a Deus"

Entrevista interessante sobre Mística Cristã - Marco Vannini - estudioso da mistica especulativa ao IHU. Confira:


"Ninguém nunca viu a Deus". Para a mística a verdade é sempre interior. Entrevista especial com Marco Vannini
"Se eu devo fazer uma hierarquia, direi que algumas das principais palavras-chave da mística são: amor, desapego, humildade, Uno, vazio", descreve o estudioso italiano da mística especulativa.

Marco Vannini não considera que a mística seja uma experiência do mistério. “O assim chamado mistério é colocado por nós, e a nós são dadas as respostas. Certamente, há coisas que ignoramos, e a realidade de Deus é uma delas, pelo que podemos falar sempre e em qualquer caso somente da nossa experiência, evitando como a peste a tentação de dizer que ela é a ‘experiência de Deus’”, sustenta Vannini em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“A experiência do espírito é o conhecimento da nossa mais real essência, que é a essência humana, além de cada distinção acidental de cultura, religiões, modos de vida, todos relacionados com a contingência espaço-temporal, e também além da diferença de gênero, que subsiste em nível corpóreo e, em certa medida, também em nível psíquico, mas é inexistente no nível espiritual”, complementa.

Na avaliação de Marco Vannini, a experiência da ausência é, na realidade, a mesma do “nada”. “A experiência do nada não é somente negativa, trágica, mas pode ser sim extremamente frutífera, como purificadora de todos os ídolos, de toda a pretensa certeza”, considera.

Para o editor da obra de Meister Eckhart, na Itália, vivemos em momento em que a história e a ciência erodiram a crença que a fé proporcionava. “‘O deserto cresce’, Nietzsche já advertia há um século e meio que cada parte é responsável pela a ausência de propósito, o nada no seu sentido mais trágico”, sustenta. “Quando várias correntes místicas compreendem cada uma o específico da outra, entendem que são gotas do mesmo mar”, avalia o entrevistado.



Marco Vannini é um dos maiores estudiosos italianos da mística especulativa. Além de ter editado Mestre Eckhart e muitos outros místicos, ele é autor de inúmeros estudos, tais como La morte dell’anima. Dalla mistica alla psicologia (Ed. Le Lettere, 2004); Storia della mistica occidentale (Ed. Mondadori, 2005); Mistica e filosofia (Ed. Le Lettere, 2007); La mistica delle grande religioni (Ed. Le Lettere, 2010); Prego Dio che mi liberi da Dio (Ed. Bompiani, 2010), dentre outros. Em português, foi traduzida a sua Introdução à mística (Edições Loyola, 2005).

Neste ano Marco Vannini publicou os seguintes livros: Lessico Místico. Le parole della saggezza (Le Lettere: Firenze, 2013), Oltre il Cristianesimo. Da Eckhart a Le Saux (Bompiani: Milão, 2013) e, juntamente com Corrado Augias, Inchiesta su Maria. La storia vera della fanciulla che divenne mito (Rizzoli: Milão, 2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que sentido a mística é uma experiência do Mistério? Como a modernidade compreende essa vivência?

Marco Vannini - Não direi absolutamente que a mística seja a experiência do mistério. O assim chamado mistério é colocado por nós, e a nós são dadas as respostas. Certamente, há coisas que ignoramos, e a realidade de Deus é uma delas (Deum nemo vidit unquam, diz São João ("Ninguém jamais viu a Deus" - Jo, 1,18 - Nota da IHU On-Line), pelo que podemos falar sempre e em qualquer caso somente da nossa experiência, evitando como a peste a tentação de dizer que ela é a “experiência de Deus”.

Podemos, todavia, dizer que é experiência de uma profundidade — ou de uma altura — vertiginosa que vivemos como experiência da realidade mais essencial de nós mesmos, e, juntamente, como experiência de uma bem-aventurança de outra maneira absolutamente desconhecida. Por certo, ela se refere implicitamente à luz eterna, ao Bem, ou seja, ao que chamamos comumente Deus, mas não podemos, a rigor, deduzir nenhuma teologia e, nesse sentido, o mistério permanece um mistério.

Acredito que a modernidade não aceita — e com razão — as afirmações dos teólogos, ou dos que se dizem místicos, de apresentar sua própria vivência como experiência de conhecimento de Deus, experiência de Deus, mas, em vez disso, compreende perfeitamente, e até aceita de bom grado, por seu caráter de verdadeiro conhecimento mil vezes superior ao das psicologias superficiais, a experiência mística como experiência de nós mesmos, no sentido recém-indicado.

IHU On-Line - Quais são as palavras fundamentais, o léxico que pode descrever a mística?

Marco Vannini - No meu Lessico Misticio. Le parole della saggezza (Léxico Místico. As palavras da sabedoria, em tradução livre), publicado este ano, descrevi umas sessenta palavras importantes para a mística, mas também poderíamos acrescentar outras. Elas são todas importantes, pelo menos no sentido de que a realidade é uma só, pelo que todas as palavras e os conceitos estão indissoluvelmente ligados uns aos outros, e não é possível isolá-los, por assim dizer, e descrevê-los isoladamente, sem, em conjunto, referirem-se também às outras. Se eu devo fazer uma hierarquia, direi que algumas das principais palavras-chave são: amor, desapego, humildade, Uno, vazio.

IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa publicação, o senhor afirmou que a experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero. Qual é a importância de se pensar uma mística para além dessas categorias?

Marco Vannini - Como dizia acima, a experiência do espírito é o conhecimento da nossa mais real essência, que é a essência humana, além de cada distinção acidental de cultura, religiões, modos de vida, todos relacionados com a contingência espaço-temporal, e também além da diferença de gênero, que subsiste em nível corpóreo e, em certa medida, também em nível psíquico, mas é inexistente no nível espiritual.

É evidente que esse conhecimento estabelece uma comunhão entre todos os seres humanos, em todos os lugares (e em todos os tempos), infinitamente superior àquela que se desejaria fundar sobre categorias de caráter político-social (por exemplo, a do direito) ou moral-religioso (por exemplo, o assim chamado ecumenismo), pois estão elas mesmas sujeitas ao condicionamento espaço-temporal.

IHU On-Line - Por que é preciso partir da antropologia clássica para compreender a mística?

Marco Vannini - Porque a antropologia clássica — bem como a cristã que dela se deriva — tem a experiência do ser humano como corpo, alma, espírito, enquanto aquela que prevalece em nossos tempos ignora simplesmente a realidade espiritual, e permanece no dualismo corpo-alma, de fato, corpo-psique. Assim o espírito, em vez de ser o que é, ou seja, o constituinte essencial do homem, desaparece em meio à névoa da indeterminação — também em nível teológico (o Espírito Santo). É necessário, portanto, primeiro ter uma experiência do espírito, e isso somente é possível ao se recuperar a conexão entre filosofia e misticismo, sem o que essa se perde no sentimentalismo.

IHU On-Line - Por que a instituição eclesiástica sempre suspeitou da mística enquanto tal?

Marco Vannini - Em primeiro lugar, porque a mística é como a filosofia — na verdade, a mística é filosofia, como acertadamente revela Pierre Hadot (1) — e, como tal, não reconhece nenhuma autoridade acima da correta razão. Em segundo lugar, porque para a mística a verdade é sempre interior, e o próprio Deus interior intimo meo, como disse Agostinho (2), para o qual a relação com Deus existe somente na interioridade, sem mediação alguma, e isso, obviamente, tira não só o peso da Igreja, como também da Escritura. Em terceiro lugar, enfim, para a mística, a experiência paulina da unidade e da liberdade do espírito é intrínseca: quid adhaeret domino, unus spiritus est, e ubi spiritus domini, ibi libertas (2Cor 3,17 - Nota da IHU On-Line), e esse segundo elemento, a liberdade, é sempre percebido como perigoso, tanto pela autoridade eclesiástica, quanto pela civil.

IHU On-Line - Qual é o legado místico de Etty Hillesum (3), Ângela de Foligno (4) e Marguerite Porete (5)? Quais são as peculiaridades da relação dessas mulheres com a transcendência?

Marco Vannini - Trata-se de três figuras femininas muito distantes não somente no tempo — Ângela e Marguerite do século XIII ao século XIV, Etty do século XX — mas também de características pessoais, meio ambiente, cultura, até mesmo religião, visto que Etty era de família judia.

Diria em primeiro lugar que elas, juntas, mostram como a experiência mística tem sempre elementos essenciais comuns, não obstante as diferenças espaço-temporais, como disse anteriormente. Com a transcendência há uma relação apenas no sentido da ausência que poderíamos expressar, utilizando as palavras de outra grande mulher mística de nosso tempo, Simone Weil (6): “O contato com as criaturas nos é dado pelo sentido da presença, o contato com Deus nos é dado pelo sentimento da ausência. Em comparação com essa ausência, no entanto, a presença é mais ausente que a ausência”. Essa é também a herança mais importante que recebemos delas.

IHU On-Line - Qual é a importância do Nada na mística dessas três mulheres? E qual é a atualidade dessa compreensão e relação com a transcendência?

Marco Vannini - A resposta a essa pergunta está, pelo menos implicitamente, já contida na precedente. A experiência da ausência é, na realidade, “a mesma do nada e não há dúvida de que ela seja de singular atualidade no tempo presente, quanto o era na época do niilismo”. Essas mulheres mostraram que a experiência do nada não é somente negativa, trágica, mas pode ser sim extremamente frutífera, como purificadora de todos os ídolos, de toda a pretensa certeza. Acontece, portanto, que se mantém a orientação da inteligência, de toda a alma, em direção ao Absoluto, ou seja, a fé. Como não lembrar o que ensina São João da Cruz (7)? A fé não produz certezas, mas conduz na noite, isto é, no nada, mas é precisamente nessa noite, nesse nada, que resplandece a luz.

IHU On-Line - Como tais experiências místicas podem inspirar e dar sentido à existência em nosso tempo?

Marco Vannini - Também essa pergunta conecta-se às duas precedentes, e a resposta é similar. Estamos realmente em um momento em que a história e a ciência erodiram a crença de que a fé proporcionava até ontem. “O deserto cresce”, Nietzsche (8) já advertia há um século e meio que cada parte é responsável pela a ausência de propósito, o nada no seu sentido mais trágico. Eis então que um testemunho como o de Etty, que descobre a presença de Deus no meio do campo de concentração nazista onde ela mesma está trancada por ajudar os seus compatriotas, e naquele horror foi capaz de pensar e escrever que estava bem assim, que tudo estava bem, assume um relevo verdadeiramente extraordinário, muito mais autêntico e convincente do que tanta teologia, para não falar das psicologias.

IHU On-Line - Qual é a principal peculiaridade sobre a mística de Maria, mãe de Jesus?

Marco Vannini - Maria é mesmo o arquétipo da mística pelos traços que lhe caracterizam a figura — a única testemunhada nos Evangelhos — ou seja, humildade e desapego. São esses os elementos que compõem o vazio na alma, ou seja, matam o amor a si próprio e deixam o espaço à graça de Deus. Não é coincidência que ela é, desde o princípio, chamada de “cheia de graça”. Os grandes místicos de todos os tempos, de Orígenes (9) a Meister Eckhart (10) a Angelus Silesius (11), compreenderam muitíssimo bem como o nascimento do Filho, do Logos, não estava somente uma vez no ventre de Maria, mas em todo o tempo, em cada instante, em cada alma humilde e distante, que criou o vazio em si própria.

IHU On-Line - Que aproximações poderiam ser tecidas entre a mística cristã, a brahmane (12) e a budista? Nesse sentido, quais são as sutilezas da mística de Mestre Eckhart e Herni Le Saux (13)?

Marco Vannini - Diria que, se for verdade, como é verdade, a mística é sempre substancialmente igual a si mesma, de modo que os grandes místicos de todos os tempos assemelham-se “desde quase a identidade”, como dizia Simone Weil; por outro lado, é também verdade que os vários místicos colocam ênfase em diferentes aspectos da experiência única. Reconhecer a realidade do espírito, matar o egoísmo de apropriação, extinguir o desejo, tornar vazio a si próprio são elementos presentes em cada mística, porém desenvolvidos e enfatizados em alguns mais que em outros. Sob esse aspecto diria que o cristianismo, o bramanismo e o budismo são complementares.

Coloquei De Eckhart a Le Saux como subtítulo do meu último livro Oltre il cristianesimo (Milano: Editora Bompiani, 2013) para evidenciar como, da Idade Média até hoje, a experiência de um “eu sou” no fundo da alma, é completamente idêntica a das palavras de Jesus: “Antes que Abraão existisse, eu sou”, constituía o núcleo essencial do cristianismo — “mais além” o cristianismo como teologia ligada aos tempos e lugares. A importância de Le Saux não é maior que a de Eckhart, mas, para nós, talvez, a mais significativa, uma vez que se trata de um nosso contemporâneo, com uma imagem de mundo que certamente não é medieval, e então passada por intermédio da cultura e da espiritualidade da Índia, que foi a que revelou o verdadeiro significado do cristianismo.

Quando várias correntes místicas compreendem cada uma o específico da outra, entendem que são gotas do mesmo mar.

Notas:

1.- Pierre Hadot: filósofo francês, é um dos co-autores do livro Dicionário de ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Unisinos, 2003. Sus pesquisas concentraram-se primeiramente nas relações entre helenismo e cristianismo,em seguida, na mística neoplatônica e na filosofia da época helenística. Elas se orientam atualmente para uma descrição geral do fenômeno espiritual que a filosofia representa. Em português pode ser lido o livro de sua autoria O que é a filosofia antiga? (São Paulo: Loyola, 1999). Para uma resenha da obra confira a revista Síntese 75(1996), p. 547-551. A resenha do original francês é de Henrique C. de Lima Vaz. (Nota da IHU On-Line)

2.- Santo Agostinho [Aurélio Agostinho] (354-430): Bispo, escritor, teólogo, filósofo foi uma das figuras mais importantes no desenvolvimento do cristianismo no Ocidente. Ele foi influenciado pelo neoplatonismo de Plotino e criou o conceito de pecado original e guerra justa. Confira a entrevista concedida por Luiz Astorga à edição 421 da IHU On-Line, de 04-06-2013, intitulada A disputatio de Santo Tomás de Aquino: uma síntese dupla, disponível em http://bit.ly/11CA1f8. (Nota da IHU On-Line)

3.- Etty Hillesum (1914-1943): foi uma jovem judia, cujos diários e cartas descrevem a vida em Amesterdan, durante a ocupação alemã.Em Setembro de 1943, Etty foi deportada para Auschwitz, vindo a falecer em Novembro desse ano. (Nota da IHU On-Line)

4.- Ângela de Foligno (1248-1309): foi uma mística e santa cristã nascida em Foligno, na Umbria, Itália. Morreu em Foligno, na Itália, no dia 4 de janeiro de 1309. O seu corpo incorrupto encontra-se exposto na Igreja de São Francisco dessa mesma cidade. Foi beatificada pelo Papa Inocêncio XII em 1693 e canonizada pelo Papa Francisco em 2013. (Nota da IHU On-Line)

5.- Marguerite Porete: mística francesa, queimada pela Inquisição em Paris, em 1310, após se recusar a retirar seu livro de circulação. (Nota da IHU On-Line)

6.- Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã francesa. Centrou seus pensamentos sobre um aspecto que preocupa a sociedade até os dias de hoje: o tormento da injustiça. Vítima da tuberculose, recusou-se a se alimentar, para compartilhar o sofrimento de seus irmãos franceses que haviam permanecido na França e viviam os dissabores da Segunda Guerra Mundial. Sobre Weil, confira as edições 84, de 17-11-2003, Simone Weil Palavra Viva, disponível em http://bit.ly/tZSCDr; 168, de 12-12-2005, Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX, disponível em http://bit.ly/v0aMxT; 313, de 03-11-2009, Filosofia, mística e espiritualidade. Simone Weil, cem anos, disponível em http://bit.ly/w374lt. (Nota da IHU On-Line)

7.- João de Yepes ou São João da Cruz (1542-1591): ingressou na Ordem dos Carmelitas aos 21 anos de idade, em 1563, quando recebe o nome de Frei João de São Matias, em Medina del Campo. Em setembro de 1567 encontra-se com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala sobre o projeto de estender a Reforma da Ordem Carmelita também aos padres. Aceitou o desafio e trocou o nome para João da Cruz. No dia 28 de novembro de 1568, juntamente com Frei Antônio de Jesús Heredia, inicia a Reforma. No dia 25 de janeiro de 1675 foi beatificado por Clemente X. Foi canonizado em 27 de dezembro de 1726 e declarado Doutor da Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi proclamado "Patrono dos Poetas Espanhóis". Sua festa é comemorada no dia 14 de dezembro. Sobre São João da Cruz, confira As obras completas de São João da Cruz (Petrópolis: Vozes, 2002) (Nota da IHU On-Line).

8.- Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível para download em http://bit.ly/Hl7xwP. Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10-04-2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Université Catholique de Louvain, intitulada “Nietzsche e Paulo”, disponível para download em http://bit.ly/dyA7sR. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência “A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica”, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença — Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência, concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível para download em http://bit.ly/nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à tirania do sentido, com Danilo Bilate, disponível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line)

9.- Orígenes (aproximadamente 185-254): mestre catequista na Alexandria e discípulo de São Clemente. Criador de um sistema filosófico-teológico no qual o cristianismo se apresentava como a culminância da filosofia grega. (Nota da IHU On-Line)

10.- Mestre Eckhart (1260-1327): nasceu em Hochheim, na Turíngia. Ingressando no convento dos dominicanos de Erfurt, estudou em Estrasburgo e em Colônia. Tornou-se mestre em Teologia e ensinou em Paris. Em sua obra, está muito presente a unidade entre Deus e o homem, entre o que consideramos sobrenatural e o que achamos ser natural. É um pensamento holístico, pois. Para Eckhart, devemos reconhecer Deus em nós, mas este caminho não é fácil. O homem deve se "exercitar nas obras, que são seus frutos", mas, ao mesmo tempo, "deve aprender a ser livre mesmo em meio às nossas obras". Eckhart morreu em 1327. Em 27 de março de 1329, foi dada ao público a bula In agro dominico, através da qual o Papa João XXII condenou vinte e oito proposições do Mestre Eckhart. Das vinte e oito, dezessete foram consideradas heréticas e onze, escabrosas e temerárias. Entre estas, estava a de que nos transformamos em Deus. Mas esta condenação papal justifica-se, na medida em que as ideias de Eckhart tinham uma dimensão revolucionária. Elas foram acolhidas pelas camadas populares e burguesas, que interpretavam o apelo eckhartiano à interioridade da fé e à união divina como uma rebelião implícita à exterioridade "farisaica" de uma hierarquia e de um clero moralmente decadente. Sua herança influenciou, entre outros, significativamente, a Martinho Lutero. Sobre o tema Místicas, conferir tema de capa do IHU On-Line, edição 133. (Nota da IHU On-Line).

11.- Angelus Silesius (1624-1667): pseudônimo de Johannes Scheffler, poeta germânico, nascido em 1624 em Breslau, Polônia, e falecido na mesma cidade em 1667. (Nota da IHU On-Line).

12.- Brâmane: é um membro da casta sacerdotal, a primeira do Varnaśrama dharma ou Varna vyavastha, a tradicional divisão em quatro castas (varna) da sociedade hinduísta. (Nota da IHU On-Line).

13.- Swami Abhishiktananda (1910-1973): nome indiano de Dom Henri Le Saux, monge beneditino. Em 1950, foi cofundador, junto com Father Jules Monchanin, do Satchidananda Ashram, uma instituição monástica dedicada à integração dos valores da tradição beneditina com os valores da tradição monástica hindu. (Nota da IHU On-Line)

Veja também:

“A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”. Entrevista com Marco Vannini publicada na Edição 385, de 19-12-2011, da Revista IHU On-Line, disponível em http://bit.ly/IHY3nA.
Bento XVI, o último papa de Nietzsche. Artigo de Marco Vannini publicado nas Notícias do Dia, de 13-02-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos, disponível em http://bit.ly/1cqzl2u.
A renúncia e o drama da relação fé e história. Entrevista especial com Marco Vannini
O silêncio da alma: por que o Ocidente esqueceu os seus místicos. Entrevista com Marco Vannini

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526669-entrevista-especial-com-marco-vannini

Friday, December 06, 2013

"Precisamos desafiar o poder com as armas da delicadeza, da ternura e da inteligência" Adriano Pilatti

Um regine que não acabou e que produziu muitos filhos para o nosso tempo. Vamos verificar a reportagem da IHU




“O regime militar não acabou nas periferias. Mudou apenas a cor do uniforme”
Para Adriano Pilatti, repensar a democracia é o grande desafio das instituições, e a democracia direta é a possibilidade que brota das manifestações. Os “corpos e mentes jovens, potentes e indomáveis” retomam a ideia maquiaveliana dos tumultos que produzem boa ordem

Por: Márcia Junges

“A criminalização dos movimentos sociais é pura e simplesmente a continuidade dessa incapacidade das elites brasileiras de aceitar a ação política que vem de baixo. Os primeiros movimentos sociais criminalizados foram os quilombos e, assim como os quilombolas eram caçados, hoje os dissidentes pobres também o são. Entre eles, esses meninos que tomaram as ruas do Rio de Janeiro e que não querem ser traficantes, nem milicianos, nem policiais, mas também não querem ser “escravos remunerados” em sórdidos ambientes de trabalho. Eles querem ser cidadãos e são satanizados pura e simplesmente porque põem uma máscara no rosto, independentemente do que fizerem ou deixarem de fazer. O que poucos sabem é que, para muitos deles, que vivem em territórios onde os direitos civis não chegaram, territórios controlados por milícias, traficantes, etc., a máscara é um recurso de autodefesa sem o qual seriam perseguidos ao retornarem para casa, ou perderiam seus empregos, porque muitos trabalham para os seus territórios de origem, onde os direitos civis não chegaram. O enunciado ‘se usa máscara, então faz vandalismo’ é falso”. A afirmação é do cientista político Adriano Pilatti, que concedeu entrevista pessoalmente à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, essa criminalização não é nada mais do que “a dimensão coletiva da criminalização da vida dos pobres que permanece”. E dispara: “O regime militar não acabou nas periferias, mudou apenas a cor do uniforme”. Pilatti critica a postura de inúmeros intelectuais brasileiros, ressentidos e irritados porque não conseguem mais encaixar a realidade em seus “joguinhos de armar conceituais”. Além disso, reflete que, frente a um sistema de poder “que nega e trai a vida a todo instante, a virtude fundamental é desobedecer, é duvidar do tirano, é rir do poder. É não aceitar essa falsa majestade dos homens e mulheres de capa preta”.

Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008). Proferiu a conferência A Constituição no Supremo Tribunal Federal: a (des)construção da democracia brasileira em 02-10-2013, no Seminário Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Direito - Unisinos e Programa de Pós-Graduação em História - Unisinos.

Esta entrevista foi publicada nas Notícias do Dia, de 21-11-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1joBiQB.

Confira a entrevista.



IHU On-Line - Quais são os principais desafios e impasses da democracia no Brasil?

Adriano Pilatti – Primeiramente, penso que é preciso superar a plurissecular tradição autoritária não só do Estado como da sociedade brasileira. Nós nascemos, crescemos e amadurecemos sob o signo do autoritarismo estatal e social, do autoritarismo de Estado e de classe. Esses males de origem, para citar uma expressão do Manoel Bomfin , ainda produzem efeitos terríveis na sociedade brasileira. Não entendemos o padrão de violência policial que temos no Brasil sem lembrar que tivemos 388 anos de escravismo e de domínio brutal sobre os corpos produtivos. Não conseguimos entender a extrema dificuldade que tem o patronato brasileiro de olhar para o trabalhador e ver nele um sujeito de direitos sem remontar, igualmente, ao período escravista. A recente extensão dos direitos mínimos de proteção ao trabalho às empregadas domésticas revelou bem o quanto a mentalidade escravocrata está profundamente arraigada não apenas nas classes dominantes, mas também nas classes médias e na pequena burguesia.



Demofobia

As representações dos sistemas políticos representativos, dos sistemas eleitorais e partidos políticos estão em crise em todo o mundo democrático, e isso remonta a um problema de origem, porque originariamente a representação política moderna, tal como concebida nos Estados Unidos no pensamento dos federalistas e na elaboração da Constituição de 1787 , foi pensada contra a democracia. Os federalistas diziam querer uma república representativa na América para não ter democracia. A demofobia explicava a necessidade de construir um sistema em que o povo, sobretudo os pobres, os pequenos proprietários, os despossuídos e desvalidos não exercitassem diretamente o poder. Essa era também a preocupação de Montesquieu , o aristocrata que pensa em um regime de separação de poderes tanto para superar o absolutismo monárquico quanto para prevenir a democracia e a anarquia. Então a representação foi feita contra a democracia tanto na Revolução Americana como na Revolução Francesa .

O que aconteceu é que, a partir de 1848, com o ciclo de revoltas operárias que sacode toda a Europa e repercute pelas áreas periféricas do mundo, a representação liberal burguesa, que era oligárquica e foi concebida para ser oligárquica, para garantir o poder de poucos e, sobretudo, o direito de propriedade, começa a se democratizar com as lutas pelo sufrágio universal masculino, primeiro, porque a classe operária também era machista, e depois com as outras minorias, as mulheres, as minorias étnicas, as minorias religiosas e assim por diante.



Mal necessário

Na verdade, a representação foi se democratizando, mas esse processo tem um limite e isso explica o mal-estar. “Fulano não me representa”, ou “sem partido” são expressões do mal-estar da representação. Expressões equivalentes têm sido bradadas por jovens desobedientes em Atenas, Roma, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Madri, Nova Iorque, Istambul e assim por diante. Justamente porque na combinação de representação com desigualdade está o princípio de toda a corrupção. Se alguém exerce poder em nosso nome em uma sociedade desigual, o princípio da corrupção está estruturalmente instaurado. Então, o grande desafio da democracia hoje é repensar as instituições, de certo modo salvar a representação de si mesma, reduzir sua abstração, pois por muito tempo ainda ela será necessária. Mas é necessária na estrita medida em que possa servir à garantia da liberdade e dos direitos.

Hélio Pellegrino dizia que toda instituição democrática é mal necessário, na medida em que sirva à consecução de um bem. E o que se entende por bem na sociedade democrática? A liberdade, os direitos, o respeito à diversidade. Então, essa é a medida de toda a instituição, e o grande desafio da democracia hoje em todo o mundo é justamente fazer que com as instituições que servem à liberdade, à igualdade e aos direitos se deixem contagiar pelos movimentos que vêm de baixo, na sua diversidade, na sua multiplicidade.

Direita e esquerda continuam existindo, porque enquanto houver opressores oprimidos e exploradores explorados haverá direita e esquerda. Mas as posições de direita e esquerda variam conforme as questões. Uma instituição que, por exemplo, na questão da terra está à esquerda pode estar à direita na questão de costumes e vice-versa. Portanto, o grande desafio é não buscar a melhor forma de governo, como é a obsessão de todo pensamento político desde os gregos, mas buscar as melhores formas de liberação da potência produtiva, criativa, afetiva das pessoas.



IHU On-Line - No contexto das manifestações de junho ocorridas em nosso país, se discute a crise da democracia representativa. Quais são os limites e as possibilidades desse sistema no Brasil?

Adriano Pilatti - Os limites são postos justamente pelas correlações de força que marcam uma desigualdade profunda do ponto de vista econômico, do ponto de vista da própria veiculação da informação. As possibilidades estão aí nos corpos e mentes jovens, potentes e indomáveis que tomaram as ruas e reatualizaram a ideia de ação direta, a ideia maquiaveliana dos tumultos que produzem boa ordem, dos conflitos que criam as instituições da liberdade. Precisamos fazer um balanço de todos os males que as manifestações evitaram que fossem causados pelos poderes constituídos ao interesse público e aos interesses dos pobres em todo o Brasil, especialmente no Rio. Os “decretos da multidão” assinados nas ruas em cada cartaz ou refrão impediram ou cancelaram reajustes de tarifa de transporte, restringiram a apropriação privada de espaços públicos, interromperam parcial e momentaneamente a remoção de comunidades inteiras para satisfazer os interesses da especulação imobiliária e dos megaeventos. Os pequenos prejuízos que um ou outro grupo de destrambelhados ajudou a produzir pelas ruas são insignificantes perto das decisões que favoreceram o interesse público, o que evidentemente não os legitima, mas permite dimensioná-los de modo mais adequado. O que as manifestações que começaram em junho (e estão longe de terminar, pelo menos no Rio de Janeiro) demonstram é que a ação direta, os decretos da plebe, como se dizia na Roma antiga, contribuem para aprimorar as decisões públicas. Que o poder de veto das ruas é eventualmente necessário e algumas vezes indispensável. A grande possibilidade que está na rua é justamente a democracia direta, a abertura das decisões públicas à participação popular. Isso não é utópico, como os reacionários gostam de dizer. Não se trata de um fenômeno exótico restrito à Islândia, onde recentemente uma constituição foi elaborada “debaixo para cima”.



Limites da representação

Tive um aluno americano na década de 1990, na PUC-Rio, que dizia compreender nossa obsessão pela eleição presidencial, afinal de contas vivemos algumas ditaduras e aqui eleição presidencial era uma raridade. Os norte-americanos, ao contrário, tinham eleições contínuas desde o século XIX. Esse rapaz falou-me que, quando votava, o que menos lhe interessava eram os primeiros itens da cédula, dedicados à escolha dos representantes e governantes. O que interessava eram inúmeras políticas públicas de sua cidade ou de seu estado, que ele ajudava a decidir diretamente. Assim, a democracia brasileira precisa se abrir mais para a participação direta, porque o povo costuma errar menos do que o príncipe, o que Maquiavel havia descoberto examinando a experiência da Roma antiga. Há dias, o povo de Munique rejeitou em plebiscito a candidatura da cidade para a sede das Olímpiadas de Inverno de 2022. Aqui, com tal impacto, decisões continuam a ser tomadas na solidão dos gabinetes, nos convescotes entre políticos, burocratas e negocistas.

Cito dois exemplos contemporâneos no Brasil nos quais a positividade das discussões e decisões diretas fica muito clara. Dois projetos de lei que, paradoxalmente, no momento em que ainda estavam sendo definidos pelo poder executivo como anteprojetos, o do Código Florestal e do Marco Civil da Internet, foram abertos à consulta pública pela web. As comunidades científica, ambiental e todos os setores interessados puderam contribuir, discutir e apresentar sugestões. Dois processos riquíssimos. Onde a coisa se perdeu e se oligarquizou? Quando foi para o Congresso. Assim, o Código Florestal recentemente aprovado é quase um Código Antiflorestal. O Marco Civil da Internet está chafurdando em interesses dos grandes grupos de comunicação e das teles, e parece não haver força capaz de detê-los. Faltou que o Congresso Nacional, que é a casa da representação, se abrisse à sociedade como o Executivo se havia aberto na mesma questão. Isso demonstra claramente os limites da representação e quais são as possibilidades que a ação direta oferece. Esses dois exemplos merecem ser estudados com muito cuidado. Eles também mostram que o povo é mais sábio que os príncipes.



IHU On-Line - A partir das conquistas oriundas da Constituição de 1988, quais foram os principais avanços em termos de aprofundamento dos direitos dos trabalhadores e das minorias marginalizadas? Por outro lado, como podemos compreender a criminalização dos movimentos sociais como o MST e as demandas das populações atingidas por barragens, por exemplo?

Adriano Pilatti - A Constituição representou grande avanço sistêmico. Foi chamada pelo saudoso presidente Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã, nome extremamente feliz, pois ela ajudou a instalar no país uma cultura dos direitos. Claro que todos esses direitos que ali foram consagrados resultaram de movimentos que já existiam, mas que se expandiram enormemente a partir do marco normativo que a Constituição representou. Quem viveu o período pré-1988 sabe disso. O direito do consumidor era uma utopia, assim como os direitos da criança e do adolescente, os direitos ambientais, as questões de gênero. Lembro de um artigo do então senador Roberto Campos , o Bob Fields, o homem de confiança do Departamento de Estado norte-americano que ajudou a desencadear o golpe de 1964 e que foi o gestor de todas as maldades econômicas da primeira fase do regime militar. Ele escreveu um artigo indignado na Folha de S. Paulo, com um título falsamente rodrigueano e por isso pornográfico, “Elas gostam é de apanhar”, criticando o dispositivo constitucional que previa que caberia ao estado estabelecer meios para prevenir e reprimir o uso da violência no ambiente familiar. Hoje felizmente, Roberto Campos seria execrado se dissesse isso, mas na época podia fazê-lo com alguma tranquilidade. Em matéria ambiental é preciso destacar a constitucionalização que se dá em 1988 através dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e dos Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA). Claro que a devastação ambiental ainda é chocante no Brasil, mas temos que pensar o que seria do patrimônio natural brasileiro sem a normatização num único artigo saudado pela UNESCO. Ulysses Guimarães deu notícia desse expediente oficial da UNESCO no dia da promulgação da Constituição, saudando o Brasil por ter a constituição mais avançada em matéria ambiental. A autonomia do Ministério Público era também apenas um sonho republicano. A própria barreira de defesa que se estabeleceu em favor dos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores tem resistido bem às investidas do conservadorismo brasileiro, queria retirá-los da Constituição e da CLT e até hoje não conseguiu.



Criminalização da pobreza

A criminalização dos movimentos sociais é pura e simplesmente a continuidade dessa incapacidade das elites brasileiras de aceitar a ação política que vem de baixo. Os primeiros movimentos sociais criminalizados no Brasil foram a Confederação dos Tamoios, os quilombos, e, assim como os índios e quilombolas eram caçados, hoje os dissidentes pobres também o são. Entre eles, esses meninos que tomaram as ruas do Rio de Janeiro e que não querem ser traficantes, nem milicianos, nem policiais, mas também não querem ser “escravos remunerados” em sórdidos ambientes de trabalho. Eles querem ser cidadãos e são satanizados pura e simplesmente porque põem uma máscara no rosto, independentemente do que fizerem ou deixarem de fazer. O que poucos sabem é que, para muitos deles, que vivem em territórios onde os direitos civis não chegaram, territórios controlados por milícias, traficantes, etc., a máscara é um recurso de autodefesa, sem o qual seriam perseguidos ao retornarem para casa, ou perderiam seus empregos, porque muitos trabalham para os seus territórios de origem, onde os direitos civis não chegaram. O enunciado “se usa máscara, então faz vandalismo” é falso. A criminalização dos movimentos sociais nada mais é do que a dimensão coletiva da criminalização da vida dos pobres que permanece até hoje. O regime militar não acabou nas periferias, mudou apenas a cor do uniforme. Esse é o grande desafio que temos de perseguir: descriminalizar a vida dos pobres, porque a partir daí seus movimentos serão descriminalizados com maior facilidade.



IHU On-Line - Isso que o senhor está falando remete ao problema da colonização da política pela economia, não lhe parece?

Adriano Pilatti - Também, porque evidentemente o fator econômico é codeterminante nesses processos. Nós temos hoje um sistema econômico que é mundial. O que faz, portanto, com que os estados nacionais não tenham, por si mesmos, capacidade de enfrentar isso. Por que é que em todo o mundo os governos de esquerda com mais ou menos tempo acabam se desmoralizando? Não é porque os homens são maus ou porque os políticos são piores que os outros homens. É porque os estados nacionais já não têm capacidade de enfrentar um poder que é mundial. Isso o presidente Allende reconheceu no seu último discurso à Assembleia Geral da ONU, quando enunciou o que muito tempo depois diria Antonio Negri , um autor que hoje está sendo satanizado no Brasil. Negri é uma espécie de “Viúva Porcina” das manifestações. Esses meninos que saíram às ruas do Brasil não leram Negri, mas as categorias negrianas ajudam a explicar o que está acontecendo: trata-se do império. Allende denunciava a existência de um governo das grandes corporações mundiais. As soberanias nacionais estão esgotadas. O que significa que as formas de resistência têm também que se mundializar nesse eixo “cidade-mundo”. Desde os ciclos de 2010, 2011, antecedidos por acontecimentos como os de Seattle, Gênova e Chiapas, é isso que está se anunciando: a necessidade de uma resistência global, a necessidade de uma comunicação das lutas a partir das situações locais que são diversas, que são variáveis e múltiplas. O que acontece em Porto Alegre não é o que acontece no Rio, em Salvador ou Belo Horizonte, embora tenham um substrato comum negativo, que é a mundialização das formas de comando e exploração capitalista, e um substrato comum positivo, a renovada capacidade de resistência da multiplicidade de singularidades que trabalham. Mas em cada cidade isso se apresenta com as respectivas especificidades socioeconômico-culturais.

É por isso que os partidos, como estruturas nacionais, burocráticas e de alguma forma domesticadas pelo poder se queixam tanto desses meninos. Os partidos os tratam como massa e querem pautar, organizar, disciplinar e dar a palavra de ordem. Esses meninos não aceitam isso, felizmente, pois não referendam nada que não venha de baixo, de uma maneira horizontal. Então, a padronização nacional ou mesmo regional das metas partidárias não alcança a variedade dos processos que está em curso em cada cidade, porque cada cidade tem uma forma diferente de expressar os mesmos problemas e que se revela o grande e insanável conflito entre o trabalho vivo e o trabalho morto, a que chamamos capital.



IHU On-Line - Qual é a contribuição de Negri na compreensão do poder constituinte e da política na modernidade?

Adriano Pilatti - Exatamente essa percepção de que o constituinte sempre excede e ultrapassa o constituído. O constituído é mero produto, consequência, expressão na melhor hipótese, traição na pior hipótese, do que é constituinte. O que é constituinte é a vida, é o trabalho, é o desejo, é a cooperação. A contribuição de Negri é compreender a fonte de toda a vivacidade e produção biopolítica. É compreender as imensas transformações que o trabalho e, portanto, o capitalismo, vem experimentando nas últimas décadas. Portanto, aí está a necessidade de atualizar as velhas categorias da esquerda, de se “antenar” a esse novo mundo e chamar a atenção teoricamente para a contribuição de autores como Espinosa . Já no século XVII, quando todos ainda pensavam o absolutismo, esse filósofo já tentava pensar a democracia a partir da ideia de multidão e do múltiplo. Trata-se, portanto, de resgatar e recuperar as contribuições de Espinosa ao pensamento contemporâneo. Além disso, autores que equivocadamente são considerados estranhos ou distantes da tradição marxista, como Gilles Deleuze e Michel Foucault, justamente pela capacidade de compreender essas novas formas de expressão da vida, da resistência e de seus conflitos, podem inspirar uma atualização de um pensamento comprometido com a liberação da vida e encontrar na ideia de poder constituinte um fundamento teórico potente para essa perspectiva.



Intelectualidade ressentida

Em Império, Toni Negri faz um grande esforço de, no campo da sociologia política, tentar entender essas novas formas do governo mundial. Multidão, que é o livro seguinte e o último publicado no Brasil, tenta entender essa nova subjetividade política que não é uniforme e não é classe operária, mas uma outra coisa, que é essa confusão excedente e que corresponde justamente à própria variação do mundo do trabalho hoje que não é só mais a fábrica, do mundo da produção em que o hardware importa menos que o software. Falta traduzir para o português a última obra, que trata sobre o comum. Essa tetralogia, que engloba os livros Poder constituinte, (Rio de Janeiro: DP & A, 2002), Império (Rio de Janeiro: DP&A, 2003), Multidão (Rio de Janeiro: Editora Record, 2005) e Comune (Cuneo: Editore Rizzoli, 2010), traduz uma trajetória instigante e generosíssima de reflexões. Um processo de reflexão na ação que é fraternal, amoroso, que espelha uma inspiração franciscana de comprometimento não só intelectual, mas como prática, vivência, inserção e atravessamento do papel do intelectual junto aos pobres, com eles e por eles. Não como alguém que está distante das lutas dos conflitos, mas alguém que atravessa e se deixa atravessar naquilo que está acontecendo. Isso é o que inspira inclusive a rede de que participo, que é a Universidade Nômade . Trata-se da ideia do nomadismo, de caminharmos juntos com os que resistem e de atravessarmos esses grandes movimentos nos quais a vida e o desejo de viver, produzir e criar livremente se expressam.

Penso que essa inspiração é o que de fundamental o Negri traz. Isso é extremamente subversivo num país em que a intelectualidade historicamente tem uma tradição de colaboracionismo com o poder, e por isso alguns intelectuais de aluguel, ex-stalinistas que agora estão babando em seus pijamas liberais, estão aí como infiltrados da polícia a apontar o dedo para Antonio Negri, para Deleuze, para Foucault e para todos aqueles que estudam, refletem, militam e atuam no Brasil a partir dessas categorias. O que está acontecendo hoje nas ruas, as categorias negrianas conseguem explicar, por isso seu pensamento é mais uma vez criminalizado. E é criminalizado justamente pelos que se apegam a esse pensamento velho, comprometido, cúmplice, de uma intelectualidade falida e submissa ao poder midiático, submissa às grandes transações empresariais. Há um ressentimento profundo dessa intelectualidade que abriu mão de seu papel de esclarecimento e que está profundamente irritada com um mundo que não cabe mais nos seus “joguinhos de armar” conceituais. Creio que vêm daí toda a intolerância, a incompreensão e a tentativa de satanizar autores, livros, tradutores e pesquisadores. São pessoas que, francamente, deveriam levar mais a sério a própria biografia antes de recorrer a essas atitudes policiais.



IHU On-Line - A partir das ideias de Negri e da influência que Espinosa tem em seu pensamento, qual é a relevância de pensarmos em uma “obediência insensata” e o que essa categoria inspira no agir político?

Adriano Pilatti – Penso que outra grande contribuição de Espinosa e, portanto, uma influência importante sobre Negri, mas não só sobre ele, é justamente pensar as condições da servidão, o que leva homens e mulheres à servidão, quais os dispositivos externos e internos e a própria experiência existencial que produz essa tendência em aceitar o tirano. Acredito que as categorias que a partir daí podem ser desdobradas são muito ricas. Isso reforça a percepção de que toda a ação política que tende à liberação começa com a resistência, que existir é resistir, na expressão foucaultiana de que a resistência, em geral, é uma virtude. Muitos desses militantes e intelectuais que têm participado desses movimentos na Europa, no Mediterrâneo e no Brasil preferem, em vez de se definirem como socialistas, anarquistas ou comunistas, compreenderem-se simplesmente como “desobedientes”. Se eu tivesse de me impor uma definição, também usaria essa. Penso que diante de um sistema de poder que nega e trai a vida a todo instante, a virtude fundamental é desobedecer, é duvidar do tirano, é rir do poder. É não aceitar essa falsa majestade dos homens e mulheres que se apropriam dos poderes constituídos.



Filhos do Bolsa Família

Precisamos desafiar o poder com as armas da delicadeza, da ternura e da inteligência. Mesmo o poder que aparentemente expressa as nossas aspirações, porque o exercício do poder tende a alienar as pessoas. O poder faz mal a saúde. Vemos isso lamentavelmente hoje com a presidente Dilma e o PT, que não conseguem compreender a riqueza do que está nas ruas e que hostilizam esses meninos ou os ignoram, a exemplo do séquito de intelectuais que servem aos esquemas de poder e não conseguem ver nessas manifestações o primeiro e mais vigoroso resultado das políticas públicas que o próprio PT implementou. Esses meninos são filhos do Bolsa Família, do Prouni, são a expressão da equivocadamente chamada “nova classe média”, mas eles não querem só comer três vezes por dia. Eles querem ser livres. Eles querem uma vida boa. Então o PT no poder de repente recebe com estranheza aquilo que é consequência necessária do processo que ele mesmo instaurou. Quem trabalha a partir das categorias negrianas sabe que o poder constituinte não cessa, e que, portanto, a garantia de um ciclo de direitos pura e simplesmente vai abrir uma nova etapa de luta por direitos. Ninguém imaginava que isso fosse acontecer tão rápido, mas isso estava dentro da “desordem natural das coisas”. Há uma multidão jovem que de repente teve acesso aos bens mínimos e aos circuitos de comunicação virtual. Basta ver o endereço das meninas e dos meninos que são presos arbitrariamente no Rio de Janeiro: são em geral jovens do subúrbio que recusam “a vida como ela é” e que acreditam em lutar por outros mundos possíveis. Seu anarquismo é de internet, pobre em referências intelectuais, mas elas e eles têm uma capacidade de escuta enorme. Eles pedem aula o tempo todo, querem saber mais, querem se informar. São em alguma medida beneficiários das políticas do governo Lula que desejam levar adiante as lutas por direitos, e o PT e os governistas agora os rejeitam como se fossem os patinhos feios quando, na verdade, eles são os cisnes da democracia brasileira. Do mesmo modo, é também equivocada e covarde essa investida repressiva contra todos os adeptos da tática black bloc e toda a escalada de intimidações contra as manifestações que as forças de repressão federal, estaduais e até locais estão desenvolvendo. Não são as polícias que devem mediar o conflito entre os responsáveis pelos poderes constituídos e a multidão jovem nas ruas, é a política que deve fazê-lo, uma política aberta ao diálogo e à ação direta.



Criminalização das manifestações

O processo de criminalização das manifestações de rua, seja por parte do Estado, seja por parte da mídia oligopolista, é crescente desde junho. No Rio de Janeiro, o ápice até aqui foi a Noite da Vergonha, em 15 de outubro, quando cerca de 200 manifestantes foram detidos e mais de cem encaminhados às prisões, inclusive mais de 70 manifestantes que ocupavam pacificamente a escadaria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Ali ficou evidente, de uma vez por todas, que se trata de uma política de Estado. Ônibus foram previamente reservados para o transporte de uma massa de detidos e, em cada um desses ônibus, menores foram misturados com adultos para que estes fossem indiciados por corrupção de menores. Os detidos foram enviados para delegacias muito longínquas, no claro intento de dificultar o trabalho dos bravos advogados voluntários e evitar manifestações em frente às delegacias. Felizmente a imensa maioria foi liberada através de ordens de habeas corpus concedidas pelo Judiciário, que também determinou o arquivamento da maioria dos inquéritos, com apoio do Ministério Público, porque as acusações não resistiam ao menor critério legal. No entanto, restam ainda dois presos, dois negros pobres, o que bem retrata a desigualdade da Justiça entre nós. Desde então, um clima de intimidação foi criado, com apoio da mídia de negócios, no claro intento de esvaziar as ruas.

Criminalizar os manifestantes, reduzir a grandeza das manifestações a episódios isolados de depredação de patrimônio, prender indiscriminadamente são formas de inibir o desejo de ir às ruas, de fazer com que os jovens desistam de tomar parte nas manifestações. Além disso, as medidas lamentavelmente anunciadas pelo ministro da Justiça apontam para uma verdadeira conspiração contra o direito de manifestação, com a tentativa de submeter inclusive os juízes a uma política uniforme de prejulgamento e condenação. Tudo isto é gravíssimo, é uma afronta às liberdades, é um tapa na cara desses garotos e garotas que são perseguidos por se atrever a lutar “por uma vida sem catracas”. A primeira e única grande manifestação havida no Rio após as prisões em massa que foram feitas na Noite da Vergonha, de 15 de outubro, aquela que aconteceu em 31 de outubro pela liberdade, transcorreu sem o menor incidente. Qual foi o resultado? A mídia de aluguel mal noticiou, pois só dá destaque quando há problema. Essa é uma atitude irresponsável e criminosa da parte de concessionários de serviços públicos sobre os quais recai um ônus educativo e informativo. Qual é o sinal que esses traficantes da má informação estão dando aos meninos nas ruas? “Se não houver bagunça, vocês não terão visibilidade”, este é o sinal. É vergonhoso.



IHU On-Line - Para o filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov , a democracia no Ocidente é ameaçada por três inimigos internos: o messianismo, o neoliberalismo e o populismo. Qual é a pertinência dessa análise para o cenário brasileiro e latino-americano?

Adriano Pilatti - O messianismo é sempre um problema. Precisamos pensar em formas políticas que dispensem os profetas. O neoliberalismo acabou em 2008. Os tormentos que a América do Norte e a Europa vivem nesse momento demonstram bem que esse veneno monetarista e excludente só produz exclusão, sofrimento e pobreza. A categoria do populismo é uma categoria que precisamos analisar com alguma cautela. O Papa Francisco tem sido chamado de populista, termo com que conservadores e reacionários costumam tentar desqualificar quaisquer atores políticos comprometidos com reformas ou transformações sociais. No Brasil, o professor Darcy Ribeiro dizia isso claramente comentando a inesperada, para as elites, consagração popular do presidente Vargas nas eleições de 1950. E estava lá um intelectual paulista dos Jardins que escreveu um libelo indignado criticando “aqueles homens sujos, maltrapilhos, sem dentes na boca, descalços, em festa pelas ruas”. Aí Darcy Ribeiro diz algo fantástico: “Então a academia paulista inventou o conceito de populismo para poder odiar teoricamente o eleitorado”.



Populismo e tradição golpista

O conceito de populismo sempre foi usado de maneira muito perversa no Brasil, para poder homologar o que era adverso. Se não fosse assim, como seria possível colocar no mesmo saco Jango e Jânio Quadros , Getúlio Vargas e Ademar de Barros ? Então para que serve o conceito? Para distinguir. Um conceito que nada distingue é um problema. O termo populismo faz parte da tradição moralista do golpismo brasileiro. É o termo preferido com que as elites procuram desqualificar, desde os anos 1950, qualquer governo que tenha compromissos mínimos com as camadas populares. Foi satanizado como populista Getúlio, no governo constitucional que o redimiu, um governo que deixou para o estado brasileiro aquilo que ele tem de melhor: Petrobras, BNDES, CNPQ, Capes. Tudo isso veio do segundo governo Vargas. Foi classificado como populista Arraes , que tentou fazer a emancipação do campesinato pernambucano. Foi classificado como populista Jango, o grande líder democrático e reformista, muito mais ousado do que Lula. Foi satanizado como populista, até a sua morte, Leonel Brizola. Requião hoje e o próprio Lula também são intitulados de populistas. Então, trata-se de um termo que faz parte do léxico moralista da direita golpista no Brasil.

Vejo com muita reserva o uso desse termo quando ouço até o Papa Francisco ser classificado como populista e demagógico. [O jornal] O Globo, não contente em fazer oposição aos pobres e aos governos que expressam os pobres no Brasil, agora quer fazer oposição ao Papa. Trata-se de um termo que vejo com alguma cautela, porque ele pode ser usado para tentar desqualificar qualquer projeto político que tente expressar ou se deixa atravessar pelos movimentos e pelas aspirações populares.



Leia mais...

Adriano Pilatti já concedeu uma entrevista à IHU On-Line:

* “A Constituição de 1988 ainda não esgotou seu potencial de liberação da vida e de promoção da igualdade.” Edição 428, de 30-09-2013.


Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5295&secao=433

Militares, ciências, Educação Popular.

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