A
Nova República acabou, diz filósofo Vladimir Safatle
Centenas de milhares de pessoas são
esperadas em protestos contra a corrupção e o governo Dilma por todo o país
neste domingo. Dois dias antes, milhares de manifestantes foram às ruas de
várias cidades defender o governo democraticamente eleito. Entre defensores da
situação e da oposição há uma disputa pelo poder, e o país parece enfrentar um
teste de estresse político inédito, como avaliou o cientista político André Singer. Para o filósofo Vladimir Safatle,
entretanto, o momento é muito pior de que as pessoas querem admitir, mas não
estamos passando por uma simples disputa entre PT e PSDB, pois o problema é
mais amplo e atinge todo o sistema político nacional. "Nesse momento da
história, é necessário ter claro o fato de que a Nova República acabou,
morreu", disse.
A entrevista é de Daniel
Buarque, publicada pelo portal UOL, 15-03-2015.
Safatle é professor
livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo).
Segundo ele, nem mesmo durante a ditadura houve uma depressão sociocultural
como a atual, e as manifestações populares são um sinal do esgotamento nunca
antes visto do modelo político - um problema que vai além da corrupção e a
crise de representatividade. "Trocar o PT por outro partido não muda nada.
É como trazer Dunga de volta à seleção brasileira após a
derrota na Copa. Continuamos aprisionados ao processo", disse. "Se é
verdade que os partidos políticos fazem parte dos protestos, é piada achar que
as passeatas podem fazer diferença."
Safatle acredita que
o governo Dilma já naufragou. Segundo ele, entretanto, a
solução passa não por impeachment, mas por uma reforma ampla do modelo
democrático que aumente a participação da sociedade nas decisões políticas.
"O país está em ebulição, procurando novas formas desesperadamente",
disse.
Eis a entrevista.
Há setores da sociedade falando em
impeachment atualmente, e há quem acuse esses setores de serem golpistas. O que
o senhor acha das atuais manifestações?
O estranho das
manifestações atuais é saber o que elas querem. Vão afastar o governo para quê?
Não se fala em estabelecimento de uma nova ideia de política no país. Se é
verdade que os partidos políticos fazem parte dos protestos, é piada achar que
as passeatas podem fazer diferença.
Mesmo assim, essa manifestação é só a
primeira. O país não vai ficar quatro anos paralisado. O governo Dilmacometeu
dois erros mortais. Primeiro ele desmobilizou o próprio campo numa situação de
tensão, e mesmo as pessoas que circulavam em torno do núcleo ideológico do
governo foram desmobilizadas quando ela mudou o encaminhamento econômico e
parou de governar. Segundo, ela transformou o medo no aspecto político central
da sua campanha. O governo já naufragou. A questão é saber se a esquerda vai
naufragar junto com ele.
Vivemos atualmente uma instabilidade
política em meio a comemorações de 30 anos da redemocratização. A democracia
brasileira está consolidada? Pode-se dizer que o Brasil é uma democracia de
fato?
O Brasil é uma
neodemocracia. Precisamos de mais conceitos para compreender situações como a
brasileira. Não há só dois conceitos em oposição, não é uma questão apenas de
democracia ou regime autoritário. A situação do Brasil é um tipo de experiência
política em que se tem uma série de garantias democráticas, mas também se tem
uma permeabilidade a forças de fora do espectro político que interferem de
maneira tal na aplicação da lei e que fazem com que não possamos falar em
democracia no sentido completo do termo.
Apesar disso, é
falso chamar de "democracia incompleta". O certo é dizer que é uma
neodemocracia que gira em torno dos seus impasses há 30 anos. Do final dos anos
1980 até hoje a democracia não se aperfeiçoou, e os seus problemas ficaram mais
evidentes, como a baixa participação popular, um sistema parlamentar que produz
distorções no sistema representativo e perpetuação de castas que interferem no
sistema, interferências econômicas inacreditavelmente altas nos processos
eleitorais.
Nesse momento da história, é
necessário ter claro o fato de que a Nova República acabou,
morreu.
O que isso quer dizer? Quais são os
impactos disso para o sistema democrático e para o país?
A Nova República foi,
entre outras coisas, um modelo de construção pós-ditadura na qual a governabilidade
era compreendida através da cooptação de uma parte da classe política que se
desenvolveu na própria ditadura, e da gestão de toda essa massa fisiológica da
política brasileira vinculada a interesses locais. Foi assim no governo de Fernando
Henrique Cardoso, com apoio de Antonio Carlos Magalhães e
do PFL, e foi assim no governo Lula, com Sarney.
Nos dois casos, o PMDB era o grande gestor da fisiologia
política.
Esse modelo se esgotou completamente.
A produção de grandes atores políticos, do PT e do PSDB,
se desmontou. Esses dois núcleos se esgotaram por completo. Ninguém mais espera
que o processo de modernização nacional possa ser feito a partir de propostas
desses dois grupos. Os dois já foram testados e demonstraram limites muito
evidentes. Ninguém vai conseguir fazer nada continuando este modelo.
O trágico é que
quando uma coisa termina, ela não acaba necessariamente logo, e pode continuar
como zumbi, como morto-vivo, e o país fica paralisado por muito tempo. Nada
está acontecendo, apesar de todos os embates atuais. O fim do modelo é trágico,
e leva consigo os atores políticos, intelectuais e formadores de opinião.
E como fica a democracia nesse
processo de esgotamento do modelo?
As experiências de
democracia liberal, este modelo esgotado, negligenciaram a inteligência prática
das pessoas que são afetadas pelas decisões políticas. Existe o problema de
pensar que só há política sob o império da representação. Isso é um absurdo e
limita a capacidade de pensamento. A filosofia já abandonou essa questão da
representação como elemento decisivo. A ideia de representação é equivocada, e
as pessoas têm medo de discutir formas alternativas pensando que isso é um
convite ao autoritarismo. Não é. Podemos abandonar a ideia de representação sem
implicar em unidade totalitária.
O problema da
representação é que quando ela se organiza, ela diz quais são as condições para
a pessoa ser representável. Quem organiza o espaço de representação define quem
ocupa o poder. Criam-se limitações para a participação política e excluem-se
uma quantidade enorme de pessoas.
O Brasil vive um processo em que cada
vez menos pessoas votam. Isso se repete em muitos outros países, e não é uma
questão de confiança no sistema político, mas de descontentamento mesmo em
democracias ditas consolidadas, comoInglaterra, Alemanha, França e Itália.
Mesmo esses países vivem uma degradação de modelo de democracia representativa.
Qual a alternativa ao sistema de
representação, então?
Dentro do contexto
atual, é importante ter mais ousadia de pensamento. Acredito na fragmentação da
democracia direta, e isso não é discutido mais nem em universidades.
Temos condições
técnicas para implementar uma democracia digital, se utilizando da facilidade
tecnológica para ter alta participação popular. Não precisamos criar um sistema
de representação por impossibilidade de participação. Isso acabou. Podemos,
sim, passar gradativamente atribuições de todos os poderes para a participação
popular, com capacidade de deliberação. E os poderes se transformam em poderes
de implementação de decisões que não são tomadas por eles, mas pela
participação popular.
Claro que ninguém é
ingênuo de achar que isso é implementado de repente e por mera vontade
política. O que é imperdoável é que não se tente, não se teste isso, nem que
seja em pequena escala. Isso permitira que toda a população tivesse consciência
das possibilidades de outras formas de poder e organização do Estado, e sua
relação com a sociedade civil, organizada ou não.
O país está em
ebulição, procurando novas formas desesperadamente. O país tem consciência de
que chegou ao esgotamento e que não quer continuar nesse modelo esgotado.
O senhor mencionou problemas em
democracias da Europa, que costumam ser vistas como modelos mais consolidados.
Existe um modelo ideal a ser seguido para fortalecer a democracia?
Ninguém nunca
esperou a democracia perfeita. A democracia está em processo constante de
construção e desconstrução. Uma democracia forte não tem medo de desconstruir
suas instituições. O fundamental é a presença contínua do poder constituinte.
Várias democracias consolidadas
tiveram mudanças institucionais drásticas, como a França no
final dos anos 1960, refundando a república. Precisamos de uma república nova
no Brasil hoje. Não precisamos defender as instituições, mas desconstruir as
instituições que funcionam mal. Eu não vou defender o Congresso, pois suas
estruturas estão equivocadas. Precisamos de uma discussão profunda sobre o
modelo de instituições que queremos. O problema é que a discussão acontece com
pessoas que se aproveitam do sistema atual.
Mesmo com toda a instabilidade, há
quem diga que este é o momento mais democrático pelo qual o Brasil já passou,
olhando sob a perspectiva histórica. O que o senhor acha?
De fato, do ponto
de vista do funcionamento democrático, pode parecer que já passamos por
situações piores. Claro que não podemos comparar o momento atual com a
ditadura, que é a antipolítica por excelência.
Dentro da
experiência democrática brasileira, comparando com o período entre 1945 e 1964,
entretanto, esta é a primeira vez que a população brasileira olha para o futuro
e não vê algo possivelmente diferente do que ela viu até agora. Entre 45 e 64
havia um processo em massa, apesar dos conflitos brutais e tentativas de golpe.
Havia a expectativa de uma tomada democrática do poder, de uma implementação de
reformas. Havia um projeto que pensava no futuro. De 1985 para cá, houve algo
parecido, em dois projetos de modernização nacional. O problema é que esses
dois projetos acabaram. Pela primeira vez na política brasileira temos mais de
que uma crise de representação, mas o vazio de atores políticos. Ninguém
consegue mobilizar a população brasileira. Nesse contexto, a situação atual
brasileira é de fato a pior possível.
Esse tipo de
situação, em que países dão menos de que podem dar, cria uma depressão
política, econômica e social, e os países ficam menores de que eles são. Não
tem nada pior. Nem mesmo durante a ditadura havia uma depressão sociocultural
como temos hoje, pois existia uma força de contraposição, que aumentava
gradativamente.
O que poderia ser mudado? Como
melhorar o sistema que está em crise?
A primeira coisa
que é preciso fazer é admitir que estamos nessa situação. Acabou. É preciso que
todo mundo fale isso em voz alta para podermos produzir uma nova situação.
Trocar o PT por
outro partido não muda nada. É como trazer Dunga de volta à
seleção brasileira após a derrota na Copa. Continuamos aprisionados ao
processo. Precisamos de uma consciência clara de que esse é um modelo singular,
de esgotamento nunca antes visto. Enquanto não percebermos que acabou, nada vai
acontecer.
Vivemos agora a
lógica dos pequenos problemas, da corrupção, do estado inchado, quando na
verdade o problema é muito maior. Todos os escândalos de corrupção dos últimos
13 anos envolveram todos os partidos relevantes do Brasil. Isso significa que
trocar de partidos no interior do modelo de governabilidade é continuar uma
piada. O modelo de governabilidade é o grande problema.
O que o senhor acha do debate a
respeito de uma possível reforma política?
Todo mundo sabe que
não haverá reforma política. A reforma política que se propõe é pior de que a
situação atual. O Brasil hoje é uma partidocracia. Os partidos vão tentar
instituir o monopólio da representação política brasileira. Não é crível
esperar que uma reforma política seja feita dessa maneira. Existe uma baixa
densidade de participação popular em processos decisórios de estado. A
população só é convocada para eleições a cada quatro anos. A população não tem
poder de deliberação.
O que tem que ser posto é de uma
Constituinte exclusiva para a reforma política. Isso tem que ocorrer fora do
parlamento e do processo de escolha determinado pelo parlamento. A Europa pensou
sobre isso depois de 2008, e o caso daIslândia é paradigmático.
Eles fizeram uma Constituição fora do Parlamento. É preciso fazer um processo
em que não são os políticos que são eleitos. Em crise de representação vai-se
ao grau zero de representação, aproximando o máximo possível da presença
popular, reconstruindo a estrutura institucional a partir disso. A Assembleia
tem que ter pessoas simples participando, professores, enfermeiros, pessoas
comuns, e não só políticos.
Precisamos de
criatividade política. Os países que conseguem mobilizar a população são os que
saem da crise. Ter medo, pensar em riscos para a democracia, vai nos deixar num
processo infinito de degradação.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/540865-a-nova-republica-acabou-diz-filosofo-vladimir-safatle
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