Uma advertência aos palacianos de
todos os matizes
Roberto Romano/Unicamp.
As manifestações de massa interessam
a todos os regimes, da ditadura à democracia. Existe um saber acumulado sobre o
fenômeno, com várias explicações para ele. O fato ocorre desde que os homens se
reúnem em coletividades. Ele se notabiliza na democracia de Atenas e nas
revoltas da plebe romana contra os aristocratas. Na Idade Média, após a prisão
dos pobres nos feudos (laicos ou da Igreja), multidões se
espalham pela Europa. A única fuga dos que viviam sob os nobres era a
peregrinação aos santuários, que recebem milhares de peregrinos. É o caso de
São Tiago de Compostela e das catedrais dedicadas à Virgem Maria. Os camponeses
deixam os domínios feudais, apreciam as estradas, as periferias urbanas
renascentes, as feiras. E não retornam ao lugar de servidão. “O ar das cidades
liberta”. Como as corporações citadinas só empregam os filhos e apadrinhados dos seus integrantes, falta emprego
para os que fogem dos campos. Eles se dedicam a tarefas ilegais como o roubo,
sequestro, assassinato, etc. As cidades se tornam perigosas para a vida comum e para o comércio. Nos séculos 13 e 14 os
frades mendicantes (franciscanos e dominicanos sobretudo), servem como
“pacificadores” de rebeliões, afastam as vinganças dos que têm familiares
mortos, assaltados, etc.
No moderno Estado absolutista a massa
(a Mob…) causa revoltas e atentados contra os governantes. Entre os teóricos
políticos se retoma a ojeriza contra a plebe, o povo perigoso e inculto. Povo e
ralé são identificados e os movimentos populares contra os abusos dos
aristocratas e reis são esmagados. É o que ocorre com a revolta dos camponeses
alemães, sufocada pelos exércitos principescos com as bençãos de Martinho
Lutero, de um lado, e da hierarquia católica de outro.
No século 17 inglês a Revolução
puritana derruba o rei, corta a sua cabeça e instaura a igualdade legal dos
cidadãos. Milton, o poeta do “Paraíso
Perdido”, republicano convicto, redige o clássico “The Tenure of Kings and
Magistrates”, onde defende a liberdade de imprensa e o
dever, para as autoridades, de prestar contas ao povo soberano das finanças e
dos recursos humanos do Estado. Não por acaso o partido plebeu que conduz a
mudança rumo à democracia chama-se “Os Niveladores” (The Levellers).
“Accountability” é o nome dado para a prestação de contas, nas democracias
instauradas no século 18 nas colônias inglêsas da América. Na França a mesma
exigência foi estabelecida para os governantes.
No Brasil, os partidários do regime
democrático foram esmagados pelo poder colonial português e pelo Império. Aqui
os seguidores de Francis Bacon, John Locke, Voltaire, Diderot e outros
luminares das Luzes, foram exterminados nas várias revoltas liberais que
surgiram de Norte a Sul nos séculos 18 e 19. As massas, bem ao modo
absolutista, continuaram a ser vistas com desconfiança e horror pelos
operadores do Estado. Era a “gente ordinária de vestes”. Ordinária porque no
Antigo Regime certas cores de vestimentas, certos tecidos, etc, eram
privilégios dos nobres e clérigos.
Embora esmagadas pela repressão, as
massas expressam seu inconformismo contra a autocracia estatal. Durante a
ditadura de 1964 tivemos as manifestações pelas diretas, pela anistia. Depois veio
o movimento contra Collor e as demonstrações,
em 2013, de repulsa às péssimas políticas públicas brasileiras, transporte,
água e esgoto, segurança, saúde, educação, etc. Elas também impediram
atrocidades planejadas pelos parlamentares como a abolição da lei da Ficha
Limpa, a máxima atenuação da Lei de Improbidade Administrativa, o emasculamento
do Ministério Público na PEC 37. Agora as multidões mostram sua indignação
contra os corruptos de todos os partidos e poderes, exigem responsabilidade
(accountability) dos governantes.
Ver perigo no povo reunido é
próprio de mentes contrárias à república e à democracia. Os ideológos e
palacianos que se limitam a definir as massas com suas carcomidas etiquetas
(“esquerda”, “direita”) devem pensar em vez de distribuir slogans. A má fé
grassa quando eles dizem que na Paulista existiu coro unânime em prol do
retorno dos militares. A mentira salta aos olhos: basta ter seguido de fato as manifestações, usar o juízo sem recorrer às
tolices partidárias. Basta ser honesto intelectualmente. Resta dizer aos parasitas do Estado que habitam os palácios, desprezam
ou temem a cidadania : “respeitem e prestem contas ao povo soberano!”.
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